1. Introdução
Nas últimas décadas, o ensino superior, em geral, e o doutoramento, em particular, têm sido alvo de inúmeras reformas. A maior parte das mudanças promovidas pode ser vislumbrada segundo o objetivo último de governos e organizações transnacionais de enquadrar o ensino superior como um provedor central de conhecimento e capital humano, no âmbito da sociedade do conhecimento, um panorama em que o doutoramento desempenha um papel crucial (Balaban, 2020; Bernstein et al., 2014; Cardoso, Rosa, & Miguéis, 2020; Nerad & Trzyna, 2008).
Sob essa conjuntura, a educação doutoral tem experimentado um crescimento considerável, quer em termos do número de universidades que a oferecem, quer no tocante ao número de candidatos e programas. O perfil e as expetativas dos candidatos em relação à formação e ao grau do doutoramento também se diversificaram, induzindo uma maior complexidade nos programas doutorais. Como resultado, os programas tornaram-se mais diversos em termos de objetivos e tipologias (e.g., doutoramentos profissionais, doutoramentos industriais) (Cardoso, Tavares, et al., 2020; Kehm, 2020).
A nível europeu, a ação de processos e organizações supranacionais relevantes - ou seja, o Processo de Bolonha, os tratados da União Europeia (UE) ou as recomendações quer da European University Association (EUA), quer da League of European Research Universities (LERU) - têm promovido um modelo específico de educação doutoral. Esta é concebida como um terceiro ciclo de estudos (Comunicado de Berlim, 2003) que, idealmente, deveria ser estruturado, com uma componente curricular e uma duração de três ou quatro anos; ter um caráter multi- e/ou interdisciplinar e colaborativo, ou seja, oferecido com base na colaboração de instituições e atores académicos e não académicos; ser baseada tanto na teoria quanto na prática; promover a internacionalização; e ser responsável, quer pela formação formal em investigação, quer pelo fomento de competências transversais, visando a inserção dos graduados em profissões e carreiras, tanto académicas, como outras que não académicas (Ambrasat & Tesch, 2017; Bao et al., 2018; Clarke & Lunt, 2014; Friedrich-Nel & Kinnon, 2017; Kehm, 2020; McAlpine, 2020). Além disso, a educação doutoral parece ser influenciada por caraterísticas relacionadas com os sistemas de ensino superior nacionais, incluindo a natureza das instituições (pública ou privada), ou a distribuição geográfica e científica da oferta de ensino superior (e.g., predominância do setor público, concentração em grandes centros urbanos e prevalência de algumas áreas científicas) (Buckner & Zapp, 2020; Ramirez, 2016; Teixeira & Amaral, 2001; Waaijer, 2017).
Portugal parece seguir este modelo emergente de educação doutoral, com impactos semelhantes esperados no cenário da oferta de programas doutorais. O objetivo deste artigo é mapear esta oferta, ou seja, analisar como este cenário se carateriza e se organiza, nomeadamente em termos da prevalência de alguns dos aspetos antes referidos - e.g., estruturação, colaboração - e da distribuição geográfica, institucional e científica dos programas doutorais. Na sequência da introdução ao objeto e objetivos do estudo, apresenta-se um panorama acerca das transformações que têm afetado aspetos específicos da educação doutoral. De seguida, clarifica-se a metodologia adotada para mapear a educação doutoral em Portugal e são discutidas as principais caraterísticas do cenário português. Por último, nas conclusões, são tecidas as considerações gerais sobre este cenário, a partir das quais são apresentadas algumas recomendações para a sua eventual (re)organização.
2. Aspetos da Educação Doutoral - Sobre (Re)Composições
A composição do atual cenário da educação doutoral em Portugal, tal como se verifica, pressupõe o reconhecimento de um contexto de contínua transformação social, de modo que o seu enquadramento resulta da influência de fatores políticos, económicos, sociais e culturais, quer à escala global, quer, concretamente, a nível europeu. É pertinente realçar que a especial atenção recebida pelo doutoramento por parte de organizações transnacionais e dos governos vincula-se diretamente com a perceção de que este nível de educação é peça fundamental na provisão de conhecimento, investigação e capital humano, no seio de uma imperativa economia do conhecimento (Balaban, 2020).
