1. INTRODUÇÃO
O exercício do protagonismo infantojuvenil tem o potencial de ser uma estratégia exitosa para o desenvolvimento da capacidade de ação consciente, responsável, autônoma e reflexiva no mundo. Há mais de uma década, Pires e Branco (2007, 2008) indicaram dois aspectos importantes para a promoção do desenvolvimento das crianças nas escolas por meio do protagonismo: (1) a compreensão das dinâmicas sociais e psicológicas na constituição dos sujeitos e de sua ação no mundo; e (2) a promoção de sua autonomia por meio de atividades que orientem suas ações e a internalização de crenças e valores pró-sociais, conjuntamente com o amadurecimento ético-moral e o desenvolvimento das capacidades de distanciamento psicológico e de autorreflexão.
Sob esse ponto de vista, vamos discorrer sobre o protagonismo na sua condição de significado sociocultural, como valor orientador de práticas, de costumes e de crenças que promoverão as capacidades coletivas e individuais para a efetiva participação de cada indivíduo, no ambiente escolar, de forma autônoma, responsável e articulada com as demais pessoas. Nossa perspectiva sobre o protagonismo o inclui como parte do processo de desenvolvimento da autonomia dos sujeitos e de sua livre expressão, em um ambiente colaborativo, pró-social e seguro (Cabral & Dias, 2019; Pires & Branco, 2007, 2008; Oliveira, 2020; Virgínio, 2018). O protagonismo infantojuvenil, sob a perspectiva de ações proativas e participativas de cada indivíduo, será aqui analisado no contexto de suas diferentes facetas e na multiplicidade de significados e posições que assume na ecologia dos processos de significação e de orientação das ações humanas.
Matusov (2018) explica que a ecologia educacional envolve a emergência de emoções e disposições diversas em meio às relações estabelecidas entre os participantes do contexto educativo. Até mesmo os arranjos de assentos dos alunos podem promover ou dificultar o surgimento de certas interações entre os participantes. Sobre essas influências, nas últimas décadas, o conhecimento acumulado no referencial teórico da Psicologia Cultural (Branco & Valsiner, 2012; Bruner, 1993; Rosa & Valsiner, 2018; Shweder, 2010; Valsiner, 2012, 2014, 2021; Wagoner, 2017; Zittoun, 2019) avançou, o que nos permite aprofundar e detalhar como o protagonismo infantojuvenil pode ser importante para a promoção da paz e para a renúncia voluntária, por parte dos sujeitos, à utilização de meios violentos para a resolução de conflitos.
Ao refletirmos sobre o protagonismo, devemos ter em mente que ainda não existe uma única abordagem, em Psicologia, que seja capaz de prover tratamento teórico sobre todos os aspectos referentes aos fenômenos sociais e biopsicológicos subjacentes à ação humana no mundo real. O conhecimento disponível é eminentemente fragmentado (Dafermos, 2021; Mammen, 2021) e carece de uma abordagem sistêmica e integral. Sobre esse último aspecto, Budwig (2021) argumenta que “existe um momento nas ciências do desenvolvimento para uma abordagem de que os organismos não devem ser estudados como uma série de partes desconectadas” (p. 57). Nesse sentido, a Psicologia Cultural tem mostrado, por meio de diversos estudos, que uma visão integrada e sistêmica do ser humano é muito produtiva para a inteligibilidade dos processos sociais e psicológicos relativos às onto e microgênese da construção de significados e da constituição do próprio sujeito (Branco, 2018; Branco et al., 2020).
Considerando esse cenário, e concordando com a argumentação de Budwig anteriormente apresentada, o nosso objetivo principal é explicitar aspectos que entendemos ser relevantes para a promoção do protagonismo, na qualidade de valor orientador de práticas culturais e pedagógicas na escola a serem empregadas como estratégias para enfrentar a invisibilidade infantojuvenil e alavancar o desenvolvimento das crianças no ambiente escolar, principalmente no que diz respeito à sua capacidade de agir de forma autônoma, responsável e autorreflexiva (Martin & Gillespie, 2010).
Diante da já explicitada inexistência de um único referencial teórico que possa nos prover os elementos teóricos para todos os aspectos relevantes a essa complexa tarefa, vamos articular a Psicologia Cultural e outras abordagens que nos ajudem a entender como as crianças podem se desenvolver como agentes autônomos e responsáveis nos ambientes pelos quais transitam. Este desenvolvimento se dá em meio às suas interações e ao exercício de seus recursos afetivo-semióticos, linguísticos e intersubjetivos, enquanto desenvolvem os variados aspectos de sua constituição como indivíduos (Zittoun & Gillespie, 2016; Zittoun & Valsiner, 2016).
