1. Introdução
Quando foi publicada a Biografia de Almeida Garrett, em 1844, consensualmente assumida como autobiografia, esclareceu-se que o livro Da Educação: Cartas Dirigidas a Uma Senhora Ilustre Encarregada da Instituição de Uma Jovem Princesa (1829)1 correspondia ao primeiro volume de um conjunto de três que perfariam um tratado completo assente em conceções pedagógicas iluministas, nomeadamente de Rousseau, indispensáveis a um país a reformar pela cartilha da política liberal. Na Biografia (Garrett, 1844), referindo-se a si mesmo como um outro, num jogo de duplicidade entre biógrafo e autobiografado, o escritor e conselheiro do Estado pormenorizava imodestamente que o primeiro volume lhe exigira pesquisa e tempo na teorização e justificava a falha na publicação do segundo e terceiro volumes com o afundamento do navio que os transportava desde os Açores.
Nesse mesmo ano de 1829 apareceu o primeiro volume do Tratado de Educação. Esta obra, filha de longos estudos e profundas meditações, escrita em um estilo, que todos admiram, devia contar de três volumes, e que igualmente se afundaram no Douro na ocasião do cerco. Sabemos também, que o autor tem reproduzido o seu trabalho perdido, refundindo-o por novo método e forma, e que a obra virá a ficar muito mais perfeita do que nos promete essa num primeiro volume, apesar das suas conhecidas excelências. (Garrett, 1844, p. 308)
A passagem selecionada tem o propósito de vincar a diferença entre as Cartas (Garrett, 1829) intencionalmente dirigidas a uma senhora ilustre e as cartas enviadas à filha e insertes no livro Correspondência Familiar, publicado em 2012 sob responsabilidade de Sérgio David. As primeiras não estão depuradas da circunstancialidade histórica, como o próprio subtítulo sugere, e há nelas uma intencionalidade antropológico-política alinhada com Rousseau: um homem novo para uma nova sociedade. A educação é concebida como plataforma onde se opera a mudança de paradigma civilizacional rumo ao progresso. Uma mudança sem radicalismos revolucionários no que toca à estratificação social, nomeadamente de género. Trata-se de uma plataforma experimental que Garrett não faz decorrer da razão ou de uma lei moral orientada para o fim perfectibilista do espírito humano. Em clara oposição ao racionalismo kantiano, escreve: “No físico e na moral não haja ciência verdadeira senão a experimental. Kant e os espiritualistas não disseram por seu lado menos absurdos e coisas ininteligíveis com todos os seus transcendentais e sentimentos” (Garrett, 1829, p. 10)2. É nos ‘absurdos’ e nas ‘coisas ininteligíveis’ que encontra uma razão válida para justificar a recusa em acomodar o pensamento educativo a uma fundamentação filosófica excessivamente dobrada em concetualizações e teorias. Sobrepõe-lhe uma matriz experiencial para a formação do ser humano. Todavia, não se pode deixar de perguntar se tal rejeição opera como desculpa para mitigar a sua incapacidade em sustentar o pensamento pedagógico sobre estacas filosóficas. De facto, Garrett possui um conhecimento geral da filosofia, do qual apenas se serve quando se impõe como indispensável para contextualização do plano prático e utilitário da educação.
De regresso à Biografia (Garrett, 1844), e a propósito das leituras feitas entre os 13 e os 14 anos de idade sob tutela do tio frei Alexandre da Sagrada Família, bispo e poeta arcádico, pode ler-se:
tinha lido nas traduções francesas as obras de Locke, e de Newton, e ousar arrogar-se à dificuldade de Leibniz, e de Kant, lindos por certo em verso, lindíssimos quando os descreve a preta pena de Madame de Staël . . ., mas que, pela minha parte, não sei o que querem dizer, em prosa. (Garrett, 1844, p. 299)
Por volta de 1812 e 1813, o jovem poderia ter tido acesso aos livros de Charles Villers, que dera a conhecer o pensamento kantiano em língua francesa entre 1798 e 1802. Outra possibilidade é o acesso ao 2.º volume de De l’Allemagne (1810-1814), de Madame de Staël, amiga de Villers, onde se resume e comenta o pensamento do filósofo alemão (pp. 369-381) e também o de Leibniz. Fosse qual fosse a via de acesso, teria sido parcial, dadas a idade e a complexidade do assunto. Garrett não compreendeu os princípios fundamentais da filosofia transcendental e, sem cerimónia, fez uma arrumação estereotipada até, pelo menos, à redação da Biografia (1844). O desapreço manifestado em nada destoa com o panorama negativo da receção inicial que o pensamento de Kant teve em Portugal. José Gama (2005), num artigo sobre o assunto, escreve:
As primeiras referências a Kant expressam uma atitude de rejeição e de desapreço da sua filosofia, sem traduzirem um verdadeiro conhecimento da “revolução” que tinha provocado… Como exemplo desta atitude, é sintomática a posição de Silvestre Pinheiro Ferreira, figura de primeiro plano no contexto português da primeira metade do séc. XIX. (p. 391)
As Cartas (Garrett, 1829) seguem à tona na corrente do iluminismo francês, agarradas à noção social de progresso e ao bem-intencionado esforço reformador da educação portuguesa para portugueses. Torna-se evidente que pensar a reforma educativa à luz de um critério estritamente nacional, de tonalidade romântica, inviabiliza a importação completa de qualquer conceção estrangeirada. Restava, pois, a experimentação. Ora, o vínculo entre experimentação e identidade portuguesa mostra como antropologia, política e educação se conjugavam no pensamento de Garrett. Levada a limite, a conjugação dá força à ideia de que é pela educação que os portugueses experimentam a necessidade de realizar-se como portugueses e de viver portuguesmente.
