1. Introdução
A dança pode ser compreendida como manifestação antropológica, social, cultural e artística, enquanto o movimento por meio dela desenvolvido se configura como uma das formas de diálogo não verbal mais antigo registrado na humanidade. De fato, o ser humano estabelecia com o mundo uma clara comunicação por meio da linguagem corporal e de suas capacidades sensoriais – possibilitando, com o passar do tempo, o trabalho e o aprendizado por meio deste processo (Cardoso, Reis, et al., 2021). Neste sentido, a dança torna-se símbolo da construção social e da existência humana, parte da estrutura curricular educacional que desenvolve e prepara o cidadão para o mundo.
Conforme os Parâmetros Curriculares Nacionais (Ministério da Educação do Brasil, 1998a, 1998b, 1998c) e as mais recentes orientações curriculares presentes na Base Nacional Comum Curricular (Ministério da Educação do Brasil, 2018), a dança constitui-se como conteúdo curricular a ser desenvolvido tanto na educação física quanto na arte (Cardoso, Silva, & Silva, 2021). As aulas de educação física, portanto, são momentos privilegiados para viabilizar oportunidades de exploração da consciência, das expressões e das potencialidades do corpo em movimento. Contudo, a literatura consultada indica presença predominante do esporte (principalmente as modalidades coletivas) na prática pedagógica docente em educação física escolar (Diniz & Darido, 2019; Silva et al., 2020), ao mesmo tempo em que se confere pouca ênfase às práticas corporais como a dança (Carvalho et al., 2012;Darido et al., 2001; Ehrenberg, 2011; Sousa & Reis, 2021), devido a empecilhos como a insegurança e a falta de domínio docente.
Além das dificuldades de se trabalhar conteúdos específicos como a dança, a educação física escolar tem sido criticada por conferir ênfase demasiada à dimensão procedimental das práticas corporais, o que prejudica o tratamento igualmente importante de aspectos conceituais e atitudinais (Darido, 2012). Como consequência, a educação física acaba apresentando fragilidades decorrentes da repetição excessiva e/ou da falta de continuidade de determinados conteúdos, assim como da falta de significância das aulas a seus estudantes (Cardoso, Reis, et al., 2021; Oliveira, 2000).
Esta situação é agravada quando os professores centralizam a definição dos conteúdos, dos procedimentos e das formas de avaliação a serem adotadas durante o bimestre/trimestre ou ano letivo, reduzindo a participação e a responsabilidade dos(as) estudantes pelo processo de ensino-aprendizagem. Este cenário, quando repetido durante muito tempo, pode levar os(as) estudantes a se desmotivarem e, progressivamente, se afastarem da prática das aulas de educação física quando atingirem o ensino médio (Darido et al., 1999).
Para superar esta situação, o enfoque construtivista tem recebido atenção especial pela preocupação que apresenta em colocar o(a) estudante no centro do processo educativo (Silva et al., 2020). As propostas educacionais construtivistas buscam valorizar os conhecimentos prévios dos aprendizes para, a partir do diálogo constante entre docentes e discentes, ampliar o conhecimento e a aprendizagem em um processo de permanente co-construção e ressignificação de saberes (Fosnot, 2005).
Dentre as propostas construtivistas socializadas na literatura educacional especializada, o modelo de ensino centrado no aprendiz, preconizado por Weimer (2002), tem recebido atenção crescente por seu elevado detalhamento e por fornecer orientações para seu adequado desenvolvimento. Este modelo se configura a partir das dimensões função do conteúdo, papel do professor, responsabilidade pela aprendizagem, equilíbrio do poder e finalidades e processos de avaliação. Resumidamente, o modelo de ensino centrado no aprendiz busca equilibrar a distribuição das responsabilidades e de poderes entre professores e estudantes, promovendo o desenvolvimento da autonomia e maior participação dos discentes nas distintas etapas do processo educacional (Silva et al., 2020). O professor, neste sentido, exerce papel de facilitador da aprendizagem, desenvolvendo os conteúdos de ensino a partir dos conhecimentos prévios, das necessidades e dos interesses dos(as) estudantes (Weimer, 2002).