Isso passa pela explicitação de como as mais variadas influências sociais, principalmente derivadas da cultura coletiva, participam desses processos (Valsiner, 2014; Wagoner et al., 2021). Sobre isso, Xu et al. (2021) indicam que as interações humanas ocorrem em um ecossistema cultural no qual tanto o indivíduo quanto seus ambientes podem ser considerados como sistemas abertos, em constante processo de mudança e transformação. O indivíduo em desenvolvimento internaliza seletiva e criativamente a orientação social e externaliza ativamente suas construções afetivo-semióticas sobre o ambiente cultural. Os contextos culturais, sociais e históricos, por sua vez, também passam por processos de mudança provocados pelos mesmos indivíduos que influenciam. Contextos, interações e práticas sociais constituem pré-condições para as ações dos indivíduos e são constantemente alteradas como resultado dessas atividades.
Ainda no âmbito de uma perspectiva sistêmica, é necessário destacar as características humanas que proporcionam e promovem o desenvolvimento sob o ponto de vista do indivíduo, e não somente a partir do social ou coletivo (Zittoun, 2021). É importante, também, caracterizar quem é esse sujeito infantojuvenil, suas potencialidades e as restrições ao seu desenvolvimento que podem ser impostas pela dimensão sociocultural (Martin & Gillespie, 2010). Essa perspectiva sobre os ecossistemas culturais nos permite uma visão mais específica sobre como a cultura coletiva pode canalizar os processos de internalização de símbolos significativos (Gillespie, 2021), em cenários caracterizados por múltiplas possibilidades e perspectivas. Além de enfatizar a sociogênese, entretanto, a abordagem da Psicologia Cultural também valoriza a participação ativa e construtiva dos sujeitos em interação e, assim, fornece um enquadramento para refletirmos sobre como as práticas educacionais e a dinâmica dos posicionamentos dos atores escolares podem vir a promover ou dificultar o desenvolvimento da agência e demais capacidades dos envolvidos.
Para analisar a questão sob uma perspectiva intrapsicológica, vale destacar, aqui, a grande contribuição da Teoria do Self Dialógico (Hermans & Gieser, 2011; Hermans & Hermans-Konopka, 2010; Konopka et al., 2016). Esta teoria nos auxilia na compreensão sobre como os indivíduos, ao longo dos processos de internalização e externalização, se constituem como sujeitos de uma maneira dialógica na relação com outros sociais significativos, imersos em trocas afetivo-simbólicas e em contínua produção de significados acerca de si e do mundo (Branco, 2021; Branco et al., 2020; Freire & Branco, 2016; Valsiner, 2018; Zittoun, 2021). São esses processos interativos e relacionais que permitem ao sujeito perceber, no aqui e agora, os efeitos de suas perspectivas futuras e suas reflexões sobre o passado, em um cenário de distanciamento psicológico de suas experiências ao longo do tempo (Zittoun & Cerchia, 2013; Zittoun & Gillespie, 2016).
2. PSICOLOGIA CULTURAL E DESENVOLVIMENTO HUMANO
A abordagem dialógica e semiótica da Psicologia Cultural parte de alguns pressupostos que foram sendo construídos ao longo das últimas décadas no que diz respeito aos sujeitos, à relevância de suas relações com as outras pessoas e com o mundo (Budwig, 2021; Lopes de Oliveira, 2013). Seu objetivo é promover a inteligibilidade dos fenômenos humanos de maneira inseparável desses contextos e das interações, sob uma ótica processual e relacional (Andacht et al., 2020; Budwig & Alexander, 2021; Chirkov, 2020). Nesse sentido, Budwig e Alexander (2021) argumentam que existem três aspectos relevantes para o entendimento do desenvolvimento humano: (1) a importância do papel do sujeito (agência) no seu desenvolvimento; (2), a centralidade em estudar padrões dinâmicos e únicos no desenvolvimento humano (processo); e (3) a visão do sujeito como um todo estruturado e inseparável de suas relações com o ecossistema cultural (Gamsakhurdia, 2021; Valsiner, 2020).
