1. Introdução
A interdisciplinaridade, conceito forjado a partir dos anos 1960, tem sido mundialmente disseminada em pesquisas, reflexões e ações de ordem epistemológica, metodológica e ontológica, sobretudo nos estudos empreendidos por Fazenda (2001), Japiassu (1990 e Morin (2011). Muito embora o conceito ganhe representatividade em diversas partes do mundo, Lenoir (2005) chama a atenção para o fato de que a interdisciplinaridade é um conceito polissêmico, que apresenta interpretações diferentes a partir de lógicas culturais distintas, o que explicaria certa divergência de sua compreensão em diferentes grupos. Sob esta mesma lógica, há que se considerar, também, os esforços empreendidos por Sommerman (2006), Pombo (2008), Fazenda (2007, 2008) e Pasquier e Nicolescu (2019) em tentar categorizar o que se entende por multidisciplinaridade, pluridisciplinaridade, interdisciplinaridade e transdisciplinaridade, a fim de delimitar um marco teórico para as investigações acadêmicas e para as práticas em sala de aula no que se refere a este conceito.
No caso deste artigo, assumimos o marco teórico da interdisciplinaridade enquanto “atitude de ousadia diante da questão do conhecimento” (Fazenda, 2008, p. 13), incorporando as metáforas que apresentam a interdisciplinaridade como pontes entre as disciplinas que lhes revelam o sentido em uma perspectiva epistemológica, metodológica e ontológica.
Considerando este percurso teórico, este trabalho tem por objetivo compreender o que professores de uma escola de Ensino Fundamental, cujo currículo está organizado em projetos interdisciplinares a partir dos anos finais, pensam sobre a interdisciplinaridade e como organizam suas práticas educativas, considerando os princípios e o contexto da escola, expressos em seu Projeto Político-Pedagógico. A partir do que dizem os docentes, da observação de suas práticas e da análise do Projeto Político-Pedagógico da escola, este artigo discute a relação entre a teoria da interdisciplinaridade e as práticas educativas. Espera-se que tais reflexões contribuam com o campo da formação de professores, sobretudo no que tange a iniciativas de efetivação de um currículo interdisciplinar.
2. Discutindo Conceitos e Inter-Relações
2.1. A Questão Da Interdisciplinaridade
Falar de interdisciplinaridade exige uma reflexão acerca de seu sentido etimológico, como afirma Salvador (2006). Para a autora, o prefixo ‘inter’ apresenta a ideia de estabelecer ligações, a palavra ‘disciplina’ apresenta um campo de conhecimento específico e o sufixo ‘dade’ a ideia de movimento. Interdisciplinaridade seria, portanto, o movimento existente entre determinadas disciplinas. Ou seja, a partir desta análise, depreende-se que a interdisciplinaridade só existe porque existem as disciplinas e que ela ocorre justamente nos pontos de convergência (ou de ligação) entre elas.
Nesse sentido, a interdisciplinaridade se constitui como uma abordagem teórico-prática que orienta tanto pesquisadores quanto docentes a analisarem os fenômenos a partir de diferentes perspectivas. Isso não significa, contudo, acreditar que “tudo tem relação com tudo”, mas ter consciência de que há uma imensa rede de conexões entre diferentes disciplinas e que precisam ser consideradas para o sucesso de uma análise mais profunda e integral.
De acordo com Souza et al. (2020), compreender a perspectiva interdisciplinar exige investigar quais são os pontos de convergência existentes entre as disciplinas envolvidas, seja no âmbito educacional ou no âmbito científico. Este movimento é muito maior do que, simplesmente, “juntar disciplinas”. O grande segredo de um trabalho interdisciplinar é justamente identificar quais são as relações existentes entre as disciplinas, objeto de determinado estudo, projeto ou aula, e não a tentativa de destruir as disciplinas em função da criação de uma possível metadisciplina. Obviamente que, na prática, este movimento se torna mais complexo e carece de aprofundamento teórico, seja no campo da pesquisa, seja no campo da ação educativa, pois, como já afirmava Santos (1996), as fronteiras entre os diferentes campos de conhecimento estão cada vez menos definidas.
O desenvolvimento atual da ciência apresenta duas características importantes para uma reflexão sobre a interdisciplinaridade. A primeira, clara e bem estruturada, refere-se à superespecialização das várias disciplinas nas quais foi dividido o conhecimento. A segunda, mais difusa, diz respeito às diversas tentativas de reversão desse processo e busca de diálogo entre diferentes áreas do conhecimento. Três constatações podem ser feitas, tendo como base essas características (Domingues, 2011):
A efetividade da superespecialização. A especialização permitiu obter avanços científicos e realizações tecnológicas dificilmente imagináveis no quadro do holismo clássico (Antiguidade e Idade Média);
Limites da especialização. A análise (no sentido de subdivisão) de um objeto não parece ter fim. Quando o átomo é identificado como unidade última da matéria, surgem partículas e subpartículas;
Pressentimento do fim do especialista, da mesma forma que, no passado, foi decretado o fim do generalista.
A interdisciplinaridade pode ser vista - pelo menos em sua dimensão epistemológica - como uma busca de superação desses limites, particularmente pelo esgotamento pressentido da especialização no tratamento de certos temas e objetos de pesquisa, como discutido a seguir.
No Brasil, podem-se identificar duas importantes vertentes no desenvolvimento da interdisciplinaridade. A primeira, cuja origem pode ser rastreada até aos trabalhos de Hilton Japiassu (1976, 1990), apresenta um registro marcadamente epistemológico. Considera-se, nesse caso, a fragmentação da ciência como uma barreira epistemológica (Japiassu vai falar de uma doença, uma patologia do saber), limitando as possibilidades do avanço do conhecimento. O autor argumenta que há objetos de conhecimento cuja extensão e complexidade exigem uma abordagem interdisciplinar, pois precisam ser estudados enquanto totalidade. A análise fragmentada (disciplinar) proposta pela ciência moderna não é suficiente para fazer avançar o conhecimento sobre esses objetos. Um exemplo bastante comum é o estudo do meio ambiente, cujo objeto se encontra na interface entre sociedade e natureza e para o qual, segundo a abordagem interdisciplinar, somente a multiplicidade integrada de várias disciplinas pode gerar conhecimento novo e relevante.