A proposta de experimentação e a conservação da moral tradicional expressam o apego de Garrett a uma identidade nacional que nada incorpora do exterior. Isto somado à crítica a Kant e à abertura a uma política liberal aproxima o pensamento garrettiano do pensamento silvestrino. Uma aproximação sublinhada por Braz Teixeira num texto intitulado “Um Filósofo de Transição: Silvestre Ferreira”. Ao interpretar as práticas liberais intervencionistas ditadas pelo interesse nacional e pela flutuação das circunstâncias como atitude pragmática recorrente em Portugal, Braz Teixeira (2010, p. 10) fixa uma linha de continuidade entre o pensamento de ambos. Tal interpretação revela a ambiência intelectual que embebia a reflexão educativa.
Para se procurar outro ângulo para reconhecimento de um substrato filosófico nos textos de Garrett, pergunta-se: que leituras fez ele, entre os 13 e 14 anos de idade, de Locke? Ou: que restou de estruturante das leituras feitas? Ou: que leituras retomou da adolescência? E há um silêncio incomodativo, pois na justificação da escolha do género epistolar não é mencionado Locke (1693), autor de um conjunto de epístolas endereçadas ao amigo Edward Clarke e inteiramente dedicadas à educação do seu filho e das suas filhas. É viável uma aproximação entre as Cartas (Garrett, 1829) e Some Thoughts Concerning Education (Locke, 1693), atendendo à opção pelo registo epistolar e à subordinação da educação intelectual e física em relação à formação moral. Todavia, nada de explícito ou implícito se encontra. Aliás, generalizando, nas Cartas (Garrett, 1829) faltam interpelações que exprimam a intencionalidade de construir um projeto pedagógico com sustentabilidade filosófica e política. Há uma assepsia que situa a educação experimental numa espécie de grau zero da filosofia.
Garrett não reconhece ecos filosóficos nem segue novidades filosóficas, focando-se na afirmação da sua singularidade de escritor que, com a conhecida mestria no deslizar da pena, pensa pensando a experiência educativa. Ignora injustamente escritores portugueses epistolares, como Luís António Verney - Verdadeiro Método de Estudar (1746) - e António Ribeiro Sanches - Cartas Sobre a Educação da Mocidade (1760/1922). No lugar de abordagens de pendor filosófico ou de incursões pela literatura pedagógica nacional, deixa sobressair a sua condição de escritor a quem se impõe um estímulo genuinamente político: reformar a educação portuguesa para portugueses. Garrett cria, assim, uma dupla dimensão autoral: por um lado, é um pedagogo inovador que manifesta disponibilidade reformista e apresenta o seu contributo - as Cartas (1829) - para revitalizar a educação nacional; por outro, é um talentoso escritor que trabalha habilmente a educação em registo epistolar, entabulando diálogo político ao mais alto nível social. Em qualquer das dimensões, Garrett tem um perfil conservador. Ao declarar que segue o estilo tomado por Francisco Manuel de Melo em Guia de Casados (1651/1971), cujo conteúdo misógino está em dissonância com um tratado de educação para os dois sexos e, em particular, para uma futura rainha, o seu conservadorismo ganha evidência. Pode-se admitir que tenha abstraído o estilo do conteúdo, mas a marca misógina do texto é tão forte que não neutraliza ideologicamente o recurso ao estilo. Entre as muitas passagens célebres do Guia de Casados, a frase do recoveiro é inesquecível: “Deus o guardasse da mula que faz ‘him’, e da mulher que sabe latim” (Melo, 1971, p. 95). Esta plasmagem imagética entre mulher e mula é um exemplo bem eloquente do princípio de exclusão e, uma vez que as Cartas (Garrett, 1829) tinham em vista a educação de uma futura rainha, Garrett deveria ter prestado atenção à assimetria de género. É certo, e voltamos ao argumento já usado, que a referência a Guia de Casados (Melo, 1971, p. 95) se justifica apenas pelo estilo singelo e desataviado que se afigura, por isso mesmo, mais ajustado com a naturalidade pouco dogmática “de um autor despresumido de si” (Garrett, 1829, p. i). Mas a justificação não terá mitigado as resistências ao seu esforço de afirmação pedagógica junto da elite política.