No que interessa ao protagonismo, Budwig e Alexander (2021) explicam que, em relação ao papel do indivíduo no desenvolvimento, “ao contrário do paradigma mecanicista dividido, o paradigma relacional-desenvolvimental mantém uma visão mais ativa e auto-organizadora” (p. 3) das pessoas, e apoia a visão de que, ao longo do desenvolvimento humano, estas possuem a condição de agentes. A argumentação dos autores é, pois, da maior importância, visto que esta característica (agência) humana situa o sujeito como alguém capaz de agir e de se autogovernar, operando física, afetiva e semioticamente no mundo.
No caso das crianças e adolescentes, é necessário, portanto, destacar que são particularmente ativos. Entretanto, o fato de ser um momento desenvolvimental em que as mudanças biopsicológicas estão rapidamente ocorrendo não significa que essas pessoas sejam incompletas ou devam ser consideradas seres humanos incapazes (Qvortrup, 2017). Devem, sobretudo, ser compreendidos em sua integralidade característica. Entretanto, como será abordado mais adiante, veremos como as concepções culturais de incompletude representam uma grande barreira ao seu pleno desenvolvimento (Qvortrup, 2015, 2017) e, principalmente, ao exercício do protagonismo infantojuvenil.
Todos nós somos seres bioculturais híbridos, com avançadas capacidades psicológicas de operações semióticas, emocionais, de distanciamento e de autodeterminação (Martin & Gillespie, 2010). Essas capacidades continuam a se desenvolver, de maneira muito particular a cada sujeito, ao longo de todo o curso de vida, e em meio às suas interações com os outros e com diversos ambientes, tanto reais quanto imaginados (Zittoun & Glăveanu, 2018). Através do exercício dessas capacidades, os seres humanos conseguem alterar, quantitativa e qualitativamente, o seu próprio desenvolvimento, como resultado das diversas interações que mantêm com o mundo e consigo mesmos, o que vai configurando aquilo que denominamos como o seu Sistema de Self Dialógico (Branco, 2018; 2021).
Sob o ponto de vista do indivíduo, particular atenção devemos ter quanto ao desenvolvimento da capacidade de operação semiótica e linguística, pois é por meio do uso competente dessas capacidades que o sujeito consegue atingir estados cada vez mais avançados de distanciamento, que consiste em refletir sobre si mesmo e sobre suas ações (Glăveanu, 2020). O indivíduo consegue colocar-se em perspectiva ao seu próprio pensamento, como se fosse uma terceira pessoa e, a partir daí, refletir de maneira relativamente autônoma, com base nos elementos semióticos à sua disposição, de acordo com a sua imaginação, e orientado por sua experiência pretérita (Martin & Gillespie, 2010). Ainda, segundo Silva Guimarães (2021), o ambiente sociocultural estrutura um conjunto de tensões em relação às quais somos impactados pelos outros, e que nos tornam, também, responsáveis pelo que fazemos diante das situações vividas em nossas trajetórias.
Sob o ponto de vista social e coletivo, as ações e o desenvolvimento humanos ocorrem em sistemas ecológicos (Budwig, 2021; Dany, 2021; Xu et al., 2021) que afetam o desenvolvimento, direta e indiretamente, por meio de efeitos sobre os indivíduos e sobre as crenças, valores e práticas sociais. Os contextos ecológicos abrangem uma série de relacionamentos, ambientes e estruturas sociais, de maneira que qualquer pessoa sempre participará de, pelo menos, um desses sistemas.
3. COMO A TEIA AFETIVO-SEMIÓTICA PRÉ-ESTABELECIDA PELA CULTURA AFETA A CONSTITUIÇÃO DO SELF?
Quando nascemos, já existe um ambiente simbólico permeado de práticas e valores pré-existente, e que faz parte do ecossistema cultural anteriormente mencionado. No curso de vida, somos nele inseridos e passamos a exercer influências e sermos por ele influenciados.
Assim, para entendermos como o Self se constitui e se desenvolve, é necessário evidenciarmos que existe um processo bidirecional de trocas sujeito-cultura e de construção de significados que depende, entre outros, de três elementos fundamentais: (1) um conjunto pré-existente de símbolos que permitam operações linguísticas avançadas na produção, modificação e compartilhamento de significados (Lopes de Oliveira & Fernandes, 2018); (2) processos interacionais intersubjetivos que proporcionam a aprendizagem, a emergência de trocas e de operações simbólicas (Branco, 2018; Freire, 2018); (3) sujeitos com capacidades, funções e processos psicológicos avançados, tais como memória, pensamento, linguagem, agência, distanciamento, abstração, imaginação, e emoções, entre outros (Martin & Gillespie, 2010).