Essa primeira abordagem trata fundamentalmente da questão epistemológica da interdisciplinaridade. É aquela na qual a precisão conceitual e terminológica é acentuada, buscando uma hierarquia da integração de disciplinas, indo do pluri e do multidisciplinar até ao inter e o transdisciplinar. Esse movimento pode gerar reações subparadigmáticas (Santos, 1996), nas quais a coabitação e a interpenetração de diferentes disciplinas criam uma nova disciplina, como no caso da biologia molecular (integrando ideias e ferramentas da química e da biologia) ou dos estudos sobre genoma (integrando ideias e ferramentas da genética e da informática). Gera também propostas de superação das disciplinas e derretimento das fronteiras entre elas. A preocupação primeira, nessa vertente epistemológica, é a geração de conhecimento novo e os obstáculos que a fragmentação disciplinar pode criar nesse sentido.
A segunda vertente no desenvolvimento da interdisciplinaridade liga-se à apropriação do conceito pela pedagogia. Aqui, os trabalhos de Fazenda (2006, 2008, 2011, 2014) são exemplares. Nessa vertente, a interdisciplinaridade é entendida como “uma colaboração ou troca entre praticantes de diferentes disciplinas, de modo que tais disciplinas manteriam uma relação de reciprocidade, de mutualidade ou, melhor dizendo, um regime de copropriedade, de interação que irá possibilitar o diálogo entre os interessados” (Fazenda, 2011, p. 162). Trata-se, portanto, de um registro no mundo social, entendendo a interdisciplinaridade enquanto atitude dos praticantes diante do conhecimento.
Tem-se, assim, uma dupla dimensão do conceito: cognitiva e racionalista, ligada ao conhecimento, na primeira dimensão; volitiva e atitudinal, ligado ao conhecedor, na segunda.
2.2. Os Diferentes Níveis da Questão
A percepção das limitações de uma abordagem epistemológica não aponta de imediato os caminhos para a sua superação. Dos tateamentos teóricos às explorações práticas nos estudos de novos problemas (ou na reanálise dos antigos), diferentes abordagens foram se delineando. A reflexão sobre essas múltiplas tentativas construiu uma nomenclatura que apenas apresentamos aqui. Seguimos as ideias de Fazenda (2011), que as adaptou de propostas de Japiassu (1976, 1990). Para a autora, podemos pensar as diferentes tentativas ou abordagens que buscam superar o disciplinar em níveis de integração e complexidade:
O primeiro nível seria o multidisciplinar, no qual as diversas disciplinas se encontram lado a lado, mas não dialogam, não se “conhecem”. As contribuições integradas para o conhecimento de um objeto ou fenômeno são episódicas e acidentais;
No nível seguinte, o pluridisciplinar, as disciplinas trocam experiências e metodologias, embora não criem conhecimento fora de si próprias. Trata-se mais de apropriação (de experiências e métodos) do que diálogo;
O terceiro nível - o da interdisciplinaridade, no qual nos instalamos neste artigo - é o nível de integração sistemática, no qual se estabelece o já mencionado “regime de copropriedade” entre as disciplinas, no qual os conteúdos transitam entre as fronteiras disciplinares. Do ponto de vista da apropriação pedagógica da interdisciplinaridade, que nos interessa aqui, esse é também o nível no qual a atitude de abertura para o outro se impõe, na qual se exercita a confrontação de visões de mundo, linguagens, procedimentos, pontos de vista e conhecimentos. Mas, principalmente, na qual se exercita a escuta e a espera;
O quarto nível, da transdisciplinaridade, aparece como fusão de disciplinas e desaparecimento de fronteiras. Trata-se muito mais de um sonho do que de uma realidade e, na crítica de Gusdorf (2003), um sonho perigoso, por embutir uma ideia de transcendência, de instância científica superior que, por seu caráter impositivo, negaria a própria condição do diálogo.
2.3. Interdisciplinaridade e Prática Pedagógica
Considerando essas questões, pensar o processo interdisciplinar a partir da perspectiva educativa envolve analisar também o professor, sua formação e o contexto em que atua, uma vez que, em um projeto interdisciplinar, a dimensão da experiência é um fator essencial.
A interdisciplinaridade, no contexto deste estudo, situa-se na perspectiva do currículo e da escola, ou seja, na dimensão das aprendizagens dos alunos e nos mecanismos de ensino do professor. Sob essa perspectiva, assumimos aqui as dimensões críticas e pós-críticas do currículo, que vão além de procedimentos, técnicas e métodos, como já apontavam Moreira e Silva (1995).
Outro aspecto importante neste estudo diz respeito às discussões acerca da posição de centralidade que alunos e professores ocupam (ou deveriam ocupar) nos currículos e nas práticas educativas. Para a interdisciplinaridade, é preciso um movimento de reciprocidade, aberto à atividade investigativa, que oriente as atividades realizadas na escola, ou seja, um currículo construído sob a perspectiva da prática.
Estas questões estão muito além de uma reflexão sobre currículo e interdisciplinaridade a partir apenas da organização por disciplinas. Extrapolar esta perspectiva exige a transformação das relações pedagógicas existentes na escola, a partir da conscientização de sua função social, das relações de poder que nela coexistem, da reflexão na prática, sobre a prática e pela prática, e de processos formativos que considerem a complexidade de relações existentes na escola.
Nesse sentido, o professor não é mero espectador do currículo, ele é ator protagonista nesta trama, por isso deve refletir também sobre como age e sob quais aspectos sua prática está alicerçada. Seu papel é fundamental no processo de aprendizagem, no entanto, não mais como aquele que detém o poder do conhecimento, mas como mediador, aquele que ajuda o aluno a se guiar durante o processo de aprendizagem. É quem faz as perguntas, quem instiga e mobiliza, quem exerce o papel de tutor. Quando o professor se comporta assim, o aluno se sente mais confortável em buscar respostas para as suas dúvidas e compor suas descobertas.
