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Revista Portuguesa de Educação

versão impressa ISSN 0871-9187versão On-line ISSN 2183-0452

Rev. Port. de Educação vol.36 no.1 Braga jun. 2023  Epub 26-Jun-2023

https://doi.org/10.21814/rpe.24605 

Artigos Originais

A relação colaborativa na formação continuada com professores de educação física da educação infantil

The collaborative relationship in continuing education with physical education teachers in childhood education

La relación colaborativa en la formación continua con profesores de educación física en educación infantil

Alexandre Freitas Marchiorii 
http://orcid.org/0000-0002-5919-5696

André da Silva Melloi 
http://orcid.org/0000-0003-3093-4149

i Universidade Federal do Espírito Santo, Brasil.


RESUMO

No artigo, analisa-se a formação continuada com professores de Educação Física da Educação Infantil de Vitória/Brasil, desenvolvida por meio de parceria entre docentes da Universidade e da Educação Básica. A formação esteve centrada nas práticas pedagógicas dos participantes e nas reflexões sobre elas, que foram sistematizadas na produção de material didático-pedagógico com professores da educação infantil da capital capixaba. Trata-se de uma pesquisa-ação colaborativa, realizada entre 2019 e 2020, que contou com a participação de 27 docentes vinculados à Universidade Federal do Espírito Santo e à Secretaria Municipal de Educação. Os dados foram produzidos por meio da observação participante e registrada em diário de campo. A análise de conteúdo dos dados contribuiu para a formulação das seguintes categorias temáticas: a) a formação como lugar de afetos e afecções: memória de futuro; b) a pluralidade de vozes no compartilhamento das experiências e na ação colaborativa entre professores e equipe formadora; e c) a escrita no processo de formação dos professores: a produção do material didático-pedagógico. Os resultados indicaram a perspectiva dos docentes como pesquisadores da própria prática e o reconhecimento dos professores das instituições infantis como produtores de conhecimentos. O processo autoral, na produção colaborativa de um material didático-pedagógico, contribui para a formação dos participantes, aproximando-os das dimensões política e emancipatória da escrita.

Palavras-chave: Formação continuada colaborativa; Educação física; Educação infantil.

ABSTRACT

In this article, we analyse the continuing education with Physical Education teachers of Early Childhood Education in Vitória / Brazil, developed through a partnership between teachers from the University and Basic Education. The training was centered on the pedagogical practices of the participants and on the reflections on them, which were systematized in the production of didactic-pedagogical material with teachers from the early childhood education in the state capital. This is a collaborative research-action, carried out between 2019 and 2020, with the participation of 27 teachers linked to Federal University of Espírito Santo and the Municipal Education Department. The data were produced through participant observation and recorded in a field diary. The content analysis of the data contributed to the formulation of the following thematic categories: a) training as a place for affections and affected: memory of the future; b) the plurality of voices in the sharing of experiences and in the collaborative action between teachers and the training team; and c) writing in the teacher training process: the production of didactic-pedagogical material. The results indicated the perspective of teachers as researchers of their own practice and the recognition of teachers from children's institutions as producers of knowledge. The authorial process, in the collaborative production of a didactic-pedagogical material, contributes to the formation of the participants, bringing them closer to the political and emancipatory dimensions of writing.

Keywords: Continuing education; Physical education; Early childhood education.

RESUMEN

En este artículo analizamos la formación continua con profesores de Educación Física de Educación Infantil en Vitória / Brasil, desarrollada a través de una alianza entre profesores de la Universidad y Educación Básica, centrada en las prácticas pedagógicas de los participantes y en las reflexiones sobre ellos, que fueron sistematizadas en la producción de material didáctico-pedagógico con docentes de la educación infantil de la capital del estado. Se trata de una investigación-acción colaborativa, realizada entre 2019 y 2020, con la participación de 27 profesores vinculados a la Universidad Federal do Espírito Santo y la Secretaría de Educación Municipal. Los datos se obtuvieron mediante la observación participante y se registraron en un diario de campo. El análisis de contenido de los dados contribuyó a la formulación de las siguientes categorías temáticas: a) la formación como lugar de afectos y afectamientos: memoria del futuro; b) la pluralidad de voces en el intercambio de experiencias y en la acción colaborativa entre el profesorado y el equipo formador; y c) la escritura en el proceso de formación del profesorado: la producción de material didáctico-pedagógico. Los resultados indicaron la perspectiva de los docentes como investigadores de su propia práctica y el reconocimiento de los docentes de instituciones infantiles como productores de conocimiento. El proceso autoral, en la producción colaborativa de un material didáctico-pedagógico, contribuye a la formación de los participantes, acercándolos a las dimensiones políticas y emancipatorias de la escritura.

Palabras clave: Educación continua; Educación física; Educación infantil.

1. INTRODUÇÃO

A formação continuada de professores é um tema que está constantemente na lente dos pesquisadores (Aguiar et al., 2016; Bragança, 2012; Corazza et al., 2017; David & Cancelier, 2018; Heringer & Figueiredo, 2009; Martins & Duarte, 2010; Sangenis et al., 2018; Ventorim et al., 2020), bem como presente na legislação que organiza as políticas educacionais brasileiras (Conselho Nacional de Educação [CNE], 2015; 2019a; 2019b; Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira, 2015). De acordo com o Plano Nacional de Educação vigente (PNE 2014-2024), a “formação continuada” parte do pressuposto de que a formação dos professores não se encerra com a graduação ou a licenciatura, mas caracteriza-se pela necessidade de formação permanente como parte integrante do trabalho docente.

No que tange à formação continuada, as Diretrizes Curriculares Nacionais para a formação inicial em nível superior e para a formação continuada, Resolução do Conselho Nacional de Educação (CNE) n.º 02/2015 (CNE, 2015) recomendava princípios, fundamentos, dinâmica formativa e procedimentos a serem observados nas políticas, na gestão e nos programas/cursos de formação. No caso da Resolução do CNE n.º 02/2019 (CNE, 2019b), que revoga a anterior, omite-se a discussão sobre o tema, salvo para informar sobre a equidade no acesso à formação continuada, sua articulação com a formação inicial e o seu reconhecimento como componente essencial para a profissionalização docente, valorizando-se o cotidiano da instituição educativa e os diferentes saberes dos professores.

