1. Introdução
No universo da educação, os “famosos cadernos amarelos” de professores que trabalhavam em várias regiões e cantos do mundo foram, e ainda são, bastante criticados pelo que trazem de um passado inalterado e por falta de sintonia com uma realidade sem articulação com o mundo tecnológico, considerado avançado e inovador. Tal crítica permitiu o reforço de uma visão binária entre um passado tido como superado e um presente convidativo ao progresso e à mudança trazida pelas tecnologias digitais.
De qualquer modo, aqui interessa avaliar passado e presente como faces de um processo a recuperar, compreender e superar, no que for necessário, a partir de imersão na realidade. Tendo tal realidade como ponto de partida e de chegada, pretendemos contribuir para uma reflexão, repensar práticas e concepções cristalizadas a respeito da utilização dos velhos e antigos cadernos amarelos, que, para muitos, simbolizam o arcaico, a desatualização e a defasagem do conhecimento permeando os contextos educativos. Nessa direção, neste artigo tomamos como mote principal as dimensões e interfaces entre trabalho docente, tecnologias digitais e educação.
Participaram da investigação 15 professores de uma instituição de ensino superior (IES) pública municipal do interior de Goiás, Brasil, com diferentes tempos de exercício na carreira docente. Procuramos entrevistar docentes recém-chegados na instituição de ensino superior, outros que estavam praticamente na metade da carreira docente, e alguns que já se encontravam em fase final da carreira do magistério superior. Isto ocorreu com o intuito de verificar se as entrevistas realizadas poderiam trazer aspectos e questões bem distintas, talvez discrepantes, sobre o trabalho docente e as tecnologias digitais nesse novo tempo da cultura.
A pesquisa de campo ocorreu com os professores selecionados para as entrevistas e, para realizar a coleta de dados, apropriamo-nos de recursos tecnológicos existentes e disponíveis de maneira acessível, como o gravador de voz, computadores, celulares, entre outros objetos, como caderno, canetas, papéis, cadeiras e mesas. As entrevistas aconteceram em dois contextos. Um deles foi o próprio ambiente de trabalho, Centro Universitário, sempre com a utilização do gravador; e as outras, seis delas, aconteceram via e-mail e aplicativo WhatsApp, em que os professores receberam o roteiro de questões e, conforme a disponibilidade, responderam e enviaram ao pesquisador. É importante destacar que a iniciativa da realização das entrevistas de maneira não presencial, virtual, partiu dos próprios investigados, com consentimento dos mesmos, de maneira livre e espontânea.
Dos 15 entrevistados, oito são mestres, quatro são especialistas e três são doutores. Dois docentes trabalham há menos de cinco anos no ensino superior – Sudoeste e Suzy1; quatro possuem contato com a docência há entre seis e 10 anos – Frida Kahlo, Cebolinha, Luísa e Jonas; seis ministram aulas há entre 11 e 20 anos – Silvio Lange, Fashion, Luna, Tanley, Clary e João José; e apenas três docentes possuem mais de 21 anos de contato com a sala de aula no ensino superior – Angel, Amorim e Luciano.
É importante frisar que o trabalho docente, aqui, é analisado a partir de relações e movimentos que a metodologia do materialismo histórico-dialético permite apreender, estabelecer e explicitar, sobretudo no campo de suas dimensões, naturezas e processos de uma dada realidade que pretendemos conhecer. A partir desta ótica, procuramos entender o trabalho docente sob aspectos que também consideram o real em sua aparência, essência e efervescência, como Minayo (2014) aponta. Em outras palavras, nos interessa captar o que se dá com o exercício da docência aquando das múltiplas determinações histórico-sociais a que tem estado exposto e sujeito nas duas primeiras décadas do século XXI, embora sem ter tido uma ruptura com uma outra realidade que se mostrava, e ainda mostra, o avesso da revolução tecnológica que vem atingindo diversos setores da sociedade, mesmo que de modo desigual quanto ao ritmo, extensão e resultados.
Por mais estranho e contraditório que pareça, a educação, que poderia ser um centro de vanguarda em relação à inovação, ainda é também polo de resistência e tradição. Nela se mantém a tradição, os valores e a preservação da cultura. Por meio dela, a história dos povos se faz preservada e cultuada, ora com mais vigor e vitalidade, ora com mais fluidez. Talvez por isso seja um desafio compreender como nela o trabalho docente se estabelece e se movimenta entre o passado e o presente.
Considerando esses panoramas e contextos distintos que atravessam nossas análises, ressaltamos que o trabalho docente é aqui entendido não apenas como as atividades realizadas por profissionais da educação e que acontecem no espaço da sala de aula. Ele significa mais do que isso. Possibilita a quem o exerce ser meio para ser e constituir-se, ao mesmo tempo que expressa alternativa de inserção social e histórica que viabiliza o alcance ou não de objetivos e realizações. Senão, vejamos.
Embasando-nos nos conceitos de trabalho docente desenvolvidos por teóricos como Mazzotti (2010), Barreto (2004, 2012), Tumolo (2005), Tumolo e Batista (2008), D. Oliveira (2010) e S. Oliveira (2015), optamos aqui pelo seu trato em uma vertente sociológica, em que toma o trabalho docente como processo que possui dimensões, modos de organização e execução não restritos ao espaço da sala de aula. Sua natureza, seu alcance e seus resultados refletem uma historicidade a ser compreendida quando algo sobre ele está em questão e demanda análises e/ou intervenções.