Ao mesmo tempo em que se torna foco específico de políticas a nível do ensino superior, o doutoramento assiste a uma forte expansão no seu número de vagas, o que complexifica o seu mandato formativo, na medida em que recebe novos públicos, cujos interesses ultrapassam o objetivo de prossecução na carreira académica (Ambrasat & Tesch, 2017; Kehm, 2020). Por consequência, observa-se uma entrada a nível de mercado de novos profissionais doutorados que, ao dinamizarem maior competitividade na escala económica, passam, simultaneamente, a impactar a forma como a própria educação doutoral é concebida. Isto porque à emergência de novos públicos somam-se também outros mandatos, como a necessidade de que o doutoramento possa responder a variados propósitos que não apenas o da formação puramente académica (Balaban, 2020; Kehm, 2020; McAlpine, 2020), resultando daí, inclusivamente, as primeiras modificações na sua conceção enquanto formação (Kehm, 2020).
A nível europeu, o conjunto de transformações sociais que impactaram no doutoramento viu-se refletido na emergência de recomendações acerca das normas e diretrizes do ensino superior, sistematizadas, de forma concertada, por diversos países que, de modo articulado, têm trabalhado para animar um Espaço Europeu de Ensino Superior (EEES) (Ramirez, 2016). Esta coordenação em termos de recomendações acerca do ensino superior vem salientar a ambição de tornar a Europa numa das sociedades e economias mais competitivas do mundo, em particular por via do conhecimento, inovação e avanço tecnológico. Inaugurado com a Declaração de Bolonha (1999), que proclama os princípios básicos da reforma do ensino superior europeu, este processo de convergência do ensino superior numa escala regional tem sido complementado, ao longo dos anos, por comunicados e declarações resultantes das conferências, realizadas a cada dois ou três anos, pelos ministros europeus responsáveis pelo ensino superior. Tais comunicados e declarações avaliam o progresso realizado relativamente à implementação do Processo de Bolonha, ao mesmo tempo que avançam novas prioridades neste domínio. No que respeita ao doutoramento, o Processo de Bolonha tem sido fundamental no seu desenho, cujo maior marco interventivo parece emanar do Comunicado de Berlim (2003), que propôs o doutoramento como terceiro ciclo de estudos, facto acomodado pela legislação portuguesa no Decreto-Lei n.º 74/2006, que aprovou o regime jurídico dos graus e diplomas do ensino superior.
A oferta de doutoramento, e sua diversificação, globalmente, parece ser assegurada pelo setor público, que tende a oferecer uma maior diversidade de programas doutorais, quer em termos de áreas científicas, quer de tipologias de programas doutorais (Buckner & Zapp, 2020). De acordo com o estudo realizado por Buckner e Zapp (2020), acerca dos padrões do ensino superior a nível global, os doutoramentos são mais comummente oferecidos em universidades públicas, com maior tempo de fundação. Os autores apontam que a probabilidade de uma universidade privada oferecer um programa doutoral é metade da probabilidade de uma universidade pública. Isto seria explicado pelo facto de que o investimento no doutoramento é ainda maioritariamente subsidiado pelos governos, como parte da sua estratégia de desenvolvimento. Teixeira e Amaral (2001), por seu turno, ressaltam que a diversificação da oferta educativa do ensino superior é assegurada pelo setor público visto que há uma tendência por parte das universidades privadas para evitar a oferta em áreas disciplinares que demandam maior investimento em infraestrutura, o que se aplicaria a áreas disciplinares da saúde e das ciências naturais. É possível admitir que esta tendência identificada pelos autores no contexto do ensino superior se mantenha no caso da oferta a nível do doutoramento.
Mais recentemente, a par com o Processo de Bolonha, outras organizações supranacionais relevantes (e.g., EUA e LERU) têm influenciado a (re)organização da educação doutoral, sobretudo, por meio de recomendações que, nas duas últimas décadas, parecem ter sido gradualmente acatadas pelos diferentes sistemas de ensino superior da Europa (Ramirez, 2016). Numa linha de pensamento congruente, a UE, a EUA e a LERU avançam um modelo de educação doutoral em que o doutoramento emerge associado ao desenvolvimento de um conjunto de competências ligadas à investigação e outras de natureza transversal (Comunicado de Erevan, 2015; Comunicado de Paris, 2018; EUA, 2010; LERU, 2010). Aliás, a necessidade de se fomentar competências para além do foro da investigação é o que, em parte, pode justificar a crescente tendência dos programas para uma estruturação baseada na inclusão de uma componente curricular (Ambrasat & Tesch, 2017). O desafio que se coloca, portanto, é a constituição de uma identidade para o doutoramento, cujas finalidades devem acomodar a preparação de candidatos para a investigação autónoma e, também, a sua capacitação para aplicar conhecimentos a nível do mercado de trabalho extra academia, promovendo o desenvolvimento sustentável da economia (Ramirez, 2016).
