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Revista Portuguesa de Educação

versão impressa ISSN 0871-9187versão On-line ISSN 2183-0452

Rev. Port. de Educação vol.35 no.1 Braga jun. 2022  Epub 21-Jul-2022

https://doi.org/10.21814/rpe.20909 

Artigos Originais

“Eu não gosto dessa história de mentiras!”: Sigilo, anonimato e ética na pesquisa com crianças

Secrecy, anonymity and ethics in research with children

Secreto, anonimato y ética en la investigación con niños

i Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Brasil.


RESUMO

O presente artigo discute alguns aspectos teórico-metodológicos e éticos envolvidos na construção de uma pesquisa realizada com crianças de cinco anos de idade, alunas da rede municipal de Educação Infantil, em uma cidade da Região Metropolitana de Porto Alegre, situada no estado do Rio Grande do Sul / Brasil. O objetivo central da investigação foi compreender como as crianças percebiam e interpretavam as violências de gênero vividas no âmbito familiar e/ou no seu entorno. A partir das teorizações propostas pela Sociologia da Infância e pelos Estudos de Gênero, foram utilizadas estratégias para promover esse debate com as crianças por meio de rodas de conversa e da leitura literária. Os resultados da pesquisa apontaram para a importância da participação das crianças no desenvolvimento da investigação e dentro de princípios éticos, envolvendo o respeito às suas visões de mundo e possibilitando o reconhecimento e a identificação de situações de violência e de seus possíveis desdobramentos.

Palavras-chave: Infâncias; Pesquisa com crianças; Ética; Metodologias participativas; Violências de gênero.

ABSTRACT

This article discusses some theoretical-methodological and ethical aspects involved in the construction of a research carried out with five-year-old children, students of the municipal network of Early Childhood Education, in a city in the Metropolitan Region of Porto Alegre, located in the state of Rio Grande South / Brazil. The main objective of the investigation sought to understand how children perceived and interpreted gender-based violence experienced in the family and / or in their surroundings. Based on the theories proposed by the Sociology of Childhood and Gender Studies, strategies were used to promote this debate with children through conversation and literary reading. The results of the research pointed to the importance of children's participation in the development of research and within ethical principles, involving respect for their worldviews, enabling the recognition and identification of situations of violence and their possible consequences.

Keywords: Childhood; Research with children; Ethic; Participatory methodologies; Gender-based violence.

RESUMEN

Este artículo discute algunos aspectos teórico-metodológicos y éticos involucrados en la construcción de una investigación realizada con niños de cinco años, estudiantes de la red municipal de Educación Infantil, en una ciudad de la Región Metropolitana de Porto Alegre, ubicada en el estado de Rio Grande del Sur / Brasil. El objetivo principal de la investigación buscó comprender cómo los niños perciben e interpretan la violencia de género vivida en la familia y / o en su entorno. A partir de las teorizaciones propuestas por la Sociología de la Infancia y los Estudios de Género, se utilizaron estrategias para promover este debate con los niños a través de la conversación y la lectura literaria. Los resultados de la investigación señalaron la importancia de la participación de los niños en el desarrollo de la investigación y dentro de los principios éticos, involucrando el respeto a su cosmovisión, permitiendo el reconocimiento e identificación de situaciones de violencia y sus posibles consecuencias.

Palabras clave: Infancia; Investiga con niños; Principio moral; Metodologías participativas; La violencia de género.

1. Introdução

Inicialmente, gostaríamos de justificar a frase que dá título a este artigo, pois ela foi proferida por uma criança que se sentiu incomodada diante da proposta lançada pela coordenação da pesquisa para que ela mesma escolhesse um nome fictício. Tal solicitação decorreu da necessidade de preservar sua verdadeira identidade, como recomendam os protocolos de investigação com seres humanos. Ao ser perguntada sobre o nome “faz-de-conta” que ela gostaria de escolher, a criança deu-nos a seguinte resposta: “Eu não gosto dessa história de mentiras! Tu vai (sic) inventar que foi outra pessoa que disse o que eu falei”.