Garrett não só segue o hábil talento de Francisco Manuel de Melo (1971) em fazer deslizar a pena, como também o pragmatismo comum. A metodologia da experimentação, desprendida da conceptualização estrangeira, está próxima do conhecimento de experiência feito, que inspira Francisco Manuel de Melo (1971) e que surge como expressão própria do nacional espírito pragmático, usando, uma vez mais, a caracterização feita por Braz Teixeira (2010, p. 10) ao modo de ser português. Note-se que a explicação metodológica dada por Garrett (1829) é ilustrativa desta deriva mental:
Do que li, do que ouvi, do que estudei, do que refleti em mim e nos outros, do que observei nos meus empregados e de resultados obtidos de diversas educações, formei para mim um sistema, um encadeamento de ideias e princípios. (p. 6)
A frase é de longe mais trabalhada que a de Francisco Manuel de Melo (1971), em quem se inspira: “Vi, li, ouvi” (p. 11). Muito próxima da frase “veni, vidi, vici” atribuída a Júlio César, há nela um certo ativismo e imediatismo, bem como uma certa satisfação e sinceridade que cunha singularmente a obra. E a isto Garrett não terá sido indiferente no momento de decidir pelo género de redação do tratado. Na sua frase há uma sequência cumulativa de verbos performativos - ler, ouvir, estudar, refletir, observar - que confluem numa construção teórica: “formei para mim um sistema, um encadeamento de ideias e princípios” (Garrett, 1829, p. 6). A explicação é ponto de encontro do racional com o experimental e fundação do seu sistema não dogmático. Não obstante, da expressão “formei para mim” não se deduz validade universal para o ‘sistema’, não se evidencia o rigor do raciocínio coerente e consistente exigido à fixação de ideias e princípios, nem se pressupõe a ponderação das consequências para seguir um caminho seguro. De facto, nada disto se encontra nas Cartas (Garrett, 1829) e a evocação de Guia de Casados, de Manuel Francisco de Melo (1971), epístola escrita de uma só penada quando estava em prisão devido a aventuras amorosas, não abona a seu favor nem pelo apressado da escrita nem pelo preconceito do conteúdo.
Dispensadas de fundamentação filosófica e valorativas da experiência crua, as Cartas (Garrett, 1829) devem ser integradas no ideário político liberal de Garrett, afinado com a conceção oitocentista de progresso, e igualmente articuladas com outras camadas do seu registo escrito e outras frentes do seu reformismo educativo. Basta tomar em consideração o seu investimento na valorização da cultura popular a partir da década de 1820. É sobejamente conhecida a sua intencionalidade e o seu ativismo cívico e político, pelo que nos dispensamos de avançar dados.
Voltando, então, à epistolografia. Garrett sabia que o formato carta tinha vantagens em relação a outos géneros, sobretudo pela sua condutividade pedagógica. Não é de menor interesse admitir uma deriva da intencionalidade pedagógica para a pretensão a um lugar na administração governamental, sendo para tal necessário entrar na rede de influência do poder. Neste desiderato, as Cartas (Garrett, 1829) funcionariam como cartão de visita político, chamando particular atenção para o círculo ao qual pertencia a pessoa a quem se dirigia: a marquesa de Palmela, educadora da rainha de Portugal. Apesar de se tratar de uma correspondência forjada com intencionalidade pedagógico-política, as características comuns ao epistolário de clássicos e renascentistas (Fumaroli, 1978) são evidentes: aproximação ao leitor; domínio discursivo do aconselhamento; exposição convincente e motivadora. O efeito psicológico destes elementos era tanto mais conseguido quanto maior a criatividade literária e mais alto o nível de elegância retórica, apanágio de Garrett.
O contraste entre estas Cartas (Garrett, 1829) e as missivas destinadas a Maria Adelaide, e que cumpriam a função de dialogar in absentia, não é mitigável. As primeiras resultam da mobilização de um género literário (epistolar) para a instância das ideias pedagógicas e para o terreiro da política, algo com tradição na cultura ocidental e que em Portugal encontra exemplo, como houve oportunidade de referir, em Verney (1746) e Ribeiro Sanches (1922). As segundas são documentos despreocupados com a estrutura típica das cartas - salutatio, exordium, narratio, petitio, conclusio -, valorizados pela sua naturalidade, domesticidade e amorosidade, o que, por vezes, as torna tão ‘ridículas’ como as cartas de amor referidas por Fernando Pessoa (1944). Conhece-se correspondência de mães e pais a filhos e filhas; alguma cuidadosamente elaborada, como a de Mme de Sévigné a sua filha, Mme de Grignan, escritas no século XVII e publicadas no seguinte (1754/2017). Mas, num plano secundário, o que distingue as Cartas (Garrett, 1829) das cartas enviadas a Maria Adelaide, no período em que esta se encontrava como porcionista das Salésias, precisamente entre novembro de 1853 e 1854, ou seja, entre os 12 e os 13 anos de idade, e que provoca surpresa, é a ausência de ornato literário, o que seria de esperar de um escritor-cultor do fluxo verbal. Num primeiro plano, distingue-as o facto de nelas dominar a preocupação educativa, destacando-se a ressonância de uma voz imperativa: o dever de educar. Este é o foco epistolar. Por isso, ao contrário das Cartas (Garrett, 1829), não se pode afirmar que o estilo esteja ao serviço da educação, mas, sim, que a educação se serve do suporte material ‘carta’. Esta diferença reforça a ideia da utilidade da correspondência para compreensão da mentalidade educadora de oitocentos. Considerá-la como material auxiliar ou material inventariado não a menoriza. Ora, é à luz deste pressuposto que se avança para a leitura das 40 cartas, as quais entreabrem a esfera do privado.
Durante muito tempo, a correspondência entre pai e filha permaneceu fora do conhecimento público, na Biblioteca Geral da Universidade de Coimbra, entrando na classificação das cartas domésticas, estabelecida por Francisco Rodrigues Lobo (1992, p. 55) no seu manual epistolográfico. Sem pujança estilística, elas revelam a transição do pensamento educativo de Garrett do plano teórico para o prático e trazem à evidência as preocupações educativas miúdas e comuns do cenário doméstico.
