1. Introdução
A aprendizagem é um processo complexo que constitui a força motriz das mudanças do ser humano ao longo do tempo (Jarvis, 1987). Nos últimos anos, Jarvis (2009b) conferiu uma perspetiva biográfica à aprendizagem, indicando que esta ocorre quando a experiência é transformada a partir de socializações (primária e secundária), resultando em uma pessoa (biografia) modificada e mais experiente. A biografia, portanto, pode ser definida como “a soma das experiências com as quais aprendemos e, ao mesmo tempo, somos produto” (Jarvis, 2009b, p. 61). Quando estudamos aspectos da aprendizagem estamos estudando pessoas, “not people isolated in laboratories or in artificial situations, like classrooms, but people in time, space, and society” (Jarvis, 2011, p. 3). Isso revela uma conceção complexa da aprendizagem humana, na qual o indivíduo inteiro (corpo e mente) aprende a partir de uma combinação de experiências sociais e culturais durante a vida, que são filtradas de maneira cognitiva, emocional ou prática (ou combinando estas formas), destacando um indivíduo em constante mudança (Jarvis, 2009b).
Neste sentido, a aprendizagem ocorre a partir de um processo denominado disjunção (disjuncture), em que o aprendiz percebe uma lacuna ou descontinuidade entre sua biografia e a experiência atual que vivencia (Jarvis, 2009b). Quando não consegue responder à nova experiência com os recursos que já traz em seu repertório de experiências prévias, o indivíduo pode sair de seu estado de harmonia (zona de conforto) e sofrer uma disjunção, a qual pode ou não ser enfrentada e resolvida. Ao optar por resolvê-la, o indivíduo se torna capaz de preencher a lacuna criada pela nova informação recebida (aprendizagem) e, consequentemente, modificar sua biografia. Isto ocorre na medida em que o indivíduo reflete sobre a experiência, o que lhe permite problematizar suas opiniões, atitudes e valores (reflexão), transformar as emoções (emoção), responder a ela ou mesmo fazer algo sobre ela (ação) (Jarvis, 2015). Fundamentalmente, a reflexão é o primeiro passo na direção da interpretação das experiências de aprendizagem, nomeadamente pensando e/ou refletindo sobre elas, além da emoção e da ação, que, articuladas à reflexão, contribuem para responder à disjunção e assim dar novo significado à experiência, criando novos conhecimentos ou habilidades (Jarvis, 2009b).
No que diz respeito à aprendizagem de treinadores desportivos, estudos com foco na análise da biografia dos treinadores têm indicado que a aprendizagem é um processo idiossincrático (carregado de significados individuais), no qual determinadas experiências vivenciadas pelos indivíduos podem ser tão significativas a ponto de promover consideráveis mudanças em suas trajetórias pessoais e profissionais (Callary et al., 2012; Duarte & Culver, 2014; Leduc et al., 2012; Tozetto et al., 2017; Werthner & Trudel, 2009). Paralelamente à condição biográfica de aprendizagem, é possível compreender os caminhos pelos quais o treinador desportivo se desenvolve profissionalmente. Em seu estudo, Nelson et al. (2006) demarcaram a aprendizagem dos treinadores em três vias, nomeadamente: a aprendizagem formal (instituições de ensino com certificação), a aprendizagem não formal (atividades como workshops, clínicas, cursos, tanto em ambiente presencial quanto virtual) e a aprendizagem informal (experiências ocorridas diariamente, interação com pares, etc.).
Investigações ainda têm demonstrado que os treinadores conferem maior importância às situações de aprendizagem advindas de contextos informais, tais como as experiências prévias como atleta, a interação com treinadores ou atletas, entre outros (Callary et al., 2012; Duarte & Culver, 2014; Leduc et al., 2012; Tozetto et al., 2017). As situações informais de aprendizagem costumam ser mais valorizadas pelos treinadores por estarem alinhadas com as experiências contextualizadas em suas práticas profissionais (González-Rivera et al., 2017; Rodrigues et al., 2016; Stoszkowski & Collins, 2016).
Apesar da grande relevância das situações informais de aprendizagem para os treinadores desportivos, o contexto formal de aprendizagem no Brasil apresenta reconhecimento social em decorrência da obrigatoriedade da formação inicial universitária em Educação Física para atuar profissionalmente (Resolução CNE/CP n.º 01, de 18 de fevereiro de 2002). Os cursos de bacharelado, responsáveis por preparar os treinadores desportivos, devem possuir carga horária mínima de 3200 horas/aula (Resolução CNE/CES n.º 4, de 6 de abril de 2009) e garantir a indissociabilidade entre ensino, pesquisa e extensão por meio de situações de aprendizagem, nomeadamente práticas pedagógicas como componente curricular, atividades acadêmico-científico-culturais e estágios curriculares supervisionados (ECS).
