1. INTRODUÇÃO
Nós não somos uma consciência cognitiva pura. Nós somos uma consciência encarnada num corpo. Maurice Merleau-Ponty (1908 - 1961)
Este artigo constitui um exerto de uma investigação intitulada: Crianças, Educação Física e Metodologias de Ensino: Interfaces entre os campos de conhecimento da Educação Física e da Infância quanto a metodologias de ensino, no Brasil e em Portugal, que está a ser desenvolvida pelo primeiro autor e colaborada pelo segundo autor. Esta investigação demarca a seguinte questão investigativa ou problema: que princípios teórico-didático-metodológicos, extraídos dos campos de conhecimento das Ciências Sociais e da Filosofia, podem ser agrupados na composição de uma proposta metodológica para o ensino de Educação Física (EF) com crianças/infância?
Para ajudar a responder a esta questão, enfatizámos dois objetivos que ajudassem a alcançar respostas à questão investigativa e que correspondiam às etapas 1 e 2 da pesquisa: 1) proceder a um levantamento dos estudos sobre o tema no Brasil e em Portugal, pegando em dois autores desses países que abordam estas problemáticas nos seus estudos e reflexões; 2) realizar uma busca exploratória de estudos e de autores que estudam estas temáticas para, conjuntamente com o primeiro objetivo, se extrair e sugerir princípios teórico-didático-metodológicos.
No levantamento realizado, uma referência teórica de destaque e recursiva recaiu na fenomenologia do filósofo Merleau-Ponty. Assim, a busca exploratória para se extrair princípios teórico-didático-metodológicos para EF com crianças deu-se a partir de duas obras do autor: Fenomenologia da Perceção e Psicologia e Pedagogia da Criança - Curso na Sorbonne (1949-1952).
O texto está organizado em três momentos interligados. Num primeiro, é apresentado o procedimento metodológico percorrido, tendo como referência as aproximações da EF brasileira à fenomenologia de Merleau-Ponty, com destaque para seus precursores (pioneirismos) e continuidades. Num segundo momento, são apresentados os conceitos (fenomenológicos) de: corpo-movimento próprio em coexistência com o corpo do mundo percebido. Neste contexto, emerge a ideia de como a criança é concebida, vista pelo adulto - Curso na Sorbonne -, em que o filósofo versou sobre psicologia e pedagogia da criança. No seguimento, é apresentado um fragmento de descritivo de uma cena, atividade, vivida numa aula de EF, de modo a ilustrar e servir de ponto de referência entre a produção teórica, didática e a realidade educativa. No terceiro momento, tece-se comentários conclusivos relativos aos conceitos tratados e às possibilidades, ou propostas de novas práxis relativas às dimensões teórico-didático-metodológicas voltadas para a EF com crianças.
2. PROCEDIMENTO METODOLÓGICO E AS APROXIMAÇÕES DA EF BRASILEIRA COM O PENSAMENTO DE MERLEAU-PONTY
2.1. PROCEDIMENTO METODOLÓGICO
Trata-se, basicamente, de uma pesquisa teórica e reflexiva que pretende encontrar alguns caminhos teórico-didático-metodológicos que depois possam ser materializados na práxis didático-pedagógica. Pretendemos criar ‘chão’ teórico para depois intervir. A este propósito, Demo (1994, p. 36) refere que uma pesquisa fundamental, ou teórica, não implica "imediata intervenção na realidade, mas nem por isso é menos importante. Seu papel é decisivo para construir condições básicas de intervenção, precisamente o investimento em conhecimento como instrumento principal de uma intervenção competente".
O levantamento a que se refere o primeiro objetivo destacado anteriormente foi delimitado para uma busca às produções científico-acadêmicas (artigos publicados em periódicos, dissertações de mestrado, teses de doutorado, livros, comunicações em eventos, e entrevistas) de dois pesquisadores: um vinculado à Universidade Federal de Santa Catarina (Brasil) e o outro à Universidade do Minho (Portugal). Selecionámos os dois pesquisadores (quase no sentido de dois casos/estudo de caso) uma vez que a produção científica, teórica-didático-pedagógica dos mesmos satisfaziam o nosso projeto - individualmente e comparativamente.
Assim, os critérios determinantes na delimitação da busca para o levantamento da produção teórica foram orientados pelos seguintes aspetos, simultaneamente combinados: i) estudos que relacionam EF-crianças e infância-ensino; ii) estudos com referenciais teóricos nos campos de conhecimento das Ciências Sociais e da Filosofia; iii) estudos portadores de proposições teórico-didático-metodológicas para EF com crianças.
Com base nesse mapeamento da produção específica dos dois pesquisadores foi possível levantar as obras de referência mais recorrentes, nos campos de conhecimento das Ciências Sociais e da Filosofia e, assim, escolher aquelas a serem exploradas nas etapas posteriores da pesquisa antes mencionada.
Mais especificamente, dentre as produções levantadas decidiu-se, num primeiro momento, explorar as obras de referência teórica contidas na tese de doutoramento de autoria de Roselaine Kuhn (2017), que aborda os significados do brincar na infância, e na qual duas obras do filósofo Merleau-Ponty são destacadas: Psicologia e Pedagogia da Criança - Curso da Sorbonne 1949-1952 e Fenomenologia da Perceção. Além dessas duas obras do filósofo outras foram consideradas, como obras de comentadores do filósofo na relação com a Educação e EF.
2.2. APROXIMAÇÕES DA EF BRASILEIRA À FENOMENOLOGIA DE MERLEAU-PONTY: PRECURSORES E CONTINUIDADES
No contexto brasileiro, o campo de conhecimento da EF é construído por precursores e continuadores que passaram a referenciar a fenomenologia de Merleau-Ponty nas suas dinâmicas investigativas e reflexivas e depois na materialização no campo acadêmico e profissional. Para tal, tomamos como referência inicial as contribuições do estudo realizado por Almeida et al. (2013) e, em diálogo com este estudo, acrescemos outras considerações e reflexões de outros precursores e continuadores.