Considerando o exposto, este estudo investigou as possibilidades e as implicações do desenvolvimento do conteúdo dança na educação física escolar baseando-se na proposta do ensino centrado no aprendiz. Para tanto, descreveu-se uma experiência de ensino da dança em contexto escolar, com destaque para as estratégias de desenvolvimento deste conteúdo, bem como para as possibilidades e implicações decorrentes das vivências dos(as) estudantes investigados(as).
2. Metodologia
A experiência pedagógica em questão foi realizada no ano de 2018 em uma escola pública municipal da cidade de Blumenau (SC), com os(as) estudantes do 6.º, 7.º e 8.º anos do ensino fundamental. Refletindo-se sobre a necessidade de inovar a prática educacional abordando o ensino do movimento humano, elencou-se a dança como um dos conteúdos a serem explorados, enriquecendo e diversificando o ensino da educação física e seus diferentes domínios. Assim, elaborou-se, no início do ano letivo, um planejamento que contemplava os objetivos de aprendizagem, os conteúdos de ensino, as estratégias de ensino e as formas de avaliação, o qual se fundamentou na Proposta Pedagógica do município de Blumenau (SC) e nos princípios do modelo de ensino centrado no aprendiz (Weimer, 2002).
De acordo com a Proposta Pedagógica do município (Secretaria Municipal de Educação de Blumenau, 2012), a disciplina de educação física almeja contribuir para o desenvolvimento da criança, assegurando-lhe o acesso às práticas corporais produzidas pela cultura humana, tendo o movimento humano como objeto de estudo. Embora as Diretrizes Curriculares de Blumenau para o ensino fundamental (2012) não esclareçam de forma explícita o embasamento teórico, ressalta-se que “as concepções fundantes do documento estão baseadas na contradição entre o cotidiano e o não cotidiano, e na relação entre a experiência individual e as experiências acumuladas pelo conjunto da sociedade ao longo da história” (Secretaria Municipal de Educação de Blumenau, 2012, p. 12). As Diretrizes Curriculares de Blumenau (Secretaria Municipal de Educação de Blumenau, 2012) esclarecem ainda que a dança pode ser implementada por meio da experimentação dos movimentos básicos para sentir e compreender as características dos ritmos, e ainda a contextualização das atividades em situações de apresentação de coreografias de ritmos regionais, nacionais e internacionais.
A experiência ocorreu em uma escola que funciona nos turnos matutino e vespertino, compreendendo turmas do ensino infantil ao 9.º ano do ensino fundamental. Participaram da experiência 311 estudantes, sendo 186 do sexo masculino e 125 do sexo feminino. Relativamente ao ano letivo, 139 estudantes correspondiam a quatro turmas do 6.º ano com média de idade de 11 anos, 143 estudantes eram pertencentes a quatro turmas do 7.º ano com média de idade de 12 anos e 29 estudantes de uma turma do 8.º ano do ensino fundamental, com média de idade de 13 anos. As turmas participaram de três aulas semanais de educação física com duração de 45 minutos cada, sendo realizadas em diversos espaços da escola (quadra de esportes, pátio, espaços de convivência, sala de aula e auditório), a fim de explorar a relação entre teoria e prática do movimento nos diferentes ambientes.
Por fim, destaca-se que este estudo se caracteriza como qualitativo, de caráter descritivo (Denzin & Lincoln, 2006), no formato de um de relato de experiência, com o intuito de descrever todas as ações pedagógicas adotadas com base na teoria do ensino centrada no aprendiz. Para a construção deste relato utilizou-se o planejamento da professora, os registros diários realizados pela mesma e o feedback das experiências proporcionadas aos(às) estudantes.
3. Desenvolvimento da Proposta de Ensino da Dança e Seus Resultados
A professora possuía três anos de experiência prévia com a docência nos anos finais do ensino fundamental; na escola investigada, estava contratada em caráter temporário e atuava em seu primeiro ano de contrato. Apesar de possuir experiência esportiva como atleta profissional na modalidade basquetebol e de ter vivenciado a dança somente em alguns momentos de sua formação inicial universitária em Educação Física, a professora já havia, em oportunidades anteriores, desenvolvido o conteúdo dança no contexto escolar. Os feedbacks das referidas experiências prévias com o ensino da dança a incentivaram a dar continuidade ao trabalho, adotando uma prática pedagógica construtivista para potencializar o aprendizado discente.