A distribuição dos programas doutorais por áreas científicas, no entanto, parece não constituir um foco de atenção dos organismos supranacionais que se têm debruçado sobre recomendações políticas no escopo do doutoramento. Ainda assim, apreende-se uma certa valorização social das áreas STEM (Ciência, Tecnologia, Engenharia e Matemática), na medida em que estas se assumem enquanto detentoras de potencial na dinamização de mandatos de tecnologia e inovação, no contexto da economia do conhecimento (Shin et al., 2018). Na Europa, é possível identificar uma tendência para a prevalência da oferta doutoral nas áreas das ciências naturais e da saúde, quadro que se confirma em dados dos Países Baixos e da Alemanha (Teichler, 2014; Waaijer, 2017). Há cenários que, no entanto, contrastam com esta tendência. Em Espanha, por exemplo, embora a presença de programas nas áreas da saúde e das engenharias seja forte, observa-se uma maior afluência de programas em ciências sociais (Ramirez, 2016). Estas especificidades acerca da distribuição dos programas doutorais por área científicas podem ser interpretadas em conformidade com a distribuição dos cursos de ensino superior nos ciclos de estudos iniciais, ou seja, entende-se que a oferta doutoral possa replicar a distribuição da oferta por áreas científicas em linha com o que acontece no primeiro e segundo ciclos de estudos.
No que respeita à formação doutoral, pensada em articulação com o desenvolvimento profissional dos candidatos doutorais/estudantes (EUA, 2005, 2010, 2016; LERU, 2014), é possível inferir que, em larga medida, esta perspetiva pressupõe um trabalho de diálogo entre as universidades e os empregadores, como forma, inclusive, de tornar mais eficiente a formação (LERU, 2010, 2014). Nesse sentido, a produção do conhecimento é entendida como resultando do envolvimento do estudante de doutoramento em equipas e/ou redes de investigação, o que implica, portanto, a colaboração entre a universidade e setores não académicos, segundo princípios de interdisciplinaridade. A criação destas novas redes de trabalho parece influenciar, inclusivamente, a distribuição geográfica dos programas doutorais. Num estudo sobre a distribuição geográfica da educação doutoral nos Países Baixos, por exemplo, Waaijer (2017) identifica a concentração de doutoramentos junto dos grandes centros urbanos que, por sua vez, detêm maior atividade industrial/empresarial. Segundo o estudo, para além desta inferência acerca da relação entre oferta educativa e mercado de trabalho, é possível observar a existência de polos geográficos específicos de investigação, o que se associa com a natureza e demanda das instituições localizadas nas diferentes regiões.
O desenvolvimento de um trabalho doutoral interdisciplinar, que pode ser também intersectorial (envolvendo inclusivamente instituições de caráter não académico), parece ser outra das razões para uma maior estruturação do doutoramento, traduzida quer na inclusão, ao nível dos programas, de uma componente curricular, quer na implementação de estruturas transversais, ao nível institucional, capazes de garantir o fomento da interdisciplinaridade, ao mesmo tempo que visam apoiar os candidatos doutorais/estudantes e os respetivos orientadores (Ambrasat & Tesch, 2017). A este cenário, somam-se preocupações com uma diversificação dos programas doutorais, atendendo às expetativas dos candidatos e do mercado de trabalho, e com a respetiva internacionalização dos mesmos, promovendo-se, para além da colaboração ao nível interinstitucional, o fomento a iniciativas de mobilidade (EUA, 2005, 2010, 2016; LERU 2010, 2014).
Conforme se verifica, o conjunto de caraterísticas específicas da educação doutoral deve, portanto, ser lido na sua tessitura face a um cenário alargado da educação superior, num contexto mais global e, também, sob a égide de influências transnacionais e europeias. É de realçar que, embora estes fatores pesem no desenho do cenário da educação doutoral portuguesa, a forma como são apropriados ao nível institucional pode pressupor diferentes acomodações.