2. “Minha adorada filha”. A exceção que força à decisão de internamento
Na primeira carta de Garrett à filha3, entrada no recolhimento das Salésias no início de novembro de 1853, com 12 anos de idade, perpassa sofrimento e domina uma suspirativa saudade. Não é um efeito literário que Garrett, o introdutor do romantismo em Portugal, busca conseguir para exprimir o pathos da ausência, mas o sentido abalo existencial de quem toma a contragosto uma decisão encimada pelo imperativo do dever paterno. Pode-se ler:
Crê, filha, que as infinitas saudades que tenho de ti, que a falta que me faz a tua companhia - e que é um grande sacrifício que faço a Deus e a ti -, só com estas notícias [a carta recebida da filha] podem mitigar-se. Tu nem sabes, filha da minha alma, que eu detesto exagerações; digo-te a verdade - que é enorme e que só Deus sabe o sacrifício que faço em me separar de ti. Mas as lágrimas que tenho chorado todas são de esperança e de confiança em Deus e de gratidão por me ter dado força para cumprir o que em consciência intendo que era meu dever. (Garrett, 2012, Carta 1 [06/11/1853], pp. 277-278)
Pai amoroso, sustenta a sua decisão numa ética da responsabilidade educativa: compete-lhe proporcionar a melhor formação à sua única e ‘adorada filha’. Para tal, escolhe o convento-pensionista das visitandinas, mais conhecidas em Portugal por Salésias, nome tomado de S. Francisco de Sales, um dos fundadores da Ordem da Visitação de Santa Maria. Que critérios terão sido determinantes na escolha? Que se conhece da atividade educativa dessa instituição religiosa?
Dos elementos biográficos fornecidos por Henrique Lima, no livro A Filha de Garrett (1947), destacamos a referência à passagem de Maria Adelaide pelas Salésias, instituição para onde foram endereçadas as 40 cartas que se conhecem. Henrique Lima (1947) afirma tratar-se de um colégio-pensionato com prestígio pedagógico. Mas que substanciava esse prestígio distintivo na Lisboa de oitocentos? Que distinguia o colégio das Salésias do colégio das Ursulinas (Rocha, 1995)?
A referência ao colégio-pensionato das Salésias aviva o problema do desconhecimento dos fundamentos pedagógicos e das práticas educativas das instituições de ensino em Portugal, sejam públicas ou privadas, sejam religiosas ou não. Falta uma publicação de alinhamento diacrónico e de visão sistemática sobre tais instituições, não obstante a dinâmica investigativa e o investimento editorial coordenado por António Nóvoa na área da História da Educação. Encontra-se material avulso de distinto calibre textual (teses, artigos, verbetes, notas de texto) e de diverso vínculo disciplinar (Literatura, História, Filosofia, Sociologia, Teologia e outros), mas nada entretecido historicamente quer com os fundamentos filosóficos e religiosos, quer com as determinantes político-sociais e económicas. Em relação ao colégio-pensionato das Salésias, há que buscar informação no Livro 5.º - “Do Seminário das Meninas. Pensionado” - da História da Visitação, manuscrito depositado no arquivo do Mosteiro da Visitação, na Batalha. A análise de elementos paratextuais inclina a autoria para Teodoro de Almeida (1722-1804), o oratoriano fundador, e fixa a sua redação por volta de 1793. Zulmira Santos e Helena Queirós (2012) classificam o livro como “uma brevíssima ‘ratio studiorum’” (p. 62) em conformidade ao carisma da Ordem. De facto, o plano educativo deste pensionato que foi o “primeiro estabelecimento que em Portugal se dedicou expressamente à educação de meninas nobres” (Santos, 2002, p. 76) apresenta-se pormenorizado em todo tipo de atividades e articulado por idades. No momento em que Teodoro de Almeida redigia o manuscrito das Salésias, registavam-se 41 porcionistas, todas provenientes da aristocracia e com idades variadas, sendo que a permanência ia dos dois aos 15 anos. Ora, a exclusividade social e a racionalização do plano do curso constituem critérios nada despiciendos a Garrett para escolha da instituição.
Estas informações - nível social e acolhimento de crianças de pouca idade - podem justificar a opção do visconde Garrett, que em 1851 fora agraciado com o título nobiliárquico. Outras razões se devem ter imposto, como o equilíbrio entre as aprendizagens (intelectuais, religiosas e de género), o cultivo de modos elegantes e naturais, quer na apresentação pessoal quer na convivialidade pública, a atenção à moralidade dos sentimentos e o cuidado posto no ambiente relacional. Tudo isto representa o quanto basta a uma educação ordenada ao horizonte da vida aristocrática, insistente na gestão do uso pessoal do tempo, inibidora da ociosidade e promotora de uma civilidade discreta. Em tudo isto reverbera a imagem que Garrett, anos antes, deixara sobre educação feminina: “assente nos bons princípios de religião, de moral, e de sãos elementos de instrução” (Da Educação, 1829, p. 182). Há aqui uma afinidade com as Cartas (Garrett, 1829).