Antes de introduzir os estilos propriamente ditos foram realizadas duas aulas de introdução ao ritmo, à expressão corporal e ao contato com o outro. Na primeira aula os(as) estudantes foram questionados(as) pela professora e dialogaram sobre o tópico “O que é a dança?”, o que os(as) possibilitou construir uma concepção coletiva que remeteu ao “movimento no ritmo da música”.
Na tentativa de explorar e verificar os conhecimentos rítmicos prévios de cada estudante, realizou-se um exercício em que estes(as) ouviam as músicas e descreviam o estilo de dança percebido, primeiramente de forma individual e depois coletivamente. Por meio das respostas dos(as) estudantes foi possível verificar os conhecimentos prévios que estes(as) possuíam sobre os estilos de dança. Na aula seguinte, os(as) estudantes foram distribuídos(as) em grupos com o objetivo de expressar e interpretar corporalmente o que sentiam através das músicas (medo, tristeza, alegria, vitória, etc.). Nesta aula, a fim de desenvolver o ritmo e incentivar a improvisação, os(as) estudantes reproduziram livremente diferentes ritmos musicais utilizando palmas, batidas com os pés e pequenos movimentos, tanto individualmente quanto em interações com o outro. O objetivo das atividades foi justamente considerar os conhecimentos prévios dos(as) estudantes para o desenvolvimento da proposta, os quais foram avaliados por meio do diálogo, das atividades realizadas durante as aulas e das observações diretas (Mendes et al., 2012). As observações eram registradas regularmente após as aulas, em um diário de campo que ficava na posse da professora e que possibilitava a descrição das percepções obtidas acerca das ações, das atitudes, das falas, dos comportamentos e das competências demonstradas pelos(as) estudantes, no intuito de auxiliar na compreensão e reflexão dos conhecimentos prévios que estes(as) possuíam sobre a temática dança.
No que tange ao detalhamento da proposta de ensino da dança, destacam-se, no Quadro 1, os conteúdos (estilos de dança) abordados, os objetivos de aprendizagem, as estratégias de ensino, a duração específica e o aproveitamento dos conteúdos a partir da percepção da professora. Salienta-se que os conteúdos foram abordados envolvendo as dimensões atitudinais (“como se deve ser?”), procedimentais (“o que se deve saber fazer?”) e conceituais (“o que se deve saber?”) propostas por Darido et al. (2001), pretendendo que os(as) estudantes aprendessem não somente a fazer/reproduzir, mas também a entender/refletir sobre o que faziam, de modo a compreender o impacto de suas ações no meio em que viviam.
Nota.*Entende-se aqui como Danças Individuais (DI) aquelas que não necessitam, obrigatoriamente, do contato corporal direto entre dois ou mais sujeitos. Todavia, ressalta-se que estas geralmente são praticadas no coletivo, propondo inferências distintas no contexto em que são realizadas; Danças de Salão (DS), dançadas geralmente em pares, condutor(a) e conduzido(a), culturalmente conhecidos como dama e cavalheiro, também podem ocorrer no contexto coletivo, no qual um determinado par pode interagir com os demais pares, principalmente em coreografias e apresentações; Danças Populares (DP), inerentes a determinada cultura/comunidade/contexto, remetem às características e influências passadas de geração para geração, representando uma história. Podem ser dançadas individualmente, em duplas, trios e/ou grupos.
Fonte: Elaborado pelos autores, 2019.
Destaca-se que foi buscada, por meio dos estilos de dança abordados, a aproximação dos(as) estudantes para com o contexto cultural de cada modalidade, de forma a valorizar os conhecimentos prévios e instigar o desenvolvimento da criatividade, do ritmo, das expressões corporais e das relações interpessoais, e com isso respeitar as individualidades e as potencialidades de cada um. Com base nos princípios do modelo de ensino centrado no aprendiz (Weimer, 2002), o papel da professora foi o de envolver os(as) estudantes no processo de desenvolvimento, aquisição e retenção de informações, bem como facilitar o processo de ensino-aprendizagem dos estilos vivenciados.