Tal situação suscitou inúmeros questionamentos, para além do tema específico da pesquisa, pois fez-nos pensar nas seguintes questões: como assegurar que as crianças realmente sejam participantes ativas e não meras expectadoras de um processo de pesquisa? De que forma podemos estabelecer um compromisso ético com elas, de modo que suas autorias sejam respeitadas, ao mesmo tempo em que precisamos preservá-las, através do sigilo e do anonimato, em especial quando estamos trabalhando com temas tão sensíveis, como a questão das violências de gênero?

Ao propormos o debate sobre temas sensíveis, buscando compreender como as crianças viam, vivenciavam e interpretavam as possíveis violências de gênero que poderiam ocorrer no âmbito familiar ou próximas a elas, no entorno em que viviam, reiteramos a importância de realizar pesquisas que possam ouvi-las com atenção, buscando entender o que elas têm a dizer sobre o mundo, sobre as relações e sobre como interpretam todas essas vivências. Conforme salienta Lisa Karlsson (2008), entrar no mundo das crianças requer que o adulto crie as condições necessárias para tal, dando a elas espaço e tempo para que possam expressar suas opiniões e visões de mundo, fazendo isto com regularidade e estabelecendo com elas um vínculo de confiança e cumplicidade.

Este artigo pretende, então, discutir alguns aspectos teórico-metodológicos e éticos, a partir de uma pesquisa sobre violência doméstica, realizada no ano de 2018, em uma escola de Educação Infantil da rede municipal de ensino, na Região Metropolitana da cidade de Porto Alegre, no Rio Grande do Sul - Brasil. A escola está localizada em um dos bairros mais periféricos do município. A pesquisa foi realizada com uma turma de Educação Infantil, composta por 20 crianças em idade de cinco anos.

Diante desse contexto, consideramos a escola como parte importante de uma rede protetiva, oferecendo refúgio e escuta atenta para as crianças que estão imersas em situações violentas (Santos, 2016; Zanette, 2018). Entendemos que a escola deve ser vista como um importante espaço político de garantia dos Direitos Humanos das crianças.

A Declaração Universal dos Direitos Humanos, em seu primeiro artigo, considera que “todos os seres humanos nascem livres e iguais em dignidade e direitos. São dotados de razão e consciência e devem agir em relação uns aos outros com espírito de fraternidade”. Assim, entende-se que os Direitos Humanos são fundamentais para a ampliação do caráter democrático de uma sociedade e para que as pessoas consigam exercer seu direito à cidadania, o que também inclui as crianças. Conforme aponta Joaquin Flores (2009, p.19), os Direitos Humanos podem ser conceituados como “processos institucionais e sociais que possibilitam a abertura e a consolidação de espaços de luta pela dignidade humana”.

Ainda, destacamos que é importante considerar que as crianças têm sempre algo a contar-nos e isso faz com que seja necessário pensar em espaços e em condições que nos tornem aptos a ouvi-las, uma vez que elas são sujeitos que pensam e que também produzem saberes sobre a realidade em que vivem.

2. Aspectos Teórico-Metodológicos sobre Pesquisas Participativas com Crianças

Muitos/as autores/as têm ressaltado a importância de produzirmos pesquisas que se pautem pela perspectiva da criança, ao invés de operar com uma visão adultocêntrica de entendimento das infâncias. Como refere Priscilla Alderson (2005, p. 423), “reconhecer as crianças como sujeitos em vez de objetos de pesquisa acarreta aceitar que elas podem ‘falar’ em seu próprio direito e relatar visões e experiências válidas”.

Nesse cenário, percebemos o quanto as crianças são sujeitos ativos e construtores de histórias e contextos, sendo “as principais conhecedoras e informantes sobre suas vidas” (Carvalho & Silva, 2016, p. 187). Nessa direção, entendemos a emergência da participação infantil como uma questão social, política e científica. Ou, conforme diz Crowley (1998, p. 9), a participação infantil “não é somente um meio para chegar a um fim, nem tão pouco um processo: é um direito civil e político básico para todas as crianças e é, portanto, um fim em si mesmo”. Tendo como base esse pressuposto, reafirmamos a importância da participação infantil no processo de investigação, assim como alguns pressupostos éticos com as crianças.