Para realizar um trabalho interdisciplinar, a relação entre professor, aluno, escola e família precisa estar permeada pelo diálogo, atividade fundante do processo de construção do conhecimento, no sentido do que preconiza Arroyo (2011): as escolas e seus currículos precisam estar “mais abertas à dúvida e às indagações que vêm do real, das vivências que os próprios educandos e educadores carregam, além de fazer das salas de aula laboratórios de diálogos entre conhecimentos” (p. 37).
3. Metodologia
Este texto apresenta os resultados de uma investigação qualitativa, em que participaram oito professores de uma escola de Ensino Fundamental de uma cidade do Vale do Paraíba Paulista - Brasil, que tem uma proposta de currículo orientado a projetos, e que foram indicados pela diretora da escola como aqueles que são reconhecidos por possuírem práticas interdisciplinares. A participação dos docentes foi voluntária e autorizada pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Universidade de Taubaté sob o protocolo 1.324.547, de novembro de 2015.
Como instrumentos para a coleta de dados foram utilizados: (i) recolha documental do Projeto Político-Pedagógico da escola; (ii) entrevistas individuais com os professores; e (iii) observação da rotina da escola e das práticas dos professores entrevistados.
O Projeto Político-Pedagógico foi analisado considerando a história da escola, sua organização curricular e orientação para a interdisciplinaridade. A observação foi realizada em um período de três meses, três vezes na semana, com uma variação diária de entre três e seis horas. O roteiro de observação foi elaborado considerando: (i) o espaço escolar (sua divisão, disposição de mobiliário, materiais e organização); (ii) a prática pedagógica (as metodologias utilizadas, a proposição de atividades individuais e em grupo e os recursos utilizados); (iii) a relação professor-aluno (como se apresenta e se há elementos nela da atitude interdisciplinar proposta por Fazenda (2001, 2008)); e (iv) a relação aluno-aluno (como acontecem as interações entre os alunos e se há resistência por parte deles).
As entrevistas foram elaboradas a partir de um roteiro semiestruturado, agendadas considerando a disponibilidade dos professores e realizadas presencialmente na escola. Foram gravadas em mídia digital, transcritas e tratadas inicialmente pelo software IRaMuTeQ (Interface de R pour les Analyses Multidimensionnelles de Textes et de Questionnaires). Este software realiza uma análise textual do corpus proposto, dividindo, inicialmente, esse corpus em segmentos de texto menores (cerca de 35-40 palavras cada) para, em seguida, agrupar esses segmentos de texto em classes segundo o grau de associação entre eles. Essa associação é feita por meio de uma análise de coocorrência de palavras nos vários segmentos. Formalmente, o software utiliza uma Classificação Hierárquica Descendente (CHD) para constituir um conjunto de classes distintas a partir das quais se faz uma análise de conteúdo do texto (Camargo & Justo, 2013). Observe-se que o software não cria classes de indivíduos, mas classes de “falas” dos indivíduos, ou seja, das temáticas presentes em todas as respostas das entrevistas.
Os resultados foram triangulados, considerando as proposições de Minayo et al. (2005), e analisados a partir da técnica da análise de conteúdo, proposta por Bardin (2011). Neste texto aprofundaremos os resultados de uma classe temática específica, advinda das entrevistas, referente ao tema “Interdisciplinaridade e Práticas Pedagógicas”, que representou 30,6% da fala total desses professores. Nesta discussão é considerada a triangulação entre os elementos do Projeto Político-Pedagógico da escola, os aspectos detectados na observação participante e o referencial teórico que orienta a Teoria da Interdisciplinaridade.
4. Resultados e Discussão
4.1. Caracterização dos Professores e da Escola
Dos oito professores participantes deste estudo, cinco são homens e três são mulheres, com tempo de docência que varia entre dois e quinze anos. Quanto à formação inicial, todos possuem licenciatura em sua área de atuação na escola. Dois, dos oito professores, possuem formação em outra área de conhecimento, além da docência: um é também designer digital e outro engenheiro, ambos atuando na área. Cinco docentes atuam exclusivamente com estudantes dos anos finais do Ensino Fundamental, uma docente atua exclusivamente nos anos iniciais e dois docentes atuam em ambos os segmentos. Cabe destacar que uma professora - a professora 8 - é também diretora da escola.
A escola, fundada em 1977 como lar assistencial para crianças em situação de vulnerabilidade social, foi até ao ano de 2017 a única escola do bairro trabalhando com o Ensino Fundamental. Atualmente é mantida por professores, alunos, ex-alunos, pais, pais de ex-alunos e comunidade em geral, subsidiada pelo trabalho voluntário, oferta de serviços à comunidade, como aluguel do prédio e parceria de palestras e vivências para os alunos da prefeitura, além da mensalidade que alguns pais pagam e doações. Em seu Projeto Político-Pedagógico existe uma explicitação sobre a importância de a escola realizar um trabalho interdisciplinar em todos os níveis de ensino, a partir da elaboração de projetos coletivos de trabalho. Para Fazenda (2006), este é o primeiro movimento para a realização de práticas interdisciplinares: o planejamento no coletivo da escola, explicitado em sua organização curricular.
Como segundo elemento para a realização de uma prática interdisciplinar, de acordo com Fazenda (2008), está a compreensão que os docentes possuem de interdisciplinaridade e como eles conseguem expressá-la, tanto a partir das questões epistemológicas quanto a partir da reflexão sobre a própria prática. Já o terceiro elemento, está na prática interdisciplinar em si, que ocorre no cotidiano da sala de aula e da escola. De acordo com Fazenda (2014), estes últimos são os mais difíceis de se alcançar, uma vez que se desenvolvem a partir de um aprofundamento teórico e do exercício de uma prática refletida. Ao mesmo tempo, há uma tendência de distanciamento entre o que o docente diz e o que realmente se realiza na sala de aula. No caso dessa pesquisa, apresentam-se a seguir os resultados advindos das falas dos professores em relação às práticas observadas na escola, a fim de compreender tais dimensões.
