1. INTRODUÇÃO
Neste texto são apresentadas reflexões suscitadas durante o processo de desenvolvimento da pesquisa de doutorado que tem como objeto de estudo a produção curricular em Moçambique. A pesquisa é desenvolvida tomando como referência aportes teóricos pós-estruturais e pós-fundacionais que possibilitam uma leitura discursiva dos processos de produção de políticas, uma leitura que possibilita tensionar o pressuposto de que um programa e/ou um conjunto de regras pode ser capaz de orientar de forma definitiva e completa nossas decisões políticas. Mais ainda, de que, como projeto ou estratégia calculada previamente, a política pode possibilitar a produção do futuro desejado (Lopes & Siscar, 2018).
Com Laclau (1996), assumimos a política como conjunto de decisões tomadas no terreno do indecidível, produções sempre precárias e contingentes sem qualquer fundamento último que, de forma incontestável, possa sustentar qualquer pretensão de totalidade e/ou finalismo (Derrida, 2011).
As contribuições de reflexões pós-estruturalistas e pós-fundacionalistas são apropriadas no processo de investimento teórico que tem nos possibilitado compreender as disputas sobre sentidos das políticas. Disputas que, segundo Lopes (2013), favorecem a hiperpolitização do social.
Com essa compreensão, o Plano Estratégico de Educação de Moçambique (PEE/2012-2016) foi escolhido como objeto empírico da investigação; o PEE é assumido como política curricular em que se estabelece uma relação intrínseca entre currículo e qualidade da educação com ênfase em uma dimensão performática dessa qualidade (Derrida, 1991,1999, 2005).
Na primeira parte do texto são apresentadas reflexões desenvolvidas com base na apropriação dos aportes pós-estruturais que têm sido produtivos para pensar o processo de produção curricular, com destaque para a problematização da relação intrínseca entre currículo e qualidade da educação. Em um segundo momento, são apresentadas as interpretações sobre como sentidos de performatividade (Derrida, 1991, 1999, 2005) são articulados de forma a preencher sentidos de qualidade no Plano Estratégico de Educação de Moçambique (PEE/2012-2016) produzidos com base na apropriação daqueles aportes teóricos.
2. UMA LEITURA DO SOCIAL COMO TEXTUALIDADE
Esta seção se inicia com a explicitação sobre a concepção de discurso que orienta o estudo. Trata-se de assumir, com Laclau e Mouffe (2015), discurso como categoria teórico-analítica, como totalidade estruturada que resulta da prática articulatória; uma “totalidade que inclui em si o linguístico e o não linguístico” (p. 39); uma compreensão que se organiza com base em uma matriz pós-fundacionalista que problematiza a ideia de qualquer fundamento único, fixo e definido a priori que possa explicar de forma definitiva o funcionamento do social.
Essa compreensão justifica o investimento teórico de Laclau e Mouffe (2001) para explicar o funcionamento do social como textualidade, para entender o social como resultado de atos de linguagem, de processos de negociação e tradução de sentidos que, arbitrária e contingencialmente, conferem orientação aos fenômenos sociais. Ou seja, assumir o social como textualidade implica compreender “que não existe fato que permita que seu significado seja lido transparentemente” (Laclau & Mouffe, 2015, p. ).
Laclau e Mouffe (2001) se apropriam da ideia de que o inconsciente se estrutura como linguagem, presente na psicanálise lacaniana, para operar com a compreensão do funcionamento do social como linguagem. Nessa compreensão, os autores associam conceitos da Psicanálise como condensação e deslocamento às figuras de linguagem do campo da retórica, como a metáfora e a metonímia, respetivamente, para argumentar que, assim como o inconsciente, o social é sobredeterminado e funciona a partir de operações retóricas em que a condensação (metáfora) é compreendida como síntese de um conjunto de ideias que têm pontos em comum e analogia entre si, e o deslocamento (metonímia) como obra da censura, em que um elemento do sonho em nível latente é substituído por um dos seus fragmentos constituintes (Pereira, 2017).
A concepção de social como textualidade também está presente no pensamento de Jacques Derrida, filósofo argelino que dedicou sua obra aos estudos de linguagem. Derrida (2010) auxilia no exercício de desconstrução do modelo representacional da linguagem, em que a língua é tomada como transparente. O autor rompe com o universalismo linguístico ao afirmar a impossibilidade de univocidade de qualquer nome, na medida em que qualquer nome só se torna inteligível como resultado de processos de tradução.