No campo da Sociologia da Infância, a participação infantil tem sido uma questão central ao considerar-se as crianças como atores sociais e sujeitos de direitos. Fazer com que elas participem de um processo de investigação é assumir que são “competentes na formulação de interpretações sobre os seus mundos de vida e reveladores das realidades sociais onde se inserem” (Sarmento et al., 2005, p. 49).

No estudo desses pesquisadores, também se destaca a questão da alteridade da infância, que consiste em diferi-la do Outro-adulto, reconhecendo suas próprias culturas de um modo específico e com suas próprias interpretações de mundo. Assim,

O contributo das metodologias participativas neste âmbito tenta desenvolver um trabalho de tradução e desocultação das vozes das crianças, que permaneceram ocultas nos métodos tradicionais de investigação, através de perspectivas geracionais etnocêntricas, onde a incapacidade das crianças é invocada com o argumento de proteção da criança contra a sua própria irracionalidade e incompetência (Sarmento et al., 2005, p. 54-55).

Cabe, também, destacar que não é possível descartar os desafios que essa ação apresenta: se, por um lado, consiste em uma inovação metodológica em relação às crianças, que nos incita à criatividade para pensar em estratégias e ferramentas adequadas para a investigação, por outro, é preciso que nos dispamos da nossa posição de autores/as exclusivos/as do processo, para assumirmos uma posição de parceria com as crianças durante a realização da pesquisa, como observam Natália Fernandes e Rita Marchi (2020).

No delineamento dessa discussão, Zeila Demartini et al. (2002, p. 2) falam da importância de aprendermos a ouvir as crianças. As autoras chamam a atenção para a dificuldade que educadores e educadoras vêm apresentando de dialogar com as crianças e questiona até que ponto estamos conseguindo ouvi-las. Elas ainda consideram necessário “não apenas conhecê-las enquanto grupos sociais distintos, com vivências e culturas diferentes daquelas encontradas entre os grupos mais velhos, mas, principalmente, escutá-las para podermos enfrentar juntos os sérios problemas que a sociedade brasileira atual nos coloca”.

Entretanto, é preciso pontuar aqui outros aspectos conceituais sobre a participação infantil na perspectiva de alguns estudiosos da Sociologia da Infância. Gabriela Trevisan (2014, p. 46) fala das distinções que precisamos fazer entre a participação e outros conceitos, como protagonismo, por exemplo, que muito também tem-se estudado e debatido atualmente nas discussões sobre a infância. Para a autora, uma das características da participação é “levar a transformações e influências nos contextos de vida das crianças, refletindo também sobre as esferas públicas e privadas onde as crianças sejam vistas não apenas como indivíduos, mas como coletivo”.

Autores como Sergio Pires e Angela Branco (2007) destacam que protagonismo tem sua origem na palavra grega protagonistés, que significa “aquele que tem papel principal em um acontecimento ou peça teatral”. Nessa direção, a participação apresenta uma “abordagem mais democrática de ação social, sem colocar em destaque um protagonista em especial” (Barbosa & Canavieira, 2017, p. 368).

É importante observar o que diz a Convenção das Nações Unidas sobre os Direitos da Criança, adotada em 20 de novembro de 1989 e oficializada como lei internacional no ano seguinte. O referido documento, que também fundamenta e assegura a participação das crianças, em seus artigos 12 e 13, diz que:

Art.12 1 - Os Estados Partes devem assegurar à criança que é capaz de formular seus próprios pontos de vista o direito de expressar suas opiniões livremente sobre todos os assuntos relacionados a ela, e tais opiniões devem ser consideradas, em função da idade e da maturidade da criança. 2 - Com tal propósito, proporcionar-se-á à criança, em particular, a oportunidade de ser ouvida em todo processo judicial ou administrativo que afete a mesma, quer diretamente quer por intermédio de um representante ou órgão apropriado, em conformidade com as regras processuais de legislação nacional.

Art.13 1 - A criança terá direito à liberdade de expressão. Esse direito incluirá a liberdade de procurar, receber e divulgar informações e ideias de todo tipo, independentemente de fronteiras, de forma oral, escrita ou impressa, por meio das artes ou de qualquer outro meio escolhido pela criança.

Levando em conta o que os estudos e a lei acima trazem-nos, nota-se que a participação das crianças é uma maneira de incluí-las na sociedade como sujeitos de direitos, pois elas, apesar da pouca idade, pensam, opinam, têm percepções e expressam-se. Porém, para valer-se dessa prática metodológica, alguns princípios éticos são fundamentais.