Nesse contexto, considerando ainda o período de transição e adequações entre as resoluções de 2015 e 2019, fato que mantém a validade de ambas para as ações das Instituições de Ensino Superior (IES), a formação continuada é compreendida como uma ação planejada e intencional. Destina-se ao desenvolvimento de profissionais para funções de magistério na educação básica, em suas diferentes etapas e realizada por meio de atividades de extensão, grupos de estudos, cursos e programas. Dentre as suas finalidades, destaca-se a reflexão sobre a prática educacional, bem como a busca de capacitação técnica, pedagógica, ética e política do profissional docente.

Todavia, essa política de formação continuada tem sido questionada por algumas instituições e pesquisadores. A Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Educação (ANPED) tem se manifestado continuamente a respeito e, conforme matéria divulgada em 09 de outubro 2019, no site da instituição, a “Posição da ANPED sobre texto referência - DCN e BNCC para formação inicial e continuada de Professores da Educação Básica” identifica “uma formação formatada”.

Para além das questões apresentadas pela ANPED, há o debate político fomentado, especialmente, pela Associação Nacional pela formação dos profissionais da Educação (ANFOPE) que, desde sua fundação, “[...] tem pautado sua luta pela defesa de políticas de formação e valorização profissional que assegurem o reconhecimento social do magistério, seu profissionalismo e profissionalização” (ANFOPE, 2018). Trata-se de um movimento de resistência propositiva, ancorado no posicionamento político crítico consoante ao que se espera dos representantes das universidades públicas e demais IES brasileiras em resistência à Resolução n.º 02/2019 e ao retorno dos parâmetros conquistados coletivamente com a legislação anterior.

Ventorim et al. (2020, p. 15), em suas análises, “[...] indicam que as diretrizes emanadas das políticas de formação atuam em favor da adesão do Brasil às políticas internacionais, beneficiando as grandes corporações [...]”. Na avaliação dos autores, a projeções dessas políticas podem descaracterizar o sentido público e a função social da escola. Ratificam, ainda, a necessidade de se observar as metas previstas no PNE 2014-2024 e a manutenção da Resolução do CNE n.º 2/2015.

Buscando romper com essa lógica e contexto, temos trabalhado com a ideia de formação continuada que valoriza o professor e suas práticas. Nesse movimento, a escrita se constitui como meio formativo e tem como produto a produção de um Material Didático-Pedagógico (MDP) com os professores cursistas e equipe preceptora1. Foi desenvolvida uma Pesquisa-ação Colaborativa (Ibiapina, 2008) a partir de um curso de formação com professores de Educação Física na Educação Infantil do município de Vitória (Brasil), realizada entre agosto e dezembro de 2020.

De acordo com Ferreira & Ibiapina (2011), “a pesquisa colaborativa propõe abordagem em que os objetivos da pesquisa e da formação se encontram imbricados, exigindo a inter-relação entre os atores do processo” (p. 122). Os autores explicam que o foco da Pesquisa Colaborativa é a vida real do professorado, valorizando-se o processo educativo e as relações estabelecidas pelos docentes e pesquisadores.

Essa proposta esteve vinculada a um projeto de extensão universitário (SIEX n. 626/2019)2. Partiu-se da perspectiva de que a escrita é um lugar de poder e aqueles que “dominam” os seus códigos, dentro de uma sociedade letrada e grafocêntrica, possuem a capacidade de ocupar os espaços de discurso e legitimar suas ideias e entendimentos (Côco, 2014).

Para tanto, o curso de formação continuada com professores de Educação Física na Educação Infantil buscou fortalecer o cotidiano como espaço de produção de conhecimentos, no qual os professores podem ocupar o lugar de escrita, compartilhar seus saberesfazeres (Alves, 2010). Esse processo formativo mobilizou diferentes sujeitos em momentos profissionais e acadêmicos singulares. A experiência de 2019 estava organizada com o envolvimento de professores vinculados à Secretaria Municipal de Educação (SEME), Universidade Federal do Espírito Santo (UFES), Universidade Federal de Tocantins (UFT), Universidade Federal de Santa Maria (UFSM), Instituto Federal Colégio Pedro II, acadêmicos da Pós-Graduação em Educação Física (Mestrado e Doutorado) e acadêmicos da Graduação de Educação Física da UFES. Todos os envolvidos possuíam uma relação direta ou com Núcleo de Aprendizagens com as Infâncias e seus Fazeres (NAIF) ou com a SEME.

Como questão investigativa, indagamos de que forma a escrita colaborativa entre Universidade e Educação Básica contribui para a formação continuada de professores que atuam na Educação Infantil. Busca-se analisar a formação continuada com professores da Educação Infantil, por meio das práticas de escrita na elaboração de um MDP produzido com os professores participantes da "Formação Continuada com Professores de Educação Física que atuam na Educação Infantil de Vitória/Brasil" (Mello et al., 2022).

A seguir, apresentamos a metodologia utilizada, o caminho das análises dos dados e os resultados encontrados na pesquisa. Evidenciamos a relação colaborativa e as diferentes vozes que compõem a experiência de formação continuada pesquisada. Buscamos aprofundar as análises sobre essa relação colaborativa, o que acontece nesses processos dialógicos, no reconhecimento de que essas ações são de mão dupla: de formar e formar-se.

2. O CAMINHO METODOLÓGICO

A metodologia adotada é a Pesquisa-ação Colaborativa (Ibiapina, 2008), na qual os professores ocupam o centro da investigação, reconhecendo-os como agentes com participação ativa no processo e “[...] envolve a espiral de ciclos autorreflexivos de planejamento para a mudança; ação e observação dos processos e das consequências e, então, replanejamento” (Ibiapina & Bandeira, 2016, p. 258).

Participaram da pesquisa 27 sujeitos, sendo 13 professores/as (identificados no corpo do texto como P1 até P13) que concluíram a última etapa da formação continuada e os 14 participantes da equipe formadora (denominados F1 até F14 no corpo do texto), membros do NAIF e/ou professores/as da Prefeitura Municipal de Vitória (PMV). A pesquisa foi aprovada pelo Comitê de Ética em Pesquisa da UFES, conforme parecer nº 3.703.635/2019.

De um quantitativo de 38 que iniciaram o processo, desde o primeiro encontro até o momento das produções textuais, apenas 13 (34,26%) desejaram seguir até a etapa final da formação. Nesse formato de curso, cada etapa pode ser cursada de forma independente e os professores podem planejar seus percursos individualmente. Isso permitiu que cada cursista se organizasse e avaliasse suas possibilidades, mesmo diante do reforço e motivação a avançar para as etapas seguintes.

