1. Introdução
A escola é a principal área de participação e produtividade para as crianças e jovens, local onde aprendem, jogam, fazem trabalhos artísticos e manuais, se envolvem em desportos e estabelecem relações sociais. A aprendizagem é uma função que requer um processamento bem-sucedido de informações sensoriais com o intuito de contribuir para o desenvolvimento das competências necessárias para a atenção, compreensão e organização dos diversos inputs sensoriais (Chien et al., 2016; Roley & Schaaf, 2006; Schaaf et al., 2018). Para que as crianças consigam aprender facilmente é necessário que ocorra uma Integração Sensorial (IS) adequada (Ayres, 1979, 2005; Pfeiffer et al., 2018).
As dificuldades na IS não são evidentes, no entanto, ocorrem entre crianças de todo o mundo, originando dificuldades nas aprendizagens escolares e comportamentos desadequados (Ayres, 2005; Gourley et al., 2013; Tanner et al., 2015). Muitas das crianças com Disfunção no Processamento Sensorial (DIS) apresentam inteligência normal ou acima da média, no entanto, exibem dificuldades em lidar com desafios intelectuais, como por exemplo o planeamento e a sequenciação da ação motora, conduzindo a um desempenho pouco eficaz e, muitas vezes, mal interpretado por parte do adulto. A maioria destas crianças não apresentam alterações cognitivas e algumas não têm nenhum outro diagnóstico de aprendizagem ou desenvolvimento associado. Desta forma, algumas crianças realizam as suas funções normalmente, de modo a que atinjam as competências expetáveis para a sua faixa etária, enquanto outras exibem funções abaixo do que seria esperado (Ayres, 2005; Parham et al., 2019). Segundo alguns autores (Katz, 2007; Young & Furgal, 2016), existe um número substancial de crianças em idade escolar que sofrem de DIS, correndo altos riscos de problemas emocionais, sociais e escolares, contudo, muitas destas crianças são diagnosticadas incorretamente, e, desta forma, não beneficiam de uma intervenção adequada.
As crianças com dificuldades no processamento sensorial e de práxis apresentam muitas vezes dificuldades na sala de aula, sendo um desafio para os professores, enquanto tentam determinar a causa do mau desempenho da criança. Segundo indicam os relatos dos pais, entre 5% e 13% das crianças podem apresentar DIS; desta forma, pensa-se que possa existir um grande número de crianças com estas dificuldades a frequentar as escolas (Aguilar & Esposito, 2019; Miller-Kuhaneckum et al., 2007).
Dada a escassez de estudos que examinem diretamente a relação entre a integração sensorial e o desempenho escolar, o estudo realizado por Parham (1998) foi desenhado para responder a este tema. Os resultados apoiam a premissa de que o processamento da integração sensorial está relacionado com o desempenho escolar, fornecendo correlações moderadamente altas entre a integração sensorial e as competências cognitivas. Rocha e Dounis (2013) também realizaram um estudo, no qual utilizaram o instrumento Perfil Sensorial (Dunn, 1999), onde referiram que existe relação entre o processamento sensorial e o desempenho escolar. Porém, dado o reduzido número da amostra (por conveniência), não é possível generalizar os resultados, sugerindo o aprofundamento deste tema com uma amostra maior e através do uso de outros instrumentos de avaliação.
Devido à insuficiência de estudos em Portugal que relacionem as disfunções do processamento sensorial com o desempenho escolar, procurou-se desenvolver esta investigação a fim de verificar esta relação em crianças que frequentam o 2.º ano de escolaridade.
Neste sentido, o presente trabalho tem como objetivo geral verificar se existe relação entre o processamento sensorial e o desempenho escolar das crianças que frequentam o 2.º ano de escolaridade. Como objetivos específicos pretende-se: 1) identificar o processamento sensorial das crianças no contexto casa e no contexto sala de aula; 2) comparar o processamento sensorial das crianças nos contextos casa e sala de aula; 3) avaliar as aptidões das crianças para a aprendizagem escolar; 4) verificar se existe relação entre o processamento sensorial e as aptidões para a aprendizagem escolar; 5) verificar se existe relação entre o processamento sensorial e o desempenho escolar; e, por último, 6) verificar se há relação entre as aptidões para a aprendizagem escolar e o desempenho escolar.