3. Metodologia
O sistema de ensino superior português é constituído por universidades e politécnicos, do setor público e privado, o que explica a sua complexidade em termos de dimensão, natureza e setor (Cardoso et al., 2016). Os politécnicos destinam-se à formação profissional, enquanto as universidades são instituições orientadas para a investigação (Lei n.º 62/2007). Até recentemente (Decreto-Lei n.º 65/2018), apenas as universidades1 eram responsáveis por oferecer o doutoramento. Com efeito, esta oferta foi, durante muito tempo, um critério ‘tradicional’ para o reconhecimento de uma instituição como universidade. Embora os politécnicos também tenham sido autorizados a oferecer programas doutorais (Decreto-Lei n.º 65/2018), estas instituições aguardam atualização da Lei de Bases do Sistema Educativo (Lei 46/86) para que possam eventualmente propor programas.
A partir dos dados disponibilizados pela Direcção-Geral do Ensino Superior (DGES) (DGES, 2020a) e pela Agência de Avaliação e Acreditação do Ensino Superior (A3ES) (A3ES, 2020), foi constituída uma base de dados com todos os programas doutorais oferecidos em 2020 pelas 29 universidades portuguesas (15 públicas e 14 privadas). Esta base de dados, sistematizada com recurso ao SPSS v26, permitiu reunir informações de todos os programas doutorais, organizadas em torno de variáveis que caraterizam, quer o contexto geográfico e institucional das universidades que oferecem programas doutorais, quer aspetos específicos desta oferta (Tabela 1).
Assim, para um melhor entendimento do contexto geográfico e institucional da educação doutoral em Portugal, e em ligação com o objetivo de se constituir um mapeamento do cenário nacional sobre esta oferta, para cada um dos programas de doutoramento foi analisada a natureza da instituição proponente do programa, portanto, o seu caráter público ou privado. Adicionalmente, foi recolhida e tratada informação acerca da distribuição geográfica dos programas oferecidos. Nesse sentido, a análise dos dados pautou-se por divisões geográficas que consideraram a organização proposta pela classificação NUTS III (PORDATA, 2020b). Especificamente, os dados foram trabalhados segundo duas distribuições geográficas: Norte, Centro, Sul e Ilhas; e Interior, Litoral e Ilhas.
No que respeita à análise de caraterísticas específicas dos programas doutorais, um conjunto de aspetos foi alvo de sistematização. A área científica dos programas foi analisada de acordo com a Classificação Nacional das Áreas de Educação e Formação (CNAEF) (Portaria n.º 256/2005) e considerou, portanto, a sua distribuição nas áreas da Educação; Artes e humanidades; Ciências sociais, comércio e direito; Ciências, matemática e informática; Engenharia, indústrias transformadoras e construção; Agricultura; Saúde e proteção social; e Serviços. Adicionalmente, foi realizada uma análise comparativa da distribuição dos programas doutorais em função de áreas STEM (Ciência, Tecnologia, Engenharia e Matemática).
Procedeu-se, também, à análise da duração dos programas doutorais, observando-se uma variação em termos do tempo para conclusão do grau, que abrange desde um período mínimo de seis semestres (três anos) até um máximo de 10 semestres (cinco anos). Finalmente, a análise de aspetos específicos dos programas doutorais incidiu sobre a sua estruturação e a existência de colaboração interinstitucional. No que toca à estruturação, procedeu-se à identificação da existência ou não de uma componente curricular no primeiro ou anos curriculares iniciais do doutoramento. A dimensão da colaboração interinstitucional a nível do doutoramento, por sua vez, foi analisada segundo a promoção de parcerias do programa ofertado com outras instituições, quer académicas (e.g., universidades ou politécnicos), quer não académicas (e.g., organizações com fins lucrativos). Estas parcerias, no contexto atual da educação doutoral, são entendidas como propulsoras do envolvimento de estudantes em equipas e/ou redes de investigação, permitindo reorganizar, portanto, a forma como se produz conhecimento neste ciclo de estudos.