As fontes dos dados correspondem aos registros de Diário de campo da formação continuada; mensagens dos grupos de WhatsApp3 relacionados à formação realizada em 2019; e o MDP produzido (período de maio a dezembro de 2020). Conforme consta, foram 13 encontros de planejamento com a equipe formadora, três encontros coletivos, nos quais foi possível o exercício avaliativo-reflexivo, observação dos resultados e realinhamento das metas.

No processo de escrita do MDP, na medida em que o conhecimento foi sistematizado e compartilhado com os participantes da pesquisa, novas decisões foram tomadas coletivamente. Esse processo da pesquisa-ação buscou a emancipação dos docentes como pesquisadores da própria prática, a apropriação dos códigos da escrita e o compartilhamento desse lugar de poder, no reconhecimento dos professores como colaboradores no campo de produção de conhecimento através da escrita do MDP.

Os dados foram submetidos à Análise de Conteúdo (AC). Conforme Bardin (2011, p. 55), “a maior parte das técnicas propostas é do tipo temático e frequencial [...]”. No primeiro movimento de análise estabelecemos aproximações semânticas, sem desconsiderar os critérios de agrupamento. Seguimos com a classificação das unidades de significação, segundo critério do objeto de referência, validado diante do conjunto da informação e o plano das inferências. O processo de repartição ocorreu de forma inversa criando as categorias, ou seja, “[...] partimos dos elementos particulares e reagrupamo-los progressivamente por aproximação de elementos contíguos, para no final deste procedimento atribuirmos um título à categoria” (Bardin, 2011, p. 68).

Assim, a partir da questão investigativa, as categorias extraídas das análises correspondem à formação como lugar de afetos e afecções: memória de futuro; a pluralidade de vozes no compartilhamento das experiências e na ação colaborativa entre professores e equipe formadora; a escrita no processo de formação dos professores: a produção do MDP.

3. DISCUSSÃO DOS RESULTADOS

3.1 A FORMAÇÃO COMO LUGAR DE AFETOS E AFECÇÕES: MEMÓRIA DE FUTURO

A formação continuada possibilitou vários encontros e uma pluralidade de vozes, mas também revelou desejos e expectativas. Os dados analisados revelam que os envolvidos na formação possuem uma “memória de futuro” (Bakhtin, 1997), ou seja, há um desejo que acompanha os cursistas e formadores, uma prospecção revelada nos discursos e enunciações. De acordo com o autor:

[...] Posso esquecer o objeto e então ele deixa de existir para mim, mas, se o guardo na memória (em seu valor), será no nível do que lhe é pré-dado e não do que o faz já-aqui. Para mim, a memória é memória do futuro [...] (Bakhtin, 1997, p. 140).

Trata-se do inacabamento humano e as possibilidades da construção de amanhã, pautado nas ações do presente e no planejamento dos resultados esperados. Todavia, surge no desejo individual e na alteridade. Conforme Sobral & Giacomelli (2019), a memória de futuro é “[...] uma projeção a partir do passado e do presente; não tendo sido vivido, ele [o processo estético] surge de projeções que, envolvendo valores morais, são feitas a partir de nossa posição moral” (p. 413). Nas narrativas analisadas, constata-se o desejo de momentos formativos, de poder conhecer um pouco mais sobre as temáticas da educação ambiental e sustentabilidade, questões de gênero, relações étnico-raciais, mídias e tecnologia na Educação Infantil e fomentar as práticas futuras, conforme as narrativas a seguir:

Preciso conhecer de forma científica sobre diversidade, gênero etc... depois melhorar a tecnologia e por último sustentabilidade, pois acredito que o último tema já se faz presente há anos na educação e executado (P7).

Muito legal conhecer as experiências de cada prof. Nos inspira a conduzir a formação dos futuros prof. de EF, nas propostas dos estágios que orientamos. A troca nesse grupo tem sido muito bacana. Vcs são feras! Certamente, teremos ótimos relatos no nosso material didático (F3) (Registro do WhatsApp, 26/09/2019).

Essas memórias mantêm uma ligação com as experiências anteriores e proporcionam o envolvimento no processo formativo vivenciado. Esse momento potencializa o encontro entre pares e o desejo de compartilhar tanto os saberes quanto os afetos. Certeau (2012) afirma que o lugar é transformado em espaço pelo praticante do cotidiano. As narrativas a seguir permitem visualizar esse processo:

[...] E estar aqui com você é uma coisa que me alimenta lá do início quando eu comecei a trabalhar e não sabia o que fazer. Cheguei lá na escola e vi aquele monte de bebê: ‒ caraca, o que eu vou fazer? Estar com vocês é reavivador para a prática. Olhar o que os colegas estão fazendo é importante para copiar (risos) e para inovar (risos) (P11).

Eu me vejo nessa condição. Para mim a formação tem sido muito gratificante, eu terminei o mestrado em 2012 e estou retornando agora devido um problema pessoal. E foi uma opção: chega, não dá. [...] Então para mim está sendo muito gratificante voltar. [...] mas tenho gostado muito de estar aqui, tem feito muito bem enquanto professora, enquanto mãe. Para mim tem sido muito importante (P12) (Diário de Campo, 05/10/2019).

Nesse sentido, evidenciam-se práticas comuns, “[...] experiências particulares, as frequentações, as solidariedades e as lutas que organizam o espaço onde essas narrações vão abrindo um caminho” (Certeau, 2012, p. 35). Os professores expressam alegria em compartilhar esse espaço formativo, que modifica a sua prática pedagógica e inspira suas memórias de futuro.

Há, ainda, o desejo de seguir na carreira docente e alcançar um lugar na Pós-graduação. Tanto os cursistas quanto a equipe formadora compartilham dessa prospecção. Observa-se um movimento contínuo de acolhimento dos professores na universidade, no caso dessa formação, no compromisso ético com a construção do conhecimento e valorização dos saberesfazeres4 docentes. As narrativas a seguir evidenciam esse processo de como estar na formação mobiliza os professores a avançar nos seus projetos pessoais e ocupar um espaço na comunidade científica, especialmente na circulação/publicação de conhecimentos em periódicos, revistas e eventos acadêmicos da área:

E essa questão dos tutores Formador 12, da primeira para a segunda formação, eu vejo que isso vai se ressignificando. Quem está na tutoria agora? Formador 9 participou do primeiro, você Formador 12, o Formador 1 que participou da primeira como cursista agora está como coordenador. [...] O tutor não precisa ser exclusivamente um professor da universidade. Pelo contrário, às vezes a gente até (F2).