Essas reflexões são produtivas para a compreensão dos processos pelos quais a incessante enunciação e a fluidez de sentidos tornam impossíveis a plena fixação e a inteligibilidade de um significante. Ou seja, estamos condenados a encenar sobre/sob a dissimulação e a suplementação no processo de funcionamento caótico e instável do social (Derrida, 2005).
Portanto, trata-se de compreender o social como porvir, processo em que não é possível, ainda que tentemos desenhar uma lei/projeto/solução definitiva. Daí a opção por interpretar as leis, normas e/ou políticas como tentativas de fixação de sentidos que nunca se completam definitivamente. São sempre tentativas de estabilização de, e em, contextos instáveis. Tentativas porque o processo de enunciação de sentidos nunca se encerra, permanece como processo de disputa, dado que, “se houvesse estabilidade contínua, não haveria necessidade de política, e é nesse sentido que a estabilidade não é natural, essencial ou substancial, que a política existe e a ética é possível” (Derrida, 2005, p. 163, tradução livre dos autores).
São essas reflexões que sustentam a análise do PEE como política curricular, como um programa que projeta no presente identidades que devem ser formadas no futuro, constituindo-se como decisão tomada no lugar do outro (Lopes & Siscar, 2018); política que se constitui como tal a partir dos significados que lhe são atribuídos, inclusive nas críticas feitas a ela, políticas justificadas como necessárias para garantir a qualidade da educação. Dessa perspectiva, o significante qualidade da educação ganha importância como objeto de estudo. Melhor dizendo: o que está sendo significado como qualidade da educação ganha importância, na medida em que proliferam sentidos de qualidade da educação.
Operando com aportes pós-estruturalistas e pós-fundacionalistas e se apropriando das contribuições da Teoria do Discurso de Laclau e Mouffe (2001), Lopes (2012) entende qualidade da educação como um significante vazio. Um significante cujo significado se esvaziou como consequência da saturação de sentidos atribuídos a ele (Laclau, 1996). Para o autor, todo sistema de significação se estrutura em torno de um lugar vazio, dado que é impossível produzir o objeto requerido para conferir sistematicidade ao sistema. Essa impossibilidade se deve à proliferação de significados atribuídos ao significante, proliferação necessária para que o objeto impossível possa assumir sua função representativa. No entanto, esses significantes são preenchidos sempre de forma precária e contingente e se esvaziam de significados.
Lopes (2012) destaca que esse esvaziamento não implica perda ou distorção. Trata-se de um processo necessário para que o significante possa incluir demandas distintas que se encontram dispersas no processo político; é a partir dessas reflexões que defende que a qualidade da educação pode ser entendida como um significante vazio.
A autora reconhece que a historicidade do conceito de qualidade tem sido bastante discutida no campo educacional. No entanto, identifica nessas produções a ausência de problematização sobre a luta política pela definição de qualidade. Nelas, a defesa da qualidade tende a ser assumida como luta de todos, projetando uma unidade social e um consenso precário e conflituoso (Matheus & Lopes, 2014). A ideia de uma unidade social se sustenta em uma concepção de todo estruturado; consequentemente, a análise do funcionamento dessa estrutura centrada e bem definida possibilitaria prever as posições que os sujeitos que a integram assumiriam na ação política.
Lopes (2012) problematiza a ideia de estrutura fechada e de sujeitos ou de posições de sujeitos definidas fora das lutas políticas, identidades fixas que preexistiriam às lutas. Para a autora, é a luta política que possibilita processos de identificação dos sujeitos com determinados projetos, inclusive os projetos de qualidade de e para a educação. E destaca que, ainda que cada um de nós possa, a partir daquilo em que acredita e quer, assumir diferentes significados de qualidade da educação, um projeto social de qualidade será sempre resultado de processos de negociação que impossibilitam a realização desse projeto como significação fixa a priori. Esses projetos se realizam em processos de disputas contextuais e contingentes, resultados de processos de negociações e traduções que não podem ser previstas. Trata-se de uma articulação ampla de significados em torno de um significante genérico - um nome - aglutinador de sentidos (Matheus & Lopes, 2014).