Na realidade brasileira podemos dizer que os precursores relacionam-se com o que passou a ser conhecido como Movimento Renovador no campo de conhecimento da EF Brasileira, forjado na segunda década dos anos 1980. Este movimento estava em consonância com a abertura política, o retorno da democracia no país, decorrente de um longo período de ditadura militar. Com esta abertura, assistiu-se ao início dos cursos de pós-graduação em EF e, ao mesmo tempo, um estímulo ao retorno de professores que foram incentivados a realizar formação de doutoramento no exterior, bem como de professores que foram buscar este tipo de formação acadêmica nas áreas de humanidades, especialmente em programas de pós-graduação em Educação. Todos estes fatores conjugados foram determinantes e contribuíram para o surgimento e posterior consolidação do campo acadêmico da EF, com um mínimo de heterogeneidade epistemológica e com um gradual reconhecimento social, académico e educativo.
No entanto, verificou-se que as Ciências Naturais (paradigma das ciências positivas) foram, e ainda parecem ser, a base de suporte para o pensar científico, formativo, educativo e político, relegando para um segundo plano as Ciências Humanas e do Comportamento - em particular as Ciências Sociais e a Filosofia. Estes factos levaram a tensões internas e externas no domínio científico-pedagógico e profissional da EF, em particular nas primeiras idades. Compartilhamos da posição de um grupo representativo e significativo da comunidade científica da EF brasileira de que tais tensões não se devem fundamentar em certezas absolutas sobre o predomínio da verdade de determinado paradigma, pelo contrário, deve-se buscar continuamente possibilidades crescentes de diálogos acadêmico e científico, com o objetivo de encontrar possíveis consensos epistemológicos, formativos, educativos e políticos, em torno dos objetos e métodos de estudo e intervenção da EF, mesmo na diversidade. Neste contexto, por exemplo, destacamos como consequência desse movimento da EF brasileira a existência de diferentes possibilidades para se referir e tratar do objeto de estudo e aplicação da EF, sintetizadas nas expressões: corpo-movimento humano, cultura corporal de movimento e práticas corporais (Daolio, 1998, 2015; Bracht, 1999, 2015). Nesta dimensão de fechamentos e aberturas (pioneirismos e pluralismos) Almeida et al. (2012) argumentam que os constrangimentos ao pluralismo teórico que se busca construir no campo da EF, com a imposição de verdades únicas, acabam por implicar uma submissão de outros olhares epistemológicos à ciência positiva dominante e, consequentemente, implicações na investigação, formação, educação e política. Nesse sentido, insistem em afirmar, como algo positivo e promissor, a complexidade teórica e política que tem marcado a produção e o debate epistemológico em EF. A diversidade e a pluralidade requerem o:
abandono das pretensões de alcançar um vocabulário último (único) e, ao admitirmos a falibilidade de todos os pontos de vista, mantém-se aberta a possibilidade de interpretações diversas da realidade, incitando-nos, por sua vez, à conversação e/ ou ao diálogo constante (Almeida et al., 2012, p. 258).
Dado este contexto, um primeiro destaque dos precursores centra-se na herança do grupo de Santa Maria (da Universidade Federal de Santa Maria [UFSM], localizada no estado do Rio Grande do Sul - Brasil). Aqui, foram dados os primeiros passos do programa de pós-graduação em EF desta universidade (a pioneira, no Brasil), no início dos anos 1980, que aglutinou e elevou a formação de uma geração de professores e professoras, os quais passariam a influenciar a produção e o debate acadêmico-profissional da EF brasileira nas décadas seguintes. Esta geração de professores e professoras que buscaram a formação na pós-graduação em EF de Santa Maria eram oriundos das mais diferentes regiões do Brasil e tiveram a oportunidade de tomar contato e estudar com professores e professoras de grande qualificação acadêmica - quer brasileiros, quer estrangeiros, em particular professores alemães, e literatura oriunda dos países nórdicos. Parte dessa primeira geração de pós-graduados pôde experimentar um repensar a EF com base em referenciais teóricos das Ciências Sociais e da Filosofia. Dentre estes professores e professoras qualificados/as do grupo de Santa Maria, que convocaram para as suas práxis investigativas e educativas, ,tomando como referenciais teóricos as humanidades e a filosofia, destacamos o professor Haimo Fensterseifer, os professores visitantes alemães Reiner Hildebrandt e Jürgen Dieckert, a professora Maria Augusta Salin Gonçalves e o professor Silvino Santin, este último vinculado ao Centro de Ciências Humanas e Filosofia da UFSM, mas com aproximações ao programa de pós- graduação em EF.
Para exemplificar a qualificação deste grupo de Santa Maria, destaque para Silvino Santin, que tinha formação inicial em Filosofia e vinha de uma sólida formação teórica neste campo de conhecimento, aprofundada na França nos anos 1970 com a realização dos estudos de mestrado (Escuta de fala e resposta em Heidegger) e de doutorado (Ser e linguagem com Maurice Merleau-Ponty), ambos sob a orientação do filósofo Emmanuel Levinas. Suas ideias ganharam repercussão significativa por meio do livro Educação Física: uma abordagem filosófica da corporeidade (1987) e via participação em inúmeros eventos acadêmico-científicos, ao longo das décadas de 1980 e 1990, por todo o país.