O plano de estudos, da responsabilidade das mestras, encontra-se resumido na seguinte passagem, retirada do Livro 5.º4:
Capítulo IIº: Da educação - Como já o número de meninas é bastante, já se pode ver qual é a sua educação. Ensinam-lhes a ler, escrever, contar e a religião. Além disso, se lhes ensina a gramática portuguesa, a qual lhes serve de muito e de porta para as gramáticas francesa, italiana, latina, inglesa, por que todas estas línguas se lhes ensinam por princípio, se as querem aprender. Também se lhes ensina a coser, meia, renda e bordar de branco e de oiro e matizes; e ultimamente solfa, cravo e geografia. Mas o que mais admira nestas meninas, ainda nas de mui pequena idade, é a gravidade e modéstia em todos os atos públicos, fazendo-se objeto da admiração de todos. (Santos & Queirós, 2012, p. 72)
Depois acrescenta-se:
O padre Almeida compôs para elas um resumo de geografia local em Português e em Francês, que muito lhes facilitou a inteligência da geografia, sendo sua mestra uma religiosa destinada para isso. As que, pela sua mui pequena idade, não podiam aprender o Francês com lições regulares, aprendiam por brinco e galanteria e falavam meramente pelo uso de ouvir falar as outras. (Santos & Queirós, 2012, p. 82)
O primeiro livro mencionado intitula-se Methodo Para a Geografia, Oferecido às Religiosas da Visitação de Santa Maria de Lisboa (Almeida, 1787) e o segundo foi composto pela Irmã Francisca de Chantal Álvares, chamada Ana Inácia do Coração de Jesus antes de se tornar religiosa visitandina: Breve Compendio de Grammatica Portugueza Para o Uso das Meninas que se Educaõ no Mosteiro da Vizitaçaõ de Lisboa (1786). Trata-se simultaneamente da primeira gramática escrita por uma mulher e da primeira gramática destinada ao ensino feminino, cujo interesse histórico-cultural é indiscutível. Provavelmente a gramática não serviu a Maria Adelaide, pois aos 12 anos já deveria ter adquirido seguro domínio do português. Isto não retira pertinência à indicação e há que entendê-la no propósito geral de buscar razões justificadoras da decisão de internamento. A redação de uma gramática mostra como as Salésias não se eximiam ao cuidado para com a língua portuguesa, o que é, logo à partida, garante de qualidade metodológica e pedagógica. Algo ao agradado de Garrett. De resto, a valorização geral da competência linguística (francês, inglês, italiano, latim) também terá ponderado, sendo ele homem dado à convivialidade e viajado, fosse por força dos exílios, fosse por nomeação de cargos políticos. Atendendo às cartas, é admissível que se tenha revisto na moral que examina e educa os sentimentos, guiando-se pela razão e religião.
A tónica racional e afetiva da relação pedagógica cultivada pelas Salésias, em obediência ao carisma da Ordem que se baseava na profunda humildade para com Deus e na grande suavidade para com o próximo, está expressa numa passagem do Livro 5.º sobre os castigos.
Dos Castigos - Como estas meninas são nobres e se criam com ânimos nobres, não há castigo nenhum corporal para seus crimes e todos são de mortificar o gosto ou as paixões. Os mais fortes são de privá-las de brincarem com as outras nos dias de sueto. Isto é se falamos das mais pequenas. Outro castigo mais ligeiro é fazê-las deitar na cama, logo que acabam de cear, privando-as daquela hora de recreio com as suas companheiras de que elas fazem muito caso. (Santos & Queirós, 2012, p. 73)
A cordialidade e racionalidade dirigiam a atuação corretiva. Para um pai carinhoso, como Garrett manifesta ser na correspondência dirigida à sua ‘adorada filha’, este critério não deverá ter escapado no momento da decisão. Racionalizar e ‘maternalizar’ os castigos evita o errático, o volúvel, o disruptivo e a violência das práticas punitivas. O ânimo e a sensatez na modelação do carácter não devem ter sido contrários ao zelo paternal do escritor.
Outro critério: a matriz francesa do plano educativo das Salésias ou a modernidade do plano no contexto da sociedade portuguesa, onde o ensino privado estava desregulado. A avaliar pelo que escreve numa das cartas, é provável que se tenha sentido incapaz de acompanhar a entrada de uma menina na adolescência, à qual não faltava vontade própria (Garrett, 2012, Carta 3 [s/d], p. 281). Talvez o ‘dever’ a que se referia na primeira carta possa ser interpretado como imperativo para superar constrangimentos de ordem educativa. Há uma passagem significativa, não pelo que revela, mas pelo que deixa pressupor:
Adeus minha filha, amanhã ou depois volto a ver-te, que me custa mais do que pensei que custaria ver-me tão longe de ti. Não era tanto o ano passado, e bem sei porquê; não que te eu tivesse menos amor, nem me fizesses menos falta; mas é que tu tinhas menos juízo, e não tinhas, debaixo da proteção de Deus, mostrado tantas boas qualidades de tua alma que mais me fazem querer-te e precisar de ti. (Garrett, 2012, Carta 34 [30/08/1954], p. 348)
A alusão feita à anulação da polaridade pai-mãe, pois Garrett fora ‘pai e mãe’ por morte precoce da mulher, representa uma exceção do que se lhe afigura natural no plano biológico, consagrador da mãe e distanciador do pai. Quando escreveu o tratado Da Educação, sem antever o seu futuro, deixou claras as exceções quer ao direito inalienável das mulheres educarem os filhos, quer de as meninas serem educadas em colégios. Convictamente, declara que “a mãe é a única educadora, e a ninguém pode, em regra, ceder esse direito e obrigação” (Garrett, 1829, p. xx). E admite: “é forçoso fazer exceções à regra geral” (Garrett, 1829, p. xxii). A morte da mãe era uma delas. Foi assim que a exceção geral tocou o particular da sua vida e a intensidade dramática colocada nas situações de excecionalidade se transferiu para si, anos mais tarde. Foi de forma consciente e consequente com as convicções expressas em Da Educação que Garrett assumiu a exceção, sendo mãe e pai. E foi por reconhecimento dos seus limites paternos, nomeadamente em proporcionar as condições formativas necessárias a uma jovem que entrava na adolescência e que deveria ser preparada para a nubilidade, que internou a filha. A exceção referida que força a ser mãe e pai e que conduz ao internamento não foi, mas parece, um desígnio expresso em Da Educação, convergente da vida pessoal e do pensamento teórico opaco ao futuro pessoal.