No que concerne ao processo de ensino-aprendizagem, foram conduzidas 18 aulas de dança distribuídas de acordo com o nível de desenvolvimento dos(as) estudantes, compreendendo as seguintes estratégias: aulas expositivo-dialogadas, aulas teóricas, aulas práticas e aulas com vídeos de coreografias e trechos de filmes. Procurou-se, com esses recursos, ampliar as possibilidades de percepção das diferentes expressões corporais, das emoções e dos gestos representados pelos dançarinos/atores nos vídeos, tendo como foco o movimento em suas dimensões afetivas e projetivas. Finalmente, esta abordagem agregou novas ideias e incentivou os(as) estudantes a criarem as coreografias específicas dos estilos.
Durante o processo de inserção dos conteúdos, aliado às estratégias metodológicas nas fases de experimentação e improvisação, um dos aspectos negativos observados foi a dificuldade do contato corporal com o outro. A partir dessa constatação, o desconforto evidenciado foi trabalhado progressivamente com foco inicial no sujeito e, na sequência, no coletivo.
Apesar de constatar a resistência no tocante às estratégias metodológicas referentes à etapa supracitada, ressalta-se que a adoção de uma proposta mais construtivista e democrática de ensino foi encarada com entusiasmo e determinação por parte dos(as) estudantes. Todavia, se reconhece que mais tempo seria necessário para o trabalho na fase de experimentação e improvisação, para que se atingisse o objetivo com maior propriedade. Uma das estratégias adotadas para superar tal dificuldade foi iniciar pelas danças que não necessitavam, obrigatoriamente, do contato corporal direto, especificamente as danças individuais (Hip-Hop, Disco, Country, Funk e Dança Alemã), seguidas do trabalho de contato e improvisação e, posteriormente, de atividades em duplas, trios e grupos, nesses estilos. Após esta etapa, foram inseridos os estilos que propunham as danças de par, tais como Rock, Salsa, Forró, Valsa, Samba, Paso Doble e Tango, nas quais foram adotadas estratégias de desenvolvimento do contato por meio do estímulo afetivo e corporal, em que os(as) estudantes eram postos(as) a dançar, inicialmente, com os pares com os quais possuíam mais conexão e aproximação social.
Ressalta-se que a escolha por estilos de dança de par (aqui designados como Dança de Salão) justificou-se por explorarem diversas possibilidades articulares nos diferentes planos, eixos e direções (Cardoso, Silva & Silva, 2021; Fonseca & Gama, 2011), envolvendo a consciência corporal, a coordenação motora, a noção espacial e temporal e o domínio do corpo (Volp, 2010). Além disso, abrangem interações entre condutor(a) e conduzido(a) que demandam tomada de decisão, respeito mútuo, compartilhamento de espaço para com os demais pares no salão, conexão, criatividade e disciplina no planejamento e montagem quando envolvem criações coreográficas (Cardoso, Reis, et al., 2021).
Na proposta de ensino também foram viabilizados espaços a fim de problematizar e fortalecer os diálogos acerca de importantes pautas, como por exemplo as questões de gênero e relações de poder na dança (Assis & Saraiva, 2013; Cardoso, Silva & Silva, 2021). Buscou-se, por meio desses debates, refletir, conscientizar e vislumbrar novas perspectivas para os papéis oportunizados e desenvolvidos, bem como sobre a responsabilidade existente para com o outro no ato de dançar a dois. Embora a Dança de Salão atual aponte novas nomenclaturas, tais como condutor(a)/conduzido(a), propositor(a)/intérprete, leader/follower, na tentativa de resgatar o contexto histórico no qual a modalidade foi estruturada e estimular a cordialidade e o respeito mútuos foram abordadas, nas práticas, as maneiras mais adequadas de convite à dança nos moldes formais, em que o cavalheiro convidava a dama para dançar. Nesta reflexão é importante salientar que, em alguns momentos, como na aula prática de Valsa, algumas meninas se sentiram à vontade para assumir o papel de condutoras e alguns meninos o de conduzidos, possibilidade esta que foi ampliada para todas as aulas práticas que propunham as danças a dois. Além disso, foram abordados os passos básicos de cada estilo, bem como a expressão facial, a intensidade e a velocidade dos passos. Ao final de cada aula prática, possibilitou-se aos(às) estudantes um espaço para a improvisação e criação espontânea de gestos e movimentos com seus pares, trios e/ou grupos, os quais eram socializados posteriormente pela turma. Desta maneira, os(as) estudantes tiveram a oportunidade de construir o processo, não dependendo apenas da professora para tal.