O filósofo Santin recorre a Merleau-Ponty para explorar o conceito de corporeidade, enfatizando o esforço do filósofo francês numa retomada da compreensão do homem como corporeidade. Uma corporeidade que se move, fala e que sente. Desse modo, Santin atribui como tarefa primordial da EF ensinar os estudantes a viver e sentir-se corporeidade. Esta redefinição da função da EF sustenta sua crítica da concepção do corpo-máquina e do dualismo corpo-mente predominantes na tradição deste campo de conhecimento. Assim, à visão mecanicista e estereotipada do corpo propõe a intencionalidade e expressividade inerente às ações humanas, porque são anteriores às racionalizações que submetem o corpo e o movimento. Santin (1987) buscava se aproximar “da intencionalidade que fundamenta a articulação e a organização dos movimentos do homem que a educação física põe em prática” (p. 35). Nesse sentido, parece ver na ideia de “relação ingênua com o mundo”, um imperativo fenomenológico de Merleau-Ponty, a possibilidade de uma descrição direta de nossa experiência primeira com o mundo, isto é, de poder conhecer aquilo que o mundo é para nós antes de qualquer racionalização sobre esse contato ingênuo. Para tanto, assinala que os impulsos lúdicos são promotores dessa possibilidade (Almeida et al., 2013).
Também destacamos o pioneirismo das ideias sócio-filosóficas da professora Maria Augusta Salin Gonçalves, registrado em livro (1994) que deriva de sua tese doutoramento: A questão dos pressupostos filosóficos da educação física (1991). Esta formação de doutoramento em Educação ocorreu na altura de sua experiência acadêmica como docente no programa de pós-graduação em Educação Física na UFSM. O estudo discorre sobre a problemática do homem e sua corporeidade no pensamento filosófico ocidental, buscando elementos na história da filosofia, também na perspetiva marxista para compreender o homem e sua corporeidade, bem como recorre a Merleau-Ponty para buscar o sentido que o filósofo atribui ao corpo. Gonçalves (1994) toma como ponto de partida o princípio segundo o qual as práticas educativas apenas materializam-se de significado se estiverem pautadas por uma conceção do que seja o homem, a sociedade e as finalidades educacionais. No plano da EF, a professora argumenta que a cientificidade por onde transitam as teorias e práticas desse campo do conhecimento também encontra sua fundamentação filosófica quando empreende buscas para respostas às seguintes questões: i) o que é o homem?; ii) o que é a realidade social?; iii) qual o sentido da corporalidade e do movimento na vida humana? E, nesse sentido, sinaliza a possibilidade de se compreender o homem como uma unidade corpóreo-espiritual, onde através da práxis cria o “seu mundo”, em diálogo com o mundo externo que tenta determinar o seu modo de ser (Gonçalves, 1994).
Do vanguardismo dos professores alemães, que integraram o grupo de Santa Maria, destaque para o professor Reiner Hildebrandt, tanto pela continuidade de sua relação com a EF brasileira que perdura até os dias atuais, quanto, especialmente, por abordar na sua teoria para o ensino da EF uma perspetiva do movimento humano que tem referência na fenomenologia de Merleau-Ponty. É sua a seguinte reflexão sobre o trato do movimento humano nas aulas de EF: as experiências rudimentares de movimento através da exploração do mundo constituem possibilidades de se compreender o próprio mundo (Hildebrandt-Stramann, 2011).
Ainda na esteira dos precursores das aproximações da EF brasileira à fenomenologia de Merleau-Ponty, destaque para o grupo de Campinas da FEF-UNICAMP (Faculdade de EF da Universidade Estadual de Campinas, localizada em São Paulo - Brasil), que se reúne em torno de dois protagonistas: o filósofo português Manuel Sérgio e o professor Wagner Moreira.
O primeiro foi professor visitante na FEF-UNICAMP, entre 1986 e 1988, período em que exerceu significativa influência no debate teórico da EF brasileira com a divulgação de sua tese sobre a Ciência da Motricidade Humana, a partir da qual contribui para o projeto de implantação dos primeiros passos do programa de pós-graduação em EF da FEF-UNICAMP. Nesse sentido, introduz, nas suas intervenções na comunidade acadêmica e profissional da área, o poder expressivo do conceito de corporeidade de Merleau-Ponty num movimento de repensar a EF, contrapondo-se ao predomínio do paradigma cartesiano interpretativo do corpo como um objeto, uma máquina controlável e previsível. De modo contrário a esta assertiva paradigmática, o filósofo português parafraseia Merleau-Ponty para argumentar que o “corpo é o princípio estruturante do ser-no-mundo, condição de sua existência: eu não estou diante do meu corpo, mas sou o meu corpo. A corporeidade, continua ele, é condição de presença da participação e significação do homem, no Mundo” (Almeida et al., 2013, p. 04).
O segundo protagonista do grupo de Campinas, Wagner Moreira, professor da FEF- UNICAMP por três décadas (entre 1979 a 2003), defende, em 1990, sua tese de doutoramento com referência nas ideias de Merleau-Ponty e, em 1991, publica a tese na forma de livro com o título Educação física escolar: uma abordagem fenomenológica. Este precursor interessa-se por investigar, nas aulas de Educação Física, o mundo vivido dos estudantes antes da colonização pelo conhecimento proveniente da ciência, o que o fez recorrer à fenomenologia e sua perspetiva metodológica da descrição dos fenômenos - naquela altura, algo inédito nas pesquisas existentes no campo de conhecimento da EF brasileira. Dentre as várias questões que orientavam sua investigação uma lhe era fundamental: o corpo, tratado na escola nas aulas de EF, é o corpo do “ser-no-mundo” ou é um corpo objeto? (Almeida et al., 2013).