Dentre estas atividades, o ECS possui importância destacada na perceção de treinadores em formação, especialmente por sua capacidade de oferecer experiências de aprendizagem mais aproximadas das características da atuação real do treinador desportivo, bem como por possibilitar momentos de reflexão individual (Milistetd, Ciampolini, et al., 2018). Contudo, apesar dessa potencial contribuição do ECS, estudos no âmbito nacional (Milistetd et al., 2014; Milistetd, Brasil, et al., 2018) têm apontado uma limitação da formação inicial por oferecer conteúdos descontextualizados da realidade dos estudantes, a exemplo do próprio ECS, em que não há um apoio adequado dos supervisores e há pouca preocupação com as experiências e conhecimentos acumulados pelos estudantes anteriormente ao estágio.
Assim, este estudo buscou analisar as biografias de estudantes-treinadores matriculados na disciplina de ECS em Treino Desportivo de um curso de bacharelado em Educação Física. Além de compreender como os estudantes percebem as oportunidades de aprendizagem que tiveram durante as socializações primária e secundária, procurou-se identificar as implicações da biografia na escolha pelo curso de bacharelado em Educação Física e na realização do ECS.
2. Metodologia
Neste estudo se optou pela utilização de uma abordagem qualitativa de pesquisa. Conforme Creswell (2014), a pesquisa qualitativa é como um “tecido intrincado composto de minúsculos fios, muitas cores, diferentes texturas e várias misturas de material” (p. 48). No tear da pesquisa qualitativa, onde este tecido é produzido, são distintas as perspetivas que o compõem, resultando assim numa complexa estrutura que precisa ser esclarecida pelos pesquisadores qualitativos (Creswell, 2014). Desta forma, as biografias dos estudantes-treinadores se subscrevem em distintas construções de mundo, as quais serão compreendidas em relação às experiências vividas em âmbito de formação profissional.
Para captar tais perceções, será feito uso da técnica de entrevista, que, na pesquisa qualitativa, cria um momento de diálogo com o participante para que ele seja encorajado a descrever aspetos pessoais (por exemplo, perspetivas, experiências, crenças, emoções, motivações) e relatos temporais (por exemplo, ações atuais, eventos passados, projeções para o futuro) (Smith & Sparkes, 2014). Neste caso, a biografia dos estudantes-treinadores poderá ser enunciada pela voz dos próprios estudantes, sendo possível perceber as experiências de aprendizagem significativas que, tal como aponta Jarvis (2006), moldam o processo de tornar-se uma pessoa em sociedade.
2.1. Universidade e curso de formação
A coleta de dados foi realizada durante o segundo semestre de 2016 junto a estudantes matriculados em uma disciplina de ECS em Treino Desportivo de um curso de bacharelado em Educação Física de uma universidade pública da região Sul do Brasil. O currículo pleno do curso de bacharelado investigado possui 3.840 horas/aula, organizando-se nos eixos temáticos ‘Avaliação e Prescrição de Exercícios’, ‘Atividade Física e Saúde’ e ‘Treino e Gestão Desportiva’. As disciplinas desenvolvem-se semestralmente e o sistema de matrícula adotado pelo curso é o de créditos, em que o estudante se matricula em cada disciplina separadamente. O eixo curricular relacionado à formação de treinadores desportivos contempla 12 disciplinas (846 horas/aula) relacionadas ao desporto (ex.: natação, atletismo, voleibol), quatro disciplinas (234 horas/aula) relacionadas ao coaching desportivo (treino desportivo, pedagogia do desporto, psicologia do desporto e gestão do desporto) e um ECS (180 horas/aula) em treino desportivo ou gestão do desporto.
No ECS, especificamente, os estudantes participam de determinados encontros em sala de aula, denominados de pontos de encontro, cuja periodicidade é mensal. Além disso, são responsáveis por elaborar um planejamento para sua intervenção, registrar as experiências vividas no local do estágio e entregar um relatório ao final da disciplina a respeito das atividades desenvolvidas. Os campos de estágios disponíveis são previamente definidos, antes do início do semestre letivo, a partir de contatos realizados pelos professores da disciplina com os potenciais locais de estágio. A opção pelo campo de estágio desejado é feita pelos estudantes na primeira semana letiva.