Antes de mencionar os princípios éticos que devem ser encarados em um processo de investigação com as crianças, é preciso levar em conta que esses necessitam ser (re)negociados a todo o instante com elas (Felipe, 2009). Trata-se de um processo contínuo e “as ferramentas e opções metodológicas terão de estar em permanente diálogo com a diversidade das interações que se estabelecem à medida que a investigação vai se desenvolvendo” (Sarmento et al., 2005, p. 58).

Por isso, para sermos éticos com as crianças, precisamos pensar em outras possibilidades de abordagem, utilizando outras linguagens com as quais elas possam se expressar. Como pensar em processos éticos com crianças que ainda não escrevem, mas que são consideradas sujeitos de direitos e atores sociais? Este é um dos tensionamentos que a Sociologia da Infância coloca-nos e com o qual nos desafia.

A ética na pesquisa com as crianças envolve o respeito pela sua privacidade e pelo seu consentimento em participar ou não da investigação, além de eliminar quaisquer possibilidades de influenciá-las para que tenham uma determinada opinião. As perguntas que fazemos e as propostas que criamos não devem induzi-las, portanto, a emitir respostas que julgamos mais pertinentes. Ou seja, a ética na pesquisa com as crianças define-se no modo como o/a pesquisador/a interage e faz os questionamentos e as mediações com elas, para não as persuadir de forma alguma em suas respostas e nas suas expressões de opiniões.

Nesse sentido, além do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE), que deve ser assinado por cada família autorizando a participação da criança na pesquisa, ela também deverá, se assim quiser, preencher um Termo de Assentimento Livre e Esclarecido (TALE), adaptado à sua faixa etária.

Natália Fernandes e Rosângela Francischini (2016, pp. 62-63) alertam sobre os cuidados necessários para se pesquisar com as crianças, tais como:

  • - O direito à explicitação da proposta da pesquisa, com ênfase nos seus objetivos, métodos e propósitos, garantindo todas as informações necessárias para que o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE) seja efetivamente uma escolha/opção desses sujeitos e/ou daqueles que por eles são responsáveis;

  • - O respeito aos direitos de privacidade e confidencialidade, nas condições de construção e de divulgação dos dados;

  • - As informações sobre os possíveis benefícios da pesquisa e a garantia de que o mesmo não será submetido a situações consideradas de risco;

  • - O direito de não-participação em situações que julgar inapropriadas, inadequadas ou que lhe causem algum incômodo, e o direito de deixar de participar da investigação em qualquer momento de seu percurso;

  • - O direito a ter acesso aos resultados da investigação, antes mesmo de se tornarem públicos [...].

Além disso, as referidas autoras ressaltam que o processo de pesquisa deve resultar em dinâmicas que possam fortalecer os direitos das crianças, salvaguardando o seu bem-estar. Um dos riscos que a pesquisa com crianças pode gerar é causar a elas algum tipo de constrangimento, considerando que a relação entre adultos e crianças é sempre uma relação de poder. Por isso, durante a realização da pesquisa, ao solicitarmos a resposta a determinados questionamentos ou a explicitação de suas opiniões sobre algumas situações, sempre deixamos que as crianças ficassem muito à vontade para participar ou não das rodas de conversa ou de determinada atividade.

No que tange às questões éticas das pesquisas com seres humanos, cabe destacar que, segundo Felipe Zago et al. (2016), há inúmeros debates sobre as atuações dos Comitês de Ética em Pesquisa (CEP), que foram criados no período pós-guerra e cujas regulações provêm, em grande medida, da área da Medicina, na tentativa de garantir a dignidade e integridade de pessoas participantes das pesquisas clínicas.