2. Metodologia
Este estudo apresenta um desenho transversal, visto que existe apenas um único momento de recolha dos dados, e é descritivo correlacional, visando estabelecer relações entre variáveis, explorando-as e identificando-as (Fortin, 2009).
2.1. Participantes
O método de amostragem para este estudo é não probabilístico por conveniência ou acidental, visto que é constituída por indivíduos facilmente acessíveis e que respondem aos critérios de inclusão (Fortin, 2009). Desta forma, contactou-se um Agrupamento de Escolas da Rede Pública que se encontra na área de residência da investigadora. As crianças do estudo apresentavam idades compreendidas entre os sete e os nove anos e frequentavam o 2.º ano de escolaridade, sendo excluídas as que apresentavam medidas de suporte à aprendizagem seletivas e/ou adicionais ou qualquer diagnóstico clínico. Todos os pais apresentam um grau de escolaridade suficiente que lhes permitia compreender e preencher a Sensory Processing Measure (SPM) - Forma Casa (Parham et al., 2007) e a SPM - Forma Sala de Aula (Miller-Kuhaneck et al., 2007) de forma autónoma.
A amostra foi constituída por 47 crianças com idades compreendidas entre os sete e os nove anos, 21 do género feminino e 26 do género masculino. A maioria dos encarregados de educação que preencheram o inquérito foram as mães (89,4%), tendo idades compreendidas entre os 37 e os 41 anos, e relativamente à escolaridade 68,1% indicaram que concluíram o ensino secundário ou o ensino superior.
2.2. Procedimentos
O presente estudo foi realizado com todo o rigor de acordo com os procedimentos éticos. Em primeiro lugar foi feito um pedido de autorização às autoras que validaram a versão portuguesa do SPM - Forma Casa e Forma Sala de Aula no âmbito do presente estudo, tendo sido autorizado por ambas. De seguida foi realizado um pedido de autorização à Diretora do Agrupamento de Escolas para se proceder à aplicação dos instrumentos e dar-se a conhecer os objetivos da investigação. Posteriormente à aceitação, foi agendada uma data com os professores titulares das turmas do 2.º ano de forma a explicar o estudo e a solicitar a sua participação. Desta forma, procedeu-se à entrega dos consentimentos informados aos professores e aos encarregados de educação, assim como de um documento explicativo do estudo (âmbito, objetivos, possibilidade de recusar a qualquer momento e garantia da confidencialidade) e do questionário SPM - Forma Casa e Forma Sala de Aula. Os documentos encontravam-se previamente numerados, com exceção do consentimento informado, garantindo assim o anonimato da informação. Os envelopes destinados aos professores e aos encarregados de educação continham os contatos da investigadora, informando-os da inteira disponibilidade para o esclarecimento de qualquer dúvida. Foi agendada uma data com os professores para aplicação da BAPAE, que foi realizada em cada turma, coletivamente, em contexto de sala de aula, numa única sessão, com as crianças participantes e conduzida pela investigadora, sob orientação de uma psicóloga que colaborou na investigação.
Para a análise estatística dos dados obtidos utilizou-se o software Statistical Package for the Social Sciences (SPSS) - versão 22.0, que permite a análise descritiva dos dados, através de tabelas de frequência, medidas de tendência central e dispersão (moda, média, mediana, desvio-padrão, entre outros), bem como a análise de correlação entre variáveis, testando a independência e a intensidade da correlação entre elas.
2.3. Instrumento de Recolha de Dados
De forma a cumprir o objetivo do estudo, foi aplicado o instrumento SPM - Forma Casa, desenvolvido por Parham et al. (2007) e com tradução e adaptação cultural e linguística por Rosário (2013), e SPM - Forma Sala de Aula, desenvolvido por Miller-Kuhaneck et al. (2007), com tradução e adaptação cultural e linguística por Simões (2013). Este instrumento é constituído por 75 itens. Neste estudo utilizaram-se as duas formas: a SPM - Forma Casa, que foi preenchida pelo encarregado de educação, e a SPM - Forma Sala de Aula, preenchida pelo professor titular de turma. Ambos os questionários são constituídos por oito subescalas - Participação Social (PS), Visão (VIS), Audição (AUD), Tato (TAT), Consciência do Corpo (COR), Equilíbrio e Movimento (EQM), Planeamento e Ideias (PLI) e Total dos Sistemas Sensoriais (TSS) - e apresentam a mesma escala de pontuação. Demoram cerca de 15 a 20 minutos a serem preenchidos e cerca de 10 minutos para serem cotados pelo examinador (Simões, 2013). Cada item é cotado segundo a frequência com que o comportamento ocorre, numa escala de Likert de 1 a 4, em que as opções são “Sempre”, “Frequentemente”, “Ocasionalmente” e “Nunca”.