2.2. Estudantes participantes
Os participantes do estudo foram nove estudantes (E1 a E9) regularmente matriculados na disciplina ECS em Treino Desportivo (8.ª fase do curso de bacharelado em Educação Física), durante o segundo semestre do ano letivo de 2016. Todos os estudantes investigados possuíam experiência prévia como atletas e participaram de competições desportivas. Somente dois estudantes (E4 e E5) não possuíam experiência prévia como treinadores no momento da coleta de dados, enquanto dois (E3 e E4) foram os únicos a participar de algum curso sobre ensino dos desportos nos dois anos anteriores.
E1 | 27 | Futebol e Futsal | Futsal |
E2 | 31 | Ciclismo e Ténis | Ténis |
E3 | 22 | Natação, Futebol e Jiu-Jitsu | Futsal |
E4 | 30 | Atletismo e Voleibol | Voleibol |
E5 | 25 | Futsal | Futsal |
E6 | 23 | Surfe | Futebol |
E7 | 42 | Futebol e Futsal | Futebol |
E8 | 24 | Basquetebol e Ténis | Basquetebol |
E9 | 21 | Futebol | Futebol |
*Experiência em relação a modalidades desportivas.
2.3. Procedimentos de coleta de dados
O projeto de pesquisa a partir do qual o presente estudo foi elaborado obteve aprovação no Comitê de Ética e Pesquisa com Seres Humanos da Universidade Federal de Santa Catarina (Parecer n.° 169.330/2012). Cada estudante foi individualmente contatado, via e-mail prévio, pelo segundo e terceiro autores deste trabalho, buscando identificar o interesse e a disponibilidade para participação no estudo e então, em outro momento, agendar os encontros individuais na universidade. Todos os estudantes contatados aceitaram participar da investigação.
Realizou-se o primeiro encontro com cada estudante, nas dependências da universidade, para apresentar os objetivos e procedimentos do estudo aos investigados, com a entrega do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido para leitura e assinatura. Nos dias subsequentes, agendaram-se entrevistas semiestruturadas individuais com cada estudante, as quais foram realizadas nas dependências da universidade de acordo com a disponibilidade dos investigados.
O roteiro da entrevista foi elaborado de modo a contemplar perspetivas da biografia pessoal/desportiva dos estudantes. À luz da teoria de Jarvis (2009b), as perspetivas da biografia contempladas pelo roteiro de entrevista são singulares dentro da biografia de cada indivíduo. Nesta biografia, a aprendizagem é contínua e ocorre a partir de socializações com o mundo social em níveis primário e secundário. Na socialização primária, a família (pais, irmãos, avós, tios...) é elemento-chave nas relações. Na socialização secundária esse papel é ocupado pelos amigos e pelas organizações/instituições sociais (escola, clube desportivo, igreja, entre outros). Considerando a evidência nas experiências de aprendizagem, definiram-se os seguintes temas geradores para a entrevista: a) aprendizagem durante a socialização primária (ex.: primeiros contatos com o desporto; indivíduos ou situações particulares que despertaram ou auxiliaram a sustentar o interesse pelo desporto); b) aprendizagem durante a socialização secundária (papel da escola e dos professores de Educação Física na iniciação desportiva; laços de amizade criados por meio do envolvimento desportivo); c) implicações da biografia para a formação inicial em Educação Física (opção pela formação inicial em Educação Física; escolha do contexto de estágio).
As entrevistas foram gravadas com auxílio de gravador digital, tendo duração média de 56,6 minutos. As falas dos estudantes-treinadores foram transcritas na íntegra com apoio dos programas Windows Media Player e Microsoft Word (total de 76 páginas, fonte Times New Roman, 12, espaçamento simples, margens de 2 cm), sendo armazenadas em microcomputador e separadas em pastas individuais para cada estudante. As transcrições foram encaminhadas aos entrevistados para a validação das declarações. Nenhuma alteração foi solicitada. Em seguida, as transcrições foram inseridas no programa de análise qualitativa NVivo 10.
2.4. Análise dos dados
Em concordância com Braun e Clarke (2006), foram empregadas as seis fases da análise temática a partir de um processo dedutivo/indutivo de análise, nomeadamente: a) familiarização; b) geração de códigos; c) desenvolvendo códigos; d) revisando temas; e) nomeando temas; f) gerando relatório.
A fase de familiarização correspondeu à transcrição dos dados obtidos pelas entrevistas e, após, foram realizadas leituras que deram origem aos primeiros esboços de ideias dos futuros códigos (suporte do software NVivo 10). Na fase de geração de códigos, o olhar para os dados transcritos e as primeiras ideias de códigos foram elucidados pela análise dedutiva/indutiva da análise temática. Neste caso, a análise dedutiva permitiu criar codificações relacionadas à teoria de aprendizagem ao longo da vida (Jarvis, 2006), surgindo temas como a “socialização primária e secundária”. Já a análise indutiva, permitiu que os pesquisadores interpretassem os dados a partir da realidade apresentada pelos participantes.