A necessidade de autonomia progressiva pela própria aprendizagem torna o(a) estudante construtor(a) do processo, um(a) participante ativo(a), envolvido(a) e responsável por expor e compartilhar ideias e estratégias (Fosnot, 2005). Desta maneira, esse espaço foi proporcionado visando a valorização e reconhecimento dos conhecimentos prévios dos(as) estudantes, atribuindo significado ao processo e tornando-os(as) protagonistas neste contexto.
Os(as) estudantes costumavam fornecer feedbacks constantes sobre a proposta de ensino, expressando suas impressões positivas e negativas quanto aos estilos explorados nas aulas. Acredita-se que o retorno dos(as) estudantes auxiliou e influenciou positivamente na estrutura das aulas, fato que resultou em planejamentos adaptáveis, na inclusão de estratégias de explanação dos conteúdos e no esclarecimento dos objetivos de aprendizagem, contribuindo para o desenvolvimento de um processo de ensino-aprendizagem mais flexível e centrado no(a) estudante.
À vista disso, salienta-se a importância do envolvimento discente no processo de ensino sob a perspectiva construtivista, possibilitando um contexto de reflexão, discussão e compartilhamento de ideias co-construídas. Oportunizar tempo e espaço para que os(as) estudantes gerem hipóteses, façam perguntas, forneçam feedbacks, defendam e discutam suas percepções e expectativas corresponde ao fluxo natural das aulas de um(a) professor(a) que opta por uma perspectiva que defende o papel ativo do sujeito na criação e modificação de suas representações. Fosnot (2005) ressalta que ao desenvolver este processo os “erros” não precisam ser evitados, pois fazem parte das percepções dos(as) estudantes e ainda podem culminar e permitir que estes(as) explorem e gerem diferentes possibilidades afirmativas e contraditórias, tornando o contexto desafiador e significativo.
3.1. Desenvolvimento Do Festival De Dança
Na proposta de fechamento do conteúdo, se estabeleceu um desafio aos(às) estudantes: a realização do primeiro Festival de Dança da escola, do qual estes seriam os protagonistas, colocando-se à frente de todas as etapas. O primeiro passo foi realizar uma reunião com a coordenação e a direção escolar para a aprovação do evento, definindo demandas, estratégias, materiais, espaço e tempo que seriam dispendidos para tal.
A ideia de organizar o Festival de Dança está em conformidade com a perspectiva de Fiamoncini (2003), para quem a dança, no campo educacional, deve fomentar o desenvolvimento da sensibilidade, da criatividade e da expressividade, estimulando o saber através do sentir e da intuição, objetivando que o aprendizado proposto seja transposto para além do contexto escolar (Cachoeira & Fiamoncini, 2018; Fiamoncini, 2003). Mediante o aceite, os(as) estudantes foram divididos(as) em grupos com três a seis integrantes cada. A divisão foi feita de forma colaborativa entre estudantes e professora, no sentido de ampliar e melhorar as relações interpessoais na turma. No que se refere à escolha dos estilos de dança para cada grupo, foram realizadas votações intragrupos para a definição dos mesmos quando não houve consenso. Levando-se em consideração os princípios do modelo de ensino centrado no aprendiz (Weimer, 2002), de modo a visar o desenvolvimento da autonomia e da responsabilidade, foi solicitada aos grupos a realização de uma pesquisa complementar à criação coreográfica. Para tanto, foi pedido o levantamento de questões históricas, curiosidades, indumentárias específicas, artistas de referência, dentre outras informações pertinentes ao estilo de dança escolhido. Após esta etapa, os grupos escolheram suas músicas, as quais tiveram suas letras analisadas e autorizadas para uso, e ficaram ‘livres’ no processo de criação coreográfica, podendo utilizar ou não aquilo que haviam aprendido em aula sobre os estilos de dança. Para o processo de criação coreográfica foram estipuladas seis semanas, correspondentes a 18 aulas de 45 minutos cada.