4.2. A Interdisciplinaridade Percebida Pelos Docentes
As reflexões dos docentes sobre interdisciplinaridade e práticas pedagógicas são compostas pelo agrupamento de 30,6% das falas totais dos professores nas entrevistas. A Figura 1 apresenta uma lista com as primeiras 25 palavras que compõem este tema, que foi gerada automaticamente pelo IRaMuTeQ e ordenada em função de uma métrica estatística (, qui-quadrado), que mede a força de associação da palavra com a classe. O tamanho da fonte utilizada nas palavras procura representar essa métrica.
As palavras originam-se dos segmentos de textos, constituintes da própria fala dos professores (que são o corpus textual analisado). O software apresenta estes segmentos de texto em duas ou três linhas, nas quais destaca o que foi dito e por qual entrevistado.
Os segmentos aqui analisados se inter-relacionam e serviram de base para a construção do mapa conceitual expresso na Figura 2. Partindo, portanto, da palavra inicial “aluno”, palavra primeira da lista, mapearam-se as relações existentes com outras palavras (professor, trabalho, autonomia, etc.), dentro de contextos específicos, que são dados pelos segmentos de texto. Nesse sentido, a construção do mapa conceitual é feita buscando as inter-relações entre as palavras e os sentidos indicados nos contextos.
A partir do mapa conceitual verificou-se que os professores tratam de dois temas importantes para compreender a relação entre interdisciplinaridade e práticas pedagógicas: (i) a interdisciplinaridade e o conhecimento em redes; e (ii) a construção da autonomia e o trabalho do professor. Essas temáticas são discutidas na sequência.
4.2.1. A Interdisciplinaridade e o Conhecimento Em Redes
Os professores discorreram sobre uma compreensão do conceito de interdisciplinaridade, associando-o a metáforas como “teia”, “ponte” e “links”, apontando para uma relação entre conteúdos e áreas a partir da efetivação de projetos, afirmando ser um ideal de trabalho educativo e apresentando uma diferenciação entre os seus níveis.
Quanto ao conceito de interdisciplinaridade, os docentes sinalizaram uma compreensão voltada mais para o campo prático do currículo, como pode ser observado nas narrativas dos professores 3, 7 e 8.
A interdisciplinaridade é, na verdade, ainda focada nas disciplinas. Então, o que nós entendemos e normalmente as escolas entendem por interdisciplinaridade é você tratar dos mesmos temas em diferentes conteúdos. (Entrevista - Professora 8)
Cabe ao professor que conhece os ramos de conhecimento, juntamente com o aluno e a curiosidade dele, ir explorando essa interdisciplinaridade que já existe no conhecimento, em tudo o que está aí fora: no computador, numa bola de futebol, em tudo. Qualquer coisa tem interdisciplinaridade. (Entrevista - Professor 3)
Poder trabalhar com as outras disciplinas um conteúdo que permeasse essas outras disciplinas - não necessariamente duas, podem ser várias ao mesmo tempo - e poder desenvolver um tema único que desse possibilidade para todo mundo trabalhar. (Entrevista - Professor 7)
A professora 8 entende que a interpretação que a escola tem da interdisciplinaridade ainda é uma visão fragmentada, uma vez que quando se fala em interdisciplinaridade continuamos focados nas disciplinas, o que, de certa forma, também é apontado pelo professor 7 quando associa o trabalho interdisciplinar com uma atividade temática. O professor 3 apresenta esta mesma proposição ao dizer que as coisas não existem isoladas, em uma única ciência ou forma de conhecimento. A ciência fragmentou o conhecimento com vistas à superespecialização, o que foi importante em diversas frentes de atuação. Quando a escola passou a seguir este modelo, a complexidade dos aspectos formativos passou a ser desconsiderada em detrimento de resultados fragmentados.
Por outro lado, o professor 3 apresenta uma reflexão importante sobre a interdisciplinaridade: uma forma de busca pelo conhecimento como ele é de fato, compreendendo suas conexões internas e com outros campos. Isso também é abordado pela professora 2 e pelo professor 4, que afirmam que a interdisciplinaridade seria a forma ideal de trabalho na educação, a partir da construção de pontes entre disciplinas e de links entre interesses de aprendizagem de professores e alunos:
Isso seria, para mim, a forma ideal de trabalhar em todas as escolas. A interdisciplinaridade é justamente isso. A interdisciplinaridade eu entendo como a forma mais significativa de se trabalhar na educação, que é quando o estudante tem um interesse em qualquer área e aí o professor consegue linkar esse interesse fazendo uma ponte entre todas as disciplinas (...). Eu entendo interdisciplinaridade como uma teia que vai se completando (...). O trabalho com projetos, por exemplo, é um diferencial grande. (Entrevista - Professora 2)
São todos trabalhando juntos e o professor não é o foco da atenção, são eles [os alunos]. Para mim, interdisciplinaridade é a gente falar de um determinado assunto sem o foco específico de uma ciência específica. (Entrevista - Professor 4)
Quando se trabalha de forma interdisciplinar, o professor consegue enxergar o interesse do aluno e criar “links” que facilitem o entendimento dos conteúdos. Esses “links” são como pontes que ligam os conteúdos de disciplinas (com uma teia) que antes pareciam tão antagônicas, justamente pelo histórico de fragmentação do saber na ciência e na educação.
Do ponto de vista conceitual, as narrativas dos professores são muito próximas do que é abordado nos estudos de Fazenda (2006), no que diz respeito a uma compreensão temática da interdisciplinaridade, associando-a ao uso de metáforas, como ponte ou teia. Muitas vezes, se observa um discurso docente sobre isso “descolado” da ação educativa, o que não aconteceu com o grupo de docentes pesquisado.