A pontuação da SPM permite classificar cada escala consoante o funcionamento das crianças em três tipos de interpretação: “Típico”, “Alguns Problemas” ou “Disfunção Definitiva” (Rosário, 2013), o que significa que scores mais elevados indicam maiores problemas no processamento sensorial. Em relação ao estudo original normativo e padronizado da SPM - Forma Sala de Aula e Forma Casa, realizado nos Estados Unidos da América, contou com uma amostra de 1.051 crianças com desenvolvimento típico, com escolaridade desde o jardim de infância até ao 6.º ano (Simões, 2013). Os resultados obtidos forneceram evidências que suportam a fidelidade e a validade da SPM, sendo que a Forma Sala de Aula apresenta uma consistência interna com média de 0,86 e de 0,97 no teste-reteste e a Forma Casa obteve uma consistência interna com uma média de 0,85 e de 0,95 no teste-reteste (Parham et al., 2007).
Foi também utilizada a Bateria de Aptidões Para a Aprendizagem Escolar (BAPAE), desenvolvida por M.ª Victoria de la Cruz, que avalia um conjunto de aptidões básicas que a criança já deveria ter adquirido nesta idade, necessárias à aprendizagem escolar, composta por cinco provas: “Compreensão Verbal”, “Relações Espaciais”, “Conceitos Quantitativos”, “Constância da Forma” e “Orientação Espacial”. A prova pode aplicar-se coletiva ou individualmente a crianças do 1.º Ciclo do Ensino Básico a partir dos seis anos, tendo sido, neste estudo, realizada coletivamente em oito turmas. A adaptação portuguesa foi realizada com aproximadamente 800 crianças que frequentavam o 1.º e o 2.º anos do 1.º Ciclo de escolas públicas e privadas (Cruz, 2008). Foi realizado um estudo da validade, validade de critério, numa amostra de 100 sujeitos, que pretendeu verificar qual a correlação entre a avaliação dos professores e os resultados das provas. Verificou-se que apresentavam uma correlação positiva e significativa p < 0.01 com valores de moderados a altos.
A BAPAE apresenta um manual com instruções específicas que o examinador deve ler pausadamente e com clareza e um caderno de itens onde a criança dará as suas respostas (com uma série de desenhos que a criança identifica seguindo as indicações). Apresenta também uma grelha para cotação com pontuações máximas de 20 pontos nas provas de “Compreensão Verbal”, “Conceitos Quantitativos”, “Constância da Forma” e “Orientação Espacial” e 10 pontos nas “Relações Espaciais” (Cruz, 2008). O manual da BAPAE apresenta tabelas de normas segundo o nível de escolaridade (1.º e 2.º anos do 1.º Ciclo do Ensino Básico) e por idade (6, 7 e 8 + anos), o que permite ao examinador averiguar se os resultados das provas dos alunos se encontram dentro da média dos valores de referência, segundo essas tabelas. Esta Bateria permite identificar as dificuldades individuais nas diferentes provas, no sentido de ajudar as crianças a alcançar o nível médio esperado para a sua idade (Cruz, 2008).
3. Resultados
Inicia-se a apresentação dos resultados com a identificação do processamento sensorial da amostra no contexto casa e sala de aula, referente ao primeiro e segundo objetivos, no qual foi possível identificar as áreas mais problemáticas nestes contextos através da análise de frequências. Usou-se ainda a média e o desvio-padrão mínimo e máximo para a nota T, correspondente ao score de cada dimensão e total da prova.
É possível verificar que as dimensões que apresentam maiores problemas, no contexto casa, são o “Tato” (27,7%), que corresponde ao somatório de “Alguns Problemas” com “Disfunção Definitiva”, a “Consciência do Corpo” (21,3%) e o “Total dos Sistemas Sensoriais” (19,1%).
Relativamente ao processamento sensorial da amostra no contexto sala de aula, verifica-se que as áreas mais problemáticas coincidem com as referidas anteriormente: “Tato” (27,7%), “Total dos Sistemas Sensoriais” (23,4%), “Consciência do Corpo” (21,3%); porém, a “Visão” (21,2%) e o “Planeamento de Ideias” (29,8%) também revelam ser áreas problemáticas.