Na fase de desenvolvimento de códigos, foi realizada uma reavaliação dos códigos potenciais criados nas fases anteriores. Neste momento, os três últimos autores atuaram como ‘amigos críticos’, refletindo e discutindo a criação dos códigos com os demais autores, criando então os primeiros temas potenciais da análise. Deste processo, surge a fase de revisão de temas, onde foram revisados os temas novamente desde a sua codificação. Na fase de definição dos temas, os três primeiros autores se reuniram em torno de um esboço de mapa mental gerado, com os temas e subtemas potenciais, revisando a origem de cada um, como também seu corpus de dados. Em seguida, todos os autores se reuniram para verificar o mapa mental e definir a nomeação mais fiel para os temas e subtemas. Depois, na última fase, os temas e subtemas foram transferidos do NVivo 10 para um documento de Microsoft Word Office, onde foi feita uma releitura integral de toda análise.
A partir desta etapa, foram criadas nove vinhetas não-ficcionais (Spalding & Phillips, 2007), as quais compreendem esboços compactos que buscam resumir aquilo que o pesquisador encontra nos dados de seu trabalho (neste caso, as entrevistas). As vinhetas podem ser mais sucintas e facilmente visíveis do que as transcrições das falas, ampliando a compreensão do leitor sobre as experiências vividas pelos participantes do estudo (Spalding & Phillips, 2007). Com base nesta perspetiva, e também de acordo com estudos de Callary et al. (2012) e de Blodgett et al. (2011), os quais utilizaram vinhetas não-ficcionais, as vinhetas elaboradas exemplificam uma narrativa temporal das experiências dos estudantes. Cada vinheta não-ficcional descreve as experiências episódicas dos estudantes ao longo de sua trajetória de vida, a partir da socialização primária (familiares) e secundária (organizações/instituições sociais), bem como os impactos dessas experiências na escolha pelo curso de Educação Física e na realização do ECS.
Os desenhos das vinhetas não-ficcionais tiveram base nas orientações de Blodgett et al. (2011). Inicialmente, elaborou-se um retrato de vinheta para cada entrevista original, no qual se buscou realçar palavras-chave, citações e ideias que pudessem vir a representar o personagem e sua história. Tais realces foram compilados para um novo documento, de modo que se obtivesse um esqueleto inicial do retrato da vinheta. Entre 80 e 95% das vinhetas foram constituídas por citações diretas da entrevista original do estudante. Na sequência, uniram-se estas partes com frases que organizassem a escrita (em primeira pessoa), de modo que os ‘espaços em branco’ foram preenchidos com a inclusão de termos ou frases de ligação diretamente embasadas na narrativa como um todo (Callary et al., 2012; Spalding & Phillips, 2007). Desta maneira, para este estudo, as vinhetas são do tipo amálgamas, destacando experiências de momentos vivenciais dos participantes em uma única narrativa composta (Spalding & Phillips, 2007), ou seja, a vinheta representa um movimento de coexperiências dos participantes a respeito de uma determinada situação.
A validez interpretativa das vinhetas foi realizada pelo método de peritagem pelo autor principal e pelos coautores 1, 2 e 4, este último com elevada experiência em pesquisa qualitativa e em formação profissional de treinadores desportivos. Os referidos autores reviram as transcrições originais das entrevistas e elaboraram, individualmente, as respetivas vinhetas. Na sequência, agendaram-se encontros presenciais nos quais os autores compararam ambas as versões das vinhetas produzidas com as transcrições originais para assegurar que nenhum conteúdo havia sido negligenciado ou substancialmente alterado. Nos casos de dúvida e/ou de discordância entre as interpretações dos pesquisadores, o pesquisador mais experiente auxiliou a estabelecer os consensos necessários e a definir os textos finais das vinhetas.
3. Resultados e discussão
3.1. As experiências dos estudantes-treinadores durante a socialização primária
Os estudantes-treinadores relataram suas experiências marcantes no início da prática desportiva (período de socialização primária). A família teve papel fundamentalmente positivo nos primeiros contatos com o desporto para a maioria dos estudantes. Para outros estudantes, entretanto, a família não foi participativa no início da prática desportiva, pois em alguns casos não apoiava a prática de determinado desporto.