[...] Vim para o mestrado, estudei, só que anos depois, essa questão da energia para o trabalho, assim como P12, eu me afastei e não queria falar de doutorado. Foi exatamente o curso (2018) que me deu o start. Eu sinto que foi a formação que me fez algo, eu me sentia um robozinho, sabe. E na formação eu senti que foi aquele estalo: eu preciso voltar. [...] (F9).

Muitas vezes, né, Formador 9? Vai para além da formação. Olhando aqui esse cenário, eu vejo a Formadora13, eu vejo o P11, o Formador 1, eu vejo o Formador 6, eu vejo a P3, todos os professores que a gente teve um primeiro contato através da prática, através do Programa Institucional de Bolsa de Iniciação à Docência (PIBID), de estágio, o Formador 11 na época que era diretor de um Centro Municipal de Educação Infantil (CMEI), a partir dessa relação, uma relação colaborativa entre universidade e escola, o professor, muitos se aproximaram, [...] então está vendo pessoal: é o professor. Essa ideia da universidade, somos nós, é o professor que tem que ocupar esse espaço (F2) (Diário de Campo, 05/10/2019).

Ocupar um espaço na comunidade científica é importante e significativo para os docentes, tendo em vista a necessidade de uma aproximação a uma abordagem ético-cultural no encontro com os professores. “[...] um encontro que se efetiva num contexto escriturístico que tem acenado com a possibilidade de configurarmos uma dimensão formadora das práticas de escrita” (Côco, 2014, p. 52).

Constata-se que esse movimento é compartilhado por todos os envolvidos na formação. Não se trata de um passaporte carimbado e já aceito, mas de uma memória em devir: “Se a memória do passado está mais para a historicidade estética do sujeito (acabamento), a memória de futuro está mais para a singularidade ética do sujeito (inacabamento). Eis que a memória de futuro é devir, projeção” (Silvestri, 2015, p. 280).

Para Sobral & Giacomelli (2019), o discurso corresponde ao espaço em que o sujeito recorre seletivamente à memória, quer como retrospectiva, quer como futuro (a projeção prospectiva). Nesse processo, mobiliza-se o aspecto individual e suas interações coletivas, a partir de suas necessidades presentes. Nesse caso, há uma intencionalidade nos atos desencadeados, um enredo que se constitui nos fios cotidianos que projetam um futuro possível, mas ainda não dado. Conforme Bakhtin (1997), a exotopia

[...] consiste em dizer que uma vida encontra um sentido, e com isso se torna um ingrediente possível da construção estética, somente se é vista do exterior, como um todo; ela deve estar completamente englobada no horizonte de alguma outra pessoa (p. 7).

Dessa forma, a memória de futuro alimenta as ações no presente. Quando projetamos os desdobramentos da formação em alguns casos entre cursistas e formadores, constata-se que os desejos têm se concretizado e projetam novos futuros.

3.2. A PLURALIDADE DE VOZES NO COMPARTILHAMENTO DAS EXPERIÊNCIAS E NA AÇÃO COLABORATIVA ENTRE PROFESSORES E EQUIPE FORMADORA

A formação permitiu vários momentos de interação e integração dos participantes da formação continuada. Nesses encontros, presenciais e virtuais, houve uma pluralidade de vozes, de manifestações de afetos e de momentos formativos. Alguns conceitos bakhtinianos (Bakhtin, 1997; 2006) permitem analisar os atravessamentos (ligação entre, o amálgama) na formação: a polifonia está associada à reunião de múltiplas vozes, possui um caráter festivo, ou seja, a alegria dos professores expressando suas ideias e pensamentos; a heteroglossia pressupõe uma clivagem social, mobiliza os auditórios sociais e seus endereçamentos com a universidade, a rede municipal de educação infantil, a educação física e a educação infantil.

Em relação à polifonia, Bakhtin (1997) se refere à pluralidade de vozes a partir de suas análises e diálogo com os romances de Dostoievski. De acordo com Pires & Tamanini-Adames (2010), “[...] para Bakhtin, a polifonia é parte essencial de toda enunciação, já que em um mesmo texto ocorrem diferentes vozes que se expressam, e que todo discurso é formado por diversos discursos” (p. 66). Conforme as autoras, esse conceito revela que o discurso resulta de um conjunto de diferentes vozes, sem que nunca exista a predomínio de uma voz sobre as outras. Ou seja, existe uma coexistência de vozes divergentes, mas que estão em permanente diálogo.

No caso da formação, as múltiplas vozes são consideradas equipotentes e convergem para uma escrita polifônica do MDP. O diálogo abaixo revela esse conceito:

Oi pessoal, bom dia. Peço que visitem o ambiente virtual da nossa formação e avaliem o conteúdo de boas vindas! Por gentileza, façam isso o quanto antes, pois a plataforma já está aberta para os cursistas. Obrigado (F2).

Vi e Li. Acho que a abertura está clara, objetiva e cumpre o seu papel (F11).

Ok (F12).

Ficou claro e traz as informações, orientações e os objetivos do curso, bem como mantém o diálogo com os participantes (F1).

Gostei bastante. Valorizou a formação passada considerando o aprendizado coletivo. Texto muito escurecido. Arrasou! (F12).

Obrigado por nos educar quanto à linguagem (F2).

É verdade. Perdoe o ato falho (F11).

Sem problemas. Confesso que amei a reflexão de vcs. Estamos juntxs (F12).

Pessoal, ficou muito bonito! Texto e imagens "conversam bem". A passagem entre o já vivido e o processo que se inicia me parece bem colocada (F8) (Registro do WhatsApp, 14/08/2019).