Durante a etapa de observação, verificou-se a existência de um grande espaço verde no entorno da escola que foi, inclusive, reflorestado a partir de atividades educativas realizadas pelos docentes em parceria com os estudantes e com a comunidade. Este espaço propicia experiências significativas que exaltam a relação com o meio ambiente e desenvolvem o respeito pela natureza e pelos animais. No entanto, fazer parte de uma escola que se localiza em meio à mata não traz por si só essa relação significativa com a natureza, é preciso que os agentes envolvidos nesse processo expressem uma ação educativa que oriente para a importância do envolvimento prático e dessa relação produtiva com o material natural presente ali.
Uma dessas ações temáticas observadas foi a “Trilha Ambiental” realizada na mata, no entorno da escola. Os alunos vão para a mata acompanhados do professor, que faz a mediação do olhar atento para o que está acontecendo ao redor. A experiência que os alunos adquirem nessas trilhas é extremamente significativa. Por lá eles observam animais, diversas espécies de plantas e o riacho que fica nas imediações da escola. O roteiro da trilha depende do planejamento de aula do professor, levando em consideração a estação do ano e a temperatura, exaltando o que pode ser observado nessa época do ano. As trilhas podem ser feitas em épocas frias, passando pela experiência de sentir a neblina enquanto caminham por entre as árvores, como também podem ser feitas em um dia de sol, permitindo que as crianças se deitem na grama ou entrem para se banhar na cachoeira.
Outro aspecto mencionado pelos docentes foi a associação da prática interdisciplinar à construção de projetos com os alunos. Para eles, ao se ter a clareza do quão importante é conhecer o papel dos estudantes no processo de aprendizagem, há um movimento de transição entre inter e transdisciplinaridade, ainda que estes conceitos não estejam expressos de forma tão clara nas narrativas dos professores. Estas questões podem ser observadas nas falas dos professores 1, 2 e 8, destacadas a seguir.
Acho que o diferencial da escola é esse: vai um pouco além da interdisciplinaridade. Pelo que eu estudei, “inter”, interdisciplinar, é quando uma coisa se cruza com a outra. Elas se cruzam em algum ponto. Quando você tem a transdisciplinaridade, é uma coisa que atravessa a outra, ela permeia a outra, então ela é um pouco mais além do que um ponto. (Entrevista - Professor 1)
O principal eu acho que é a interdisciplinaridade e a liberdade que os alunos têm de optarem por algumas áreas específicas do ensino que em outras escolas não é possível. O trabalho com projetos, por exemplo, é um diferencial grande. (Entrevista - Professora 2)
projetos, inclusive individuais, que envolvam todas as disciplinas, que é a melhor forma de globalização do ensino: a busca da interdisciplinaridade, de eles entenderem que o ensino é uma coisa só, que a aprendizagem e o conhecimento na verdade são uma coisa só. A gente ainda trabalha mais com a perspectiva interdisciplinar do que transdisciplinar. Acho que o ideal é que a gente conseguisse o transdisciplinar, mas eu acho que a gente não está preparado pra fazer isso, porque a nossa cabeça é muito disciplinar. É muito difícil para o professor fazer isso; não que seja difícil para o aluno, necessariamente, mas o professor tem dificuldade. (Entrevista - Professor 8)
O professor 1 entende que há práticas interdisciplinares na escola e argumenta que acredita que o trabalho feito ali vai além da interdisciplinaridade. Em sua fala, é possível observar uma compreensão da interdisciplinaridade próxima ao conceito de pluri ou multidisciplinaridade, como o “cruzamento de disciplinas”. No entanto, ao observar o projeto da “Trilha Ambiental”, por exemplo, percebem-se elementos constituintes da inter e da transdisciplinaridade, ainda que os professores 1 e 8 tenham apresentado posicionamentos diferentes sobre qual delas acontece na escola.
As professoras 2 e 8 acreditam que os projetos ainda sejam a melhor forma de realizar a interdisciplinaridade na escola, por meio dos quais os alunos participam das etapas de construção e de efetivação das práticas, o que não é comum em escolas que não trabalham nessa abordagem. No entanto, chamam a atenção para o fato de que a formação disciplinar do professor ainda é um limitador para que ele realize uma prática interdisciplinar. Seria um equívoco pensar na interdisciplinaridade como algo simples de se aplicar. Ao contrário: o professor precisa conduzir o aluno nessa forma de pensar mais complexa, o que só é possível a partir de um constante trabalho de formação, tanto para o professor quanto para o aluno, formados, ao longo dos anos, em práticas disciplinares e fragmentadas. Ou seja, é preciso criar um processo de formação contínua na escola para que o grupo de professores possa refletir sobre os princípios conceituais e metodológicos que orientam as ações no âmbito da interdisciplinaridade.
Sobre isso, durante o período de observação, verificaram-se vários atendimentos individualizados realizados pela diretora da escola - professora 8 - com alguns docentes para orientá-los quanto à condução das atividades realizadas na escola. Ela foi bastante acolhedora e estava predisposta a receber esta pesquisa. Feliz em mostrar o trabalho da escola, orgulhosa pelo que já conquistaram, mas com um olhar além do presente. Pôde-se perceber uma grande disposição para a construção de um futuro de sucesso para a escola. Apesar de estar ali desde o início, em nenhum momento demonstrou a sensação de “trabalho cumprido”. Em suas falas evidenciou incerteza e inquietação sobre o trabalho que vem sendo feito, sempre querendo aprimorar, ponderar e reformular para acertar. Demonstrou-se segura e disposta a aprender e ensinar com todos à sua volta. Ela ensina pelo exemplo e é muito bem reconhecida por seus pares. Não tem medo de mostrar as fraquezas da escola e demonstra disposição para aprimorar o trabalho da instituição. Isso pode ser observado na narrativa da professora 5:
O meu incentivo principal são os alunos. É ver que eles estão aprendendo, a cada sondagem que eu dou, ver que eles foram bem, que eles conseguiram absorver o conteúdo. E o principal desse objetivo é estar do lado da diretora, aprender, tentando aprender tudo que ela passa, ensinando. Porque só quem convive com a diretora sabe o quanto isso é motivante. Ela dá força para a gente, o jeito que ela explica, o jeito que ela fala, a maneira de conduzir uma aula. (Entrevista - Professora 5)
Nesse sentido, verificou-se que os docentes compreendem a interdisciplinaridade como um conhecimento construído em redes. Eles expressam isso a partir de metáforas, entendendo-a como “teia”, “ponte” e “links”. Há uma divergência quanto à compreensão da prática interdisciplinar na escola: ora compreendida como interdisciplinar, ora como transdisciplinar, o que Fazenda (2008) também aponta como comum nas narrativas de docentes em seu estudo. Foi possível observar dois elementos importantes quanto à prática interdisciplinar na escola: um projeto em desenvolvimento (“Trilha Ambiental”) e o posicionamento formativo à interdisciplinaridade, liderado pela gestora da escola. Além disso, os docentes também apontaram como importantes para a efetivação de um trabalho interdisciplinar a construção da autonomia pelos alunos e o trabalho do professor, como discutido a seguir.