Compreendemos o trabalho docente, portanto, como uma categoria ontológica, dado que, pelo trabalho, o indivíduo se constitui ao mesmo tempo que interfere na natureza por meio do que nela intervém, faz e transforma. Transformando-a, se transforma a si mesmo.
Tendo em vista o exposto, interessa-nos, aqui, recuperar o que se dá com quem trabalha quando aquilo que é objeto de sua ação se transforma, em decorrência dos avanços relativos à globalização da economia, à modernização da sociedade e à evolução tecnológica propiciada pela expansão, em ritmo acelerado, da cultura digital, que modifica o cotidiano e a vida de muitos segmentos sociais. É em tal contexto que, na escola e nas atividades a ela correlatas, os cadernos começam a ser substituídos e/ou a se misturarem aos equipamentos de multimídia, telas de computadores, pendrives, lousas digitais, smartphones, entre outros. Esses passaram a integrar o espaço escolar e a promover alterações nos modos como os docentes começaram a se relacionar com a informação, com o ensino e a aprendizagem, e sobretudo com a produção do conhecimento.
Trata-se da construção de um novo cenário, em que os docentes passaram a trabalhar sob diferentes modos na cultura digital, entendida como um fenômeno que envolve revoluções socioculturais ocorridas em razão da incorporação digital nas produções e relações. Temos a ideia de que a cultura digital remete a uma dimensão bastante ampla, indicativa de constituição de apropriação de uma cultura que diz respeito a novas relações e subjetividades no século XXI – conforme nos apontam as contribuições de Alonso (2017), que nos convida a refletir que a cultura digital tem a ver com a ideia de que as TIC são elementos dela; e as considerações de Longo (2014), Santaella (2003), Santaella e Braga (2017), Costa et al. (2015), Kenski (2013) e Lopes e Melo (2014), sobre cultura digital.
As análises que trazemos neste artigo, fruto das entrevistas realizadas e da análise de conteúdo das mesmas, se concentram em discussões relativas às metamorfoses ocorridas no universo do trabalho docente do professor que atua na dimensão do ensino superior. Elas se referem às transformações e às novas maneiras de trabalhar no contexto do capitalismo global em sua fase de acumulação flexível e suas derivações na forma de metabolismos sociais que têm atingido cada vez mais a sociedade, em diferentes intensidades, e trazido implicações de muitas ordens e naturezas.
No final da segunda década do século XXI, encontramos nos espaços formais de educação uma tendência à presença de menos cadernos e uma multiplicidade de equipamentos, principalmente as tecnologias de base microeletrônicas, que reconfiguram relações e práticas escolares e não escolares – conforme o que nos propomos a apresentar e discutir a seguir.
2. O trabalho docente em metamorfoses: contribuições das tecnologias nesse processo
Por meio do contato com as tecnologias, abrem-se oportunidades para novas produções inter e intrassubjetivas, que podem expressar alterações nas suas configurações subjetivas e a constituição de um novo sujeito, que tende a agir e pensar conforme a ordem liberal. É o que se dá com a produção do sujeito neoliberal e reproduz um modo de vida e de ser em sintonia com as relações que se estabelecem no trabalho, atravessadas pelos processos e regulações do capitalismo global. É uma das novas faces e pilar do mundo do trabalho, que se constitui pela moldagem de subjetividades em acordo tácito com as exigências dos processos produtivos.
O trabalho tem sido produzido por uma nova era e, ao mesmo tempo, tem sido um dos seus produtores mais significativos. Ou seja, na perspectiva dos investigadores franceses Dardot e Laval (2016), ele ocorre num tempo de ‘grandes viradas’, em um contexto profissional que atinge o mundo do trabalho e os que nele atuam. É um período histórico dominado pelo capitalismo global, mídias eletrônicas e tecnologias digitais de informação e comunicação (TDIC). E essas tecnologias digitais não só alteram modos de trabalho, elas atravessam, de uma forma ou de outra, a vida das pessoas.
Esta nova fase em curso da sociedade, reconhecida por Harvey (2016) e outros autores como a do capitalismo em sua fase de acumulação flexível, é consideravelmente compreendida como uma nova racionalidade em ascensão, por conduzir a sociedade para a construção de uma organização de vida que desenha um novo estilo de sujeito, o homem empresarial (Dardot & Laval, 2016). O docente universitário é um dos atingidos por essa racionalidade que direciona a construção de um novo sujeito, um empresário de si, que necessita de se apropriar dos recursos tecnológicos para conseguir acompanhar as metamorfoses que ocorrem na sociedade, e sobretudo no campo da educação.
É a partir desse panorama que ressaltamos e recuperamos o excerto da fala de um docente do ensino superior, materializada e sintetizada no fragmento extraído da entrevista com ele realizada, e que dá título a esse artigo. O recorte da fala do professor sinaliza a dinâmica da constituição docente representada na transição “dos cadernos amarelos aos arquivos infinitos”, indicando consideráveis mudanças que atravessam o trabalho docente.