Os mesmos autores ressaltam que grande parte das críticas advém da área das Ciências Humanas e Sociais Aplicadas, que questionam o modelo ético e as metodologias dos CEP às suas pesquisas. Dentre o grande número de críticas, o argumento mais comum é “a ineficácia do padrão biomédico de produção de conhecimento e de aferição da ética quando aplicado às pesquisas sociais e humanas” (Zago et al., 2016, p. 190). Assim, muitas regras aplicadas às pesquisas da área biomédica perdem o sentido quando aplicadas às pesquisas das áreas humanas e sociais, uma vez que as relações entre pesquisador/a e participante são distintas nessas áreas. Diante desse contexto, fica evidente que é preciso haver uma recusa a um único modelo de regulação e problematizar as particularidades das pesquisas sociais e humanas. Ou, como sugerem Zago et al. (2016, p. 196), o uni-verso de pesquisa deve tornar-se um multi-verso, pois “ele não é único, mas múltiplo; essa multiplicidade é efeito de uma série de atravessamentos que constitui a pesquisa”. Ou seja, cada “multiverso” tem suas particularidades, suas demandas éticas, e exige diferentes formas de consentimento de quem participa da pesquisa, assim como as mais variadas conexões sociais e políticas entre pesquisador/a e aqueles/as com quem se pesquisa.

Levando em conta todos esses princípios éticos, realizamos com as crianças um momento que resolvemos chamar de “sondagem”, por meio de uma roda de conversa, para avaliarmos se esta seria uma prática metodológica adequada para conversarmos com as crianças sobre o tema desta pesquisa. Utilizamos tal estratégia na tentativa de constituir o processo de investigação com um outro olhar, experimentando problematizar, de um outro modo, o que já vinha sendo feito há algum tempo na nossa prática docente.

Durante a referida roda de conversas, foram apresentadas à turma de crianças, em sua sala referência na escola onde estudavam, algumas imagens de super-heróis e super-heroínas. Fizemos alguns questionamentos sobre o que elas sabiam a respeito daquelas personagens, relacionando os “superpoderes” com a realidade, numa tentativa de investigar possíveis violências vivenciadas. As falas das crianças foram registradas em um caderno de anotações com o auxílio da professora estagiária que atuava na turma. O excerto abaixo destaca um diálogo travado com uma das pesquisadoras, quando as crianças depararam-se com a imagem do Hulk:

Uma menina vira a imagem do Hulk. Então, a pesquisadora questiona quem é que está na imagem, e as crianças respondem em coro que se trata do Hulk. A pesquisadora questiona o que as crianças sabem sobre ele e elas falam aleatoriamente, demonstrando empolgação: - Quando ele bate nas coisas, ele quebra tudo! Pesquisadora: E vocês conhecem alguém que é como o Hulk? Uma menina responde: Às vezes o meu pai fica muito brabo, que nem o Hulk! Pesquisadora: Por quê? Menina: Ele fica assim quando minha mãe faz coisas que ele não gosta. Pesquisadora: Tipo o quê? Menina: Quando ela faz carreteiro, ele não gosta de comer isso, daí ele fica muito brabo e briga muito com ela. Um menino emenda: Meu pai também fica muito brabo que nem o Hulk! Pesquisadora: Por quê? Menino responde: Porque minha mãe não pode falar nada que ele fica brabo. Outra menina relata: Quando eu tinha pai, só que ele se separou da minha mãe, ele ficava brabo e quebrava tudo as coisas e botava pra fora (sic). E outro menino continua: Meu pai e minha mãe um dia estavam brigando e meu pai tirou os ovos da geladeira e quebrou tudo. Eles brigam muito. Daí minha avó escuta o barulho muito alto e vai lá e leva eu e minha mãe pro quarto pra conversar (sic). Pesquisadora: e eles se machucam? Menino: Não. Só brigam falando coisas feias. Eles iam se separar, foram num lugar lá, num prédio. Mas daí fizeram as pazes e não se separaram.

Todo esse desdobramento e o diálogo estabelecido com as crianças por meio das imagens fez-nos optar pelas rodas de conversa para o desdobramento metodológico, pois, assim, percebemos que elas teriam oportunidade de expressar suas opiniões, curiosidades, angústias e dúvidas e seus interesses.

Como refere Marisa Costa (2002, p. 109), “precisamos encher o mundo de histórias”. Histórias de quem é esquecido/a, de quem, muitas vezes, não tem vez nem voz, como comumente acontece com as crianças dentro das escolas, especialmente as crianças pequenas, e também com muitas mulheres, vítimas das mais variadas formas de violência.