4.2.2. A Construção Da Autonomia e o Trabalho Do Professor
Outro eixo mencionado pelos professores nas entrevistas e observado na escola diz respeito aos processos de construção da autonomia e do trabalho docente para a efetivação das práticas interdisciplinares, o que, como menciona o professor 4, não se faz a partir de uma fórmula pronta:
Eu acredito que é uma prática que a gente ainda não tem uma fórmula pronta, a gente está se descobrindo. Na verdade, é um trabalho diário. (Entrevista - Professor 4)
O caminho encontrado pela escola para realizar práticas interdisciplinares foi o de planejar suas ações pensando no processo de desenvolvimento integral dos alunos, o que envolve desenvolver a autonomia e, evidentemente, reflete no trabalho docente. O professor auxilia o aluno a ser protagonista sem deixá-lo totalmente sozinho, pois desenvolver a autonomia não é algo simples, é algo que deve ser construído. A relação professor-aluno e aluno-aluno acaba se destacando juntamente com os conteúdos curriculares, que saem de um lugar de exclusivo destaque na escola para caminhar ao lado de outros conteúdos igualmente importantes, como pode ser observado nas narrativas dos professores 1, 3 e 5:
A função do professor é conseguir ajudar e não atrapalhar os alunos no desenvolvimento cognitivo e nas capacidades de cada um. Eu acredito nisso. Como educador, eu percebo que isso é fundamental pra gente dar conta das pessoas, porque são pessoas, não são coisas. Se você tem dez alunos, são dez opiniões diferentes. Se você tem cem alunos, são cem opiniões diferentes. (Entrevista - Professor 1)
A gente está conseguindo fazer com o que o aluno não tenha medo de errar, que ele possa buscar o conhecimento livremente, e isso é muito importante. (Entrevista - Professor 3)
Então, tudo isso é um aprendizado muito grande. O que eu vejo aqui que faz toda a diferença é que nós todos que estamos aqui, unidos num ideal, o nosso maior propósito são as crianças, o aprendizado das crianças. Você vê cada um dando o máximo de si para que tudo corra bem porque o nosso objetivo são as crianças, o melhor de nós pelas crianças. (Entrevista - Professora 5)
Um exemplo do que os professores 1, 3 e 5 mencionaram foi uma observação realizada na escola. Durante a aula de Matemática e após estudar o conteúdo proposto, uma aluna perguntou ao professor se poderia se dedicar a leitura de um livro, pois a Matemática durante tanto tempo a teria cansado. Ele disse que sim e afirmou que não há porque não permitir, pois já estava próximo ao intervalo e os exercícios realmente eram cansativos. Tal liberdade nas formas de aprender e ensinar chamam a atenção de quem está acostumado a uma escola com horários e lugares muito bem estabelecidos, na qual qualquer mudança de percurso é vista como desestruturação e encarada como um erro.
Há de se pensar em uma escola do diálogo, onde todos são conhecidos, não em sua individualidade, mas em sua unicidade. Uma escola em que cada aluno seja percebido e respeitado em sua maneira de pensar e expressar seus desejos e, neles, suas potencialidades. (José, 2011, p. 92)
Os professores 2, 6, 7 e 8, por sua vez, apresentam uma reflexão sobre a autonomia e o trabalho docente como elementos estruturantes da atividade educativa, o que muito se assemelha aos estudos de Fazenda (2006, 2008) e de Souza et al. (2020) sobre as práticas interdisciplinares.
Então, os professores estão a fim mesmo de inovar, de aprender junto com as crianças, sempre aceitando os desafios do que é ser educador. (Entrevista - Professora 2)
Porque eu vou te contar: se fosse fácil todo mundo ia só fazendo, porque faz 20 e tantos anos que eu escuto, que eu ouço gente que vem aqui em seminário, falando e tal. (Entrevista - Professor 6)
Não é tão simples você imaginar uma escola onde os alunos têm autonomia, onde o conteúdo, ou o interesse, ou o projeto permeia tudo, sem você conseguir desvencilhar totalmente da aula ou totalmente de um livro. (Entrevista - Professor 7)
O que eu vejo como um diferencial principal [da escola], o que chama mais a atenção é a “educação para os valores”: é o que a gente percebe que os pais buscam e que os alunos que já saíram também, é o que eles fazem referência à escola. O aluno tem uma importância central no processo pedagógico. E a importância dele não é só no ensino intelectual, mas também como uma pessoa que tem sentimentos, emoções, que tem necessidades físicas, que pensa também. (Entrevista - Professor 8)
O movimento de organizar o currículo de outras formas, privilegiando o desenvolvimento da autonomia, se configura um movimento “vivo”, no sentido de se questionar qual sociedade buscam construir, quais saberes devem ser priorizados e qual mundo buscam para si e para todos.