3.1.1. Os primeiros contatos com a prática desportiva e o suporte familiar
Na minha vida, o desporto me acompanha desde criança, quando jogava bola com meus tios, isso desde os dois ou três anos de idade. Já nessa época eu tinha meu padrinho que jogava futebol, então eu ia acompanhar ele nos jogos, eu e meu pai, que ia junto. Meu avô também gostava de jogar futebol. Além dessa vivência em minha família, eu praticava outros desportos, mas sem dúvida era mais o futebol que me encantava. Um outro bom exemplo de contato com o desporto e que foi cedo é que eu pratiquei a natação, pois na minha rua tinha uma academia de amigos dos meus pais e lá tinha uma piscina, era como a extensão da minha casa, eu ficava praticamente o dia todo lá. O suporte de minha família para a prática foi porque eles trabalhavam lá, então eu ia junto, mas não tinha muito assim [o suporte]. Nessa época, o suporte de minha família para a prática foi porque meu pai sempre jogou futsal, futebol, depois jogou handebol também um tempo, até competiu, meu pai sempre teve uma infância desportiva e minha mãe também; sempre que eu podia, meu pai já deixava eu jogar com os adultos, e isso me estimulava muito. Contudo, também há ocasiões em que na família não tem ninguém ligado ao desporto, não representando influências marcantes. (Estudantes-Treinadores).
A socialização primária, de acordo com Jarvis (2009b), é demarcada por interações iniciais do indivíduo com pessoas mais próximas, principalmente a família, e o aprendizado neste período segue por toda a vida. A família tem sido considerada um elemento importante na trajetória formativa de treinadores desportivos (Callary et al., 2012; Duarte & Culver, 2014; Mallett et al., 2016), o que, para os estudantes-treinadores investigados, indicou um auxílio na aproximação ao desporto, proporcionando influências diretas no sentido de conduzi-los aos ambientes de prática desportiva e incentivá-los a ter os primeiros contatos com o desporto.
Neste sentido, a família apresentou um significado de aproximação com o desporto para os estudantes-treinadores – que, posteriormente, pode tê-los influenciado na escolha por prosseguir uma carreira neste ambiente e, também, por seguirem sendo ativos desportivamente durante a juventude. De acordo com Callary et al. (2011), essas experiências moldam a forma de ver o mundo e impactam a maneira como atuam quando treinadores desportivos. A influência da família também foi verificada por McMaster et al. (2012) e Nash e Sproule (2009), demonstrando que as relações familiares igualmente interferem na filosofia de um futuro treinador.
O contexto familiar pode potencializar o desenvolvimento de uma relação específica com o desporto, o que pode implicar na especialização do jovem em determinada modalidade desportiva, induzindo comportamentos e sentimentos no futuro, seja no cenário educacional ou profissional (West, 2009), como por exemplo o fato de os estudantes-treinadores terem optado pela formação inicial em Educação Física. Os laços afetivos presentes nas relações familiares contribuíram para o início e permanência na prática desportiva, pois, de acordo com Jarvis (2009a), experiências de aprendizagem nas quais as emoções estão presentes são mais facilmente recordadas, perdurando por mais tempo, o que de fato ocorreu com a maioria dos estudantes investigados.
3.2. As experiências dos estudantes-treinadores durante a socialização secundária
Os estudantes-treinadores destacaram a influência da escola e das escolinhas de modalidades desportivas, bem como dos professores/treinadores e dos amigos, para a manutenção da prática desportiva iniciada durante a socialização primária. A escola e/ou as escolinhas foram os primeiros locais de contato com o desporto sistematizado para todos os estudantes, inclusive com a aproximação das competições, onde a influência do professor/treinador e dos amigos foi percebida.
3.2.1. A escola/clube e os amigos na manutenção da prática desportiva
Meu contato com os desportos se ampliou na escola. No geral, isso acontecia nas aulas de Educação Física no colégio, onde eu fazia todas as modalidades mais tradicionais, que seria o voleibol, handebol, futebol e basquetebol. Fora da escola eu praticava o futebol e o skate, com 9 anos. Nesse período, eu fui bastante influenciado pelos colegas, que na verdade eram amigos do próprio bairro, que depois se inseriram numa escolinha e, através deles, eu também comecei a participar. A partir daí, o desporto que eu tive experiência em competição foi o futebol. Me envolvi com a escolinha de futebol e já comecei a participar de competições porque comecei a me destacar um pouquinho. Na escolinha foi mais influência dos colegas. Eu até tinha um pouco de repressão dos pais porque a escolinha era um pouco longe e a gente ia de bicicleta. Mas, desde os 4 ou 5 anos, eu sempre fui envolvido com a escolinha do bairro da cidade onde eu morava. No fim do ano sempre tinha premiação e eu sempre era premiado, inclusive sendo artilheiro. Especificamente na escola, a gente jogava o campeonato municipal e algumas vezes fomos para campeonatos de nível regional e estadual. O que me influenciou nisso também foi o treinador, a atenção que dava ao atleta, a forma com que lidava. Acho que a forma de como ele tratava aquilo foi o que me levou a dizer, “é isso que quero fazer também, é o que quero seguir, pois é uma coisa interessante”. Então, por causa dessa vivência na escola e nas escolinhas, eu pensei: “é desse ambiente que quero viver”, foi a partir desse momento, acho que eu tinha 18 ou 19 anos, em que eu percebi que era isso que eu queria. (Estudantes-Treinadores).