As contribuições de Lopes (2012) são produtivas para pensarmos as disputas de sentidos de qualidade da educação articulados nas políticas educacionais, em especial nas políticas curriculares, enunciadas como garantidoras dessa qualidade. No entanto, são inúmeras as demandas sociais e as disputas sobre o que está sendo significado como qualidade da educação - qualidade balizada por dimensões socioeconômicas, interpessoais, humanísticas etc. É nessa proliferação de significados que o significante se esvazia de significado. “É por meio desse vazio, nunca completo, sempre tendencialmente vazio, que a expressão qualidade da educação se torna capaz de aglutinar diferentes demandas e constituir diferentes sujeitos que atuam em seu nome” (Matheus & Lopes, 2014, p. 340).
Para exemplificar diferentes demandas, as autoras fazem referência a um discurso de qualidade que associa os modos de operar da escola e as dinâmicas empresariais que, segundo Gentili (1995), pode ser explicado pela incorporação de sentidos de qualidade próprios do campo produtivo-empresarial. Nessas políticas se hegemonizam sentidos de qualidade associados às ideias de adaptabilidade, de eficiência, de produtividade (Ortigão & Pereira, 2016). Uma qualidade passível de ser mensurada.
Outro discurso em defesa da qualidade da educação que busca se afastar dessa significação instrucional defende “um projeto de qualidade social por meio da afirmação de uma educação crítica” (Matheus & Lopes, 2014, p. 342).
Como argumenta Macedo (2014, p. 1.536), nos dois casos a qualidade da educação é assumida como um “significante nodal capaz de sobredeterminar as demandas de diferentes grupos que se constituem” no jogo político. São discursos em que a educação é concebida como projeto de formação de um sujeito concebido previamente, como identidade transparente (Pereira, 2017).
Em Moçambique não acontece diferente, e o Plano Estratégico de Educação (PEE/2012-2016), objeto de investigação deste texto, também é marcado por essas enunciações que enfatizam a falta de qualidade no/de ensino e da/na educação; e a ausência de mão de obra qualificada ou mesmo a defesa de uma educação para todos. Enunciações que circulam em propostas curriculares em diferentes partes do mundo, em especial nas últimas três décadas.
Dessa forma, buscando coerência na apropriação dos aportes teóricos, na leitura do Plano Estratégico de Educação de Moçambique (PEE) foi dado destaque aos objetivos traçados, às metas desenhadas e como a política é justificada, uma interpretação que busca realçar o processo de articulação de sentidos de qualidade em disputa, com a compreensão de que sentidos atribuídos à qualidade da educação expressam demandas distintas em disputa no social.
Nesse investimento, o conceito de performatividade tem sido produtivo para pensar como os discursos em defesa da qualidade da educação se constituem como atos de linguagem que extrapolam a mera descrição ou afirmação de algo, de alguma coisa, transformando e produzindo aquilo que é enunciado (Derrida, 1999). Esse autor pensa performatividade como “uma comunicação que não se limita essencialmente a transportar um conteúdo semântico já construído e vigiado por um objeto de verdade” (Derrida, 1991, p. 363).
É essa compreensão que possibilita ler o PEE como um discurso que, para além de constatar, descrever e dizer o que é a qualidade da educação, transforma a situação enunciada em disputas e negociações sempre contingentes, contextuais e provisórias.
2.1 SENTIDOS DE QUALIDADE PERFORMÁTICA ARTICULADOS NO PLANO ESTRATÉGICO DE EDUCAÇÃO DE MOÇAMBIQUE (PEE 2012-2016)
Antes de seguir, cabe contextualizar o PEE no conjunto de políticas educacionais moçambicanas. A educação é peça-chave no processo de afirmação nacional de Moçambique. A educação é instrumento importante na constituição de um “sujeito moçambicano” (Mazula, 1995), seja essa a identidade idealizada pelo projeto colonial (do indígena/nativo europeizado/assimilado) ou aquela idealizada pelo projeto revolucionário da Frente de Libertação de Moçambique (Frelimo).