Em relação à proposta para as rodas de conversa, realizada durante a sondagem descrita anteriormente, embora muitas crianças tenham conseguido expressar suas opiniões, impressões e vivências, percebemos que algumas delas mantiveram-se em silêncio, pois como a roda de conversa ocorreu com todas as crianças ao mesmo tempo, nem todas tiveram vontade de falar em público. Nesse processo, lançamo-nos ao desafio de escutar e compreender o que as crianças tinham a dizer, procurando entender esse lugar de fala a partir da perspectiva delas. Tal aspecto exige, por vezes, um grande esforço por parte do/a pesquisador/a, que tende a interpretar as falas infantis a partir do seu lugar de adulto. Além disso, também se configura como um desafio escutar e/ou interpretar aquilo que as crianças não dizem, pois, como apontam Demartini et al. (2002, p. 8), há crianças “de pouca fala” ou as que têm mais ou menos condições de falar.

Jane Felipe (2009, p. 8) destaca que, ao escutar as crianças, é ilusão pensar que “observando atentamente os discursos que elas produzem ou reproduzem sobre si mesmas e sobre o mundo, nos trará um desvelar sobre a infância”. Trata-se, portanto, de um processo que nos faz entrar em contato com uma “polifonia de vozes” e com interpretações de diferentes interlocutores. Desse modo, é possível entender que são discursos atravessados por outros discursos e que ecoam a partir de outras vozes. Nessa direção, Felipe (2009, p. 8) também sublinha que “as falas das crianças devem ser examinadas como quaisquer outros textos culturais, isto é, visibilizando de que forma determinados mecanismos e práticas são mobilizados para produzir tais discursos”.

Costa (2002, p. 99) observa que “a participação é sempre desejável, mas não assegura igualdade na produção de discursos”. Por tais razões, tentando maximizar as chances de todas as crianças conseguirem expressar-se de algum modo e, por consequência, conseguirmos interpretar o que têm a dizer aquelas que pouco falam ou que não se sentem à vontade para falar, é que decidimos dividir a turma em três grupos (média de seis a sete crianças em cada um deles), já que a turma era composta por 20 crianças. Desse modo, com um número reduzido de participantes em cada intervenção, acreditamos que o espaço de fala ocorreria de maneira mais tranquila durante as rodas de conversa.

Para respaldo ético e legal da investigação, foram encaminhados às famílias das crianças os Termos de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE). Essa entrega ocorreu nos momentos em que as famílias levaram as crianças à escola ou buscaram-nas, de modo que assim se pudesse explicar do que se tratava o TCLE.

Para as crianças, foi entregue um Termo de Assentimento Livre e Esclarecido adaptado em forma de convite, após a seguinte explicação a elas sobre as questões éticas da pesquisa:

  • - Nesta pesquisa, eu quero saber de vocês a opinião sobre algumas histórias e imagens, contando se vocês já viram ou viveram coisas parecidas como as que acontecem com as personagens dessas histórias ou das imagens mostradas, seja na casa de vocês ou na escola. Nós nos encontraremos uma vez por semana, em uma sala diferente, para escutarmos essas histórias e conversarmos. Isso ocorrerá em torno de cinco vezes;

  • - A turma será dividida em três grupos, então sempre irão contigo mais uns seis ou sete amigos/as;

  • - Enquanto estivermos conversando, eu vou gravar as nossas conversas, fazer algumas anotações e tirar algumas fotografias para depois poder ouvir/ver de novo com calma o que fizemos;

  • - Se você não quiser participar desta pesquisa, não tem problema. Você pode não aceitar participar;

  • - Caso você aceite, mas se em algum momento você não quiser ir comigo e os/as demais colegas para a outra sala, pode ficar na sua sala com a sua professora;

  • - Tudo o que fizermos nos encontros ficará bem guardado e eu não contarei a ninguém o que foi que você me disse. A isso se chama sigilo. Porque, quando se faz pesquisa, a gente não pode sair dizendo o nome das pessoas que dela participaram. Por isso, vamos inventar um outro nome para você quando eu usar os dados, ou seja, aquilo que foi dito, na pesquisa (Caderno de anotações. Outubro de 2018).