Tendo em vista essa constatação propiciada pelo contexto investigativo, nos empenhamos em explicar o processo e a (re)organização do trabalho docente, evidenciando suas metamorfoses e implicações na vida e no exercício da docência. Para tanto, recuperamos o excerto da narrativa do professor Cebolinha2, que relatou:
Antigamente tínhamos os caderninhos amarelos dos professores... hoje eu chamo de arquivos de infinito uso, que é o quê? O professor que vai lá, faz um plano de ensino, esse ano de uma determinada disciplina, ele pega as bases referenciais e continua usando aquilo “Ad” eternamente sem fazer atualizações... quase as mesmas coisas que os slides, mesma aula e a mesma coisa, isso é um risco... eu vejo um risco de você continuar reproduzindo sempre a mesma... Aí, esse que eu acho que é um risco pro profissional docente, aí entra a questão de como você vai usar essa tecnologia no seu trabalho docente. Se você vai ser professor que vai continuar reproduzindo “Ad” eternamente, você é o mesmo professor do caderninho amarelo de anos atrás. (Professor Cebolinha)3
O registro verbal do professor Cebolinha nos instiga a pensar em alguns aspectos que constituem o trabalho docente, como suas dimensões, processos e conteúdos. Sendo assim, indagamos: será que trabalhar com os cadernos amarelos, como no passado, é o mesmo que exercer a docência nos dias atuais, se considerarmos as mesmas aulas e slides utilizados e montados há anos atrás? Por outro lado, as reproduções de conteúdos e discussões – transmissão do conhecimento – no formato digital (data show, projeções, vídeos e outros) garantem a melhoria do processo de ensino e aprendizagem, bem como a construção e atualização do conhecimento? Até que ponto e sob quais formas se complementam a aula tradicional e a que recorre às tecnologias?
Escapando aos raciocínios binários, é possível reconhecer que não há respostas consensuais para perguntas sobre tecnologias e inovação do ensino, tampouco a ‘tradição’ como necessidade de ‘superação’. Não há inovação tecnológica que substitua ou anule por completo o que a ela preexiste. Cadernos subsistem aos artefatos eletrônicos e com eles convivem. O novo não necessariamente abolirá o antigo. Talvez seja por isso que Cebolinha levantou essa discussão ao explicar alguns pontos sobre a presença e o papel das tecnologias digitais no trabalho docente, nos últimos tempos.
Analisamos o trabalho docente e suas possíveis metamorfoses a partir de uma perspectiva dialética, por entendermos que ela envolve contradições e superações constantes no processo em questão. Além disso, por meio das relações dialéticas é possível construir um método de leitura da realidade. Ou seja, a dialética sob a dimensão materialista não concebe o mundo como um complexo de coisas acabadas e prontas, e sim a partir de um constante processo de construção e reconstrução capaz de modificar a realidade. Nesse sentido, o trabalho docente e suas relações com as tecnologias digitais é aqui tratado a partir desta perspectiva, por compreendermos que a discussão a ele articulada trata de aspectos que se entrelaçam a uma realidade que se encontra em constante mutação, movimento e transformação, como os dados analisados neste artigo permitem entender.
Falando em mutações e transformações, importa retomar o pensamento de Harvey (2016) em relação ao capitalismo, sua crise e as articulações que tal sistema possui com as mudanças sociais e culturais da sociedade. Nesse mesmo sentido, Thompson (2008) também entende que as práticas culturais na contemporaneidade compõem processos híbridos que permeiam e transformam as relações, especialmente no que diz respeito às interações que circunscrevem nossas relações.
As análises de Harvey (2008; 2016) sinalizam o quanto a sociedade tem passado por mudanças desde o início da década de 1970, principalmente sobre às maneiras de experimentar o tempo e o espaço. Essas são algumas das metamorfoses que têm ocorrido no trabalho desenvolvido pelos docentes no universo na educação escolar, que, a cada ano, ou década, apresenta reconfigurações em seus conteúdos e natureza, principalmente se considerarmos a presença das tecnologias digitais que perpassam o processo de ensino-aprendizagem e as relações entre alunos e professores.
3. Educação e trabalho docente: tendências e desafios frente ao capitalismo global e flexível
Harvey (2008), ao analisar a condição pós-moderna e comentar a ampliação da produção, bem como da circulação e do consumo, de mercadorias, nos propicia uma leitura de uma realidade com forte relação com o trabalho. Ou seja, no campo da educação, o trabalho docente se configura como produto, ao mesmo tempo que produz valor. Ele é considerado um tipo de mercadoria cujos produtores, os professores, se submetem a condições que, por um lado, trazem retorno financeiro (moeda de troca), e, por outro, impulsionam o sujeito a produzir mais para ganhar mais. E, à medida que os indivíduos produzem trabalho, se produzem a si mesmos, e algumas consequências surgem em meio a esse processo.
A era em curso da sociedade reconhecida por Harvey (2016) como a do capitalismo em sua fase de acumulação flexível é consideravelmente compreendida como uma nova racionalidade em ascensão. Esses novos tempos expressam a sociedade como construção de uma organização de vida que desenha um novo estilo de sujeito, o homem empresarial (Dardot & Laval, 2016). Trata-se, para Dardot e Laval (2016), de uma nova razão do mundo, em que indivíduos ajudam a construir uma sociedade tendo como princípio novos modos de trabalho, comportamentos e ações, frutos das relações com os produtos culturais da era digital. Em face do exposto, até que ponto e sob quais formas essa nova razão de mundo tem que ver com o sentido da profusão e circulação dos “arquivos de infinito uso” no contexto da educação?