O Festival de Dança ocorreu nos períodos matutino e vespertino. O Quadro 2 apresenta detalhadamente a ordem das apresentações e as informações pertinentes aos
grupos e estilos musicais escolhidos.
Nota:*Participação externa de uma escola convidada para a abertura do Festival, no período vespertino.
Fonte: Elaborado pelos autores, 2019.
O Festival compreendeu diferentes estilos de danças, com destaque para as Danças de Salão devido às fortes influências culturais presentes na comunidade e na mídia, principalmente em programas televisivos. Apesar desse destaque, para a ordem das apresentações foi buscada a alternância de estilos, estabelecendo-se também uma sequência de turmas/anos diferentes. Destaca-se a participação de uma escola externa no evento, em que uma turma de 13 estudantes, que também desenvolvia a dança nas aulas de educação física, foi convidada para abertura do Festival no período vespertino.
4. Avaliação Do Desenvolvimento Da Proposta: Diálogos Entre Educação Física E Dança
No início do segundo trimestre foram percebidas algumas resistências dos(as) estudantes em relação a determinados estilos de dança. Ressalta-se, por exemplo, a vergonha dos meninos e das meninas e o preconceito manifestado por alguns meninos em determinadas ocasiões. Após a superação do constrangimento, a maior dificuldade encontrada foi o contato corporal com o outro. Acredita-se que esta dificuldade se deve ao fato de que, na maior parte das aulas, cada estudante tem seu espaço e limite circunscritos ao seu lugar estabelecido em sala de aula. Sabendo que poucos são os momentos de contato corporal direto em que se propõe uma aproximação maior entre os(as) estudantes (Cardoso, Silva & Silva, 2021; Milstein & Mendes 2010), a proposta de ensino da dança também procurou minimizar as barreiras da timidez e da falta de participação.
Durante o desenvolvimento do Festival, foi possível observar que os(as) estudantes assumiram diversos papéis frente às necessidades que surgiram durante a estruturação das coreografias, fato este que está positivamente alinhado à autonomia e à responsabilidade discente preconizadas pelo modelo de ensino centrado no aprendiz. A emergência de lideranças, a grande dedicação de alguns estudantes nas criações coreográficas e a curiosidade para buscar diferentes elementos surpreenderam a professora – que, apesar de desejar tais desfechos, não imaginava que o envolvimento discente ocorresse de forma tão natural. Outro fator importante foi a solidariedade manifestada pelos grupos entre si. Mesmo com adversidades (dificuldade na criação ou na movimentação específica nos passos de algum estilo), eles se disponibilizaram para auxiliar-se uns aos outros, o que afetou positivamente nas relações interpessoais. Com o passar das aulas, determinados estudantes solicitaram permissão para também participarem das coreografias de outros grupos.
Este fato reforça as características de um ambiente construtivista, resgatando o papel ativo do(a) estudante na construção do conhecimento, estimulando um ambiente organizado e pautado no respeito para com o outro, sendo o papel do professor não apenas o de um transmissor do conhecimento (Bidarra & Festas, 2005). Logo, assume o papel de mediador do processo de ensino-aprendizagem, cultivando ainda um ambiente que proporcione interação social através de trabalhos em grupos e que desenvolva a autonomia dos(as) estudantes (Sanchis & Mahfoud, 2010).
No Festival ocorreram algumas situações previamente esperadas pela professora, tais como o nervosismo e a ansiedade dos(as) estudantes, em função de ser um evento público e de grande abrangência na comunidade escolar. Diante destas situações, a professora procurou acalmar os(as) estudantes através do diálogo, encorajando-os(as) individual e coletivamente. Determinados(as) estudantes também assumiram este papel nos grupos, contribuindo para o aumento da confiança em geral.
O transcorrer da proposta de ensino possibilitou a observação de positivos resultados nos relacionamentos interpessoais; à medida que as relações foram se tornando mais harmoniosas, os conflitos e os preconceitos iniciais foram diminuindo consideravelmente. Também se percebeu o aumento da autoconfiança, pois os(as) estudantes que no início da proposta apresentavam receio, timidez e falta de confiança para dançar, mostraram-se capazes de superar esses desafios.