No sentido de se avaliar as diferenças ambientais, efetuou-se a subtração entre o score Total Nota T Forma Casa e o score Total Nota T Forma Sala de Aula. As diferenças obtidas têm valores normativos. Verifica-se que a maioria das crianças (61,7%) não apresenta diferenças na quantidade de problemas nos contextos sala de aula e casa, 21,3% revelam ter mais problemas em casa do que na sala de aula e 17% exibem mais problemas na sala de aula do que em casa. Utilizou-se ainda o teste t de student para amostras emparelhadas para comparar as notas T das dimensões da Forma Casa e Forma Sala de Aula. Usou-se este teste paramétrico dado haver normalidade ou desvios pouco severos à normalidade.
Como se pode observar na Tabela 1, o teste t de student para amostras emparelhadas revelou a existência de uma diferença significativa entre a Forma Sala de Aula e a Forma Casa apenas na dimensão “Planeamento de Ideias”, sendo a média da Nota T mais elevada na Forma Sala de Aula (média = 52,62) do que na Forma Casa (média = 47,60), revelando assim mais problemas na sala de aula nesta dimensão.
Média | N | Desvio-padrão | t student amostras emparelhadas | ||
---|---|---|---|---|---|
Visão Casa | 51,64 | 47 | 7,65 | t = 0,273 | |
Visão Sala de Aula | 52,17 | 47 | 9,55 | p =0,786 | |
Audição Casa | 51,51 | 47 | 7,17 | t = 0,363 | |
Audição Sala de Aula | 50,91 | 47 | 8,06 | p =0,718 | |
Tato Casa | 52,57 | 47 | 8,80 | t = -0,455 | |
Tato Sala de Aula | 53,32 | 47 | 9,87 | p =0,651 | |
Consciência do Corpo Casa | 51,55 | 47 | 8,46 | t = 0,286 | |
Consciência do Corpo Sala de Aula | 51,09 | 47 | 9,14 | p =0,776 | |
Equilíbrio e Movimento Casa | 50,79 | 47 | 8,53 | t = 1,561 | |
Equilíbrio e Movimento Sala de Aula | 48,34 | 47 | 10,13 | p =0,125 | |
Planeamento e Ideias Casa | 47,60 | 47 | 6,65 | t = -3,865 | |
Planeamento e Ideias Sala de Aula | 52,62 | 47 | 9,54 | p =0,000*** | |
Total dos Sistemas Sensoriais Casa | 51,79 | 47 | 7,65 | t = -0,478 | |
Total dos Sistemas Sensoriais Sala de Aula | 52,47 | 47 | 9,33 | p =0,635 |
Legenda: ***. Correlação significativa para p ≤ 0,001.
De forma a avaliar as aptidões das crianças para a aprendizagem escolar realizou-se uma análise de estatística descritiva (média, desvio-padrão) para os resultados das seguintes dimensões: “Compreensão Verbal”, “Relações Espaciais”, “Conceitos Quantitativos”, “Constância da Forma” e “Orientação Espacial”, verificando-se, através de um teste inferencial t de student para uma amostra, se os resultados diferem significativamente dos valores de referência em termos de média para cada dimensão.
Os sujeitos desta amostra revelaram resultados significativamente superiores em todas as dimensões e total da prova, quando comparados com os valores médios de referência da BAPAE para alunos no mesmo ano escolar.
Posteriormente, verificou-se se existe relação entre o processamento sensorial e as aptidões para a aprendizagem escolar através da correlação de Pearson para relacionar as dimensões e totais das duas provas, dado estas terem distribuição normal ou desvios pouco severos à mesma. Verifica-se que existe uma correlação significativa negativa, para p < 0,05, entre a “Visão” da SPM e os “Conceitos Quantitativos” da BAPAE (R Pearson = -0,301, p = 0,039), ou seja, quanto mais elevado o resultado na “Visão” da SPM - Forma Sala de Aula (que corresponde a um pior resultado), mais baixo o resultado na BAPAE na dimensão “Conceitos Quantitativos”. Não se verificaram mais relações significativas entre as duas escalas.