Para registro das rodas, foram utilizados como recurso gravações das falas das crianças, alguns apontamentos em caderno de anotações e fotografias das dinâmicas e das propostas. Para que se pudesse contemplar assuntos diversos que circulam em torno do tema das violências, elaboramos um planejamento e um cronograma para sua execução, que teve como recurso disparador dos debates a literatura e a utilização de imagens.

Outra etapa importante nesse processo foi a escolha do nome fictício de cada criança, cabendo a cada uma delas essa tarefa. Para essa dinâmica, foram colocados alguns nomes próprios escritos no interior de duas latas (uma com nomes femininos e outra com nomes masculinos), de modo que deveriam optar por uma das duas para retirar seu nome fictício.

Conforme os nomes iam sendo sorteados, cada criança abria o papel frente à turma e entregava-nos para realizarmos a leitura do nome. Elas demonstraram empolgação com a dinâmica, pois sorriam e diziam “Eu gostei do meu nome de faz-de-conta”, ou algum/a colega comentava que conhecia alguém com o nome sorteado.

Planejamos este momento para que pudéssemos manter os sigilos necessários em relação às suas identidades. Também ficou acordado que cada participante faria seu autorretrato e uma breve apresentação, garantindo a sua autoria e dando mais visibilidade à sua participação. Para a apresentação, as crianças foram chamadas uma a uma e elas falaram sobre quem elas eram, com quem moravam, o que faziam quando não estavam na escola e onde costumavam passear. Elencamos alguns registros das falas das crianças e as ilustrações para mostrar o resultado da dinâmica, conforme pode ser conferido na sequência (Tabela 1).

Tabela 1: Autorretrato e apresentação de algumas crianças. 

Através da autodeclaração das crianças, foi possível compreender como cada uma percebe-se no mundo e insere-se em seu contexto de maneira distinta. Enquanto algumas se acham “legais”, outras se mostram pouco à vontade consigo mesmas, dizendo-se “feias” ou não sabendo bem como elas devem se apresentar quando solicitadas (embora isto não seja um problema, visto que ainda são muito novas e provavelmente nunca tenham sido solicitadas para o exercício de se autodefinirem). Acreditamos que tal estratégia de aproximação para o desenvolvimento da pesquisa possibilita ampliar o olhar sobre as crianças, valorizando as narrativas que elas estabelecem sobre si mesmas e não apenas a partir do olhar adulto.

Outro fato que se constata pelas falas é que os/as participantes desta pesquisa compõem um grupo de crianças que passa um tempo considerável em casa, em frente a recursos eletrônicos e, principalmente, com uma gama limitada de lazer e acesso a atividades culturais diversificadas, pois a maioria delas relatou que o único “passeio” era ir à casa de parentes ou à igreja.

3. Conclusões: Aprendendo a Reconhecer e a Nomear Violências

Trazemos aqui alguns tensionamentos acerca da devolutiva da pesquisa que realizamos com as crianças participantes. Afinal, como poderíamos apresentar alguns resultados da pesquisa que realizamos sobre um tema bastante sensível e complexo a um grupo de infantes de cinco anos de idade? Para tanto, solicitamos a um desenhista três ilustrações que sintetizassem os temas emergentes nas nossas análises, de modo que o retorno que queríamos dar às crianças sobre a pesquisa fosse viabilizado. Para potencializar a participação delas nesse processo, também solicitamos que elas escolhessem um título para esses desenhos que, de alguma forma, tentavam sintetizar tudo aquilo que havíamos levantado ao longo da pesquisa, a partir do que elas haviam dito.

Assim, um ano depois do início da pesquisa, foi realizada com as crianças uma última roda de conversa para a devolutiva dos resultados. As três ilustrações para quais elas deram títulos estão aqui expostas na sequência (Figura 1).

Figura 1: Montagem das imagens utilizadas no retorno às crianças. 