Evidentemente, ocorreram conflitos entre os(as) estudantes, tais como discussões internas acerca da dedicação individual, das faltas nos ensaios e da falta de consenso na criação coreográfica. Nestes momentos, a professora interveio e auxiliou na resolução dos problemas. Nas demais ocasiões optou-se por conferir maior autonomia aos(às) estudantes, salientando que as dificuldades observadas fariam parte do processo de construção coletiva e que a reflexão e diálogo entre os pares poderia solucionar/amenizar muitos dos problemas evidenciados.
Estudos indicam que, em escolas onde a dança foi desenvolvida, pode-se perceber melhoria no comportamento, no envolvimento e na participação dos(as) estudantes em eventos escolares, fortalecendo o interesse destes(as) pelos estudos e ampliando o prazer de estarem na instituição (Carvalho et al., 2012; Sousa & Reis, 2021). Diniz e Darido (2019) reforçam que, por meio da dança na escola, os(as) estudantes desenvolvem sua autonomia intelectual e corporal, melhoram a socialização, a cooperação e a responsabilidade, além de desenvolverem as capacidades críticas e afetivas. Pela dança, os(as) estudantes aprendem e conhecem maneiras diferentes de se comunicar e interagir com o mundo, despertando novas possibilidades e potencialidades que antes desconheciam ou não eram tão exploradas (Carvalho et al., 2012; Ehrenberg, 2011; Sousa & Reis, 2021).
Os procedimentos avaliativos também foram baseados no modelo de ensino centrado no aprendiz (Weimer, 2002), motivo pelo qual não serviram apenas para gerar notas, mas também para promover o aprendizado. As estratégias avaliativas, os critérios e o tempo destinado a cada avaliação estão especificados no Quadro 3.
Trabalho teórico em grupo sobre os estilos de dança | Pesquisa coletiva abordando a história, indumentária utilizada, principais artistas e curiosidades sobre os estilos. | 2 semanas | 0 a 10 |
Participação, envolvimento e preparação para o Festival de Dança | Assiduidade nas aulas, comprometimento com o grupo, criatividade na elaboração dos passos, dedicação e organização nos ensaios, diálogo e respeito com os pares do grupo. | 7 semanas | 0 a 10 |
Apresentação final no Festival de Dança | Presença no Festival, caracterização e vestimenta de acordo com o estilo da dança, musicalidade, criatividade na composição coreográfica e integração e harmonia do grupo. | 6 semanas | 0 a 10 |
Autoavaliação | Dedicação nos ensaios, envolvimento na composição coreográfica, responsabilidade com o figurino, cooperação com o grupo, comprometimento e apresentação no Festival. | 3 meses | 0 a 10 |
Elaborado pelos autores, 2019.
Após a finalização do Festival foi realizada uma investigação com os(as) estudantes para identificar suas percepções gerais sobre o processo de desenvolvimento da proposta de ensino. Os(as) estudantes foram solicitados(as) a classificar cada abordagem de estilo de dança em ótimo, bom, regular ou fraco. Adicionalmente, solicitou-se que descrevessem as sensações que sentiram ao vivenciar todo o processo de experiência do Festival. Este diagnóstico teve como objetivo identificar o que necessitava ser modificado e/ou aperfeiçoado para a melhoria de planejamentos futuros. Na sequência, destacam-se algumas percepções discentes:
Foi incrível, senti desespero, orgulho e adrenalina... foi umas das melhores coisas que já fiz!
Superei meu medo, tive coragem. Mesmo com a perna tremendo toda, consegui!
No começo, senti vergonha de apresentar, mas, quando subi ao palco com meu grupo, não tinha mais vergonha. Me ensinou a ter coragem.
Sou sincera, não gosto de dançar, muito menos me apresentar na frente de um monte de gente, mas mesmo assim gostei de me apresentar. Foi difícil e chato, mas levo isso para a minha vida porque aprendi a superar os meus medos e a vergonha.