O professor Wagner Moreira procurou descrever as experiências contidas na relação didático-pedagógica entre o corpo do professor que ensina e o corpo do aluno que aprende, com a expetativa de identificar nessas descrições outra possibilidade de experimentação do corpo, diferente do corpo coisificado, restrito aos padrões anátomo-fisiológicos predominantes na prática corrente da EF escolar e indutores de fragmentação da consciência corporal. Suas descrições relativas à questão fundamental da investigação revelaram a predominância da ideia de corpo objeto nas aulas de EF, pautado naqueles padrões funcionais. Inspirado em Merleau-Ponty, levantou o argumento que se a EF privilegiar apenas a ideia de um corpo objeto, que desconsidera o corpo da própria natureza do humano como um ser-no-mundo, reduziremos esse fenômeno a uma explicação causal e não teremos uma compreensão do corpo na sua multiplicidade de significados possíveis, pois “o corpo é nosso meio de comunicação com esse mundo, no horizonte de nossas experiências” (Moreira, 1990, p. 24).
Passando, agora, às continuidades e continuadores das aproximações da EF brasileira à fenomenologia de Merleau-Ponty há dois grupos a destacar: o grupo do professor Elenor Kunz e o grupo da professora Terezinha Petrúcia Nóbrega. O primeiro iniciou seus estudos de pós-graduação na mesma época de consolidação do programa de pós-graduação em EF da UFSM, sendo afetado pelo ideário do grupo de Santa Maria que postulava o repensar da EF brasileira com referência nas Ciências Sociais e Filosofia. Por sua vez, a segunda pesquisadora vincula-se às aproximações do pensamento de Merleau-Ponty na esteira do professor Wagner Moreira, orientador de sua tese de doutoramento Para uma teoria da corporeidade: Um diálogo com Merleau-Ponty e o pensamento complexo, apresentada em 1999. Desde então vem aprofundando as relações do pensamento do filósofo francês com questões da EF.
O professor Elenor Kunz, em fins dos anos 1980, retorna do seu doutoramento realizado na Alemanha e passa a divulgar na EF brasileira uma teoria sobre o movimento humano com referência na fenomenologia, mais conhecida por se-movimentar. Trata- se de uma teoria originária do contexto holandês-alemão, elaborada por estudiosos como Frederic J. J. Buytendijk, Jan W. I. Tamboer, Viktor V. Weiszäcker, Paul Christian, Carl C. F. Gordijn e Andreas H. Trebels, este último orientador de Elenor Kunz. A teoria do se-movimentar traz conceitos fenomenológicos relativos ao corpo e movimento humano, bem como fundamentos para auxiliar os professores na interpretação das imagens que formulam de seus estudantes quando estão em movimento (Almeida et al., 2013). Traz, ainda, uma crítica às perspetivas disciplinares do movimento humano predominantes na EF e no esporte, oriundas das Ciências Naturais, em que o movimento é concebido como um fenômeno físico a ser solucionado de modo simplificado e objetivo, independente, inclusive, do próprio ser humano que o realiza. Assim, de acordo com essa leitura, o movimento humano nada mais é do que o deslocamento do corpo ou partes deste, num tempo e num espaço determinado.
Queremos ainda destacar os pioneiros autores holandeses-alemães que realizaram estudos sobre o movimento humano na perspetiva do movimento próprio. Por outras palavras, exploraram entendimentos analíticos que estão imbricados ao sujeito que se- movimenta. Com inspiração nesses pioneiros, Elenor Kunz sustenta uma interpretação do movimento humano em que o homem tem a possibilidade de compreender a si, via um acontecimento relacional e dialógico de seus movimentos com o mundo regido por sua intencionalidade. É desta intencionalidade que emergem sentidos e significados do se-movimenta, caracterizadora de um diálogo entre o homem e o mundo (Almeida, et al. 2013).
Assim, os conceitos de fenomenologia de Silvino Santin, Manuel Sérgio e Wagner Moreira estão presentes de forma mais visível e interpretada na obra do professor Elenor Kunz. Conceitos como: “mundo vivido”, “corpo-próprio”, “corpo-sujeito”, “corpo-relacional”, “perceção”, “intencionalidade”, “diálogo com o mundo”, dentre outros, são apresentados para dar expressão à teoria do se-movimentar como possibilidade de uma maior riqueza para teorizar o objeto de estudo e de intervenção no campo de conhecimento da EF. Os nossos comentadores privilegiados ainda apresentam considerações importantes onde referem que a teoria do se-movimentar, divulgada por Elenor Kunz, está embasada apenas no pensamento fenomenológico contido no livro a Fenomenologia da Perceção. Desconsidera, portanto, as ambiguidades conceituais constatadas e revistas pelo filósofo francês na sucessão de sua produção teórica. Entretanto, sobre esta consideração, entendemos que ela é pertinente quando focada nas primeiras produções mais próximas de sua tese de doutoramento, mas quando vista na continuidade, em artigos científicos publicados mais recentemente e, mais especialmente, nas teses de doutoramento que orientou, é possível notar que as referências fenomenológicas estão para além do primeiro Merleau-Ponty da Fenomenologia da Perceção.
O grupo da professora Terezinha Petrúcia Nóbrega também se destaca no esforço em dar contribuições da fenomenologia de Merleau-Ponty à Educação Física brasileira. Desde de seus estudos de mestrado, Aprendendo com o corpo: pressupostos filosóficos da corporeidade na educação física, concluído em 1995, bem como na sua investigação de doutoramento, anteriormente mencionada, tem trilhado um trajeto contínuo de aprofundamento ao pensamento de Merleau-Ponty. Seu interesse é crescente e constatado nas suas publicações de artigos científicos e nos livros publicados em 2000 e 2010, respetivamente: Corporeidade e educação física: do corpo objeto ao corpo-sujeito e Uma fenomenologia do corpo (Almeida et al., 2013).
A professora Petrúcia Nóbrega faz usos dos conceitos fenomenológicos ao experimentar um diálogo mais contínuo com a obra de Merleau-Ponty. Realiza estudos que ultrapassam questões próprias da EF, ao problematizar temáticas da educação, da arte, da dança e da filosofia com base na fenomenologia. Também procura estabelecer diálogo e conexões do pensamento de Merleau-Ponty com estudos das atuais ciências cognitivas, ou filosofia da mente (Almeida et al., 2013).