A socialização secundária, conforme Jarvis (2009b), representa qualquer processo posterior à socialização primária no qual o indivíduo socializado adentra em novos espaços sociais, como escola, universidade e trabalho. Durante a socialização secundária dos estudantes-treinadores, as contribuições de professores de Educação Física escolar e de amigos próximos foram marcantes para o desenvolvimento desportivo dos investigados, possibilitando, a partir das aulas de Educação Física, um contato desportivo mais sistematizado. À medida que o jovem avança em seu relacionamento com o desporto, os amigos mais próximos e os professores e/ou treinadores passam a desempenhar um papel importante. De fato, há a impressão de que a influência dos pais e familiares, muito presente durante a socialização primária, vai sendo complementada – e, em alguns casos, substituída – pela influência dos indivíduos que se fazem presentes junto ao jovem esportista nos ambientes de prática ou treino desportivo, e até mesmo fora destes (Callary et al., 2012; Nash & Sproule, 2009; Werthner & Trudel, 2009). Neste momento, as interações com outras pessoas começam a caracterizar um tipo informal de aprendizagem bastante percebida pelos treinadores (Christensen, 2014; Stoszkowski & Collins, 2016), que reflete, por exemplo, a proximidade à cultura de um desporto em específico, à medida que vão acumulando experiências nesse período (Tozetto et al., 2017).
Os resultados também indicam que, durante a socialização secundária, a escola e o clube desportivo tiveram papel fundamental em sua evolução desportiva, por possibilitarem a prática de atividades desportivas (especialmente nas aulas de Educação Física) e vivenciarem na escolinha desportiva os primeiros contatos com a competição. Neste cenário, juntamente com a figura dos professores de Educação Física e dos treinadores das escolinhas, vê-se o aprofundamento do gosto por uma modalidade específica por parte cada estudante-treinador, o desejo por jogar e fazer parte do mundo envolto a sua modalidade, algo definido por Rodrigues et al. (2016) como aprendizagem profissional por meio da imersão na cultura desportiva, um tipo de aprendizagem experiencial ou metáfora da participação, na qual o indivíduo aprende pela convivência e observação dos contextos desportivos (Trudel & Gilbert, 2006). Para Jarvis (2015), este é um processo que define a aprendizagem implícita, ocorrida de maneira não consciente, e que depois se torna explícita à medida que o indivíduo se torna consciente da aprendizagem – refletindo, no caso dos estudantes-treinadores, em seus contextos de ECS.
3.3. Implicações da biografia para a formação inicial em Educação Física
A experiência desportiva na prática de desportos durante a infância, na escola e em escolinhas de modalidades, foi o principal fator mencionado pelos investigados para realizarem o curso de bacharelado em Educação Física. A oportunidade de trabalhar como profissional no desporto também foi uma motivação destacada pelos estudantes, seja esta atuação no âmbito do rendimento ou em projetos educacionais. O fato de aliar a experiência como atleta com uma formação inicial na área foi igualmente percebido como relevante.
3.3.1. A biografia e a escolha do curso de Educação Física
De certa forma, eu acho que por eu sempre ter praticado desporto cedo, eu sempre me envolvi bastante com o desporto, então queria trabalhar com desporto e isso foi o que me motivou a escolher Educação Física como a minha carreira. Então, eu optei pelo bacharelado, e também porque eu queria trabalhar muito mais como treinador de goleiros e/ou preparador físico, pelo fato de ter sido goleiro. Além disso, a escolha pelo bacharelado é porque eu acho que a licenciatura fica sendo mais fechada, o campo de atuação seria basicamente em escola e eu acho que, no meu ponto de vista, no meu querer, eu queria trabalhar como técnico, como preparador físico, não sendo professor, mas sim atuando junto com o desporto. Sendo assim, neste propósito, eu acho que a partir do momento que tu já viveu aqui, quando tu for trabalhar, a forma de como tu vai lidar com o teu atleta é uma forma totalmente diferenciada de quem nunca fez aquilo ali, porque tu viveu aquilo ali e é a prática que você tem fora, fora eu digo como atleta e a prática que você tem. Somado a isso, eu acredito também que minha experiência desportiva pode auxiliar na minha prática, pois eu sei como funciona toda a parte da preparação, como é realizado, o momento que você tem professor-aluno ou atleta-técnico. Então esse desejo me fez escolher a Educação Física. (Estudantes-Treinadores).