No ano de 2013 a escola adotou o trabalho com os Núcleos de Autonomia, como disposto no Projeto Político-Pedagógico. Os alunos são divididos de acordo com o grau de autonomia e aprendizagem que apresentam. Quando ingressam na escola, independentemente de sua idade, todos estão no nível Iniciação. Conforme vão demonstrando sua capacidade, vão sendo direcionados aos demais grupos. O Quadro 1 apresenta a descrição do que caracteriza cada um dos Núcleos de Autonomia:
Essa metodologia foi adotada pela escola, pois os professores perceberam que ela tinha sua própria forma de agir e de ensinar a autonomia. Nos momentos observados no espaço escolar, incluindo os intervalos e a hora do lanche coletivo, percebeu-se que os docentes buscam se relacionar de igual para igual com os alunos mais velhos, que já apresentam uma maior autonomia nas atividades, como é o caso dos alunos dos anos finais do Ensino Fundamental.
Já nos anos iniciais, foram observadas algumas resistências por parte de alguns alunos que haviam acabado de chegar na escola, surgindo a necessidade de os professores ficarem reafirmando os objetivos e ideais da escola. Os professores entendem que os alunos que são transferidos, ao longo do Ensino Fundamental, de outras escolas que não possibilitam experiências com a autonomia, precisam de intervenções constantes para aprender a aprender nesta proposta. Durante a observação pôde-se ouvir alguns professores dizendo: “Olha, vocês não entenderam ainda que aqui nós trabalhamos em equipe, que todos nós respeitamos e ajudamos o outro? Cadê o respeito?”.
Essa experiência é desenvolvida com os alunos na realização de projetos entre diferentes disciplinas. Eles aprendem a construir seu próprio plano de estudos, elaborado quinzenalmente, a partir de uma planilha organizada pelos professores, com prazos, mas os alunos possuem a liberdade de permanecer mais tempo em cada conteúdo, dependendo do seu grau de dificuldade.
Além da condução das aulas e dos projetos com os alunos, os professores desempenham o papel de tutoria nos anos finais do Ensino Fundamental. Cada professor é responsável por acompanhar um grupo de alunos, individualmente, e ajudá-los na organização dos estudos, no direcionamento das atividades dos projetos e na relação com as famílias. Esta atividade permite que o docente possua uma visão mais ampliada do currículo da escola e da organização do trabalho pedagógico, uma vez que, acompanhando o desenvolvimento dos alunos, consegue olhar “para além de sua disciplina”. Além disso, permite que o docente também amplie sua visão sobre o desenvolvimento do aluno, para além do que ele poderia acompanhar em uma dinâmica de escola em que o feedback fosse apenas em relação às suas aulas.
Este modo de organizar o trabalho do professor permite uma apropriação pedagógica da interdisciplinaridade, ou seja, o professor desenvolve uma atitude de abertura para o outro - para o aluno e para outros professores - por meio do confronto entre diferentes visões de mundo, pontos de vista, ritmos de aprendizagem e procedimentos de trabalho. É nesta ação que o docente tem a oportunidade de exercitar a escuta e a espera e de promover este exercício em seus alunos. Este movimento pode ser observado nas narrativas dos professores 1, 3 e 8:
Como a gente trabalha de uma maneira totalmente diferente, eu fico disponível para trabalhar junto com os alunos nos projetos que eles estão desenvolvendo. (Entrevista - Professor 1)
Eu sou um “tirador” de dúvidas, de tudo, de todas as disciplinas. Quando a gente não sabe, estuda junto com o aluno, e quando ele tem dúvida, ele consulta o especialista. (Entrevista - Professor 3)
O trabalho com tutoria é muito exigente. O tutor é aquele que acompanha o dia a dia do aluno, vê se ele está correspondendo, se ele está estudando mesmo, se ele está aprendendo, o que faz a relação com a família também. Ele acompanha o aluno. Eu acho que a proximidade com o aluno é muito grande e fica muito claro para o aluno que o professor é alguém que também está aprendendo. Acho que isso é o maior ganho; é buscar uma educação que faça mais sentido. (Entrevista - Professor 8)
Observa-se um discurso dos professores apontando que eles estão disponíveis para trabalhar junto com os alunos, tirar dúvidas e pesquisar de forma colaborativa e próxima. Durante a observação realizada na escola, verificou-se um grande movimento de alunos trabalhando em duplas, trios e/ou pequenos grupos no pátio interno, nos corredores e na sala dos professores, que ora eram assistidos de perto por diferentes professores, ora se deslocavam para alguma sala para perguntar algo para algum docente, movimento que aconteceu, inclusive, aquando da realização de uma das entrevistas.
Observou-se que o trabalho com projetos permite uma maior autonomia do aluno e o professor assume o papel de trabalhar junto dele, orientando e conduzindo as dúvidas, muito mais do que mostrando respostas prontas. Em uma proposta interdisciplinar, como salienta Fazenda (2014), o processo de ensino precisa estar orientado muito mais para as perguntas do que para as respostas, para o trabalho em parceria e de abertura ao outro. Essa metodologia do trabalho docente exige muito mais dedicação e estudo por parte do professor, que precisa se desprender de crenças acerca de sua profissão, como sejam: (a) o professor deve saber muito mais do que o aluno; (b) o professor deve estar pronto para esclarecer qualquer questão sem titubear; (c) o professor não pode errar, pois ele é a fonte inesgotável de saber; e (d) sem o professor o aluno não consegue caminhar.
Nas falas dos professores entrevistados percebemos que, ao se optar pelo trabalho interdisciplinar, é preciso exercer a categoria da humildade, proposta por Fazenda (2007), em que o professor reconhece que seu saber é limitado, o que não é ruim, pelo contrário: potencializa oportunidades de o professor continuar se desenvolvendo em sua profissão e aprendendo de forma colaborativa com o grupo de alunos. Ao mesmo tempo, quando esse posicionamento é evidenciado ao aluno, ele também se sente confortável em perguntar, sem medo de mostrar que não sabe.