A utilização de símbolos pré-existentes para a comunicação humana, por exemplo, é um tema que foi inicialmente tratado de forma teórica na Antropologia Cultural do início do séc. XX e que passou a influenciar o pensamento da Psicologia de forma bastante intensa a partir daí. Sob essa ótica antropológica, e influenciado por Boas (1940), Geertz (2008) indica que a cultura é uma teia de significados que os seres humanos teceram para si mesmos. Como habitantes dessa cultura, aprendemos pelo menos um idioma que servirá de principal instrumento para orientar o pensamento e as demais funções psicológicas superiores, e que nos permitirá compartilhar e operar uma intensa troca de significados ao longo de toda a nossa trajetória de vida. Sobre isso, Lopes de Oliveira e Fernandes (2018) explicam que a trajetória de vida é uma unidade psicológica que estabelece vínculos semióticos coesos entre campos distintos de experiências e acontecimentos ao longo do tempo.
No tocante à teia de significados mencionada por Geertz (2008), a perspectiva sociogenética da Psicologia Cultural é compartilhada por diversas abordagens e campos de estudo da Psicologia para explicar a dinâmica pela qual a cultura é apropriada pelos seres humanos (Glăveanu, 2021). A forma como, processualmente, pode se dar a sociogênese, no entanto, varia de acordo com a origem teórico-filosófica do pesquisador, desde um referencial de construcionismo social, no qual há prevalência da cultura coletiva sobre o indivíduo (Brinkmann, 2021), até abordagens construtivistas que enfatizam o papel ativo de cada sujeito tanto nas internalizações quanto na sua capacidade de influir na cultura coletiva por meio de suas externalizações (Xu et al., 2021).
Vale considerar, entretanto, que as pesquisas sobre o psiquismo humano ainda hoje apresentam várias limitações metodológicas, como, por exemplo, o fato de muitas vezes se restringirem a reproduzir um modelo fragmentado em variáveis e não articulado das funções e processos psicológicos (Wagoner et al., 2021). Foi somente após a virada interpretativa que novos métodos científicos foram valorizados e passaram a se afastar, de maneira consistente, dos utilizados nas ciências naturais (Chirkov, 2020). Essa nova forma de estudar vem se mostrando mais adequada e bastante produtiva para entender os complexos processos do desenvolvimento humano em meio às interações sociais (Araújo et al., 2017). Apesar de parecer óbvio, ainda hoje, não é o ponto de vista dominante que as funções e processos psicológicos emergem em meio às trocas simbólicas entre as pessoas e que isolar variáveis faz desaparecer aspectos importantes do desenvolvimento da pessoa e da constituição do seu self (Hermans & Gieser, 2011).
Sendo a natureza do desenvolvimento humano complexa, isto exige que tensões e conflitos sejam, também, investigados e analisados não como problemas, mas como parte do que move o desenvolvimento das pessoas. Eles são elementos importantes e integrantes deste desenvolvimento e, ainda, da constituição de cada pessoa. Vejamos um exemplo hipotético. A família de uma criança de 10 anos, insatisfeita com os valores e com as práticas sociais e pedagógicas de determinado estabelecimento de ensino, decide matricular a criança em outra escola, que anuncia ser um colégio que valoriza a ordem. Na primeira semana de aula, o aluno recém transferido para uma das séries iniciais da nova escola, ainda sem saber que existe um momento pré-estabelecido para perguntar, interrompe a professora para tratar de uma dúvida. A professora, conhecendo as regras e os valores da escola, e também se sentindo desconfortável com a interrupção promovida pela criança, mostra uma expressão facial de desprezo, ao tempo que responde de maneira debochada em relação à sua capacidade de compreensão. Diante da risada dos colegas de turma, a criança se cala. Sentindo-se envergonhada, tenta não demonstrar suas emoções e decide não fazer mais perguntas nas aulas.