De forma a verificar se existe relação entre o processamento sensorial e o desempenho escolar, considerou-se relevante compreender qual a avaliação dos sujeitos da amostra nas diferentes disciplinas, referentes ao 2.º período. Verifica-se que a maioria das crianças apresenta “Bom” na disciplina de Português (48,9%), de Matemática (42,6%) e nas Expressões Artísticas e Físico-Motoras (53,2%) e “Muito Bom” em Estudo do Meio (57,4%). A disciplina com piores resultados é Português, na qual 6,4% da amostra apresenta “Insuficiente” e 21,3% “Suficiente”.
De seguida foi utilizada uma correlação não paramétrica (Spearman) para relacionar o desempenho escolar com os resultados da SPM, dado as notas serem apresentadas numa escala qualitativa de tipo ordinal (Tabela 2).
Português | Matemática | Estudo do Meio | Expressões Artísticas e Físico-Motoras | |||
Participação Social Sala de Aula | Spearman | -,179 | -,219 | -,365* | -,135 | |
P | ,228 | ,139 | ,012 | ,366 | ||
N | 47 | 47 | 47 | 47 | ||
Visão Sala de Aula | Spearman | -,240 | -,348* | -,653** | -,474** | |
P | ,105 | ,017 | ,000 | ,001 | ||
N | 47 | 47 | 47 | 47 | ||
Audição Sala de Aula | Spearman | -,082 | -,126 | -,357* | -,254 | |
P | ,583 | ,397 | ,014 | ,084 | ||
N | 47 | 47 | 47 | 47 | ||
Consciência do Corpo Sala de Aula | Spearman | -,237 | -,271 | -,311* | -,354* | |
P | ,108 | ,065 | ,033 | ,015 | ||
N | 47 | 47 | 47 | 47 | ||
Equilíbrio e Movimento Sala de Aula | Spearman | -,280 | -,134 | -,328* | -,313* | |
P | ,056 | ,370 | ,024 | ,032 | ||
N | 47 | 47 | 47 | 47 | ||
Planeamento e Ideias Sala de Aula | Spearman | -,392** | -,384** | -,624** | -,459** | |
P | ,006 | ,008 | ,000 | ,001 | ||
N | 47 | 47 | 47 | 47 | ||
Consciência do Corpo Casa | Spearman | -,262 | -,213 | -,298* | -,173 | |
P | ,075 | ,150 | ,042 | ,244 | ||
N | 47 | 47 | 47 | 47 | ||
Equilíbrio e Movimento Casa | Spearman | -,369* | -,289* | -,185 | -,272 | |
P | ,011 | ,049 | ,213 | ,064 | ||
N | 47 | 47 | 47 | 47 | ||
Planeamento e Ideias Casa | Spearman | -,365* | -,277 | -,299* | -,108 | |
P | ,012 | ,060 | ,041 | ,472 | ||
N | 47 | 47 | 47 | 47 | ||
Total dos Sistemas Sensoriais Sala de Aula | Spearman | -,238 | -,286 | -,513** | -,399** | |
P | ,107 | ,051 | ,000 | ,005 | ||
N | 47 | 47 | 47 | 47 |
Legenda: *. Correlação significativa para p ≤ 0,05. **. Correlação significativa para p ≤ 0,01.
Uma das áreas que se destacou da SPM - Forma Sala de Aula, revelando correlações significativas negativas com o desempenho escolar, foi o “Planeamento e Ideias”, que se relaciona com todas as disciplinas, salientando-se a relação com Expressões Artísticas e Físico-Motoras (R Spearman = -0,459, p = 0,001) e com Estudo do Meio (R Spearman = -0,624, p = 0,000). Também a “Consciência do Corpo” e o “Equilíbrio e Movimento”, que se relacionam com Estudo do Meio e Expressões Artísticas e Físico-Motoras. E ainda o “Total dos Sistemas Sensoriais”, que apresenta igualmente uma correlação significativa com Estudo do Meio (R Spearman = -0,513, p = 0,000) e com Expressões Artísticas e Físico-Motoras (R Spearman = -0,399, p = 0,005). A “Visão” correlaciona-se com Matemática (R Spearman = -0,348, p = 0,017), Estudo do Meio (R Spearman = -0,653, p = 0,000) e Expressões Artísticas e Físico-Motoras (R Spearman = -0,474, p = 0,001). Por último, a “Audição” e a “Participação social” correlacionam-se com Estudo do Meio.