Para além dessa especificidade nacional, Moçambique enfrenta outros desafios postos nos processos de integração crescente no mundo e no continente africano. Como destaca Araújo (2008, p. 83), são processos de globalização que tornam “o Estado-Nação pequeno demais para se defrontar com os grandes problemas e o localismo que o torna demasiado grande para resolver adequadamente pequenos problemas [grifos dos autores]. Nhantumbo (2020) destaca que são projetos distintos, mas motivados pelo desejo de controle daquilo que escapa, difere dessas idealizações.
Dessa forma, os PEE se inserem em um conjunto de políticas que se orientam pela Lei n.º 6, de 6 de maio de 1992, a lei que reformou o antigo Sistema Nacional de Educação1 (SNE), “uma lei que rompe com os princípios marxistas-leninistas que orientavam a política nacional e estabelece princípios educacionais mais liberais” (Pereira & Nhantumbo, 2018, p. 7), contudo sem abrir mão da formação da identidade de um sujeito moçambicano. Um projeto identitário de nação que implica, para muitos, abrir mão de formas de pertencimento locais (Pereira & Nhantumbo, 2018).
O PEE/2012-2016 é o terceiro2 plano estratégico do setor educacional moçambicano e substituiu o Plano Estratégico de Educação e Cultura (PEEC) de 2006-2011. Algumas das metas estabelecidas no PEE/2006-2011 que não foram atingidas são retomadas no PEE/2012-2016, como aquela que previa a “expansão do acesso, melhoria da qualidade e desenvolvimento institucional” (Ministério da Educação e da Cultura de Moçambique, 2006, p. 11). Cabe destacar que a busca pela qualidade da educação está presente nos três planos estratégicos de educação moçambicanos, um discurso potente e hegemônico no campo. No entanto, é possível concordar com Lopes (2012) quando a autora afirma tratar-se de significante vazio. Um vazio que decorre da saturação de sentidos que objetivam preenchê-lo.
A proposta começou a ser elaborada em 2010, tendo definido prioridades para alcançar, no período a que se propunha, nomeadamente:
Assegurar a inclusão e a equidade no acesso e retenção na escola (Acesso);
Melhorar a aprendizagem dos alunos (Qualidade);
Garantir boa governação do sistema (Desenvolvimento institucional);
Garantir educação para todos até 2015, reduzindo para a metade a taxa de analfabetismo, conforme compromisso assumido por Moçambique ao assinar a Declaração de Dakar, em 2000, no Senegal.
Em relação à primeira prioridade (Acesso), o PEE refere que:
Governo continuará a privilegiar o Ensino Primário de sete anos para todas as crianças, de modo a que elas tenham a oportunidade de frequentar e concluir a escola primária de sete classes, de qualidade. O Ensino Primário deve assegurar que todas as crianças adquiram as habilidades básicas nas áreas da comunicação, das ciências matemáticas, das ciências naturais e sociais, bem como na área da educação física, estética e cultural para que estejam preparadas para continuar os seus estudos no nível seguinte (Ministério de Educação de Moçambique, 2012, p. 33).
Dois aspectos merecem destaque nesse fragmento. O primeiro é o de que ele expressa uma concepção de currículo como seleção de conhecimentos, símbolos e valores que podem ser transmitidos e compartilhados. O segundo é que dessa concepção derivam sentidos de qualidade da educação entendida como qualidade de ensino.
Macedo (2012) alerta para os riscos de uma compreensão de qualidade da educação subsumida à qualidade do ensino. Para a autora, a redução da educação ao ensino aprofunda a dimensão de função normativa do currículo e contribui para o bloqueio das diferenças que nos constituem humanos.
Trata-se de uma qualidade instrucional, em que pese a preocupação com a permanência do(a) aluno(a) na escola desde o início da formação (que começa aos seis anos de idade) até o fim da 7.ª classe (aos treze anos)3 e o reconhecimento das dificuldades que muitas famílias encontram para garantir a continuidade dos estudos de crianças e jovens.