Analisando todos os elementos da cena descrita, é possível compreender como as trocas simbólicas aí ocorridas podem ter afetado todos os envolvidos naquele momento, promovendo a construção de novos significados, especialmente na criança recém matriculada: ela compreende que não deve fazer perguntas durante as aulas. Já a professora, a partir de sua posição de autoridade, e sentindo-se desconfortável com a impertinência da pergunta (de acordo com as regras e costumes da escola), utilizou-se de sua capacidade linguística mais desenvolvida para debochar da criança, eliciando vergonha no aluno. As risadas e comentários jocosos de seus colegas também, como elementos redundantes de externalização de terceiros, acabaram participando da internalização do sentimento de incapacidade do aluno e de sua disposição de não mais fazer perguntas no futuro, reforçando o significado sobre a inadequação de perguntar naquele ambiente escolar.
No exemplo acima, a perspectiva da professora e sua percepção sobre a posição de poder que exerce têm a sua fonte nas crenças e valores sociais difundidos na cultura e, especificamente, naquela escola. Inserida em um ambiente escolar com outras crenças, valores e práticas sociais, a mesma professora poderia proceder de forma diferente. Temos, portanto, um exemplo sobre como crenças e valores culturais se traduzem em práticas sociais que podem canalizar processos de constituição de si, tanto em adultos, quanto em crianças. Ao lidar com a pergunta do aluno de forma jocosa e debochada, a professora externalizou crenças e valores que conduziram a submissão da criança novata às regras da escola e à sua autoridade. No exemplo, essa externalização foi permeada de afeto negativo, o qual potencializa a internalização de ser pouco inteligente, de não perguntar nada à professora e de conformar-se em obedecer às regras da escola. No exemplo, isso ocorreu em meio ao deboche que, juntamente à valência afetiva das outras mensagens presentes na cena, como as risadas dos integrantes da turma, promoveram a vergonha na criança, aumentando a probabilidade de que não venha mais a fazer perguntas. A repetição desse processo, promove a internalização dos afetos e cognições mencionados.
A principal conclusão a que se pode chegar, a partir desse exemplo hipotético, é que a decisão da criança em não mais fazer perguntas foi coerente com os sentidos e afetos que estiveram presentes no momento de sua experiência. Desconsiderar o papel das interações sociais, da sociogênese, nos processos de internalização da criança e como esta experiência pode ser relevante para a sua constituição de si é um equívoco que não deve ser cometido no ambiente escolar.
4. PROTAGONISMO INFANTOJUVENIL E O DESENVOLVIMENTO DA AGÊNCIA E DA AUTONOMIA
Ao longo da última década, diversos estudos sobre a importância do protagonismo para o desenvolvimento infantojuvenil foram realizados no Brasil (e.g. Pires & Branco, 2007, 2008; Gouvêa et al., 2019; Schneider et al., 2021; Zwierewicz et al., 2019). Nesse sentido, há uma indicação científica segura sobre como protagonizar, em sua própria realidade, pode ser uma estratégia promissora para estimular a agência e autonomia infantojuvenil, assim promovendo a visibilidade desse grupo etário. Mas, o que é essa invisibilidade e o que realmente significa protagonismo?
O fenômeno da invisibilidade infantojuvenil vem sendo estudado há algum tempo no campo da Sociologia da Educação (Junior et al., 2018: Sarmento, 2005). Com o desenvolvimento das sociedades e o estabelecimento de uma educação formal para as crianças, deu-se início a um processo de institucionalização educacional. Inseridas em ambientes educacionais sob o controle dos adultos, a voz infantojuvenil foi sendo reprimida e, aliada às concepções e crenças de que existem seres humanos incompletos, promoveu a sua invisibilidade, ou seja, a desconsideração de sua participação ativa no diálogo transformador das práticas, crenças e valores sociais (Pires & Branco, 2007, 2008; Qvortrup, 2015, 2017). Esse fenômeno, apesar de conhecido, é muito ativo e vem sendo objeto de estudos que mostram os seus reflexos negativos para o desenvolvimento e para o avanço das práticas pedagógicas até os dias atuais (Evans, 2019; Saltiel & Lakey, 2020).
Pires e Branco (2007, 2008) introduziram a ideia de que protagonismo infantojuvenil não precisa ter, necessariamente, relação direta com a raiz etimológica da palavra no que se refere a ser um ator principal, mas sim com um valor social que organiza e regula um conjunto de práticas, costumes, crenças e outros valores sociais, os quais levam ao compartilhamento de responsabilidades e ações entre crianças, adolescentes e adultos. Estudos mais recentes (Zwierewicz et al., 2019; Schneider et al., 2021; Gouvêa et al., 2019) concordam com essa concepção e acrescentam que é necessário superar as práticas pedagógicas lineares, fragmentadas e descontextualizadas, repensando os espaços de ensino-aprendizagem e preparando os professores para enfrentarem este desafio.