Admitidos os referenciais teóricos apontados, uma possível resposta à indagação seria o fato de o sujeito contemporâneo ser moldado e constituído por uma sociedade que produz tecnologias digitais e realidades cada vez mais virtuais que, ao atravessarem a vida dos seres humanos, provocam novas possibilidades de interações e relações interpessoais e profissionais, em virtude dos potenciais e peculiares avanços que elas proporcionam. Em outras palavras, na educação, de um modo geral, deixar de utilizar os cadernos amarelos do passado se configura como uma transição para os novos tempos e tendências que a sociedade e a própria escola, inclusive a universidade, têm absorvido em razão das novidades e tendências tecnológicas. Ao perceber o sujeito, e sobretudo os docentes da educação superior, se constituindo e produzindo valores a partir do entrecruzamento com as tecnologias, deparamo-nos com trabalhadores de um novo tempo, uma nova era.
Na esteira dessas constatações, reconhecemos que as análises de Dardot e Laval (2016) se aproximam do entendimento que Antunes (2018) possui sobre a construção desse novo proletariado de serviços da era digital. Em meio a esses sujeitos empresariais, fabricados por uma lógica neoliberal, reconhecida por Dardot e Laval (2016), estabelecemos relações com pessoas que modificam, afetam e transformam a sociedade por meio de suas ações e modos de intervir no mundo. E no espaço da universidade temos percebido, de perto, esse fenômeno.
A sociedade do século XXI, portanto, cada vez mais tem sido composta por indivíduos que assumem inúmeras maneiras de existir, alguns com características mais autônomas e críticas, outros com atributos bastante distintos, que adotam múltiplas posturas e desempenham diferentes atividades no campo do trabalho. Parte dessa sociedade (por exemplo, os docentes) trabalha de acordo com o ritmo que conduz o contexto social, que porventura tem sido tomado por processos em que a valorização do tempo é bastante considerada e explorada. Que adulto nunca ouviu dizer que “o tempo é precioso”? Certamente, muitos que convivem nesta sociedade capitalista já ouviram tal expressão.
Esta nova configuração de sociedade, com sujeitos dotados de novas habilidades para trabalhar, caminha em ritmos acelerados (obedecendo uma lógica produtivista) na cultura do capitalismo global e flexível. Entendemos que é a partir dessas novas configurações na sociedade que as metamorfoses acontecem na vida e no trabalho de docentes universitários – como temos estudado no âmbito do nosso grupo de estudo “Trabalho docente, tecnologias digitais e subjetividades”. Por esta razão, nos interessamos em aprofundar os conhecimentos a respeito de determinados fenômenos que ocorrem nesse sistema global, multifacetado e emblemático que também abrange o universo do trabalho docente, especialmente o de profissionais que atuam no magistério superior.
Assim sendo, o que tratamos aqui, de certo modo, é carregado de controvérsias. Temos identificado que não há pensamento único a respeito dos debates sobre o trabalho docente em interface com as tecnologias digitais. As discussões são polarizadas, não há consenso. Nem gostaríamos que houvesse. Por isso, pretendemos explorar esse objeto investigativo no sentido de tornar visíveis as possibilidades, limites e desafios que constituem a espinha dorsal deste artigo.
4. Dos cadernos amarelos aos arquivos infinitos: metamorfoses do trabalho docente na cultura digital – derivações - da análise de conteúdo
Nesta seção objetivamos analisar aspectos da organização e possíveis metamorfoses do trabalho docente no ensino superior público municipal, a partir da recolha de informações realizada por meio de entrevistas e seu tratamento pela análise de conteúdo. Tais análises foram construídas tendo como base orientações teórico-metodológicas de Bardin (1977). Não buscamos trabalhar com a metodologia que envolve a perspectiva da memória ou história oral. Procuramos caminhar por outras possibilidades metodológicas.
Bardin (1977) destaca que as entrevistas se constituem como uma técnica muito utilizada em pesquisa qualitativa. Considerando isso, entendemos que o obtido por meio delas favorece análises de conteúdo, bastante utilizadas em pesquisas de tal natureza e abordagem. Como o nosso propósito foi apreender significados e percepções sobre o que o trabalho produz nos participantes e em suas subjetividades docentes, procuramos identificar como, em suas falas, as relações com o seu trabalho se produziam.
Desse modo, buscamos compreender aspectos do trabalho docente, especialmente referente às relações com as tecnologias e que, porventura, pudessem se relacionar à sua organização, com o intuito de identificar novos modos de seu desenvolvimento. Para isso, recorremos aos conteúdos advindos de entrevistas realizadas com os docentes do Centro Universitário investigado, pois constatamos que, ao nos exporem questões sobre o universo do trabalho, traziam muitos aspectos constituintes de seus pensamentos e com interferências e vínculos com suas ações. A exemplo do que segue no excerto de Cebolinha, docente do curso de graduação em Engenharia Ambiental e Sanitária que, ao analisar o atual cenário em que vive, destaca: “antigamente tínhamos os caderninhos amarelos dos professores... hoje eu chamo de arquivos de infinito uso” (professor Cebolinha).