Outro aspeto relevante para o registro desta nota de aproximações da EF brasileira à fenomenologia de Merleau-Ponty é que os nossos autores interlocutores destacam uma temática que atravessa os estudos do filósofo francês: a linguagem e sua relação com a expressividade corporal. Encontramos nesta dimensão, por exemplo, nos estudos de Petrúcia Nóbrega, aspetos desta relação, quando assinala que no filósofo francês a comunicação humana está para além da linguagem conceitual (falada e pensada), isto é, a comunicação do ser humano, via o corpo e a experiência de movimentos, também se manifesta na sua gestualidade, sensibilidade e nas diversas formas artísticas. Para esta pesquisadora de Merleau-Ponty “nem tudo na linguagem se reduziria aos aspetos conceituais, mas refletiria significados primários, irrefletidos pela consciência, que precisam ser vividos para adquirir sentido” (Almeida et al., 2013, p. 12). De facto, a mediação entre expressão corporal e a linguagem estão inscritas numa dialética rica, trazendo novas perguntas: “como esse sentido expressivo, anterior à significação, se relaciona com a linguagem?” (Almeida et al., 2013, p. 12). Para responder a esta pergunta recorrem a um dos pioneiros mencionados neste artigo, o filósofo português Manuel Sérgio, e retomam uma questão e reflexão por ele levantada:
qual o modo de estudar o sensível (o pré-consciente, como fundo ou horizonte de toda a reflexão) sem tematizá-lo e, por conseguinte, sem a presença, também implícita, da cultura? [Conclui Manuel Sérgio dizendo que] O trânsito da percepção ao conceito, da zona da pré-constituição à da constituição, foi algo que Merleau-Ponty jamais conseguiu explicar (Almeida et al., 2013, p. 12).
A partir do questionamento desafiador e complexo apontado pelo filósofo português com um conjunto de mais questões, nossos autores prosseguem refletindo sobre a linguagem e sua relação com a expressividade corporal, também na forma de indagações: como ocorre o retorno à gênese da linguagem, ou a retomada de seu movimento de expressão inicial? O que significa a linguagem no momento preciso no qual ela própria acontece como expressão? (Almeida et al., 2013).
Estas questões dos nossos autores interlocutores estimulam um pensar contínuo que nutre nossa curiosidade em busca de possíveis respostas, pois compreender a expressão corporal como linguagem tem-se constituído uma tarefa teórico-prática da EF na contemporaneidade, especialmente para aqueles pesquisadores de campo, empíricos, que buscam essa compreensão a partir de referenciais das Ciências Sociais e Filosofia.
Estas notas rememorativas dos precursores e dos continuadores, relativamente às aproximações da EF brasileira à fenomenologia de Merleau-Ponty revelam-nos os primeiros questionamentos aos paradigmas teóricos predominantes das conceções de corpo e movimento humano, presentes nesse campo de conhecimento. Sobretudo, importa ressaltar que são (continuam a ser) promissoras as continuidades dos estudos de Elenor Kunz e de Petrúcia Nóbrega. São elaborações significativas de cariz fenomenológico, apesar de suas reflexões serem ainda minoritárias. Contudo, estas perspetivas já fazem diálogo com outros olhares epistemológicos, políticos e sociais neste campo de conhecimento. Todavia, cabe também mencionar a existência de críticas ao método fenomenológico quando aplicado aos fenômenos educativos relacionados à EF, como apontam, por exemplo, os estudos de Betti (2006) e Ghidetti (2012). Tais críticas não assinalam a impossibilidade do método, mas advertem para seus limites teóricos e a sua complexidade epistemológica, relativamente às interpretações de situações empíricas.
3. EDUCAÇÃO FÍSICA COM CRIANÇAS: AO ENCONTRO DE MERLEAU-PONTY
Neste tópico apresentamos alguns conceitos da fenomenologia de Merleau-Ponty: i) o de corpo-movimento próprio e a simultânea perceção do mundo; ii) a ideia de criança percebida pelo adulto e pressupostos extraídos de um estudo de interlocução relativo aos Cursos na Sorbonne, em que o filósofo versou sobre psicologia e pedagogia da criança; iii) um possível (novo) estabelecimento de alguns princípios teórico-didático-metodológicos a serem considerados na EF com crianças. Tal apresentação será acompanhada de um fragmento descritivo de uma cena (atividade) vivida numa aula de EF, de modo a ilustrar o sentido fenomenológico com referência na realidade motora/educativa com crianças.
Merleau-Ponty (1999), com base no filósofo alemão Edmund Husserl, ressalta a fenomenologia, como um retorno às coisas mesmas. Importa na fenomenologia descrever não explicar e tão pouco analisar o fenômeno. Assim, o retorno às coisas mesmas significa
retornar a este mundo anterior ao conhecimento do qual o conhecimento sempre fala, e em relação ao qual toda determinação científica é abstrata, significativa e dependente, como a geografia em relação à paisagem - primeiramente nós aprendemos o que é uma floresta, um prado ou um riacho (Merleau-Ponty, 1999, p. 04).
Orientados por essa expressão teórica-didática-metodológica, da fenomenologia, procuramos apreender no fragmento descrito da cena vivida numa aula de EF, a da menina a brincar de correr para ver o chão correr debaixo dos pés, as dimensões do corpo-movimento próprio e a simultânea perceção do mundo intrínsecos à menina. Adentremos a descrição da cena.