É preciso destacar, em especial, que a dimensão processual e orientadora das práticas protagônicas tende a canalizar todo um conjunto de elementos semióticos e afetivos que podem contribuir para o desenvolvimento da agência, da autorreflexão, da autonomia e da promoção de outras capacidades psicológicas. Nesse sentido, o exercício do protagonismo se opõe à concepção da reprodução de crenças e valores a partir da institucionalização da educação e da separação entre o mundo dos adultos e o das crianças (Pires & Branco, 2008; Schneider et al., 2021). A escola pode, portanto, se tornar um ambiente para a promoção do protagonismo pelo envolvimento infantojuvenil ativo nos processos decisórios coletivos, bem como na elaboração e desenvolvimento das práticas sociais e pedagógicas. Isto irá favorecer o desenvolvimento da agência, da responsabilidade, de ações pró-sociais e da capacidade de resolução de conflitos de maneira pacífica (Pires & Branco, 2007, 2008).
Não obstante, mesmo em estabelecimentos de ensino cujos profissionais estejam dispostos a promover o protagonismo e valores pró-sociais, isto não se mostra uma tarefa fácil. Acerca desse fenômeno, Branco (2018) vocaliza questões que emergem da própria prática educacional: por que é tão difícil para as escolas atenderem às expectativas em relação à promoção da criatividade, autonomia e cidadania ativa? Por que os educadores temem o surgimento de novidades e abominam a noção de seus alunos expressarem suas ideias, divergências e visões críticas sobre diferentes assuntos, como se suas vozes, necessariamente, diminuíssem a autoridade dos adultos?
Nesse contexto, é necessário destacar que as crenças e valores sociais se traduzem em práticas e perspectivas sociais (Branco, 2018). As práticas são atividades e procedimentos que promovem a difusão das crenças e valores entre todos os sujeitos que transitam em determinado ambiente. As perspectivas são as posições que os sujeitos assumem a partir das tensões entre as crenças e valores sociais e o complexo sistema de processos e funções psicológicas envolvido nas internalizações e externalizações (Branco, 2016, 2018). Em nosso exemplo anterior, a perspectiva ou posição assumida pela professora foi de autoridade absoluta na sala de aula. Assim, em determinado contexto, muitas posições sociais são possíveis, incluindo a posição de resistência antagônica às crenças e valores predominantes pelas práticas sociais.
Para ilustrar a importância da posição de resistência na identificação do uso de certas práticas sociais como instrumentos de imposição de poder, vejamos um excerto de uma atividade narrada por Borges de Miranda (2022), em sua pesquisa de doutoramento, na qual propôs realizar análises nas dinâmicas simbólicas e relacionais em uma escola de Ensino Fundamental que havia aderido ao Projeto Vozes da Paz (Tribunal de Justiça do Distrito Federal e Territórios do Brasil, 2006), promovido pelo Tribunal de Justiça do Distrito Federal.
Para atingir o seu objetivo, a pesquisadora realizou observações na escola e promoveu encontros em diversos grupos focais com os alunos e professores. Em uma dessas atividades, os alunos debateram sobre a própria capacidade em estabelecer as regras em relação à utilização da quadra e do futebol. Sobre isso, Borges de Miranda (2022) nos relata:
432. Carlos: A única coisa que tem de legal na escola mesmo é aprender...
433. Maria: Não, tem mais... Não sei, mas tem mais... A quadra...
434. Pesquisadora: A quadra, vocês gostam de esporte?
435. Carlos: Gosto... Mas como aqui na escola a gente tem que obedecer as regras dos professores, porque, tipo, um professor é diferente do outro, as regras deles. É porque, tipo, tem uma professora que dá aula pro sexto, não dá aula pro sétimo, mas ela está sempre na quadra; então, a gente divide a quadra com ela... Aí ela não deixa nós jogar descalço e não deixa a gente jogar tipo nas regras normal... Porque, na regra normal, são três gols acabou o jogo, quem perdeu sai. Aí tipo, ela tem umas regras, dois gols ou dez minutos...
436. Pesquisadora: E as pessoas que estão jogando não podem decidir isso?
437. Carlos: Não, e tipo, falta, assim, ela não viu eu falei “foi falta”, ela fala que não foi e, às vezes, ela nem viu...