As experiências desportivas vivenciadas pelos estudantes-treinadores no decorrer de suas trajetórias tiveram influência sobre a escolha em cursar a graduação em Educação Física. O ingresso no referido curso de formação profissional compreendeu uma oportunidade de (re)significar e aperfeiçoar experiências e conhecimentos sobre o desporto. Foi também, de maneira geral, uma oportunidade de os estudantes-treinadores continuarem em contato a uma prática sistemática da modalidade desportiva de sua preferência, seja por meio da participação em equipes universitárias ou em clubes próximos à universidade. Estes elementos denotam uma perspetiva de vivência da formação que resulta em aprendizagens na esfera da iniciação desportiva (um saber-ser) e do treino (um saber-fazer) (Rodrigues et al., 2016).
Em contrapartida, é preciso considerar que a realidade dos cursos de formação em Educação Física (especialmente bacharelado) revelada nos estudos sobre a formação profissional de treinadores oferece um impacto reduzido enquanto curso de graduação na formação do treinador no Brasil (Milistetd et al., 2014; Milistetd, Ciampolini, et al., 2018; Tozetto et al., 2017). Em especial, isso ocorre por não se considerar as experiências da biografia dos futuros treinadores, como por exemplo as experiências anteriores com modalidades desportivas (Trudel et al., 2010), as quais os próprios estudantes-treinadores mencionaram contribuir no ofício de ser treinador.
3.4. Aproximações entre a biografia e a escolha/atuação no ECS
Sobre as aproximações entre a biografia e a escolha da modalidade e local de atuação no ECS, a maioria dos estudantes-treinadores escolheu estagiar na modalidade em que tinha experiência, especialmente como atleta.
3.4.1. A trajetória desportiva e as escolhas durante o ECS
Depois, na trajetória do curso, tem o momento do estágio. No estágio, a modalidade que estagiei foi o tênis. Porém, não foi bem um estágio porque eu já era envolvido, eu era treinador e praticante na modalidade desde pequeno. Além disso, eu não queria pegar outra modalidade porque eu não queria trabalhar com outra coisa. Inclusive, escolhi o mesmo clube que eu já estava há 5 anos envolvido com o tênis, até chegar no estágio. Então, o estágio não alterou muito minha rotina de trabalho porque eu já estava lá em todos os horários, além das horas de estágio. Escolhi essa modalidade porque eu acho que, como eu sempre joguei, sempre tive muito contato desde a infância, acredito que foi uma das modalidades que eu me dei melhor assim, sabe? Mas um dos grandes fatores, como disse, foi também porque o clube tinha a modalidade, então eu disse: “vou pegar nesse clube e fazer com essa modalidade que eu tinha experiência como atleta”. Fui aceito porque eu até já trabalhava ali desde 2013. Por já conhecer tudo, minha função no estágio acabava sendo simples, eu auxiliava o treinador, que subiu agora para outra categoria junto comigo. Fato é que, por já estar no clube e já conhecer as equipes, a rotina já era meio que traçada. (Estudantes-Treinadores).
Recentemente, alguns estudos (Milistetd et al., 2014; Milistetd, Ciampolini, et al., 2018; Tozetto et al., 2017) têm apontado para o ECS como elemento fundamental no cenário da formação profissional de treinadores brasileiros. Contudo, no que diz respeito ao ECS, observou-se que a maior parte dos investigados optou por atuar em contextos desportivos vinculados à modalidade desportiva com a qual tinham alguma experiência, pela segurança e conforto em atuar novamente com a modalidade. Estes elementos permitem considerar que o ECS não exerceu grande impacto sobre estes estudantes e não promoveu aprendizagem de novas competências profissionais.
Tais achados, sobre a atuação no ECS em conformidade com as experiências prévias dos estudantes-treinadores, reforçam a ideia de que a imersão em uma cultura desportiva nos primeiros anos de vida produz efeitos de aprendizagem (Rodrigues et al., 2016) que perduram por muito tempo (no caso dos estudantes-treinadores, até o momento do ECS), destacando a importância da trajetória desportiva anterior sobre as decisões acadêmico-profissionais tomadas pelos investigados. Esses resultados conduzem a uma necessária reflexão sobre o ECS nos cursos de Educação Física. Gomes et al. (2014), buscando compreender o principal objetivo do ECS, questionam quanto tempo ele deve durar, se o estudante-treinador tem liberdade para decidir onde atuar ou se isso deve ser imposto, e ainda qual deve ser o papel do supervisor universitário e do orientador de campo neste processo.