Com base nas anteriores variáveis e com recurso ao PowerBI Desktop realizou-se a análise estatística dos dados, sustentada em estatísticas descritivas (Field, 2009), o que implicou contabilizar e processar o número de ocorrências para cada uma das variáveis. Os resultados desta análise, baseada em frequências sob a forma de percentagens, são apresentados na secção a seguir.
4. Resultados
Esta secção sistematiza e discute os principais resultados da análise empírica, contribuindo para retratar as caraterísticas centrais do cenário da educação doutoral em Portugal. Os resultados estão organizados em dois tópicos nucleares: o contexto geográfico e institucional dos programas de doutoramento e as suas caraterísticas em termos de área científica, duração, estruturação e colaboração.
4.1. Contexto Geográfico e Institucional da Educação Doutoral
Em Portugal, a maioria da oferta de educação doutoral está concentrada nas universidades públicas (90,2%, correspondendo a 535 programas vs. 58 programas nas privadas), replicando uma tendência nacional e internacional não apenas no contexto do doutoramento, mas também da educação superior em geral (Buckner & Zapp, 2020; DGES, 2020b).
Além de desequilibrada em relação à natureza das instituições, esta oferta também apresenta uma distribuição desigual em termos geográficos. A região litoral do país e o Sul agregam grande parte dos cursos/programas doutorais (respetivamente 68% e 47%) (Figuras 1 e 2). Neste contexto, as áreas metropolitanas de Lisboa e Porto (Figura 3) destacam-se, com a área metropolitana de Lisboa a reunir, sozinha, 40,2% da oferta, e a do Porto quase 20% (18,2%). Portanto, cerca de 60% (58,2%) da oferta doutoral está localizada nestas duas regiões. Por conseguinte, a oferta de educação doutoral é bastante mais residual nas restantes regiões do país, ainda que se possa destacar o contributo da região Centro, em que as regiões de Coimbra e Aveiro perfazem juntas cerca de 16% da oferta.
Em certa medida, a distribuição desequilibrada da oferta doutoral pode ser explicada pelo facto de as áreas metropolitanas de Lisboa e do Porto reunirem, em conjunto, o maior número de universidades (20 das 29 universidades existentes no país), ainda que tendencialmente no setor privado de ensino superior (14 universidades privadas e 6 públicas) (Figura 4).
Esta tendência parece constituir-se como um efeito da própria expansão e massificação do sistema de ensino superior português, caraterizada por uma propensão para a concentração das instituições de ensino superior, nomeadamente do setor privado, nos grandes centros urbanos do litoral do país (Cardoso et al, 2016; Teixeira & Amaral, 2001). Este resultado parece, também, estar alinhado com a realidade de outros países europeus (e.g., Espanha e Países Baixos), onde grandes centros urbanos parecem ter uma maior capacidade para concentrar a oferta de educação doutoral e, consequentemente, atrair estudantes de doutoramento (Ramirez, 2016; Waaijer, 2017). Com efeito, em Portugal, e de acordo com os dados para 2019, mais de 13.000 doutorandos (de um total de 21.000) estavam inscritos em universidades localizadas nas áreas metropolitanas de Lisboa (8.755) e do Porto (4.279) (PORDATA, 2020a).
4.2. Caraterísticas da Oferta de Educação Doutoral
Em Portugal, a oferta da educação doutoral tende a distribuir-se maioritariamente pelas áreas científicas das Ciências, matemática e informática (21,6%) e Ciências sociais, comércio e direito (20,9%), que, em conjunto, representam mais de 42% desta oferta (Figura 5). Surgem, em seguida, os programas nas Artes e humanidades (18,8%) e Engenharia, indústrias transformadoras e construção (18,1%). Por sua vez, as áreas mais residuais são representadas pelas dos Serviços (4,4%), da Educação (3,5%) e da Agricultura (2,9%) (Figura 5). Estas tendências de distribuição por área científica e, sobretudo, as constatadas quanto às mais representativas tendem a replicar, grosso modo, as verificadas, tanto no contexto internacional (e.g., Espanha, Países Baixos ou Alemanha) (Ramirez, 2016; Teichler, 2014; Waaijer, 2017), como no contexto nacional, em particular relativamente à oferta do primeiro e segundo ciclos de estudos (DGES, 2020b).