438. Maria: É porque o juiz do jogo é ela, né...
439. Carlos: Não deve ter juiz não...
440. Maria: Futsal tem juiz sim, interclasse...
441. Carlos: Não, eu falei que não deve ter juiz...
442. Maria: Por que não deve ter juiz, diz aí?
443. Carlos: Porque as regras são nossas...
444. Maria: Não, futebol tem juiz, futsal também tem e aí...
445. Carlos: Se o cara falar foi falta, foi falta...
446. Pesquisadora: Vocês podiam pensar que, se tiver um juiz, ele precisa prestar atenção no jogo, né?
447. Carlos: Isso! O problema não é o juiz, é que ele tem que prestar atenção no jogo pra poder tomar as decisões... (p. 131)
A partir desse trecho, é possível perceber que Carlos, assumindo a perspectiva de porta-voz das crianças, reclama da interferência de um determinado adulto em relação à organização do jogo de futebol. Segundo ele, não seria necessária a intervenção de um adulto, pois as regras já eram estabelecidas e conhecidas pelos jogadores, que são capazes de regularem o jogo autonomamente.
Carlos inicia sua argumentação indicando que não consegue perceber um padrão nas regras estabelecidas pelos professores. Afirma “um professor é diferente do outro, as regras deles” (linha 435), indicando a tensão entre as regras anteriormente negociadas e internalizadas pelos jogadores e as estabelecidas pelos adultos. Exemplifica, mostrando que uma das professoras estabelece normas mais restritivas em termos de escore e um critério temporal de 10 minutos para cada partida.
Apesar de não estar explícito no diálogo, é possível que essas regras mais restritivas sejam impostas pela professora para proporcionar uma rotatividade maior entre os times que ocupam a quadra da escola, o que, sob a sua ótica, pudesse ser considerado uma ocupação mais democrática do espaço coletivo.
Entretanto, não é sob essa ótica que Carlos constrói os significados pessoais. Diante do questionamento da pesquisadora sobre a capacidade dos jogadores decidirem as regras, Carlos responde que não podem decidir sozinhos (linha 437). Fica evidente a sua inconformidade com a intervenção. Igualmente é clara a sua concepção sobre a total capacidade das crianças em estabelecerem as suas próprias regras, considerando a participação adulta inadequada e incompetente, já que a professora se propõe a regular a atividade sem prestar atenção no jogo (linha 447). Observemos, no entanto, que o diálogo seguinte, registrado entre Carlos e Maria, estabelece uma tensão entre a necessidade de haver um juiz e a autonomia dos jogadores.
O ápice dessa tensão se apresenta diante do questionamento de Maria sobre as razões da argumentação de Carlos (linha 442). Sob a perspectiva de Carlos, a questão se resolve devido à capacidade dos jogadores em estabelecerem as próprias regras, ao que se refere, no plural, “as regras são nossas” (linha 443). A utilização do pronome possessivo “nossas” o insere, monologicamente, em um contexto psicológico mais amplo no qual haveria outros sociais que concordariam com a sua posição. Aqui vale um alerta quanto à irrelevância semiótica da veracidade acerca da suposta desatenção da professora ao jogo. Para os efeitos do processo de significação de Carlos, a sua percepção é que a professora não se importa em ter atenção ou em ser justa. Então, as suas perspectivas e comportamentos em relação ao uso da quadra tomarão em conta o suposto desinteresse da mencionada professora.
Em um cenário mais radical de interpretação, essa pode ser a fonte da generalização demonstrada por Carlos na fala “a gente tem que obedecer às regras dos professores, porque, tipo, um professor é diferente do outro, as regras deles…” (linha 435). A partir de tal interpretação, pode ocorrer um efeito halo (Bakhare, 2022) pelo qual a percepção de injustiça e de imposição de autoridade adulta por alguns professores se transmite aos demais profissionais, cujo comportamento poderia ser considerado mais neutro.
No final do trecho (linhas 446 e 447), após a intervenção da pesquisadora, vemos a resolução da tensão entre a concepção de que não é necessário um juiz adulto para a mudança de posição com a admissão da possibilidade de que existe um arranjo em que a participação adulta seja aceitável, desde que seja atenta e justa.
Para além da intervenção explícita de adultos no cotidiano infantojuvenil, existem outros aspectos semióticos e culturais ainda mais sutis e importantes para a orientação dos processos de construção de significados e do comportamento de cada um dos atores escolares. Até mesmo a arquitetura e a disposição dos objetos podem assumir uma relevância semiótica ao serem orientados pelas crenças e valores sociais. Nesses cenários, também se configuram como elementos que compõem o ambiente simbólico da escola.