Pesquisadora: Vocês lembram daquela pesquisa que vocês fizeram comigo no ano passado, que a gente se reunia pra conversar e eu deixava o gravador no meio da roda? - “Sim!!!” - as crianças respondem em coro. - Pesquisadora: Pois é, agora esta pesquisa está pronta e eu quero contar para vocês o que foi possível descobrir com as nossas conversas (neste momento, as crianças sorriem e fazem expressão de espanto / expectativa). Pesquisadora: Olha, deu todas essas páginas (mostrando a pesquisa escrita no notebook), mas como é muita coisa para a gente ler aqui agora, eu pedi para um artista fazer três desenhos que mostram o significado do que foi descoberto com a pesquisa. Mas, antes de eu contar, quero que vocês me ajudem a dar um nome para cada desenho. Vocês aceitam? - “Sim!!!” - respondem em coro novamente. Pesquisadora: Então, este aqui (aponto para a ilustração do menino olhando na janela, que estava no centro da roda), como poderia ser o nome? - Eu acho que podia ser “o menino que queria ver as cores do mundo”, diz a Helena. Pesquisadora: E este? (apontando para o desenho do menino com cadeado no coração). - Este pode ser “O menino triste de coração fechado”, diz o Vinícius. Pesquisadora: E este aqui? (apontando para o desenho das flores murchas) - Este é triste, as flores estão tristes. Podia ser “a tristeza”, diz Milena. - Pesquisadora: Bom, com estes desenhos eu quero contar para vocês que, com a pesquisa que fizemos juntos, foi possível descobrir que, às vezes, as crianças ficam em casa sozinhas quando os adultos vão trabalhar; que, às vezes, os meninos não falam muito sobre os sentimentos, mas que é importante falar; e que, em alguns momentos, o pai e mãe brigam, se machucam, vocês ficam tristes... nisso, Sara me interrompe: - O meu pai brigou com a minha mãe e deu um empurrão nela. Agora eles se separaram e eu fico uma semana com um, uma semana com outro. Arthur em seguida emenda: - O meu pai deu um tapa no rosto da minha mãe e ela reagiu e empurrou ele. Milena em seguida argumenta: Então é por isso que o Arthur bate nas meninas! (Roda de conversa para devolutiva às crianças realizada em 08/10/2019).

A partir dos diálogos que se estabeleceram nesse encontro de devolutiva para as crianças, apresentando os resultados da pesquisa de uma maneira que julgamos condizente com a faixa etária, foi possível perceber o quão importante foi todo o processo e não apenas o resultado final da investigação.

Interessante observar que, um ano depois, ainda havia mais relatos de violências vivenciadas pelas crianças, fazendo-nos perceber o quanto o processo de pesquisa e as conversas anteriores que tivemos com a turma foram capazes de fazer com que as crianças reconhecessem com mais facilidade as situações de violência.

Além disso, foi possível também perceber o quanto as crianças encontram na escola, especialmente na figura da professora/pesquisadora, um espaço que inspira confiança, podendo compartilhar situações do cotidiano que lhes causam dor, sofrimento, angústia e perplexidade. Observamos também que elas, após o processo de pesquisa, demonstraram uma capacidade mais aguçada de relacionar e entender as consequências da violência. O momento quando Milena conseguiu estabelecer a relação de que o Arthur batia nas meninas na escola porque via seu próprio pai batendo na sua mãe em casa ilustra esse ponto.

Diante dessa situação, recorremos aos argumentos de Laura Dalla Zen (2017), quando faz referência à microfísica do empoderamento, pois no momento em que essas crianças, em certa medida, começam a identificar algumas situações de violência, conseguindo reconhecê-las e nomeá-las, elas voltam-se em direção a um certo empoderamento, “como ampliação de possibilidades de vida [...], mediante uma postura mais participativa nas micro relações que ela estabelece”. Nessa direção, percebe-se que este processo de criação de estratégias para a escuta das crianças sobre o que elas têm a dizer, sobre as situações de violências pelas quais passam possibilitou-as “um certo tipo de empoderamento” (Zen, 2017, p. 152), que emerge da maneira de elas posicionarem-se e reconhecerem com mais facilidade as situações de violência e, até mesmo, algumas de suas consequências.

A partir desse retorno que as crianças deram-nos quando apresentamos alguns resultados da pesquisa, ficou mais evidente o quanto é possível e necessário que nós, enquanto pessoas adultas, pensemos (e coloquemos em prática) algumas possibilidades de enfrentamento, junto à infância, das desigualdades e violências presentes na contemporaneidade.

Referências

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Recebido: 09 de Setembro de 2020; Aceito: 05 de Agosto de 2021

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