Nessa ocasião, o termo “claro” foi tensionado e os discursos puderam coexistir. Pires & Tamanini-Adames (2010) afirmam que “[...] a relação de contradição é um dos aspectos constitutivos da polifonia em Bakhtin” (p. 72). Em outra ocasião, conforme diário de campo do dia 19 de outubro de 2019, mais uma vez ocorreu esse movimento polifônico:

[...] Bem lembrado pela P9 essa organização, essa logística, esse capricho, o lanche, cada detalhe é algo que a gente tem valorizado como uma dimensão formativa, uma preocupação com o outro. Só não vou falar mais “lacrou” (risos). Não pode falar “lacrou” (risos) (F2).

É um termo muito político, né: tombar e lacrar. Isso vem muito da comunidade dos jovens negros que morrem massivamente, é uma proposta desse movimento, já que é para tombar e lacrar, lacrei. Isso veio como movimento político, mas dentro de uma outra esfera, o tombar e lacrar é o tombar na morte e lacrar aquele saco preto da polícia. Então é o tombamento da morte e lacre mesmo que é mais um corpo, é mais um que vai sendo naturalizado. Então, contei (várias vozes ao mesmo tempo comentando) (F12).

Vivendo e aprendendo (F2) (Diário de Campo, 19/10/2019).

Conforme Certeau (1985), a enunciação corresponde ao ato de falar. Para o autor, a “[...] efetivação da linguagem por um ato de fala, pelo speaking, a questão não mais se prende à língua enquanto sistemas, mas, justamente, a uma prática da linguagem” (Certeau, 1985, p. 15). Nesse diálogo, a língua se efetivou e constitui uma dada realidade. Os sujeitos se apropriaram do significado das palavras utilizadas e estabeleceram um contrato relacional. Para o autor, foi justamente na “fala em ato” que o presente se instaurou.

O uso dos termos “escurecido”, “claro” ou “lacrou” foi perpassado pela linguagem, a polifonia, porque o foco não era aquele do preconceito ou do racismo, mas uma palavra desencadeou toda uma discussão a respeito. E como propõe Certeau (2012), o espaço é democrático, logo, é no fluxo comunicacional que o diálogo acontece, ou seja, a oralidade como prática. Conforme pontua o autor, a linguagem é um sistema simbólico convencional de uma determinada língua, com suas regras, sua sintaxe, sua semântica e tem toda sua organização ortográfica. A fala é a linguagem em ato, que ela só faz sentido no seu contexto de enunciação, no seu ato de produção. Ela, ao ser retirada do contexto, não se aplica em outro lugar.

A polifonia também é a festa, a alegria, o riso. No encontro entre os professores, entre formadores e entre ambos, a formação proporcionou momentos de alegria, de abraços e sorrisos. Trata-se de uma característica constatada desde o encontro inaugural na sala de estudos do NAIF/CEFD/UFES, com a participação do grupo de dança Andora da UFES, o momento do seminário realizado no “miniauditório” do CEFD/UFES, uma das etapas da formação continuada, até o encerramento do processo. Esse momento festivo também se observa nas narrativas:

Ufa, acho q consegui enviar... computador quebrou... celular com problemas... pura emoção a entrega desse texto (P3).

Me senti na faculdade, deu um frio na barriga... Fazia muito tempo que não redigia textos... Me senti fazendo um TCC ... kkkk (P7).

Cinema no Quintal à sobra das mangueiras (P5).

Que beleza, maravilha! (F2).

P2, agradeço a você especialmente por me tranquilizar e ensinar do que seria a educação infantil em 2010. Junto com o P1 também pude experimentar de forma prazerosa o CMEI DV (P7).

Um prazer, um orgulho (P5).

A cada dia uma experiência nova e enriquecedora. Aprendemos uns com os outros. E isso que fortalece ainda mais o nosso grupo. (P1).

Verdade! (P7).

Show galera (P5).

Quanta vitalidade nesse grupo! Estou encantada! (F8).

[...]

Imagens encantadoras. Parabéns professores e professoras, vocês são incríveis!!! (F2).

[...] Eu tenho facilidade, eu sou uma pessoa que cumpro, se você falar que tem uma atividade para postar até amanhã eu sou disciplinada, eu vou para o parquinho com o texto, os meninos me chamam eu estou no texto: espera aí (risos). [...] A Formadora 10 me mandou um “oi”: e aí, está tudo bem? Nossa, quem é você? (risos) aí eu fui lá na foto (whatsApp): Formadora 10! (risos) (P12).

Ninguém me mandou “oi” (risos) (P11).

Sério P11? (risos) Formadora 10, não escrevi “lé com cré”. (risos) Ninguém vai entender o que eu estou escrevendo (risos) (P12) (Registro do WhatsApp, 08/10/2019).

Para Bakhtin (1997, p. 375), o riso expressa a liberdade, permite a aproximação dos iguais e torna familiar o espaço ocupado pelos sujeitos. Conforme registra, “[...] O riso, a festa, estes não se implantam A seriedade deixa mais pesadas as situações sem saída, o riso eleva-se acima delas. O riso não entrava o homem, libera-o”.

Os sujeitos revelaram a alegria de ver e conhecer a prática do outro, expressaram seus afetos. Houve um contentamento por quem compartilha a prática e por aqueles que respondem. Percebe-se a valorização do homem ordinário (Certeau, 2012), das ações práticas dos professores/as. Nessas narrativas, as pessoas trazem as suas práticas e suas experiências, as suas operações sobre a cultura. A formação buscou proporcionar um espaço de encontros em que o professor é um colaborador e produtor de conhecimento e não um mero receptáculo de conteúdo depositado por especialista. Buscou-se a visibilidade dos praticantes dos cotidianos das instituições infantis de Vitória (Brasil), como expresso nas narrativas abaixo:

[...] vamos, estamos juntos né, vamos fazer juntos esse processo. Mas formação, em última instância, é autoformação, a pessoa querer investir, a pessoa apesar das lacunas e das dificuldades, mas com certeza tem que sair da nossa zona de conforto. [...] A gente não quer fazer as coisas de qualquer jeito, porque a gente quer valorizar e ter o respeito que a prática de vocês nesse momento merecem. Então, assim, muito empenho, muita dedicação [...] (F2).

As experiências mostram como o currículo da educação infantil é rico. É bom fazer parte (F1).

Show! Parabéns a todos os profissionais que fazem a diferença na vida dessas crianças (P7).

Show de bola (P10).

Professoras e professores, boa noite. Só agora pude parar e curtir essas experiências fantásticas que vocês postaram. Tudo muito lindo, parabéns! Não vejo a hora de transformar essas experiências em fonte de inspiração para os docentes da rede. Há muita potência em vocês! (F2) (Registro do WhatsApp, 16/09/2019).