Assim como em Moçambique, em inúmeros países muitas dessas dificuldades estão associadas às atividades de que as famílias precisam lançar mão para garantir a sobrevivência (agricultura, pesca, artesanato, medicina tradicional, etc.). No entanto, é preciso compreender que, para além das questões de sobrevivência, muitas dessas atividades expressam formas de viver e estar no mundo das diferentes tribos moçambicanas, formas de pertencimento que têm sido pouco consideradas na história da educação moçambicana, marcada por projetos universalizantes de “europeização” ou por projetos que objetivavam a formação de um "novo Homem livre de obscurantismo, superstição e da mentalidade burguesa e colonial, um homem que encarna os valores da sociedade socialista” (República Popular de Moçambique, 1983, p. 113). Ambos os projetos são pautados por ideias essencialistas e idealistas que preconizam a eliminação das tribos (Pereira & Nhantumbo, 2018).
Mas, como afirma Macedo (2012, p. 719), “sem diferença não há educação”, e quando no PEE a qualidade é significada como oferta de uma escola que possibilite a aquisição de habilidades que essas famílias não conseguem relacionar ao desenvolvimento dessas atividades, os desafios da sobrevivência acabam por contribuir para que a escola não seja vista como prioridade.
Não se trata de negar a importância de conteúdos e habilidades, mas de entender que existem formas de viver seculares que não são modificadas por documentos oficiais. Como alerta Macedo (2012), são tentativas de expulsar a diferença do currículo, o que reforça o argumento de que existe “um forte deslizamento entre educação e ensino e, portanto, a subsunção da educação ao ensino” de conteúdos e habilidades previamente definidas e que reforçam a dimensão da educação como instrumento de controle social” (Macedo, 2012, p. 721).
A insistência na necessidade de constituir uma identidade nacional moçambicana tem favorecido a compreensão das diferenças culturais como desafio/obstáculo a ser superado em nome da construção da nação (Pereira & Nhantumbo, 2018). Macedo (2015) argumenta sobre a importância que o currículo assume nesse processo, dado que existe “no currículo, como em toda prática de significação, um desejo de controle, uma redução de uma infinidade de sentidos àqueles tornados possíveis pelos jogos de poder” (Macedo, 2015, pp. 903-904).
Em relação à segunda prioridade, relativa à melhoria de aprendizado (qualidade) do ensino, o PEE é apresentado como uma política capaz de dar:
prioridade à melhoria da gestão da escola nas suas intervenções: isto implicará uma melhor atenção à formação, uma melhor definição de perfil e à aplicação dos critérios de selecção do director, mas também, e sobretudo, implicará instigar uma melhor supervisão e monitoria do funcionamento das escolas, dos seus directores e professores, baseada em padrões de qualidade, assegurando que todos assumam a responsabilidade pelo desempenho da escola e do aluno (Ministério de Educação de Moçambique, 2012, p. 36).
No fragmento acima, a qualidade da educação é significada como dependente de uma gestão mais eficaz que deverá supervisionar e monitorar a atuação dos agentes envolvidos no processo de funcionamento da escola para garantir que as metas de desempenho projetadas sejam alcançadas. A projeção de uma identidade ideal desse gestor “eficaz” também é significada como transparente e autorreferenciada.
Aqui se evidencia um deslocamento de sentidos de qualidade característicos do campo produtivo-empresarial para o campo educacional (Gentili, 1995). Qualidade da educação carregada de sentidos gerencialistas e eficientistas hibridizados com sentidos de inovação que se articulam para legitimar políticas elaboradas em uma lógica concebida em uma perspectiva de responsabilização dos profissionais que atuam nas escolas (Ravitch, 2011).
Essa compreensão é reforçada no fragmento a seguir, em que, ainda em referência à segunda prioridade, a qualidade da educação é associada à melhoria do desempenho de estudantes, dos professores e da escola:
Um(a) aluno(a) predisposto(a) para aprender em termos do seu desenvolvimento físico, emocional, cognitivo e social; um professor melhor preparado, motivado e apoiado para assegurar a aprendizagem dos seus alunos; um ambiente na escola e em casa que estimula a aprendizagem; um sistema de acompanhamento e monitoria que mostra evidências do desempenho do aluno, do professor e da escola na base de um conjunto de indicadores (Ministério de Educação de Moçambique, 2012, pp. 35-36).
Trata-se de garantir a execução da gerência eficaz do currículo, eficiência sustentada em uma concepção de currículo como seleção de conteúdos cuja apropriação possibilitará a constituição de determinada identidade. “Uma concepção de currículo que se sustenta na pretensão de que é possível controlar o imponderável e na qual um tipo de conhecimento é eleito como o mais adequado para a efetivação desse controle” (Pereira, 2017, p. 613).