Durante a entrevista, o docente nos explicou alguns pontos e contrapontos sobre o que pensa a respeito dos modos de organização do trabalho docente. Cadernos amarelos não é uma expressão incomum (estranha) utilizada no âmbito educacional, sobretudo na escola. Provavelmente seríamos capazes de tecer um tipo de comentário ou outro (crítico ou não) sobre os professores antigos que possuíam e utilizavam “cadernos amarelos”, levados à sala de aula, ano após ano, sem modificar e/ou atualizar os planejamentos e conteúdos trabalhados durante o semestre ou ano. Poderiam ser interpretados como uma sinalização da resistência ao novo e, ao mesmo tempo, representar um processo de legitimação de uma profissionalidade reconhecidamente válida e pertinente para o alcance dos objetivos educacionais. Poderia ser interpretado como a preservação do tido tradicional, mas não necessariamente superado, embora pudesse sinalizar uma transformação em curso e/ou uma tendência a se estabelecer no cenário educacional, em tempos de cultura digital se disseminando cada vez mais.
Em relação a tal contexto, aos participantes da pesquisa perguntamos sobre as consequências do uso das tecnologias num modo diferente de organização do trabalho por eles exercido e, considerando as respostas dadas, a do professor Cebolinha apontou que no passado os cadernos amarelos eram muito usados pelos docentes. Ou seja, não se percebia a atualização de um ano para o outro ao preparar os planos de aula, até mesmo os slides eram usados ano após ano sem sofrer alterações. Professor Cebolinho nos alerta que isso é um risco.
Mas, porquê? Porque a tecnologia está acessível, porque eu preparei essa aula há 10 anos atrás e ela está acessível, ela continua acessível, ela continua lá porque eu tenho uma pasta sistematizada e organizada... Então, por um lado é um facilitador. Mas porquê? Porque você acessa facilmente. Aí, eu acho que é um risco pro profissional docente. (Professor Cebolinha)
Os arquivos de infinito uso compõem inúmeras “pastas sistematizadas” em computadores, pendrives, HD externo, entre outros locais de armazenamento. Ao mesmo tempo em que o docente vê esse fenômeno como algo facilitador, pela praticidade, também pode ser um “risco”. Risco porque o professor “continua reproduzindo sempre a mesma [coisa]”, como chama a atenção o professor Cebolinha. Ou seja, as tecnologias nem sempre representam garantia de inovação e mudança. Podem ser apenas um meio aparentemente mais moderno de realizar as atividades docentes sem que a reprodução de modos tradicionais de transmitir a informação seja, de fato, alterada.
Manter tal reprodução envolve várias outras questões que podem estar relacionadas a inúmeras varáveis que os próprios docentes realçaram em suas falas, como: falta de tempo para preparar novas aulas; excesso de trabalho; comodismo; falta de motivação; falta de percepção de que as aulas e conteúdos estão defasados; falta de cobrança; e a própria ausência de ações voltadas à questão digital durante os cursos de formação continuada.
Como Cebolinha conclui, se o professor utiliza os mesmos arquivos, contendo as mesmas aulas, elaboradas há anos, sem atualizá-las ou modificá-las, será “o mesmo professor do caderninho amarelo de anos atrás” (professor Cebolinha), apesar de em algumas situações os arquivos poderem sugerir novidades na forma e não no conteúdo. O que se dá é mais uma de entre novas configurações do trabalho docente, em que os cadernos amarelos do passado estão sendo substituídos por slides que se repetem, ano após ano.
Nesse aspecto, os arquivos são visíveis novidades que camuflam o que aparentemente parecia estar ultrapassado. As projeções de imagens, vídeos e sons em equipamentos de mídia, como o Datashow ou até mesmo o Quantum V4, são exemplos de meios diferentes que nem sempre contribuíram para que as transformações do trabalho fossem de ordem substantiva. A utilização desses recursos na sala de aula, pode causar a sensação de inovação, de algo novo, diferente e moderno. No entanto, nos perguntamos: até que ponto a mudança no processo de trabalho acontece e o que dela efetivamente decorre, para o aluno, em relação ao processo de ensino-aprendizagem? Será que o aluno percebe e faz uma reflexão crítica sobre o que se dá nessas circunstâncias e sobre qual o tipo de movimento que ele consegue apreender? Esses são aspectos importantes no debate quando a questão em foco se refere ao potencial e lugar das tecnologias como fator de inovação do trabalho docente e, por conseguinte, de transformação correlata da educação superior. Daí a necessidade de manter e/ou ampliar as investigações nessa direção, para que aquilo que se entende ser objeto de mudança possa receber os investimentos devidos por parte dos pesquisadores e dos operadores das políticas educacionais em vigência. Por isso, o tema demanda estudos mais atualizados a serem investigados com o rigor e a profundidade que possibilitem viabilizar as mudanças desejadas nas dimensões esperadas.