Brincar de correr para ver o chão correr debaixo dos pés foi um acontecimento inusitado ao fim de uma aula de EF (ministrada pelo primeiro autor) e diz respeito ao tombo de uma menina durante o trajeto de retorno do local de realização da aula até à sala da turma na escola. Embora sempre recomendasse às crianças que percorressem o trajeto sem corridas, para o professor evitar quedas, pois o terreno, apesar de ser coberto por um gramado com irregularidades de altos e baixos, ainda apresentava pequenas pedras espalhadas. Apesar destas recomendações, algumas crianças desconsideravam meu alerta e quase sempre corriam no trajeto, para chegarem à sala antes que as outras. Mas, o facto é que, num certo dia, uma menina ao correr tombou e ‘abriu-se ao choro’. Em seguida, parte da turma mobilizou-se para ajudá-la a levantar-se e tratar das leves escoriações nos joelhos e nas mãos. Já na sala, o professor perguntou à menina porque ela havia corrido, mesmo com as minhas recomendações de cuidado e meus pedidos para que eles não corressem naquele trajeto. Ainda chorosa, ela respondeu, com um argumento surpreendente: “É que eu queria ver o chão correndo!”. O professor repetiu a pergunta com certo estranhamento e a menina confirmou a resposta e ainda acrescentou que por diversas vezes já correra com o mesmo propósito e que sempre se divertia muito com o chão correndo debaixo de si.
Muito tempo se passou do acontecimento da cena e o estranhamento da resposta da menina manifestada ao professor: “É que eu queria ver o chão correndo! E que por diversas vezes já correra com o mesmo propósito e que sempre se divertia muito com o chão correndo logo debaixo de si”. Este acontecimento ainda povoa os pensamentos do primeiro autor, agora na companhia do segundo autor, e juntos intentam (re)significar aspetos da cena à luz da fenomenologia de Merleau-Ponty.
Carmo (2004, p. 61) assinala que se destaca no pensamento de Merleau-Ponty “o esforço em dar um estatuto filosófico ao que ele chama de contato ingênuo com o mundo. Isto porque a corporeidade, como um sujeito atuante, já opera com uma consciência que não comporta um controle deliberado.” Percebido por esta perspetiva, o fragmento da cena descrita nos toma de uma primeira perceção, qual seja, a de que este contacto ingênuo com o mundo parece estar presente nas crianças em geral e, em particular, na menina do acontecimento. De facto, ela vive o momento como algo que lhe parece próprio para realizar experiências sensíveis na sua relação com o mundo em seu entorno. O filósofo francês refere-se a essa dimensão humana quando assinala que espaço e corpo estão imbricados e são interdependentes, ou seja:
Se espaço corporal e o espaço exterior formam um sistema prático, o primeiro sendo um fundo sobre o qual pode destacar-se ou o vazio diante do qual o objeto pode aparecer como meta de nossa ação, é evidentemente na ação que a espacialidade do corpo se realiza, e a análise do movimento próprio deve levar-nos a compreendê-la melhor (Merleau-Ponty, 1999, p. 149).
O desejo de nos perceber a nós mesmos, de sermos corpo, nos aproxima dessa premissa merleau-pontiana. O de nos ligarmos ao mundo, ou seja, “é estar atado a um certo mundo, e nosso corpo não está primeiramente no espaço: ele é no espaço” (Merleau-Ponty, 1999, p. 205). Para o filósofo, antes de estar em meu corpo, eu sou meu corpo. Corpo este que é concebido como um sistema de potências perceptivo-motoras - um conjunto de significações vividas que caminha para seu equilíbrio.
Estas premissas do filósofo têm como ponto de partida a contestação da tradição cartesiana que separa o corpo da mente, o objeto do sujeito. Merleau-Ponty vai contrapor esta representação com a experiência do corpo próprio, na qual o corpo não é um objeto e tão pouco a consciência que tenho dele. Ele é pensamento, isto é, não é possível decompor e compor meu corpo e assim obter uma ideia sobre ele, pois a sua unidade pode ser alcançada quando vivemos em corpo, quando nos confundimos com ele.
Assim, a experiência do corpo próprio opõe-se ao movimento reflexivo que destaca o objeto do sujeito e o sujeito do objeto, e que nos dá apenas o pensamento do corpo ou do corpo em ideia, e não a experiência do corpo ou o corpo em realidade (Merleau-Ponty, 1999, p. 267).
A experiência do corpo ou o corpo em realidade, como propõe o filósofo, nos parece estar nitidamente presente na cena da menina que gosta de correr para ver o chão correndo debaixo de si, pois demonstra, em sua aventura com o mundo, a curiosidade por conhecer seu corpo próprio, experimentando-o em desafios de movimentos, quer dizer, ainda nas palavras do filósofo, na compreensão desta ideia de sermos corpo. E a este corpo como sujeito da perceção, cabe acrescentar que:
será preciso despertar a experiência do mundo tal como ele nos aparece enquanto estamos no mundo por nosso corpo, enquanto percebemos o mundo com nosso corpo. Mas, retomando assim o contato com o corpo e com o mundo, é também a nós mesmos que iremos reencontrar, já que, se percebemos com nosso corpo, o corpo é um eu natural e como que o sujeito da perceção (Merleau-Ponty, 1999, p. 278).
Observamos, assim, que ser corpo constitui a expressão primeira do ser humano e, retornando ao fragmento da cena de aula de EF, podemos apreender que a menina a correr para ver o chão correr exercitava sua habilidade de experiência do corpo com movimento próprio, como fazem as crianças quando estão livres a brincar no mundo.
Merleau-Ponty, na obra Psicologia e Pedagogia da Criança - Curso na Sorbonne 1949-1952, dirige também uma atenção especial às questões da infância a partir da perspetiva fenomenológica. Rediscute nas suas aulas temas da criança e da infância em diálogo com conceitos da pedagogia, psicologia, psicanálise, antropologia e filosofia. Dentre as possibilidades presentes, nesta obra, para o estudo sobre infância e intervenção com crianças, o filósofo demarca que a criança é produto daquilo em que os adultos as transformam. Nesse sentido, ressalta ainda a necessidade urgente de saber distinguir o que é dos adultos e o que é da criança, na relação entre adultos e crianças (Merleau-Ponty, 2006).