Essas narrativas evidenciam o cotidiano em que as práticas desses professores são valorizadas, reconhecidas, constituindo-se como ponto de reflexão e construção da própria formação. De acordo com Certeau (2012, p. 136), “o homem comum”, “ordinário” pode ser comparado à atividade do equilibrista na corda. Em suas palavras: “[...] os que dançam na corda dependem de uma arte. Dançar sobre a corda é de momento em momento manter um equilíbrio, recriando-o a cada passo graças a novas intervenções [...]”.

A formação continuada vivenciada por esse coletivo também evidenciou o caráter ético, estético e polêmico da cultura: estético no sentido da originalidade, inventividade do momento possível; o ético que se caracteriza pela vontade de existir, um objetivo que se estabelece na relação com o outro; e polêmico que sempre se expressa por uma relação de força (Certeau, 1985).

Quanto à heteroglossia, Bakhtin (1997) se refere às diversas vozes sociais, ou seja, à pluralidade discursiva. Para Melo (2017), corresponde “[...] à coexistência de uma multiplicidade de várias formas linguísticas que competem entre si, por exemplo, registros sociais, profissionais” (p. 90). Conforme esse autor, na tradução brasileira da obra “O discurso no romance” utilizou-se o termo plurilinguismo.

Em relação a esse conceito, o professor Carlos A. Faraco, em entrevista a Gomes (2020), afirma que a heteroglossia corresponde ao universo dos muitos discursos sociais. De acordo com Faraco (Gomes, 2020), trata-se da “[...] multiplicidade dos discursos que circulam socialmente, dos complexos verboaxiológicos que constituem o grande simpósio social [...]” (p. 356). Ao nos debruçarmos sobre os dados, identificamos algumas circunstâncias em que podemos constatar esse plurilinguismo, conforme registro a seguir:

Eu tenho facilidade de escrever qualquer outra coisa, mas tenho dificuldade de escrever texto acadêmico (risos). Pedi socorro para a Formadora 12, gente estou perdida, mas escrevi. Gente, é muito difícil... colocar minha escrita dentro das coisas que acontecem na sala... é bem diferente. Porque, assim, eu tenho costume de escrever outras coisas fora de escola. A minha escrita é muito... é muito viajante (risos), a minha escrita voa para um monte de lugar (risos). [...] (P9).

Então P9, olha só, isso é muito comum pessoal, fiquem tranquilos. A gente não quer a escrita acadêmica de vocês, né. O fato de a gente estar numa universidade, estabelecer essa relação colaborativa entre universidade e escola, não significa que agora vamos escrever textos acadêmicos, uma tese ou dissertação, um artigo, não é isso. [...] É lógico que a nossa escrita vai dialogar, estabelecer contato com a literatura, com alguns autores, mas não tem o objetivo de ser uma “escrita acadêmica” (F2) (Diário de campo, 05/10/2019).

A formação vivenciada, tendo a escrita como caminho formativo, possibilitou esse encontro discursivo e as questões do gênero literário de uma escrita acadêmica, de perspectiva científica, coexistiu com outras formas expressivas, visto que, conforme Bakhtin (1997), “a heterogeneidade dos gêneros do discurso (orais e escritos), que incluem indiferentemente: a curta réplica do diálogo cotidiano (com a diversidade que este pode apresentar conforme os temas, as situações e a composição de seus protagonistas) [...]” (p. 281).

A própria escrita do MDP buscou romper com essa lógica discursiva de um texto inflexivo e homogêneo. Por se tratar de um material para inspirar os professores, foram mobilizados vários suportes textuais como poesias, músicas, charges, fotografia e outros. A construção da narrativa assumiu um caráter dialógico e plurilinguístico.

Outra discussão que se aproxima desse conceito corresponde à suposta dicotomia entre teoria e prática. No registro abaixo, encontramos algumas narrativas alusivas a essa questão:

[...] A gente poder sistematizar, escrever sobre isso, isso é muito formativo P7. E, assim, tirando o professor daquela posição de apenas receptor de teorias, mas um construtor também, né, Gramsci vai chamar de intelectual orgânico, de ele pensar a própria prática, poder produzir, dar visibilidade a essa produção para ele ocupar o lugar de poder da escrita. Não ficar como um mero agente consumidor das teorias [...] (F2).

Oh Formador 2, é engraçado que você fala isso porque por muito tempo eu fiquei nessa ideia de que existe uma grande distância e que teoria é uma coisa e a prática é outra. Só que se você pensar, você vai pegar isso aqui e encaixar lá no que você faz né. E na verdade a gente faz o contrário, a gente pega a prática e a teoria ali do que a gente vem fazendo. Então eu acredito que eu estou nesse caminho também da formação (P12).

Esse contato que a gente na formação de dialogar com a teoria, eu sempre falo com a Formadora 13, eu gosto muito de assumir essa identidade porque lá na escola eu sou a intelectual. Mas claro, existe um momento que a gente tem que dialogar com alguém, seja com o colega, ou a gente vai à teoria (F9) (Diário de campo, 05/10/2019).

Se entendermos que são possíveis novos discursos sobre e com a prática, os processos de formação continuada podem colaborar na construção dialética da práxis. Nóvoa (2009) afirma que “a formação de professores deve assumir uma forte componente práxica, centrada na aprendizagem dos alunos e no estudo de casos concretos, tendo como referência o trabalho escolar” (p. 32). Logo, as formas de registro e as experiências de formação de professores necessitam assumir um protagonismo compartilhado e dialógico, “[...] instituir as práticas profissionais como lugar de reflexão e de formação” (Nóvoa, 2009, p. 33).

Para esse autor, a formação com professores exige que se substitua a concepção técnica do trabalho docente, por perspectivas do professor como autor e artífice dos seus saberesfazeres; que se rompa com abordagens formativas que tenham por princípio uma separação entre os “lugares da prática” e os “lugares da teoria” e adotem-se programas articulados entre o “espaço escolar” e o “espaço universitário” (Nóvoa, 2007).