Os comentários tecidos pelo docente anteriormente mencionado possuem relação com o encontrado na produção de alguns autores, como por exemplo Antunes (2018), que aborda questões sobre o novo proletariado de serviços na era digital, fazendo menção à desconstrução do trabalho no Brasil do século XXI. Antunes (2018) considerou o governo Michel Temer uma nova fase de contrarrevolução neoliberal vivenciada pelo povo, citando a efetivação de uma devastação do trabalho, incluindo o desmonte da legislação social dele. E, em meio a esses contextos de instabilidades e decadências, os docentes se constituem como profissionais que absorvem os impactos do projeto econômico neoliberal que se instala na sociedade e vem transformando os modos de trabalhar de forma geral.
Na esteira de tais mudanças, talvez seja por isso que os cadernos amarelos deixaram de existir e passaram a ser substituídos pelos novos produtos desse projeto neoliberal que é parte central da cultura digital, como a professora Joana Peixoto esclarece e problematiza em entrevista concedida ao grupo de pesquisa GEPETTES5 (Oliveira et al., 2019). A entrevista realizada por Oliveira e colaboradores (2019) traz à tona aspectos relacionados ao mundo do trabalho (docente), educação e cultura virtual, considerando que, em meio a esses, as subjetividades dos sujeitos são produzidas a partir dos contextos em que os indivíduos estão inseridos, ou seja, elas se processam e se alteram com base na lógica capitalista de acumulação flexível que as impulsiona.
Na sociedade que avança e cresce em escala exponencial, com elevados números de adoecimentos no trabalho, sobretudo nesse contexto da acumulação flexível, como pontua Antunes (2018), estão os profissionais da educação. Os docentes que trabalham na cultura digital sentem o peso e as consequências que ocorrem nesse viés produtivista, de aceleração e grandes impactos. O autor traz em sua obra discussões sobre acidentes de trabalho, a flexibilização como base do adoecimento, a gestão por metas e o surgimento da individualização e solidão no local de trabalho (Antunes, 2018). Esses temas permitem-nos entender que o docente da cultura digital tem sido tomado por fatores e dilemas de trabalho que possivelmente o impulsionam a “trabalhar” utilizando os recursos dos “arquivos de infinito uso”. Para tanto, ao apropriar-se de determinados recursos tecnológicos na sala de aula, isto pode causar (no docente) a ‘sensação’ de estar atualizado, de fazer o melhor que poderia naquele determinado momento, ou simplesmente o conforto de acreditar que esteja cumprindo o seu papel enquanto trabalhador docente. A esses aspectos somam-se outros referenciais que vale recuperar, incluindo-se aqui também os conteúdos das respostas dos entrevistados.
5. A organização do trabalho docente em mudança: realidade ou aparência?
Quanto muda o trabalho? Em que aspectos? Como aqueles que o realizam assimilam e reconhecem tal processo? Para ilustrar e conhecer mais sobre esse assunto, trazemos, na sequência, alguns conteúdos selecionados para análise, relativos às compreensões que os docentes possuem sobre inúmeros aspectos que dizem respeito à organização do trabalho docente. A partir da pergunta direcionada aos entrevistados, os professores nos responderam o seguinte:
É... eu penso que favorece talvez no tempo; coisas que eu levaria horas para elaborar, desenvolver, ela facilita que eu gaste menos tempo. Só que, em contrapartida, ou outro lado, é que às vezes esse excesso de tecnologia faz com que eu tenha que ficar sempre utilizando essas tecnologias. Então é a questão do tempo. (Professora Frida Kahlo; grifo nosso)
Eu acho que favorece, sim. A gente tem, por exemplo, o SEI6, na faculdade, eu acho que ele ajuda a gente e a gente tem que tomar ele como parceiro, colocar plano de curso, fazer plano de ensino, traçar uma linha de trabalho. Eu acho que ela [a tecnologia] pode ajudar e muito, eu acho que ela mais ajuda do que ao contrário, sem dúvida que ela ajuda, mas é só essa questão mesmo. (Professor Jonas; grifo nosso)
O participante afirma que: “favorecem a rapidez na busca da informação, facilitam a execução de trabalhos que poderiam levar mais tempo que o normal” (professor João José; grifo nosso). Para outro entrevistado, as tecnologias: “favorecem enormemente, pois com o uso delas o trabalho é executado com mais agilidade e a sua produção é muito mais satisfatória”. (professor Luciano; grifo nosso). Uma das docentes disse que: “favorece na organização das aulas, na execução de diferentes práticas pedagógicas, na compilação de matérias e conhecimentos” (professora Luna; grifo nosso). Por outro lado, a participante argumentou o seguinte: “acho que traz facilidade, organização, planejamento e inovação” (professora Angel; grifo nosso).
Eu não sei se a tecnologia favorece ou facilita o trabalho docente. O que entendo é que é necessária a utilização dessas tecnologias se quisermos fazer com que as aulas fiquem, de alguma forma, atrativas para os alunos, que muitas vezes chegam com mais conhecimento e informações do que o próprio docente referente a algum assunto. A tecnologia muda a forma de trabalharmos, pois exige que estejamos sempre em busca de atualização e aquisição de conhecimento” (Professora Clary, grifo nosso).
É fato que não temos mais como retroceder em relação ao uso das tecnologias. . . . Os profissionais tiveram que se adequar ao processo da tecnologia ao longo dos últimos 10 anos, percebemos que muitos professores ainda têm muita dificuldade com a utilização dessas ferramentas, até porque não nasceram na “era da digitalização”, tiveram que se adequar de uma forma ou de outra. (Professora Fashion, grifo nosso).