Esta demarcação do filósofo é fundamental pois se contrapõe à perspetiva dominante na sociedade no trato com as crianças, conhecida por adultocentrismo, em que predomina o que vem do adulto, em detrimento do que vem da criança. A criança como um ser humano repleto de potência, de direitos e capaz de protagonismo. O filósofo faz uma crítica e alerta no sentido de se perseguir uma relação adulto-criança pautada pelo equilíbrio, caracterizada por uma busca de horizontalidade, sem que o adulto abdique das suas responsabilidades e autoridade geracional em relação à criança, ao mesmo tempo que a criança consiga ser ela mesma na relação com o adulto.
Machado (2010), no livro Merleau-Ponty e a Educação, realiza um diálogo com a obra do filósofo anteriormente tratada que, inicialmente, no Brasil foi publicada em 1990 com o título Merleau-Ponty na Sorbonne - Resumo de Cursos. Na investigação, a autora busca situar e pensar fenomenologicamente a criança partindo dela mesma e não tendo as teorias sobre as crianças como ponto de partida.
Esta comentadora traz várias contribuições sobre o potencial do pensamento de Merleau-Ponty para a educação com crianças e que, em seu estudo, são denominados de Os existenciais - lentes para olhar fenomenologicamente a criança, abordados do seguinte modo: outridade (da relação criança-outro); corporalidade (da relação criança-corpo); linguisticidade (da relação criança-língua); temporalidade (da relação criança-tempo); espacialidade (da relação criança-espaço); e a mundaneidade (da relação criança-mundo).
Destacamos o que nos anima, o existencial corporalidade, como uma contribuição que amplia a compreensão do corpo-movimento próprio em simultaneidade com a perceção do mundo. Esta noção fenomenológica “difere (da noção) do corpo biológico bem como do corpo da física - corpo massa, corpo coisa: daí a definição e o amplo uso da palavra corporalidade, também traduzida por corporeidade” (Machado, 2010, p. 34).
Machado (2010), ainda, esclarece que esta noção fenomenológica do corpo considera três aspetos concomitantes da vida humana: o mundo circundante, ou o mundo biológico; o mundo das inter-relações, ou o mundo dos nossos semelhantes; e o mundo próprio, ou o mundo das relações pessoais consigo próprio (Machado, 2010). Acrescentando que é preciso estar a par da vida das crianças nos momentos vividos, nos contextos e nas situações: “Para compreender a corporalidade da criança pequena, o adulto precisa ser bom observador, capaz de descrever em palavras o que vê” (Machado, 2010, pp. 42-43).
Outra contribuição desta autora diz respeito às possíveis aproximações entre o pensamento de Merleau-Ponty em relação à educação de crianças com os estudos da Sociologia da Infância, com o foco comum de “ver a criança por ela mesma” (Machado 2010, p. 79). Ressalta ainda, a partir das investigações que têm lugar no Centro de Investigação em Estudos da Criança, a produção teórica do professor Manuel Sarmento. Este autor vai inovar o entendimento sobre a infância ao dar expressão à experiência da criança tal como ela acontece, isto é, que a criança busque seu ponto de vista e que atribua significações próprias às dimensões da sua vida. O professor Sarmento caracteriza os estudos existentes até então sobre a infância como “pré-sociológicos”, ao considerarem a criança como um “não adulto”. Esta representação implicou na:
negativização do fenômeno da infância, por meio de um olhar adultocêntrico. Agora estamos diante de uma revisão das representações tradicionais da criança; podemos então vê-la como um ser social, que integra um grupo social distinto, e nessa circunstância é que surge a concepção da criança ‘ator social’, ‘protagonista’ (Machado, 2010, p. 80).
Esta aproximação entre o pensamento de Merleau-Ponty e a Sociologia da Infância traduz-se numa valiosa revelação e contribuição para a educação de crianças, na medida em que sugere orientar o foco da educação de crianças para a imperiosa possibilidade do adulto-professor ver a criança por ela mesma, anteriormente, mas não excludente, às teorias educacionais e psicológicas que estabelecem conceções de criança a priori.
Vejamos, a seguir, o esforço de Machado (2010), no sentido de perspetivar estas reflexões merleau-pontianas para a prática da realidade educativa com crianças, ao esboçar possibilidades hipotéticas de princípios teórico-didático-metodológicos, nos seguintes termos: i) considerar a inexistência de uma mentalidade infantil - em Merleau- Ponty não há um mundo infantil pré-concebido, pois a noção de infância revela-se na relação que criança estabelece com a sua cultura, nas relações consigo mesma, com os outros e com o mundo; ii) considerar o poliformismo - a criança é poliforma, isto é, ela tem a capacidade de realizar, simultaneamente, diferentes ações, o que está associado a sua plasticidade de mudar e revisar tais ações; iii) considerar a entrada na herança cultural por meio da imitação e inteligência - Merleau-Ponty conceitua inteligência de forma emprestada do movimento da Gestalt ao reafirmar que a inteligência é nossa forma de reorganizar dados e crescer. Com ela a criança consegue realizar por meios quase dramáticos de imitação; iv) considerar a inteligência como forma de organizar dados da realidade - a criança consegue realizar esta organização por meio da imitação; v) considerar os fenômenos de pré-maturação - esta característica infantil aproxima Merleau-Ponty de uma perspetiva de desenvolvimento singular em que a criança é capaz de antecipar uma porção de experiências do adulto: “De todo modo, para Merleau-Ponty, a forma de apreensão do mundo na primeira infância está marcada pela experiência pré-reflexiva - e essa maneira de perceber permanece no adulto” (Machado. 2010, p. 91).