Analisando a distribuição da oferta de educação doutoral por duas grandes áreas científicas - STEM (Ciências, matemática e informática; e Engenharia, indústrias transformadoras e construção) e não-STEM (Ciências sociais, comércio e direito; Artes e humanidades; Saúde e proteção social; Educação, Serviços; e Agricultura) -, constata-se que essa oferta se concentra, maioritariamente, nas áreas não-STEM (60,3% vs. 39,7%) (Figura 5). Isto parece sugerir que a oferta de educação doutoral corresponde sobretudo a áreas científicas não tão valorizadas pela sociedade do conhecimento, para a qual as STEM assumem uma importância estratégica (Shin et al., 2018).
Por último, a análise da distribuição da oferta da educação doutoral por área científica e natureza (pública ou privada) das instituições (Figura 5) revela, ainda, que são as universidades públicas as que mais parecem contribuir para uma maior diversidade desta oferta. Com efeito, nas universidades privadas os programas tendem a estar mais circunscritos a determinadas áreas, como Ciências sociais, comércio e direito (3,5%) e Artes e humanidades (2,4%). Este facto parece corroborar a tendência reportada na literatura para o setor privado de ensino superior investir numa oferta de formação de ‘baixo custo’, não se constituindo, verdadeiramente, como uma alternativa ao setor público (ver Teixeira & Amaral, 2001).
Como evidenciado pela literatura, entre as mudanças mais significativas promovidas no âmbito da educação doutoral nos últimos anos, destacam-se a tendência para uma maior estruturação dos programas doutorais (em particular, pela inclusão de uma componente curricular nos programas) (Ambrasat & Tesch, 2017; Balaban, 2020; Kehm, 2020); o encurtamento da sua duração (nomeadamente, para um período de três a quatro anos) (EUA, 2005); e o reforço da colaboração (por meio da cooperação com instituições académicas e não académicas) (Ambrasat & Tesch, 2017; Ramirez, 2016).
A análise da oferta doutoral permite perceber que, em Portugal, parte substancial da mesma assume uma configuração estruturada, com os programas doutorais maioritariamente a incluir uma componente curricular (91,1%), a qual tende a ser obrigatória (87,3%) (Figura 6). Portanto, e seguindo uma trajetória comum a outros países europeus (Ambrasat & Tesch, 2017), a educação doutoral em Portugal parece ter aderido à tendência para uma maior estruturação por essa via, com a prossecução do doutoramento tendencialmente dependente da frequência e obtenção de aproveitamento escolar num primeiro ano curricular. Uma outra via de estruturação da educação doutoral é suportada pela organização de escolas doutorais (Ramirez, 2016), opção que não parece ainda ser significativa no contexto português.
Tal como em outros países, é possível supor que a adesão a esta tendência de estruturação via inclusão de uma componente curricular possa ter um duplo propósito: por um lado, melhorar a qualidade e eficiência dos programas doutorais (Ramirez, 2016); por outro lado, promover a aquisição de outras competências por parte dos doutorandos, além das competências de investigação (e.g., competências transversais), nomeadamente com o objetivo de incrementar a sua futura integração num mercado de trabalho cada vez menos restrito à academia (Ambrasat & Tesch, 2017; Ramirez, 2016). De facto, é possível supor que, no contexto português, a generalização da anterior tendência, além de explicada por um certo mimetismo institucional (i.e., replicação entre instituições de uma prática percecionada como boa ou positiva), se possa dever, igualmente, a uma tentativa de corresponder quer a critérios de qualidade (nomeadamente percebidos como valorizados pela avaliação da qualidade dos ciclos de estudos, tal como empreendida pela A3ES), quer a um modelo de programa doutoral supostamente mais valorizado, em particular pela entidade que financia a investigação científica - a Fundação para a Ciência e a Tecnologia (FCT).
A tendência para a estruturação da educação doutoral parece, ainda, ser transversal às diferentes áreas científicas (Figura 6), se bem que seja mais evidente entre as Ciências, matemática e informática (20%), as Ciências sociais, comércio e direito (19,5%), a Engenharia, indústrias transformadoras e construção (17,8%) e as Artes e humanidades (15,8%)7. Esta transversalidade parece sugerir que a estruturação por via da inclusão de uma componente curricular não parece ser justificada por uma necessidade específica de determinada área científica em promover uma formação mais organizada ou sistemática. Revela, ao invés, ou além disso, que esta pode ser uma forma de os programas doutorais procurarem aumentar a panóplia de competências oferecidas aos doutorandos (e.g., competências transversais, metodológicas, de investigação) (Borell-Damian et al., 2010).