3. “Eu não te quero para doutora”: A educação que baste
De acordo com as etapas de desenvolvimento indicadas em Da Educação5 (Garrett, 1829), Maria Adelaide entrara na adolescência quando foi internada nas Salésias, cabendo-lhe uma educação repartida por três categorias: intelectual, moral e física. Atendendo ao género, soma-se a educação manual. A correspondência mostra como o pai, cujo estado de saúde piorava irreversivelmente, se mantinha atento à educação da filha, vigiando todo o processo de aprendizagem. As cartas ilustram a fidelidade de Garrett a uma razão pedagógica vinculada a variáveis diferenciadoras, pelo que cada âmbito de formação espelha graus de diferenciação.
Na educação do corpo não há quase modificação alguma senão a que a diversidade do sexo pode requerer . . . na do coração também algumas pequenas modificações pede o sexo . . .; mas na educação intelectual muitas mais e muitas mais variadas são as diferenças que o sexo, a posição social, a índole, as propensões do educando. (Garrett, 1829, p. 27)
A educação moral ou do coração estende-se a sentimentos, “deveres naturais e da família, da sociedade, da cidade, do Estado, da religião” (Garrett, 1829, p. xiv) e situa o ser humano na zona primordial da existência. Considerada a mais decisiva das educações, invade todas as cartas quer como expressão da vigilância paterna, orientada por uma ética da responsabilidade cuidadora, quer como modo de exprimir esse cuidado amoroso vindo da alma e das entranhas (termos garrettianos), quer, sobretudo, por corresponder à educação originária do ser humano, em particular nas mulheres. É o sentimento que tonifica a atmosfera da vivência e da consciência, ou não fora Garrett um romântico.
Se neste sentido as cartas constituem, no seu todo, um pequeno e precioso documento histórico-literário, na perspetiva humana (‘pedagógica’ também se pode incluir) são um testemunho de relação amorosa sem artificialismos. Lembrando Fernando Pessoa (1944), para quem todas as cartas de amor são ridículas, estas são piegas a escorrerem de mimo. Antes de mais, caracterizam-se, como vimos acima, pelo excesso de comoção: a dor da separação. Uma dor que não se mitiga pelo hábito da separação, nem pelas visitas ao convento e nem pela troca de correspondência. E, no perpassar dessa dor confessada à filha, sobressaem os mimos interpretáveis no contexto duma razão que ordena e integra o afeto e o sentido de proteção. A educação começa pela manifestação da dimensão primigénia do sentir, acolhendo e cuidando do outro, de modo que ele se saiba acolhido e cuidado para também poder acolher e cuidar. Garrett não se inibe, com o coração grande e generoso. Numa escolha ao acaso, encontram-se passagens tocantes:
Querida filha de minha alma - Neste momento recebo a tua cartinha que me deu infinito gosto; e na incerteza de se poderei ir ver-te amanhã, te escrevo já. (Garrett, 2012, Carta 8 [03/01/1854], p. 291)
Minha querida filha, não gostei de te ver o outro dia, e tenho estado triste pensando em que motivo terias de estar de mau humor. . . . nenhum bom filho deve dissimular deles [os pais] os seus próprios desgostos. Ao contrário, é uma prova de amor e gratidão que satisfaz o coração do pai que é o melhor e mais verdadeiro amigo que nunca havemos de ter no mundo. (Garrett, 2012, Carta 14 [05/02/1854], p. 303)
Não te passe nunca pela cabeça a possibilidade de que teu pai desaprova nada que seja razoável e bom, nem que possa contrariar-te em coisa alguma do teu gosto: porque estou certo que não farás gosto senão em coisas boas. (Garrett, 2012, Carta [22/05/1854), p. 331)
Adeus [,] minha filha querida: dize se queres alguma coisa. Ainda te duram os caramelos, ou queres mais? (Garrett, 2012, Carta 39 [s/dia, 1854], p. 357)
Os caramelos são aqui tomados como símbolo do descentramento do ego, constitutivo do afeto paternal e expressão de um comprometimento inteiro que busca sossego no bem-estar do outro. Neste sentido, pode-se falar de uma educação que, para dar aura limpa ao coração, o nutre o coração com afeto. Sem dúvida, uma educação mimada que Garrett parece não querer que retire força às advertências.