Por último, a pesquisadora ainda aborda as implicações do pensamento de Merleau-Ponty para compreender a dimensão do brincar na infância, com referência nos quatro pressupostos metodológicos acima mencionados. Sugere que o adulto-professor tome a plasticidade do pensar e do agir das crianças, do poliformismo, como ponto de partida para a organização das práticas do brincar na infância. Como primeiro passo, propõe que o adulto-professor busque por um certo nível de desorganização da brincadeira, ao ponto de proporcionar às crianças as manifestações de seus desejos e escolhas. De modo concomitante, o professor necessitará tomar a decisão de desestruturar-se e voltar a estruturar-se em relação ao seu planejamento com as crianças. Este facto tem como ponto de partida a sua atitude premeditada de observação e de estimular o poliformismo das crianças.
Nesse sentido, nossa interlocutora ainda propõe aos professores possibilidades para a intervenção na prática educativa com a elaboração de mapas do brincar, a partir da experiência descritiva da observação das crianças. E como proceder? Sugere iniciar pela observação da criança que brinca e com orientação num roteiro (guião) que contemple as seguintes questões:
Quem brinca (vetores de corporalidade); como brinca (se brinca... e se não brinca, vetores das culturas da infância); onde brinca (vetores de espacialidade); por quanto tempo brinca (vetores de temporalidade); com que materiais brinca? (Brinquedos? Objetos do cotidiano? Materiais não estruturados? Com o invisível? Como descrever o invisível do faz de conta? - todos vetores de mundaneidade: “as coisas estão no mundo”); com quem brinca e como compartilha seu brincar (vetores de outridade). E, se assumirmos, em gesto e palavra, as qualidades descritas da brincadeira como vetores da observação, podemos traçar no Mapa do Brincar vetorizações: trocas, elos, respingos, tangentes, paralelas entre tudo que pudemos observar e descrever. Permitindo-se uma imersão na possibilidade de praticar constantemente a construção desses Mapas, o educador se tornará um semiólogo do brincar, no sentido de saber ler, ver, compreender, como adulto, os sinais que o brincar da criança emite, envia, transmite, apaga e acende. Essa compreensão lhe permitirá criar novas intervenções, instalações plásticas e vivas, delimitando novos espaços para brincar que contenham elementos enriquecedores das “coisas do mundo” (Machado, 2010, pp. 95-96).
A importância da continuidade e reelaboração reflexiva do mapa do brincar, nos termos antes colocados, constitui uma característica, uma proposta, de uma prática educativa conjugada com os princípios sobre educação de crianças, tratados por Merleau-Ponty nos Cursos da Sorbonne. Sugere, ainda, pensar esta possibilidade da perspetiva fenomenológica do brincar na aproximação com a Sociologia da Infância, levando em consideração os eixos estruturadores das culturas infantis apontados por Manuel Sarmento, quais sejam: a interatividade, a ludicidade, a fantasia do real e a reiteração. Pois, a autora relaciona tais eixos numa aproximação com Merleau- Ponty em que a interatividade é a outridade (a relação criança-outro), a ludicidade e a fantasia do real relacionam-se ao brincar, ao brinquedo estruturado, folguedos e jogos e, a reiteração é a não linearidade temporal na infância - começar novamente e repetir é condição primeira da experiência de ser criança.
É de destacar, por fim, que a comentadora da obra de Merleau-Ponty em seus Cursos na Sorbonne, relativos à questão da educação de crianças, bem como os demais estudos antes tratados trazem contribuições significativas para nossos propósitos de se pensar e estabelecer princípios teórico-diático-metodológicos para EF com crianças, referenciados no pensamento do filósofo francês.
Nesse sentido, retornando à cena, da aula de EF, da menina que caiu ao correr para ver o chão correndo debaixo de si entendemos que é possível ver em tal fragmento de cena, a presença da potência da perspetiva do “se-movimentar” da menina, ao mesmo tempo em que é expressão de uma “relação ingênua com o mundo”. Isto é, o fragmento de cena descrita ilustra a noção fenomenológica dessa experiência primeira com o mundo, ao mostrar-nos a possibilidade de poder conhecer aquilo que o mundo é para nós antes de qualquer racionalização. No ato de brincar da criança há um tesouro de impulsos lúdicos, potenciais promotores dessa possibilidade e capazes de proporcionar relações significativas com o mundo, de acontecimentos marcados pelo diálogo com o mundo, via o ser corpo. Tal expressão encerra o princípio fenomenológico do ser-no-mundo, como uma condição de existência humana.
4. CONCLUSÕES
Neste texto procuramos apontar princípios teórico-didático-metodológicos extraídos de dois livros de Merleau-Ponty (Psicologia e Pedagogia da Criança - Curso da Sorbonne 1949-1952 e Fenomenologia da Percepção), e de estudos de comentadores do filósofo francês, os quais constituem elementos de possibilidade (não os únicos) para se pensar a organização e planejamento relativos aos processos educativos de crianças em ambientes escolares, especialmente nas aulas de EF.
Dentre os princípios teórico-didático-metodológicos extraídos destacamos: i) a perspetiva fenomenológica do “se-movimentar”, como possibilidade de assegurar algo que é intrínseco às crianças. A “relação ingênua (que elas estabelecem) com o mundo”, mediada por outra importante noção fenomenológica: a expressão do ser corpo, como o princípio estruturante do ser-no-mundo; ii) a importante noção de criança comum a Merleau-Ponty e Manuel Sarmento, que é a positivação da infância ao “ver a criança por ela mesma”; e iii) a proposição do mapa do brincar, a partir dos princípios teórico-didático-metodológicos: a inexistência de uma mentalidade infantil, o poliformismo, a entrada na herança cultural por meio da imitação e inteligência e os fenômenos de pré-maturação. Todos esses princípios constituem uma contribuição possível e potencial, mas não a única, por forma a materializar, e diríamos mesmo a espiritualizar, práticas educativas com crianças pautadas numa perspetiva fenomenológica.