A somar às anteriores tendências, uma outra parece estar a ser seguida pela educação doutoral em Portugal, traduzida no encurtamento da sua duração (European Comission, 2018; Teichler, 2014). Efetivamente, para a quase totalidade dos programas doutorais (99%), esta duração situa-se entre os três anos (seis semestres) (57,4%) e os quatro anos (oito semestres) (41,1%) (Figura 7). Porém, é possível identificar algumas nuances nesta duração de acordo com a área científica dos programas doutorais. Nas áreas da Educação (95,2% da oferta na área), dos Serviços (88,5%), das Artes e humanidades (64,9%) e da Agricultura (64,7%), os programas doutorais tendem a ter uma duração de três anos (seis semestres). Por seu turno, os programas doutorais com quatro anos de duração (oito semestres) tendem a predominar nas áreas da Saúde e proteção social (56,9%) e das Ciências, matemática e informática (55,5%) (Figura 8). Tal parecer sugerir que, eventualmente, em função das suas configurações e requisitos científicos, algumas áreas requererem uma duração maior para a obtenção do grau.
Por fim, os resultados da análise parecem evidenciar que a tendência para uma maior colaboração interinstitucional no âmbito da promoção dos programas doutorais, garantido, dessa forma, maior acesso dos estudantes ao envolvimento em redes de investigação, ainda não se afigura muito significativa no contexto da educação doutoral portuguesa. De facto, embora pareça haver alguma colaboração, esta permanece residual (apenas 19%), o que sugere que a mesma não é ainda percebida como algo a ser fomentado, nomeadamente como forma de estimular a empregabilidade dos doutorandos (Ambrasat & Tesch, 2017; Ramirez, 2016) (Figura 9).
Quando promovida, a colaboração ocorre, sobretudo, com outras instituições de ensino superior: uma outra universidade (13,3% dos casos); ou duas ou mais instituições, universitárias ou politécnicas (em 4,6% dos casos). A colaboração com instituições não académicas (e.g., com fins lucrativos) é bastante residual (0,8%) (Figura 9). Isto parece evidenciar que a cooperação com o contexto externo, ou não académico (e.g., indústria, potenciais empregadores), ainda não parece ser uma prioridade da educação doutoral em Portugal.
É igualmente possível concluir que, quando existente, a colaboração é promovida principalmente entre programas doutorais oferecidos por universidades públicas (94,6%) (Figura 10), bem como, sobretudo (embora assumindo valores muito pouco expressivos), em áreas científicas como as das Ciências, matemática e informática (3,9%), da Engenharia, indústrias transformadoras e construção (3,4%), e das Ciências Sociais, comércio e direito (3,4%) (Figura 11). Embora assumindo valores muito residuais, a maior expressividade destas áreas, em termos de colaboração, pode ser eventualmente explicada pelas especificidades destas mesmas áreas científicas e de uma sua maior adequação a iniciativas colaborativas, incluindo com o meio não académico.
Em síntese, é possível concluir, com base na totalidade dos resultados anteriormente apresentados, que o cenário atual da educação doutoral, em Portugal, é caraterizado pela concentração tendencial da oferta: nas universidades públicas; no litoral e sul do país, com destaque para a área metropolitana de Lisboa; nas áreas científicas das Ciências, matemática e informática, bem como das Ciências sociais, comércio e direito. Além disso, a oferta doutoral é constituída, essencialmente, por programas que tendem a: ter uma duração curta (de três ou quatro anos); assumir uma configuração estruturada (pela inclusão de uma componente curricular obrigatória); e revelar uma colaboração interinstitucional (com os meios académico e não académico) incipiente.
5. Conclusões
Os resultados deste estudo sugerem que o cenário atual da educação doutoral em Portugal é caraterizado por uma predominância da oferta por universidades públicas, localizada, sobretudo, nas áreas metropolitanas do Porto e de Lisboa, e centrada nos domínios das Ciências, matemática e informática, bem como das Ciências sociais, comércio e direito. Além disso, a oferta doutoral é constituída essencialmente por programas que, para além de terem uma duração de três ou quatro anos, tendem a estruturar-se em torno de uma componente curricular obrigatória, assentando, ainda, numa colaboração interinstitucional que, no entanto, parece estar no seu estágio inicial.