Sobre a formação religiosa, que se integra no âmbito da educação moral, surpreendem dois aspetos complementares: um, a convicção da relação humana com Deus presente no plano da vivência; outro, a relação com Deus que a consciência teme e louva. As referências a Deus, encontradas em quase todas as cartas, têm um tom reverente não baforento, insistem na petição de virtude sem evocação de interesses egoístas, enfim, revelam em Garrett uma formação cristã permanecente a Deus e na qual educa a filha sem preocupações metafísicas inquietantes. Numa carta, é evidente a prioridade que a educação religiosa ganha em relação à educação intelectual: “Aplica-te, filha; mas sobretudo forma a tua alma, e sê boa e cristã” (Garrett, 2012, Carta 1 [06/11/1853], p. 278). Em outra carta, despede-se nestes termos: “Adeus, estuda e teme a Deus, e adora a verdade” (Garrett, 2012, Carta 6 [21/12/1953], p. 287). Como em tudo, acompanha a filha nas celebrações do colégio que pontuam no calendário religioso.
Sobre a educação física, pouco se conhece pela correspondência. Numa carta datada de julho, recomenda à filha que passeie pela cerca do colégio “todo o tempo que to permitirem” (Garrett, 2012, Carta 33 [11/07/1854], p. 345). Em agosto, envia à filha o fato de banho, certo do proveito de saúde que tiraria da ida à praia (Garrett, 2012, Carta 37 [30/08/1854], p. 353)6. E é sempre por associação à saúde que lhe envia carne, peixe e cestos de fruta e legumes. Ora, a escassez de referências ao assunto não significa falta de consideração. Nas Cartas informa ter compilado e simplificado regras gerais de boa higiene, em particular os banhos, e de ginástica, diferenciando-se pouco a pouco em função dos sexos (Garrett, 1829, p. xiv).
A educação manual e a educação musical faziam parte do currículo das Salésias. Sobre a primeira, centrada na prática de bordados e crochet, encontra-se uma nota: “Vão algodões e riscas de crochet e músicas” (Garrett, 2012, Carta 40 [s/d], p. 359). Em duas ocasiões, Garrett refere a compra de pautas7 sem indicação do tipo de instrumento ou do nível de rigor exigido na execução instrumental. Ambas as habilidades, musical e manual, assinalam a importância da aplicação das mãos, capazes de transfigurar algo com emoção, de se ser o que realmente se é e de dar vida estética ao que passa pelas mãos. Nas Cartas, Garrett (1829) classifica tais habilidades em seção separada. Fazem parte do ornato e do comprazimento, sem visar a profissionalização: “gentil ornato da educação nobre ou necessário elemento de toda a educação” (p. xv).
É no plano da educação intelectual, ou do espírito, que se marcam as diferenças em função do sexo, da posição social e, como se encontra nas Cartas, dos “futuros destinos do educando” (Garrett, 1829, p. xiv). Ora, qual o destino de uma menina, filha de um visconde Conselheiro de Estado? Ser “uma Senhora” (Garrett, 2012, Carta 17 [23/02/1954], p. 313). A aprendizagem das línguas é indispensável e a educação intelectual de Maria Adelaide estava aí focada. O pai reforçava a aprendizagem trocando com a filha cartas escritas em inglês, corrigindo-lhe os trabalhos em inglês ou enviando temas para serem traduzidos em inglês. Transcreve-se uma passagem: “Farei daqui em diante o que lembras, que é escrever-te em português o que tu deves traduzir em inglês” (Garrett, 2012, Carta 5 [25/11/1953], p. 284). Nada é dito a respeito do italiano nem do latim. Significa que tais línguas não eram ensinadas ou que Maria Adelaide as conhecia? Não se sabe ao certo, e o que seguramente as cartas dão a conhecer é a sobrevalorização de duas línguas: francês e inglês. Como Maria Adelaide dominava a primeira, o pai insiste na aprendizagem da segunda, apesar da maçada que tal representa para a jovem filha. O escritor apresenta justificação:
Tem paciência, filha da minha alma, com a impertinência de te fazer escrever em inglês: bem sei que é maçada e te há-de custar; mas é indispensável. Eu também tenho mais gosto de te escrever em português . . . . Hoje uma senhora que não fala as duas línguas, francês e inglês, não se acha educada. (Garrett, 2012, Carta 17 [23/02/1954], p. 313)
O estudo das duas línguas não foi uma decisão que priorizasse uma eventual apetência de Maria Adelaide. O argumento que ganha força decisória é o da diferenciação por género e da posição social no quadro de uma sociedade estratificada. Não se trata de educar para se tornar mulher, mas para se tornar ‘uma senhora’, palavra assumida como o absoluto das possibilidades de reconhecimento social. Recordando a frase de abertura que Simone de Beauvoir (1949) coloca no 2.º volume de Le Deuxième Sexe - “On ne naît pas femme: on le devient” (p. 13) -, tornar-se uma senhora decorreria da formação/formatação da identidade humana e este reforço era promovido por um certo tipo de educação. Ironicamente, o salto da estratificação ‘mulher’ para a estratificação ‘senhora’ está dependente da titulação a que se ascende por conclusão do estudo bem-sucedido do francês e do inglês. Pode-se dizer que é pouco e é muito para se merecer plenamente o título de ‘senhora’. É pouco, por nivelar a educação por baixo em relação ao plano de estudos destinado aos homens, com amplitude de matérias e especialidades que profissionalizam; é muito, dado que nem todos os pais investiam na educação das filhas com a firmeza de Garrett e nem estava publicamente assegurado o nível de ensino exigido para tão subido domínio linguístico.