É uma ideologia mesmo e a busca por uma escola diferente, que talvez nem seja isso que a gente esteja fazendo no momento. Alguma coisa um pouco mais avançada, com mais liberdade dos alunos, maior autonomia por parte dos alunos e bastante participação dos pais, também. Uma escola mais interativa. Talvez quem esteja aqui agora esteja buscando essa escola ideal. (Entrevista - Professor 7)
Então, eu acho que quando você parte do pressuposto de que você quer formar um ser humano, você começa a perceber que educação compartimentada não forma ser humano, ela forma mercado de trabalho. E aí, com certeza, você sai dessa coisa compartimentada e começa a buscar alternativas, e uma das alternativas é trabalhar as disciplinas, seja inter ou transdisciplinar. Penso que seria isso, a postura mesmo do que você quer com educação. Se você quer uma educação para o mercado, para fazer o vestibular. Ou se você quer uma educação que crie seres humanos íntegros e felizes. Independentemente, se ele vai ser gari ou o prêmio Nobel de alguma coisa, que ele seja pleno, que tenha consciência. (Entrevista - Professor 1)
Os segmentos da fala do professor 7 demonstram um olhar crítico sobre a sua realidade. Ele acredita que o que move os professores nesta escola é de fato uma ideologia, uma busca por algo diferente, e que talvez ainda não tenham encontrado a fórmula perfeita, mas estão caminhando. Nesse sentido, estas questões se aproximam da afirmação de que as práticas interdisciplinares não são receitas fechadas, mas são práticas em construção, que estão em processo e, por isso, carregam consigo a dimensão da incerteza.
O professor 1, por sua vez, acredita em um ensino voltado para a ética, considerando que o aluno é uma pessoa em formação e que necessita de situações educativas que possibilitem o seu desenvolvimento integral.
Estas narrativas, assim como a observação da escola, demonstraram a existência de um trabalho intenso, por parte da escola, na busca por uma valorização da relação entre professor e aluno, juntamente com a relação de ambos com o conhecimento. As falas dos professores demonstraram a importância do entendimento da unicidade do aluno e do trabalho minucioso do professor enquanto profissional responsável por conhecer e ajudá-lo em seu processo de busca pelo conhecimento. Nesse sentido, a construção de uma autonomia gradativa, levando em conta o momento de transição do entendimento dos conhecimentos isolados para o entendimento do conhecimento de forma interdisciplinar permite uma complexa articulação na construção de redes de saber.
5. Considerações Finais
A prática pedagógica interdisciplinar é um exercício e uma vivência próprios da escola, de alunos e de professores. O estudo aqui apresentado procurou identificar esse exercício em uma escola de Ensino Fundamental que tem uma proposta de currículo orientado a projetos.
Partiu-se de uma pesquisa ampla, utilizando-se entrevistas, observação e análise do Projeto Político-Pedagógico da escola, centrada na temática da interdisciplinaridade e de como os professores percebem esse tema em suas práticas. As análises mostraram que as relações entre interdisciplinaridade e práticas pedagógicas são construídas pelos professores considerando os eixos temáticos: (i) a interdisciplinaridade e o conhecimento em redes; e (ii) a construção da autonomia e o trabalho do professor.
O primeiro eixo explicita uma percepção dos professores alinhada com as ideias de construção de pontes ou links entre diversos conhecimentos, conforme propostas de Fazenda (2008) e Salvador (2006). Ainda neste eixo, os professores revelam a necessidade de explicar o que fazem à comunidade, questionados e questionando-se sobre o “porquê” da organização curricular e das práticas, atitude típica de uma proposta interdisciplinar.
O segundo eixo, o das relações aluno-professor, desloca a perspectiva do conhecimento (primeiro eixo) para a relação: é a busca de uma transformação das relações de poder tradicionais na escola: do professor que domina o conhecimento e o transmite ao aluno para um professor mediador do conhecimento e consciente da função social da escola (Arroyo, 2011; Sacristán, 2000). Ao mesmo tempo, associa as questões de interdisciplinaridade a uma das finalidades fundamentais da escola - a construção da autonomia. Trata-se, assim, de uma prática que nega os aspectos de submissão e de desumanização na escola e que, ao contrário, se orienta para a autonomia e para a avaliação crítica, e que seja aberta à atividade investigativa.
Analisando as falas dos professores, o Projeto Político-Pedagógico e os dados da observação participante, observamos que a interdisciplinaridade, para os professores, está intimamente relacionada ao aluno e às formas de se aprender e ensinar na escola. Quando se fala em interdisciplinaridade, os professores a relacionam com palavras como ‘sentido’ e ‘autonomia’, centralizando-as na palavra ‘aluno’, colocando-o como objetivo principal da escola. Nesse sentido, parece-nos que o trabalho interdisciplinar está diretamente ligado ao aluno e para o aluno e promove uma compreensão mais ampliada do conhecimento e dos processos educativos. Essa compreensão reverbera, inevitavelmente, sobre como o docente compreende seu papel e sua prática.
Em uma perspectiva interdisciplinar, o professor não é o detentor do conhecimento. Ele também aprende com os alunos. Por isso, o professor precisa estar disponível para trabalhar junto com o aluno, ajudando a desenvolver sua autonomia por meio de projetos de pesquisa. Nesse sentido, foi possível compreender que a relação entre interdisciplinaridade e práticas pedagógicas encontra repercussão em um movimento de constante construção, traduzido pela palavra ‘busca’: busca por uma escola diferente; busca por uma escola ideal; permitir que os alunos busquem o conhecimento livremente; busca da autonomia dos alunos; busca de respeito às diferenças; busca por interdisciplinaridade.
O que percebemos de mais significativo e que se mostrou evidente nas falas dos docentes, nas práticas observadas e nos documentos disponibilizados pela escola é uma crença imensurável na mudança da educação e em como essa mudança pode interferir na melhoria do mundo. E, em meio a isso, a proposta de interdisciplinaridade desta escola vem se mostrando a esses profissionais como uma saída, ainda em construção, para reorganizar suas práticas, para construir uma nova escola, para formar alunos a partir de uma perspectiva integral e para contribuir com uma mudança no mundo.