Relativamente ao SPM - Forma Casa, as áreas que revelaram correlações significativas com as notas foram: a “Consciência do Corpo”, que se correlaciona com Estudo do Meio; “Equilíbrio e Movimento” correlaciona-se com Português e Matemática; e “Planeamento e Ideias” relaciona-se com Português e Estudo do Meio. Perante os resultados da Tabela 2, verifica-se que a SPM - Forma Sala de Aula apresentou mais correlações significativas com as notas escolares, comparativamente com a SPM - Forma Casa, e quanto maior é o score nestas dimensões da SPM (que revela piores resultados), mais baixas são as notas nas disciplinas referidas.
Considerando o objetivo de verificar se existe relação entre as aptidões para a aprendizagem escolar e o desempenho escolar, tornou-se a utilizar a correlação não paramétrica de Spearman, dado as notas terem escala ordinal. A análise estatística utilizada permite verificar que o total da BAPAE não se relacionou com as notas nas diferentes disciplinas; contudo, há uma correlação significativa positiva entre os resultados da BAPAE na dimensão “Conceitos Quantitativos” e as notas a Português, Matemática e Estudo do Meio. A dimensão “Relação Espacial” da BAPAE também se relaciona com as notas a Português. Quanto melhores os resultados nestas dimensões da BAPAE, melhores as notas nas disciplinas referidas.
4. Discussão e Conclusão
Relativamente ao primeiro objetivo - Identificar o processamento sensorial das crianças no contexto casa e no contexto sala de aula -, foi possível identificar as áreas mais problemáticas nos dois contextos, no sentido de avaliar quantas crianças apresentavam desempenho típico, diferenças prováveis e diferenças definitivas nas dimensões “Participação Social”, “Visão”, “Audição”, “Tato”, “Paladar” e “Olfato”, “Consciência do Corpo”, “Equilíbrio e Movimento” e “Planeamento e Ideias”.
No que diz respeito ao segundo objetivo do estudo - Comparar o processamento sensorial das crianças nos dois contextos (sala de aula vs. casa) -, verificou-se que a maioria das crianças não apresenta diferenças na quantidade de problemas nos dois contextos. Através da Tabela 1 observou-se a existência de diferenças significativas na dimensão do “Planeamento e Ideias”, que se remete à práxis, nos dois contextos. Esta desigualdade é suportada por Parham (2002), referindo que os problemas “não reconhecidos” se tornam evidentes quando a criança entra para a escola, onde existe maior diversidade de tarefas e um aumento no grau de exigência. Também neste contexto, as crianças podem ter de realizar atividades que antes evitavam, ou de que não necessitavam, como por exemplo a escrita, os trabalhos manuais (que exigem recortar, desenhar e colar), e ainda as atividades de educação física, onde as crianças com dificuldades na práxis geralmente apresentam problemas. Efetivamente, as dificuldades em conseguir cumprir as tarefas exigidas podem ocasionar um declínio nas notas escolares, motivação e autoestima (Clark et al., 2019; Parham, 2002). As crianças com dificuldades na práxis necessitam de maior apoio comparativamente com os pares, porém, os pais tendem a não valorizar esses aspetos, associando-os a características individuais das mesmas (Reeves & Cermak, 2002).
Relativamente ao terceiro objetivo - Identificar as aptidões para a aprendizagem escolar -, verificou-se que os resultados das crianças desta amostra foram superiores em todas as dimensões e total da prova comparativamente com os valores médios de referência da BAPAE para alunos no mesmo ano escolar. Perante estes resultados, poderá ser relevante refletir sobre o facto de a BAPAE ter sido adaptada para a população portuguesa em 1993 (Pacheco, 2010), ano no qual existiram diversas alterações nos programas curriculares até aos dias de hoje. Com a entrada em vigor do Decreto-Lei n.º 6/2001, de 18 de janeiro, da Declaração de Retificação n.º 4-A/2001, de 28 de fevereiro, e do Decreto-Lei n.º 209/2002, de 17 de outubro, nos quais se estabelecem os princípios orientadores da Organização e Gestão Curriculares do Ensino Básico, tornou-se também necessário introduzir algumas alterações ao documento “Organização Curricular e Programas” - 1.º Ciclo do Ensino Básico (Ministério da Educação, 2004).