No entanto, como alerta Macedo (2014, p. 1.553), “o imponderável seguirá resistindo a qualquer controle”, impossibilitando que projetos educacionais possam se realizar como foram significados e projetados a priori, pois eles só podem se realizar como resultado de disputas contextuais, em processos de negociação e tradução sempre contingentes.
Também merece destaque a dimensão de negatividade que a significação de qualidade da educação assume no texto. A qualidade não é definida por algo que é em si - e isso nem seria possível -, mas por aquilo que impede que a educação se constitua com qualidade.
Como a ausência de qualidade é entendida como um problema pedagógico e organizacional, a implementação de políticas como o PEE é justificada como intervenção necessária para que a qualidade seja alcançada: gerenciamento eficaz com acompanhamento dos índices de desempenho de estudantes e professores balizado por um conjunto de indicadores que possibilitem a aferição desses desempenhos.
No âmbito do PEE, como em outras políticas curriculares pelo mundo, a discussão sobre o caráter político da educação e, consequentemente, da formação fica subsumido às questões técnicas. Dessa perspectiva, sem uma ampla discussão sobre as condições políticas, sobre as finalidades da educação e sobre a formação docente, o alcance ou não da qualidade tende a ser reduzido aos resultados aferidos com base em indicadores de desempenho.
Com a apropriação das contribuições de Laclau e Mouffe (2001) e de Derrida (2005), é possível argumentar que essas construções discursivas são atos de linguagem que projetam ideias de qualidade de educação que articulam demandas em disputa no contexto social moçambicano, por sua vez pressionado por orientações e diretrizes das agências multilaterais, organismos de fomento que produzem políticas supranacionais formando uma rede complexa que se estende para além do Estado-nação.
Também de uma perspectiva discursiva, o “sucesso ou a eficácia” dessas políticas não se expressam nos resultados de desempenho alcançados, mas na performatividade produzida por esses discursos; performatividades que transformam as formas de significar a educação, a escola, o trabalho pedagógico, contribuindo para a sedimentação/naturalização de sentidos de qualidade da educação carregados de economicismos, tecnocracias próprias do mundo empresarial, um discurso performático carregado de sentidos que favorecem a naturalização dos processos de economicização da educação e da vida (Wendy, 2018).
Em relação à terceira prioridade, relacionada à boa governança (desenvolvimento institucional), o PEE refere que
Um aspecto central na governação dos programas e recursos do sector consiste na aplicação eficiente e eficaz dos recursos disponíveis para obtenção de melhores resultados: fazer mais e melhor com aquilo que temos! Isto implica um maior controlo interno em termos da implementação dos programas do sector e gestão dos seus recursos. Simultaneamente, vai-se dar enfoque à responsabilização dos vários actores no sector para contribuírem para o seu desempenho. Isto não se aplica apenas à gestão dos recursos financeiros e humanos, mas também à observância dos padrões e normas educativas para garantir a qualidade do ensino. No contexto da descentralização da governação até ao nível das próprias instituições, deve-se potenciar os conselhos das escolas de modo a que estes assumam a sua responsabilidade na formulação dos planos de desenvolvimento da escola e a aplicação e prestação de contas sobre os recursos disponibilizados ao sector, bem como sobre o desempenho da escola, em termos da aprendizagem das crianças, e a garantia que as escolas sejam lugares saudáveis e seguros, livres do abuso e da violência (Ministério de Educação de Moçambique, 2012, p. 37).
A necessidade de garantir a eficiência nos processos de gestão da escola é afirmada nesse fragmento. Eficiência curricular com a “observância de padrões e normas educativas” e a gestão eficiente dos recursos financeiros e humanos. Aqui o discurso performático em defesa da eficiência incorpora um apelo, um chamado à comunidade escolar para que assuma a responsabilidade pelo projeto de qualidade proposto, com a melhoria das condições de funcionamento da escola. Trata-se de um discurso identificado com a ideia de accountability associada à prestação de contas que os professores e gestores devem dar às instâncias controladoras (Ravitch, 2011). Uma lógica que justifica a implementação de mecanismos do trabalho docente e das escolas sem que isso signifique necessariamente processo de responsabilidade coletiva dos sujeitos envolvidos com um projeto.