Quando estava no camarim, fiquei tão nervosa que gritei. Apenas falei para meu grupo: “só dancem com um sorriso no rosto e com confiança”. Melhor experiência!
Quebrei uma das minhas barreiras, a timidez. Gostei de estar presente nesse Festival. Me sinto outra pessoa!
Fiquei um pouco nervoso, mas isso é normal. Odiava dançar, mas agora, em casa, às vezes começo a dançar.
Eu sempre fui muito envergonhada e nunca quis participar de nada, mas esse festival foi incrível para mim. Nunca achei que iria gostar de subir em um palco e dançar.
Espero que venham mais coisas diferentes na escola.
Verifica-se que os feedbacks dos(as) estudantes estão alinhados aos resultados de aprendizagem almejados ao se adotar o modelo de ensino centrado no aprendiz. No que se refere à função do conteúdo dança, destaca-se que este foi abordado de forma profunda e reflexiva, privilegiando os conhecimentos prévios dos(as) estudantes acerca desta temática. Ao superarem seus medos, resistências e preconceitos, habilidades como a criatividade, a empatia e a reflexividade foram desenvolvidas, ampliando a consciência de si durante o processo e reconhecendo a necessidade de, mesmo na condição de estudantes, assumirem maior responsabilidade pelo próprio aprendizado (Weimer, 2002).
Com a repercussão positiva do primeiro Festival de Dança, a direção da escola solicitou a realização de uma segunda edição no ano seguinte. A comunidade escolar ficou admirada com as apresentações, principalmente dos(as) estudantes mais tímidos e retraídos. A direção compartilhou as apresentações nas redes sociais da escola, e muitos familiares das crianças comentaram e compartilharam o evento, reconhecendo o impacto e os benefícios da prática da dança nas aulas de educação física.
5. Conclusão
Acredita-se que a educação física escolar necessita contemplar diferentes manifestações da cultura corporal para que colabore, efetivamente, com a formação ampla e integral dos educandos. Ao serem diagnosticadas lacunas e reducionismos no trabalho pedagógico da educação física escolar, a proposta de ensino de dança aqui descrita contribuiu para desenvolver conteúdos pouco explorados pela disciplina neste contexto. A abordagem de diferentes estilos ofereceu múltiplas oportunidades para que os(as) estudantes desenvolvessem diferentes competências, contribuindo para a ampliação de sua cultura corporal de movimento. Os princípios do modelo de ensino centrado no aprendiz, respeitados nas diferentes fases da proposta, buscaram conferir maior significância e personalização das vivências aos(às) estudantes, ao mesmo tempo que almejaram fomentar a interação, a reflexão e a assunção de maiores responsabilidades discentes pelo próprio aprendizado. Destaca-se, especificamente, a valorização dos conhecimentos prévios dos estudantes sobre os diferentes estilos, a concessão de tempos e espaços para que desenvolvessem percepções de si próprios e dos outros durante as experimentações, e a liberdade concedida à criação autônoma das coreografias para o Festival.
Apesar de se acreditar que a proposta de ensino apresentada seja importante, iniciativa inspiradora para o desenvolvimento da dança no contexto escolar, se reconhece que o pouco tempo inviabilizou um maior aprofundamento em determinados estilos e dificultou a superação de algumas resistências e/ou preconceitos manifestados pelos(as) estudantes. Além disso, salienta-se que o modelo de ensino centrado no aprendiz foi desenvolvido de forma não sistemática no decorrer da proposta.
Recomenda-se, desta maneira, que mais intervenções como estas sejam desenvolvidas na educação física escolar, possibilitando a abordagem de novos conteúdos e saberes relacionados à dança. Do ponto de vista do modelo de ensino centrado no aprendiz, acredita-se que futuras investigações possam melhor sistematizar os cinco princípios ao longo do processo de ensino-aprendizagem, o que permitirá atingir maior profundidade e efetividade em seu desenvolvimento. Finalmente, o desenvolvimento de futuros estudos com o intuito de compreender o impacto do ensino deste conteúdo na perspectiva docente e discente contribuiria para o avanço da literatura sobre dança na educação física escolar e, potencialmente, colaboraria para a maior popularização deste importante conteúdo na disciplina.