No que concerne ao quarto objetivo - Verificar se existe relação entre o processamento sensorial (SPM) e as aptidões para a aprendizagem escolar (BAPAE) -, verificou-se que existe uma correlação entre o item “Visão” da SPM e a dimensão “Conceitos Quantitativos” na BAPAE, ou seja, quanto mais elevado o resultado na “Visão” da SPM - Forma Sala de Aula (que corresponde a um pior resultado), mais baixo o resultado na BAPAE na dimensão “Conceitos Quantitativos”. Esta correlação é também suportada por Henderson et al. (2002), referindo que a escrita é uma habilidade bastante importante nas atividades escolares e, portanto, uma organização espacial incorreta dos números e letras pode originar erros de matemática, ilegibilidade e trabalhos de casa confusos. Enquanto escrevemos necessitamos da visão para alinhar as palavras horizontalmente, assim como para adequar o espaçamento entre as mesmas, mas quando nos encontramos no início desta aprendizagem dependemos essencialmente da visão para nos guiarmos enquanto aprendemos a escrever (Henderson et al., 2002).
Relativamente ao quinto objetivo - Verificar se existe relação entre o processamento sensorial (SPM) e o desempenho escolar -, foi possível descrever a relação entre as diferentes disciplinas e os resultados da SPM - Forma Casa e Forma Sala de Aula. De acordo com as relações observadas entre a SPM - Forma Sala de Aula e as avaliações escolares da amostra, verificou-se que o “Planeamento e Ideias” se relaciona com todas as disciplinas e que a “Consciência do Corpo” se relaciona com Estudo do Meio e Expressões Artísticas e Físico-Motoras. Estas duas áreas da SPM dizem respeito à práxis e ao sistema propriocetivo, respetivamente. Efetivamente, as dificuldades no sistema somatossensorial (tátil e proprioceção) e no planeamento motor que ocorrem na somatodispraxia, dificuldades na práxis, podem causar dificuldades na utilização dos materiais de escrita (Schaaf & Mailloux, 2015). As crianças com dificuldades na práxis apresentam geralmente problemas nas tarefas de escrita, de recorte, de desenho e nas atividades desportivas (Parham, 2002; Schaaf & Mailloux, 2015).
A dimensão “Equilíbrio e Movimento” da SPM aborda aspetos vestibulares, que revelou relacionar-se com as disciplinas de Estudo do Meio e Expressões Artísticas e Físico-Motoras. Relativamente à componente física, esta relação pode ser justificada pelo facto de as crianças com dificuldades no sistema vestibular evitarem parques de diversões e atividades desportivas, já que apresentam uma perceção pobre de onde o seu corpo se encontra no espaço (Parham, 2002; Watling et al., 2018). Assim sendo, quando as crianças iniciam a vida escolar e têm de realizar as atividades físicas propostas, geralmente revelam dificuldades.
O sistema vestibular apresenta também uma relação com o processamento visual, pelo que podem surgir problemas como misturar palavras na página, ler e escrever textos ao contrário e confundir sinais de adição (+) com sinais de multiplicação (x) (Kranowitz, 2005).
A “Visão” relaciona-se com Matemática, Estudo do Meio e Expressões Artísticas e Físico-Motoras. Anteriormente, na Tabela 2 verificou-se também relação entre a “Visão” e a prova de “Conceitos Quantitativos” da BAPAE, sendo referido que uma perceção visual pobre pode originar dificuldades nas atividades escolares, como por exemplo escrever, colorir e desenhar (Leong et al., 2015; Schaaf & Mailloux, 2015), o que poderá justificar também a relação com a disciplina de Expressões Artísticas e Físico-Motoras.
Schneck (2010) refere que a visão e as suas componentes são cruciais para a leitura, escrita e matemática, que podem resultar nas dificuldades em identificar e reproduzir letras, formas, tamanhos, texturas e cores, assim como na descodificação e organização da informação escrita, como escrever um texto ou realizar um cálculo. A “Audição” revelou relacionar-se apenas com a disciplina de Estudo do Meio; porém, sabe-se que este sentido é fundamental para os processos de aprendizagem (Oliveira, 2010). Num outro estudo, verificou-se que o sistema visual e auditivo são fundamentais para a aquisição e domínio das aprendizagens escolares da leitura, da escrita e do cálculo (Mártin & Sierra, 2002).