Por fim, a professora Suzy disse: “acho que a palavra é eficiência. Com certeza conseguimos fazer mais coisas do que o habitual por meio das tecnologias. Penso que isso é, de certo modo, favorável” (grifo nosso).
Trazemos aqui alguns exemplos sobre o que dizem os docentes a respeito da organização do trabalho docente. Conforme exposto, nos é possível entender que os professores possuem compreensões que se aproximam mas que também se distanciam. O docente João José nos informa algo muito próximo do que os demais professores pensam. Para ele, as tecnologias “favorecem a rapidez na busca da informação, facilitam a execução de trabalhos que poderiam levar mais tempo que o normal”.
Percebemos, também, que os docentes entrevistados associam a presença e utilização das tecnologias à questão do tempo. Esse ponto apareceu em várias falas. Durante as conversas investigativas com os professores da universidade, constatamos que várias vezes apareceram as palavras ‘favorável’, ‘favorece’ ou ‘favorecem’. Isto ocorreu porque os sujeitos da pesquisa acreditam que as tecnologias atuam de maneira eficaz quando o assunto é a otimização do trabalho. Tal questão surgiu no relato da docente Suzy, que trouxe o seguinte fragmento à tona: “acho que a palavra é eficiência. Com certeza conseguimos fazer mais coisas do que o habitual por meio das tecnologias. Penso que isso é, de certo modo, favorável”.
Afirmar que por meio das tecnologias “conseguimos fazer mais coisas do que o habitual” nos parece uma tendência muito articulada ao mundo do trabalho, e, de certa maneira, não deixa de ser uma compreensão um tanto ou quanto instigante. Tal pensamento se aproxima das análises críticas de Dardot e Laval (2016) sobre a lógica produtivista e acelerada que constitui o sujeito neoliberal como empresário de si. A esse respeito, a professora Adelina Novaes, em uma entrevista realizada por Oliveira et al. (2017), sobre a cultura midiática na sociedade neoliberal, elabora uma série de críticas quanto a expressão do projeto neoliberal em curso. Um exemplo mencionado pela entrevistada, Adelina Novaes, é que realizou a entrevista com a utilização de um smartphone, em razão da falta de tempo. Os autores enviaram, via e-mail, o roteiro de questões e, conforme o tempo que possuía, a docente respondia às perguntas recorrendo ao recurso tecnológico.
Desse modo, em virtude da escassez de tempo, aproveitar cada segundo parece ser sempre muito útil e menos prejudicial, em se tratando de uma sociedade que valoriza a produção – sobretudo aquela em larga escala. Conseguir “fazer mais coisas do que o habitual” indica que o trabalhador dá conta de desempenhar múltiplas funções, ações, atividades, etc., desde que se utilize e se aproprie dos recursos atuais propiciados pelas tecnologias. Com elas, também o docente é capaz de desenvolver “mais coisas” do que o habitual.
Em um cotidiano sem a presença das tecnologias, o trabalho seria desenvolvido em escalas mais lentas, provavelmente com mais gasto de tempo. Por esta razão, “isso é, de certo modo, favorável”, como argumenta a docente Suzy. As tecnologias permitem, portanto, otimizar o tempo de modo a contribuir com melhores condições para organizar o trabalho. Percebemos haver uma forte relação entre a organização do trabalho e o aspecto do tempo.
Em outras entrevistas também encontramos pontos de vista que caminham no mesmo sentido do que indicam Suzy e João José. O relato do docente Amorim não se distancia do que fora exposto até então, pois o mesmo considera que as tecnologias atuam de modo a “facilitar e agilizar o trabalho diário”. Facilidade e agilidade são pontos a ser compreendidos como fenômenos que permitem o “trabalho diário” acontecer de maneira mais leve e rápida. São características relacionadas com pressupostos de uma racionalidade e ideologia neoliberal, anunciadas por Dardot e Laval (2016). Ou seja, a sensação de facilidade e agilidade que os professores podem sentir acontece porque alguns processos de trabalho – como elaborar uma aula a ser ministrada, por exemplo, no curso de Psicologia, ou outro – acontecem em curtos espaços de tempo, causando-lhes tais impressões. São reflexos de um sistema político neoliberal que visa aproveitar ao máximo o tempo dos trabalhadores, de maneira que aconteçam, custe o que custar, produções que contribuam para o fortalecimento e crescimento de uma cultura pautada no capitalismo global e acumulação flexível.