No caso moçambicano, isso ganha um agravante diante do lema “fazer mais e melhor com aquilo que temos”. Uma declaração pública em que as instâncias governamentais assumem a insuficiência de recursos para dar conta dos desafios postos, um discurso performático que aciona mecanismos de accountability e abre caminho para a celebração de práticas/iniciativas individuais e favorece a instauração de uma lógica de governância que contribui para o apagamento do papel do Estado na oferta de serviços essenciais.
Para Wendy (2018, p. 21),
a governança opera como uma epistemologia, uma ontologia e uma prática despolitizantes [...] que encobrem normas contestáveis e estriamentos sociais, [...] bem como as normas e exclusões nascidas dos seus próprios procedimentos e decisões. Ela alinha os sujeitos aos propósitos e trajectórias das nações, empresas, universidades e demais entidades que a empregam. Na vida pública, a governança substitui questões liberais e democráticas acerca da justiça por formulações técnicas dos problemas; questões de direito por questões de efetividade; e mesmo questões de legalidade por questões de eficácia. No local de trabalho, a governança substitui a solidariedade horizontal dos sindicatos, da consciência de classe e as políticas de luta por equipes hie rarquicamente organizadas, cooperação multilateral, integração entre as partes envolvidas, responsabilidade individual e antipolítica. A governança também é um mecanismo-chave para as políticas e práticas de responsabilização, que fazem da atuação individual autossuficiente (alienada de todo contexto, posição social ou contingência) o terreno da sobrevivência e da virtude.
As tentativas de esvaziamento do papel do Estado/política no campo educacional para dar lugar às iniciativas individuais/económicas possibilitam a despolitização, um processo que expressa a dimensão de performatividade derridiana do PEE e permite argumentar que sentidos de formação são enunciados não só contribuindo para a projeção de novas condições para a organização e funcionamento da escola, significada como ideal, mas também deslegitimando de forma generalizada as condições existentes.
3. À GUIZA DE CONCLUSÃO
Ao longo do texto foram apresentadas as interpretações que possibilitam, a partir de uma leitura pós-estruturalista e pós-funcionalista, interpretar o PEE/2012-2016 como uma política curricular performática (Derrida, 2005). Isso porque, ao projetar a constituição de identidades discentes, docentes e dos gestores como condição necessária ao alcance da qualidade, o PEE/2012-2016 se constitui como atos de linguagem que produzem e transformam aquilo que é enunciado (Derrida, 2005).
Essa interpretação se tornou possível quando, ao longo do texto do PEE, são identificadas tentativas de preenchimento/fixação de sentidos de qualidade de educação subsumidas ao ensino, uma qualidade passível de ser alcançada com uma gerência eficaz dos recursos e das pessoas, um deslocamento na forma de compreender a educação pela incorporação de parâmetros e lógicas próprias do mundo empresarial.
O caso de Moçambique não é único. Políticas curriculares com essas características têm se disseminado pelo mundo nas últimas décadas. Políticas que, como lembra Hypolito (2012), não atingem apenas os aspectos organizacionais da escola; abrangem “aspectos importantes sobre o que deve ser ensinado e como deve ser ensinado” (p. 539), obedecendo a uma “lógica da eficácia e da eficiência produtivista” (p. 540).
Para finalizar, é importante destacar que os aportes teóricos apropriados para a produção deste texto não autorizam qualquer tentativa de enunciação de “uma solução”, nem foi esse o objetivo. O que se pretendeu aqui foi oferecer reflexões que possam contribuir para dessedimentar/desnaturalizar sentidos de qualidade, de currículo de escola favorecendo processos que nos permitam inventar e reinventar a qualidade libertos das expectativas de controle que acabam por bloquear experiências educativas mais democráticas, todas elas assumidas como possíveis e desejáveis, mas não obrigatórias.
Assim, se performatividade em Derrida (1991, 1999, 2005) auxilia na compreensão de como novas formas de enunciar educação, escola, currículo estão produzindo aquilo que está sendo enunciado, ela também abre possibilidades para investir na hiperpolitização das disputas pela significação dessas enunciações, disputando projetos democráticos de educação como movimento incessante sempre aberto a novas significações.