Quanto sexto e último objetivo - Verificar se há relação entre as aptidões para a aprendizagem escolar (BAPAE) e o desempenho escolar -, foi possível confirmar que o total da BAPAE não se relacionou com as notas nas diferentes disciplinas, como seria expetável, segundo Cruz (2008), que apresentou correlação positiva e significativa p < 0,01 com valores de moderados a altos numa amostra de 100 sujeitos. A correlação significativa positiva entre os resultados da BAPAE na dimensão “Conceitos Quantitativos” e as notas a Português, Matemática e Estudo do Meio vai ao encontro dos resultados de Cruz (2008), que concluiu que esse era o aspeto mais valorizado pelos professores no desenvolvimento global dos alunos. A dimensão “Relação Espacial” da BAPAE também se relaciona com as notas a Português, ao contrário do que aconteceu no estudo de Cruz (2008), onde o valor mais baixo encontrado foi nesta prova.
A prova de “Relação Espacial” da BAPAE revelou relacionar-se com a disciplina de Português, o que é suportado por Monteiro (2011), que refere que a perceção visual é um processo fundamental para uma correta leitura de imagens e, consequentemente, para uma boa aprendizagem. A autora explica ainda que a organização visuoespacial engloba características diversificadas como compreender a cor, diferenciar estímulos essenciais de estímulos secundários (figura-fundo) e visualizar orientações no espaço. As crianças que apresentam problemas nas relações espaciais e direcionais mostram geralmente dificuldades na leitura, como por exemplo na leitura das letras “b” e “d” e “p” e “q” (Monteiro, 2011).
O presente estudo confirma que existe relação entre o processamento sensorial e o desempenho escolar, verificando-se que quanto maior é o score nas dimensões da SPM descritas em cima, e que revelam piores resultados, mais baixas são as notas nas disciplinas mencionadas.
Verificou-se ainda que os sistemas identificados com “Mais Problemas” ou “Disfunção Definitiva”, no contexto casa e sala de aula, foram o “Tato”, a “Consciência do Corpo” e o “Total dos Sistemas Sensoriais”. Porém, neste último contexto, observou-se também a “Visão” e o “Planeamento de Ideias” como sendo áreas problemáticas. Nesta amostra, não foram notadas diferenças ambientais na sua maioria, à exceção da área de “Planeamento e Ideias”, que corresponde a 4,3% dos problemas no contexto casa e 27,7% no contexto sala de aula. Esta diferença pode ser justificada pelo facto de, em casa, o ambiente estar organizado e controlado pela criança, e, deste modo, os pais não se apercebem das dificuldades da mesma, desvalorizando-as.
Os sujeitos desta amostra apresentaram resultados significativamente superiores em todas as dimensões e total da prova, quando comparados com os valores médios de referência da BAPAE para alunos no mesmo ano escolar, que poderão estar relacionadas com as alterações da organização curricular e programas do 1.º Ciclo do Ensino Básico verificados ao longo dos anos, tendo em conta que a adaptação portuguesa da BAPAE foi realizada em 1993. De referir que, face a estes resultados, torna-se necessário desenvolver mais estudos a fim de se verificar a consistência dos valores de referência, e, se tal acontecer, justificar-se no futuro a revisão destes valores.
Este estudo permite evidenciar que um despiste atempado sobre as dificuldades de processamento sensorial na criança pode providenciar um trabalho colaborativo entre pais, professores e terapeutas ocupacionais demonstrando um distinto valor na educação da criança. Através de uma avaliação compreensiva sobre as disfunções de processamento sensorial, torna-se mais fácil perceber os desafios inerentes à participação da criança em sala de aula e desenvolver objetivos conjuntos que contemplem essas necessidades, providenciando, assim, um atendimento à criança que garanta o seu sucesso no contexto escolar.
Considera-se, pois, importante reforçar o impacto das dificuldades do processamento sensorial no desempenho escolar, alertando e sensibilizando os pais e os professores, de forma a que as crianças possam receber a intervenção adequada, proporcionando melhores desempenhos e resultados escolares.
Este estudo apresentou limitações relativamente ao número reduzido da amostra, assim como relativamente ao facto de esta ter sido recolhida através de métodos não probabilísticos, recorrendo apenas a um Agrupamento de Escolas, o que pode ter tido impacto nos resultados apresentados. Ressalva-se a importância de realizar mais estudos que verifiquem a relação entre o processamento sensorial e o desempenho escolar, se possível com amostras maiores e de diversos contextos sociais, utilizando a SPM ou outros instrumentos que avaliem os aspetos do processamento sensorial.