3.3. A ESCRITA NO PROCESSO DE FORMAÇÃO DOS PROFESSORES: A PRODUÇÃO DO MATERIAL DIDÁTICO PEDAGÓGICO

O MDP foi escrito a várias mãos e traz diferentes falas no seu interior. Encontramos a fala da universidade e do cotidiano escolar; as narrativas das (im)possibilidades da Educação Física na Educação Infantil, presente em periódicos da área; a representatividade da diferença que constitui a sociedade e vozes militantes. Reafirma-se, dessa forma, a diversidade curricular da Educação Infantil e a necessidade de construirmos um “mundo polifônico”, no respeito à pluralidade de ideias, como nos ensina Bakhtin (1997, 2006) sobre o excedente de visão e o dialogismo, no qual a alteridade nos constitui.

O excedente de visão é parte da lógica de pensar alteridade em Bakhtin. O outro nos constitui e nos faz ver muita coisa que, por vezes, nós não percebemos. O conceito de alteridade na formação tem a ver com essa relação com o sistema, essa relação com o outro, com sujeito e com a própria formação. Esses conceitos são importantes porque nos humanizam, visto que, numa relação colaborativa, assumindo-se essa horizontalidade na relação, há uma relação de reciprocidade de ser inquirido. A Pesquisa-ação se caracteriza pelo processo formativo de todos os participantes, nessa alteridade e no compartilhamento das ações coletivas.

Bakhtin (1997) afirma que “o ato humano é um texto potencial e não pode ser compreendido [...] fora do contexto dialógico de seu tempo (em que figura como réplica, posição de sentido, sistema de motivação)” (p. 335). Entendemos que o conceito de diálogo em Bakhtin se estende para além de uma comunicação interpessoal, uma vez que “a relação dialógica é uma relação (de sentido) que se estabelece entre enunciados na comunicação verbal [...]” (Bakhtin, 1997, p. 346). Dessa forma, o dialogismo se estabelece em diferentes contextos, seja com os outros trabalhos científicos, com os professores, com a formação ou com a universidade.

O produto final da formação reserva esse caráter dialógico, uma vez que traz as experiências dos professores e professoras de Educação Física na Educação Infantil, da regência de sala dessa etapa, de acadêmicos de graduação e pós-graduação em Educação Física e professores e professoras universitários. Houve a efetivação de uma relação colaborativa e um processo de escrita compartilhada realizada em diferentes momentos da formação e produção do MDP. Os temas dialogados nesse processo também reservam múltiplas vozes relacionadas às questões ambientais e sustentabilidade, às questões de gênero e étnico-raciais e das infâncias.

O processo de acompanhamento dos cursistas exigiu responsabilidade e diálogo na formação desde a sua gênese. Toda a equipe formadora colaborou nas ações de planejamento, consultoria e acompanhamento das atividades desenvolvidas na formação continuada. É importante pontuar que participaram da equipe formadora: cinco doutores, cinco doutorandos, uma mestra e um mestrando. No exercício do acompanhamento do curso, eles produziram relatórios das atividades escritas das Unidades I e II, dialogaram com os cursistas, motivaram para a continuidade dos participantes, acompanharam as produções para o seminário, participaram das reuniões de orientação individualizada no NAIF e auxiliaram a atender a demanda do texto para compor o MDP.

A narrativa a seguir permite observar as operações dialógicas dos sujeitos e o par oralidade e escrita nesse movimento de escuta atenta dos professores e apoio na transposição de possíveis barreiras:

Boa noite pessoal. Vamos manter o diálogo e buscar alternativas para seguir com a participação de todos. Sabemos das dificuldades, mas nossa formação tem por princípio o diálogo. Vamos adiante. Tmj (F1).

Bom dia! Infelizmente também não consegui realizar a tarefa desta vez, me desculpem. Será que consigo prosseguir no curso? Obrigada (P4).

Vamos avaliar as devolutivas e buscar soluções para que possamos seguir juntos [...]. (F1).

Bom dia! Sempre acreditei que há uma diferença grande em quem dedica seu tempo aos estudos em contrapartida a quem se dedica ao trabalho... A dificuldade é enorme em termos de tempo para trabalhar e estudar. Estou tentando como meus colegas (P7).

Bom dia! Estou à disposição, P7. (F13)

[...] Todos nós estamos, de alguma forma, sobrecarregados. Por isso a formação é um convite a buscarmos modos de conjugar trabalho e estudo como ações integradas, teoria e prática interdependentes (F1).

Verdade. Com a formação tenho vencido essas barreiras, mas não é fácil. Quando posto a atividade penso que poderia ter feito melhor, mas depois tenho a certeza de que fiz o possível rsrs (P12).

[...]

Com certeza muda, já estou com outras visões sobre vários assuntos, agradeço a cada comentário, estou fazendo muitos sacrifícios porque acredito que sempre somos favorecidos com o estudo. Mas não é nada facilllll. Vamos juntos sem desistir (P7) (Registro do WhatsApp, 30/09/2019).

Percebe-se aqui essa dimensão da prática, do cotidiano, do homem ordinário, que é uma dimensão mais política, nesse processo de valorização e visibilidade do professor. Até pouco tempo atrás, os modelos de formação consideravam as ações do cotidiano escolar como repetição ou mesmice e nessa experiência buscamos evidenciar a potência que há nessas práticas. O par oralidade e escrita esteve continuamente fortalecendo a dimensão política dessa formação. Havia uma escuta atenta ao cursista, alguém interessado nesses sujeitos, dando visibilidade ao homem ordinário/professor.

No processo de produção do MDP, predominou a escrita colaborativa. Todos os envolvidos na formação, cursistas e formadores, contribuíram com a elaboração do produto final (Material didático-pedagógico) mediante a leitura e produção de textos, compartilhamento das experiências com a Educação Infantil e a avaliação processual das etapas de composição.

Certeau (2020) nos inspira a pensar sobre os diálogos realizados durante a formação, do par oralidade e escrita, no sentido de que os tutores e formadores tentaram desmistificar, desconstruir o tipo de escrita do MDP, que “não é uma escrita acadêmica”. Trata-se de uma escrita produzida nessa relação colaborativa, na escuta sensível, no sentido de ouvir, de acolher, de ter sensibilidade de ouvir o outro, das suas dificuldades, das suas angústias, e nesse processo se colocar como parceiro de escrita.