A passagem transcrita mostra como o escritor apurou a diferenciação sexista do Romantismo e Iluminismo de oitocentos, pois o sentido da palavra ‘senhora’ define-se duplamente como espelho e ideal: a imagem do que é uma ‘senhora’ e o desejo de se tornar uma ‘senhora’. Ora, não se inventa uma imagem e cria um desejo sem se inventar um mundo onde tenha sentido aspirar à imagem e viver segundo a imagem. Esse mundo foi construído à luz de um critério genuinamente diferenciador internalizado por Garrett e, por isso, não obstante a máxima dedicação amorosa à filha, ele continuou a nutrir o problema da assimetria de géneros. Daí o rasto de confusão que deixa a leitura das Cartas (Garrett, 1829).
Uma confusão entre intencionalidade e consequência. Em rigor, da intencionalidade educativa deste pai atento à filha nada transparece de mesquinho ou doloso quanto à condição da mulher. É de louvar, até, todo o empenho em verdadeiramente adequar a intencionalidade educativa às decisões tomadas, fosse relativizando as despesas e mitigando a dor da separação, fosse ultrapassando os incómodos da doença para apoiar a filha nos estudos. Todavia, é das consequências que Garrett não se ocupa, pois a idealização do ‘feminino’ parece ser mais forte que a realidade social das mulheres, e a sua natural bondade paterna não discorre para consequências contrárias a essa bondade.
Garrett não esquece os diversos âmbitos de educação, está atento à atmosfera do colégio e vigia continuamente as manifestações de cansaço da filha, que lhe servem de termómetro para as advertências. Daí que alterne apelos à aplicação no estudo e aproveitamento das capacidades de que Maria Adelaide é dotada com apelos à moderação e realização de atividades lúdicas. Vale a pena introduzir aqui esta conhecidíssima passagem:
Não te afadigues com este calor; não te apliques de mais. Eu não te quero para doutora, só desejo que sejas boa, temente a Deus, que tenhas modos de senhora, e que cultives honestamente a inteligência que Deus te deu. (Garrett, 2012, Carta 17 [23/ 02/1954], p. 313)
A carta foi redigida no mês de fevereiro e Maria Adelaide, no momento com 13 anos, queixava-se de dores de cabeça. A indisposição serve para mitigar algumas críticas dirigidas ao escritor e que fazem da frase “Eu não te quero para doutora” o chavão do antifeminismo garrettiano.
Em suma, a intencionalidade reveladora da assimetria de género não é dolosa, não obstante ser consequentemente nociva. Da intencionalidade pedagógica deste pai amoroso nada transparece de mesquinho e subjaz a ideia romântica de dignidade da mulher entre intencionalidade e consequência.
4. Considerações finais
As cartas são pequenas peças testemunhais da autenticidade do pensamento educador, no quadro da mentalidade oitocentista liberal e conservadora. Todas mostram que a educação é a via privilegiada para cuidar dos outros e que a responsabilidade de educar não caduca in absentia. A privação da presença, tão própria da condição humana e tão profundamente exprimida pela saudade, não diminui a intensidade do olhar vigilante que junta numa mesma clave o educar e o cuidar, não inibe as manifestações de amor ainda que ‘ridículas’, nem descontinua o tempo familiar, partilhando a vida doméstica no seu entrelaçadamente do necessário com o fútil e da alegria com a dor. A responsabilidade da educação, no seu estar atento e ser autêntico com o outro, revela-se, através das cartas, como o essencial do pensamento e da dimensão prática de Garrett. Este aspeto tem ressonância na atualidade, em que a ausência dos pais domina de muitos modos.
Na sua vida agitada por ideais, pretensões de ascensão social e infortúnios vários, preenchida pela escrita e pela participação no espaço público-político e com todas as contradições e desacertos, a educação permanece como atividade estruturante dos humanos, complexa, indefinida e inconclusa, que se distingue por estarem uns com os outros em aprendizagem na vida e na cultura. O inegável conservadorismo de Garrett, que lhe retirou flexibilidade para examinar as linhas futuríveis na sua época, não diminuiu a sua confiança na educação. É a confiança que se destaca, e não são os princípios da educabilidade e da perfectibilidade (Rousseau, 1961) que assomam na ideologia da educação doméstica. Da leitura comparada entre as Cartas (Garrett, 1829) e as cartas (Garrett, 2012) sublinham-se as imagens estereotipadas, os planos de estudo e os critérios de estratificação social da educação, mas é a confiança que permanece em ambas como resíduo prenhe de sentido relacional e de esperança.
Finalmente, será de referir que a “educação experimental”, introduzida nas Cartas (Garrett, 1829), ganha significado nas cartas (Garrett, 2012). Concebida como procura do modo de saber educar em consonância com o que significa ‘ser português’ e exigindo que assim se seja, a educação experimental foi deixada sem explicação por Garrett. Está associada à vaguidade da ideia de uma identidade a que se está destinado a que se está destinado a ser, tornando-se necessário para tal a invenção de um plano educacional fundante. Uma ideia subjuntiva que mistura pragmatismo e nacionalismo para alcançar a positividade do método de educar à portuguesa. Algo que parece soar bem ao espírito da época, mas soa indistintamente. Todavia, a ideia de educação experimental acabou por se situar, e ganhar sentido, na esfera doméstica, onde Garrett era ‘pai e mãe’. A educação experimental confrontou-o com o que lhe está subjacente: é perante a necessidade de educar que se educa. Foi o que fez, e assim concretizou, como profecia, o que escreveu.