Ao fazer uma verificação das palavras que possuem maior frequência nas respostas extraídas da pergunta que construiu esta subseção, foi possível analisar alguns pontos. Procuramos analisar o que as palavras frequentes representam à luz dos olhares e compreensões que os participantes da pesquisa possuem. Nesse sentido, constatamos que as palavras ‘favorece’, ‘organização’ e ‘conhecimento’ aparecem repetidas vezes e possibilitam a análise de algumas questões. Tais interpretações nos permitem compreender que um dos papéis exercidos pelas tecnologias recai sobre a facilidade que elas trazem enquanto contribuem para a organização das aulas no ensino superior, como o fragmento extraído da entrevista com a docente Luna nos mostra: “favorece na organização das aulas, na execução de diferentes práticas pedagógicas, na compilação de matérias e conhecimentos”. A participante entende que as tecnologias digitais favorecem, além da organização – planejamento – das aulas, a execução de outras diferentes práticas de ensino, a exemplo da própria aula ou da realização de avaliações. Nesse sentido, entendemos que as tecnologias contribuem em vários aspectos e dimensões, pois tal questão também é reforçada nas palavras da docente Fashion:
Quanto ao favorecimento, vejo inúmeros, tais como: preenchimento dos diários on-line (o que antes era feito manualmente), aulas com melhor qualidade (com recursos que nos ajudam a melhorar os recursos audiovisuais), apresentação de seminários, leitura on-line de artigos, reportagens, livros. (Professora Fashion)
A docente Fashion considera que há vários pontos positivos nas tecnologias digitais. Atividades que facilitam e favorecem o trabalho docente, como preenchimento dos diários on-line, elaboração de aulas com maior qualidade, acesso a artigos on-line que permitem ampliar leituras, entre outros, são aspectos que, de certo modo, colaboram para organizar o trabalho docente de maneira a proporcionar rendimento, produção e eficiência.
Por outro lado, embora a maioria dos entrevistados entenda que as tecnologias facilitam e favorecem o trabalho docente, bem como a sua organização, existem alguns contrapontos. A fala do docente Cebolinha, por exemplo, aponta diferentes pontos de vista, com questões bastante instigantes, e algumas delas já dadas. Primeiro, o docente entende que a tecnologia tem duas faces tidas como fundamentais. Descreve Cebolinha que: “uma delas é o acesso à rede de informações, inclusive de informações que estão aí e tal, essa facilidade de acesso de trabalhar com várias telas abertas, possibilidades que, de alguma forma, facilitam na organização do nosso trabalho”.
O docente aponta o lado positivo e promissor das tecnologias. Nessa perspectiva, as mesmas possibilitam desenvolver um trabalho que abarca vários temas, assuntos ou conteúdos ao mesmo tempo. Como o próprio participante informa, é possível trabalhar “com várias telas abertas”, de maneira a facilitar a organização do trabalho. Isto proporciona a sensação de controle que o sujeito possui sobre a multiplicidade de recursos e informações que essas “várias telas” possibilitam explorar. No entanto, existe um outro lado que identificamos. Ele se mostra um pouco temeroso. Na sua fala, há uma outra face que as tecnologias podem apresentar. Explica Cebolinha que “os caderninhos amarelos dos professores”, hoje substituídos pelos “arquivos de infinito uso”, também oferecem “um risco” – no caso, os ‘novos’ arquivos infinitos. Esse último ponto, apresentado por nós, traz à tona aspectos que merecem ser pensados, discutidos e ressignificados.
6. Considerações finais
Entendemos que fazer pesquisa em educação, além de contribuir em vários aspectos e dimensões na sociedade, nos permite compreender novos modos de viver em tempos de cultura virtual, digital e tecnológica. E foi a partir de indagações que emergem do próprio campo educacional, especialmente no âmbito do ensino superior, que ocorreu a pesquisa de campo que deu como fruto este artigo. Tivemos o intuito de nos aproximarmos do mundo do trabalho, sobretudo do trabalho docente, de forma a evidenciar as metamorfoses que têm ocorrido no universo do trabalho em consequência das relações que os docentes estabelecem com as tecnologias digitais.
Essas relações que buscamos mostrar alteram algumas dimensões do trabalho docente. Defendemos a tese de que as tecnologias não apenas intensificam e aceleram o ritmo de trabalho na cultura digital, elas modificam a produção de subjetividades de sujeitos que trabalham com a docência e contribuem significativamente no desenvolvimento profissional docente. Reconhecemos que as relações da atualidade são atravessadas por processos que permitiram que os cadernos amarelos do passado fossem substituídos por recursos digitais e artefatos eletrônicos. No entanto, por mais que essas inovações digitais aparentem representar alguma inovação no contexto educativo, são entendidas como recursos que ainda carregam ranços de décadas atrás.
Também constatamos, por um lado, que as tecnologias digitais atuam como potenciais recursos eletrônicos e digitais capazes de favorecer, facilitar e ajudar a organização do trabalho docente. Por outro, elas podem ser compreendidas como recursos passíveis de provocar esvaziamento e empobrecimento de aspectos relacionados à aula e ao ensino, por exemplo, por se tornarem artefatos que, de certa maneira, permitem que o professor se acomode quando utiliza os mesmos arquivos digitais, guardados nas mesmas pastas. Ou seja, explora os materiais “de infinito uso” por inúmeras vezes, ano a ano.
Em suma, ao longo da nossa investigação percebemos que o novo proletariado de serviços da era digital, como o docente universitário, organiza o trabalho conforme os contextos em que está inserido e as possibilidades que possui. Compreendemos, também, que algumas questões que envolvem o “tempo” aparecem com muita veemência nos relatos produzidos pelos docentes da pesquisa. Os docentes universitários possuem cada vez menos tempo para desempenhar suas funções, e eles têm demonstrado isso em suas entrelinhas – gestos, expressões, textos, discursos e práticas.