Quando Certeau (2020) aborda o par oralidade e escrita, ele cuida da tradição oral e de que forma o processo escriturário alterou essa relação, valorizando-se cada vez mais o texto escrito. Ele traz esse contexto, cuja tradição oral é invalidada quando a escrita ocupa o cenário e assume essa função da transmissão do saber, do conhecimento e da história. O que passa a ter valor não é mais a tradição oral, mas o que está escrito. No processo formativo, a escrita foi valorizada a partir da oralidade, do cotidiano e daquilo que o professor verbalizava no movimento de superar essa dicotomia. Esse processo ocorreu via grupo de WhatsApp e nos encontros presenciais, evidenciado nas práticas de escrita do MDP.

4. CONSIDERAÇÕES FINAIS

Na análise da formação continuada com professores da Educação Infantil por meio das práticas de escrita, evidencia-se a pertinência da pesquisa-ação, tendo em vista a produção de conhecimento que aproxima o campo acadêmico dos cotidianos da Educação Infantil.

Ao nos questionarmos se a escrita colaborativa de um MDP contribuiria para a formação com professores, constatamos que esse processo autoral aproxima os docentes das dimensões política e emancipatória da escrita. Ao serem convidados a produzir um material em parceria com a universidade, assumimos um tipo de escrita “reflexiva”, na escuta dos professores sobre suas práticas cotidianas e que se reconhecessem como autores e produtores de conhecimento, distanciando-nos de um modelo burocrático.

Esse processo da escrita reflexiva possibilitou ao professor pensar sobre a própria prática e projetar novas perspectivas pedagógicas em diálogo com a literatura e a legislação. A formação buscou romper com um modelo hegemônico, do especialista à frente da formação, explicando o quê e como fazer ou “o que é o certo”, como se os professores não tivessem nada para compartilhar. As experiências e discussões contempladas no MDP evidenciam a diversidade de práticas nos cotidianos, servindo de inspiração para os demais professores da rede e comunidade científica.

Operar com os conceitos bakhtinianos ajuda a pensar uma Educação Física polifônica e heteroglóssica, em que a multiplicidade de vozes compõe identidades plurais. Nesse sentido, os diferentes discursos, os múltiplos contextos de intervenção e seus objetos de interesse são compostos por diferentes vozes que podem se expressar e manifestar seus pontos de vistas a partir do excedente de visão. Ou seja, o outro complementa e amplia as possibilidades de compreensão. Espera-se que professores e pesquisadores ocupem esse lugar de fala no cenário social.

A memória de futuro nos atualiza sobre o inacabamento humano, de que o futuro não está dado a priori, mas que são nossas ações pautadas nas experiências passadas e presentes que nos projetam para um devir com múltiplos arranjos e diferentes desfechos. O planejamento, o desejo, a expectativa e a prospecção pertencem ao processo individual que se projeta e efetiva-se no coletivo, uma vez que as ações ocorrem em colaboração ou dialogicamente. A formação continuada com professores de Educação Física se mostrou como o encontro de vários desejos, momentos festivos de muitos aprendizados, na alegria dos diálogos, na construção de uma Educação Infantil comprometida com as infâncias e a possibilidade do novo, na coexistência das diferenças e da diversidade.

As apropriações de conceitos da formação relacionados à concepção de infância, as especificidades da Educação Física, a dinâmica curricular, o diálogo com a cidade e o trabalho com os diferentes grupos etários foram incorporados na escrita do MDP, mas também fazem parte dos cotidianos dos professores da Educação Infantil. Eles fazem parte das suas dinâmicas de trabalho e colaboram com a transformação da prática. Entendemos a Educação Física integrada à dinâmica curricular dessa etapa da Educação Básica, pertencente ao currículo e diretrizes da rede de Vitória (Brasil), em diálogo com as outras linguagens e áreas de conhecimento.

A dicotomia entre teoria e prática faz parte do processo histórico das experiências de formação continuada de professores. No enfrentamento dessa questão e na compreensão de que ambas se complementam e são interdependentes, buscamos a reflexão sobre a própria prática em diálogo com autores, com a produção acadêmica nessa relação dialógica e dialética, entre teoria e prática. Essa formação pode ser considerada uma inversão epistemológica, uma vez que não se tratava do movimento da teoria para a prática, mas a prática se constitui como ponto de partida da reflexão, dialogando com a teoria e voltando para prática, considerada o ponto de partida e de chegada desse diálogo com a teoria.

O processo colaborativo ocorreu em constante diálogo entre Universidade e Educação Básica, com permanente interação entre cursistas via grupo de mensagens no aplicativo WhatsApp. Essa ferramenta de comunicação se apresentou como um recurso potente para a manutenção dos contatos entre a equipe formadora e os cursistas, mas, também, como um canal de comunicação aberto entre os professores em formação. As trocas de experiências, a partir do compartilhamento de fotos e vídeos das práticas cotidianas em curso, foi um movimento que estreitou as relações entre os envolvidos no processo formativo. Nesse caso, essas relações não ficaram circunscritas às atividades formais da formação continuada.

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1 A equipe preceptora corresponde aos membros do Núcleo de Estudos com as Infâncias e seus Fazeres (NAIF), um grupo de pesquisa do Centro de Educação Física e Desportos (CEFD), da Universidade Federal do Espírito Santo (UFES), Brasil.

2Sistema de Informação da Extensão (SIEX) para acompanhamento dos projetos submetidos à Pró-reitoria de Extensão (ProEx) da UFES. Este sistema funciona apenas para consulta de dados cadastrados antes da implantação do atual portal de projetos da referida instituição.

3Segundo Oliveira (2017), “[...] do ponto de vista formativo, as tecnologias móveis podem proporcionar contextos de aprendizagem que favoreçam o pensamento reflexivo e de autoria, destacando novas dimensões de interação em rede [...]” (p. 219).

4O termo indica a junção e interdependência entre saber e fazer, diferente daquele aprendido na modernidade, especialmente, e não só, com a ciência. Há modos diferentes e variados de fazer/pensar nas operações e maneiras de fazer dos praticantes em seus cotidianos, ou seja, mistura-se o agir, dizer, criar e lembrar (Alves, 2010).

Recebido: 15 de Maio de 2021; Aceito: 15 de Novembro de 2022; Publicado: 26 de Junho de 2023

Toda a correspondência relativa a este artigo deve ser enviada para: Alexandre Freitas Marchiori Endereço postal: Av. Fernando Ferrari, 514, Campus Universitário, Goiabeiras - Vitória - ES, CEP: 29075-810. E-mail: alexandremarchiori@yahoo.com

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