A preocupação com o estudante-treinador é um ponto-chave na construção de um ECS mais qualificado, tendo em vista que o ECS é valorizado pelos estudantes quando podem experimentar situações como treinadores em contextos reais de intervenção, a exemplo da rotina de trabalho (Milistetd, Brasil, et al., 2018). Neste caso, mesmo o estudante-treinador que se envolveu com um contexto diferente do que estava acostumado (Quadro 1) acabou por reconhecer que não teve a oportunidade de exercer o papel efetivo de treinador. Diante da complexidade do ECS e de sua aparente falta de consistência na estrutura organizacional (Gomes et al., 2014), bem como da necessidade de programas de educação do treinador adotarem perspetivas de aprendizagem ao longo da vida em seu desenho (Deek et al., 2013), reforça-se a importância de que os cursos de formação inicial em Educação Física conheçam com profundidade as biografias de seus estudantes para estruturarem, na medida do possível, oportunidades de aprendizagem alinhadas aos interesses e adequadas às necessidades destes indivíduos.
Portanto, assim como em Jarvis (2009b), ao revelar que muito do que é aprendido nos primeiros anos de vida permanece com o indivíduo nos anos seguintes, tais condutas permitem olhar para as indagações de Gomes et al. (2014), as quais direcionam que a aprendizagem, no ECS, ofereçam oportunidades aos estudantes-treinadores para que criem, a partir de suas experiências prévias, seus próprios significados.
4. Concluindo: avanços e perspetivas
Em síntese, os estudantes-treinadores investigados perceberam suas oportunidades de aprendizagem durante a socialização primária direcionadas especificamente a uma realidade de aproximação com o desporto. A influência dos familiares foi o incentivo ao primeiro contato com o desporto, fosse pelo ambiente vivido no círculo familiar interno ou pela inserção em ambientes externos, com os quais estes familiares também tinham proximidade. Durante a socialização secundária, as oportunidades percebidas dizem respeito aos ambientes da escola e dos clubes desportivos, bem como aos respetivos agentes, o professor de Educação Física e o treinador do clube. Tais experiências demarcaram uma continuidade do que foi vivido na socialização primária, embora seguindo para ambientes socialmente estabelecidos onde a prática desportiva passou a ser mais sistematizada.
Ao se olhar para a transformação dos estudantes-treinadores durante seus processos biográficos analisados, todos iniciaram praticando desportos a partir do contexto familiar e suas influências, inserindo-se posteriormente em práticas mais sistematizadas, na escola e em clubes desportivos, onde, por sua vez, alguns optaram por vincular-se a atividades de treino e competição. Esta realidade proporcionou que os estudantes-treinadores optassem pela formação inicial em Educação Física, estimulando que alguns já atuassem como treinadores em suas modalidades de maior interesse. Entretanto, ao não se considerar estas características no momento do ECS, a grande maioria dos estudantes-treinadores acabou por vivenciar o ECS de maneira passiva.
Acredita-se que este estudo contribui para ampliar a compreensão sobre o processo de construção da identidade desportiva e profissional de estudantes-treinadores de Educação Física. Ao conhecerem melhor o perfil e a biografia desportiva dos estudantes matriculados, os cursos de graduação podem desenvolver planos de ação mais coerentes com as expectativas e necessidades dos graduandos. No que concerne ao ECS, o conhecimento da biografia desportiva dos estudantes pode auxiliar no processo de definição dos campos e áreas de estágio a serem exploradas, bem como de articulação junto aos campos de estágio para garantir que o estudante-treinador, em sua atuação, assuma funções que efetivamente contribuam para seu aprimoramento profissional, considerando as experiências que teve em sua trajetória desportiva até aquele momento.
A opção por organizar os achados em forma de vinhetas e respeitando a ordem cronológica das etapas auxiliou a ilustrar com maior clareza os diferentes momentos do processo de construção da identidade dos estudantes-treinadores. Além disso, permitiu valorizar as perceções individuais dos estudantes-treinadores sobre determinados momentos de suas trajetórias, o que trouxe maior personalização e detalhes sobre os referidos episódios, alinhando-se à proposta de discutir a aprendizagem sob a perspetiva biográfica/idiossincrática.