Essas caraterísticas parecem indicar a existência de algumas potenciais lacunas das quais tanto os legisladores quanto as universidades deveriam estar cientes e, mais que isso, em que deveriam intervir para promover uma oferta doutoral mais equilibrada. Neste contexto, parece relevante promover uma oferta que possa abranger de forma mais equitativa outras áreas geográficas - aumentando assim as bases de recrutamento e participação na educação doutoral - e outras áreas científicas. Relativamente às áreas científicas, poderá haver necessidade de investir numa maior diversificação, nomeadamente através do alinhamento com as necessidades da sociedade do conhecimento ou, adicionalmente, com as necessidades de mão-de-obra qualificada em determinados setores do mercado de trabalho ou, ainda, com as expetativas profissionais e de carreira e futura integração profissional dos graduados.
Efetivamente, o enfoque na tentativa de colmatar os desequilíbrios identificados na formação doutoral pode ter uma função preventiva em relação a uma potencial distorção a ser introduzida pela oferta de programas doutorais por politécnicos, conforme previsto recentemente. De facto, refletindo um fenómeno de academic drift (Harwood, 2010; Morphew & Huisman, 2002; Tight, 2015), os politécnicos surgem, no seio do sistema de ensino superior português, como instituições que, apesar de assegurarem um caráter mais profissionalizante, acabam por replicar a oferta formativa das universidades, inclusive em termos de cobertura em áreas geográficas e científicas. Assim, parece pertinente, neste contexto, uma recomendação no sentido de assegurar que os politécnicos possam contribuir para uma oferta (mais) diferenciada de educação doutoral, voltada para a oferta de programas com natureza, caraterísticas e em áreas diferentes daquelas atualmente oferecidas pelas universidades (públicas ou privadas). Conforme identificado pelo mapeamento, as áreas da Agricultura, Educação, Serviços e Saúde e Proteção Social são aquelas com menor oferta de programas. De qualquer forma, parece importante, no caso dos politécnicos, não apenas potencializar estas áreas, mas, sobretudo, estabelecer programas focalizados em diferentes tipologias de doutoramento que pressuponham maior articulação e colaboração com o mercado de trabalho, algo que se associa com a própria identidade destas instituições de ensino superior.
Igualmente, parece importante prestar mais atenção às lacunas apresentadas pelos programas de doutoramento em termos das suas caraterísticas e, nomeadamente, no que diz respeito à colaboração. Assim como tem sido realçado pela literatura (Borell-Damian et al., 2010; Ramirez, 2016), a colaboração entre instituições académicas e não académicas assume atualmente particular relevância, designadamente como forma de potenciar a aquisição de competências ou a empregabilidade dos doutorandos. Portanto, parece pertinente que esta colaboração venha a ser (re)considerada por iniciativas políticas e institucionais que a possam promover. No entanto, nesse âmbito, as especificidades da educação doutoral e o seu vínculo primordial com a investigação e a produção de conhecimento não devem ser descurados, sob o risco de se realizar uma ‘distorção’ do caráter do doutoramento.
O presente estudo, na sua generalidade, contribui para um melhor conhecimento da educação doutoral em Portugal, temática que está relativamente ausente da investigação no âmbito do ensino superior no país. É relevante na medida em que permite perceber que a educação doutoral, outrora mais imune a influências e fatores externos (supranacionais e nacionais), começa, tal como os restantes ciclos de estudos, a sofrer essas influências e a ser tratada como mais um ciclo de estudos, em vez de, essencialmente, como um patamar de iniciação, por excelência, à investigação científica. Assim, pelas sugestões que avança quanto à organização da educação doutoral (num futuro próximo), este estudo permite ainda prever alterações (eventualmente substantivas) no modo como se promove a formação na educação doutoral, os seus conteúdos, metodologias, avaliação, etc. Nesse sentido, anima, a partir do mapeamento aqui apresentado, outra investigação, que possa vir a trabalhar, com maior nível de detalhe, alguns dos aspetos específicos da educação doutoral e sua relação com políticas e práticas focalizadas neste ciclo de estudos, tanto a nível nacional como internacional.