A disposição circular das carteiras na sala de aula, por exemplo, facilita a visualização e a comunicação entre todos (Matusov, 2018). Entretanto, em um ecossistema cultural orientado à estruturação rígida das atividades didáticas, caracterizado pela valorização de resultados individuais, a mera arrumação das carteiras escolares em círculo colaborará muito pouco para a comunicação entre os alunos, já que, a despeito da disposição do mobiliário, o individualismo na obtenção de resultados escolares é promovido, concorrentemente.
Para destacar a relevância de elementos não-verbais, tais como obras arquitetônicas, faremos a breve análise da narrativa de uma psicóloga, que descreve a sua entrada em uma unidade de cumprimento de medida socioeducativa para conduzir a sua pesquisa de doutoramento. Sobre isso, Diamantino (2021) nos conta que:
Do lado de fora, os muros altos formavam um retângulo, capaz de confundir os nossos olhos, ao esconder a arquitetura de um estabelecimento educacional, não fossem suas paredes colossais. Antes da CASE-Feminina se estabelecer naquele local, ali funcionava uma creche municipal, que foi improvisada para acolher as adolescentes autoras de ato infracional, em cumprimento de medida socioeducativa de internação e internação provisória de todo o território do estado da Bahia. Isso sugere o quanto a mulher é desconsiderada pelo sistema criminal, questão amplamente debatida pela literatura científica (Arruda, 2020; Assis & Constantino, 2001; Machado & Veronese, 2010), a qual aponta que, comumente, os espaços de internação feminina são adaptados e não arquitetados para acolher as mulheres, até porque tais espaços são majoritariamente ocupados pelos homens. (p. 131, grifo nosso)
A pesquisadora, em seu testemunho escrito, meses depois do ocorrido, refere-se ao impacto emocional causado pelos altos muros da unidade. Ela utiliza as expressões “capaz de confundir” e “esconder a arquitetura” para articular a contraditória ideia de que atrás dos muros havia uma escola, sugerindo, ao leitor, que ela não deveria ficar oculta.
A pesquisadora, também, deixa transparecer, ainda mais claramente, o seu estado emocional de espanto e desacordo com a contradição semiótica evidenciada pela arquitetura da unidade ao articular as ideias de que há um frequente improviso na acomodação das adolescentes, e generaliza essa ocorrência por meio da expressão “todo o território do estado da Bahia”, que é um dos mais extensos e populosos estados brasileiros.
Além disso, ela sugere, de forma ambígua, pois não é possível ter certeza se a remissão é ao improviso no uso das instalações ou à adoção de um modelo arquitetônico inadequado, que isso “sugere o quanto a mulher é desconsiderada pelo sistema criminal” e que a questão já teria sido “amplamente debatida pela literatura científica”.
A partir dessas posições de desacordo com a realidade, podemos inferir que a interação com a arquitetura causou significativos efeitos emocionais negativos na pesquisadora. A despeito de sua condição de especialista, ela chegou a cometer um equívoco conceitual ou uma generalização apressada quando argumentou que “a mulher é desconsiderada pelo sistema criminal”, uma vez que o sistema socioeducativo no Brasil não faz parte do sistema criminal e que, além disso, existem muitas realidades socioeducativas distintas em um país tão diversificado.
As inferências que podemos fazer, a partir desse exemplo, nos mostram que os elementos semióticos não-verbais das estruturas arquitetônicas podem eliciar emoções poderosas que influenciarão os processos de significação, incluindo aqueles sujeitos à futura evocação das experiências afetivas vivenciadas.
Ainda sobre o campo da comunicação não-verbal, existem os aspectos metacomunicativos (relativos à comunicação sobre o próprio processo de comunicação) que modulam os significados expressos pela linguagem verbal. Os símbolos religiosos e de autoridade, as vestimentas, os adereços, a entonação da voz, o riso, a forma como se toca e os gestos são alguns exemplos de elementos metacomunicativos que exercem importante papel na comunicação entre as pessoas (Branco, 2018, Pires, 2022). No primeiro exemplo deste texto, a expressão facial de desprezo da professora e as risadas das crianças reforçaram o campo afetivo da mensagem verbal de deboche sobre a falta de compreensão da criança.
Processos comunicativos e metacomunicativos, então, se dão através da coconstrução de significados e das trocas afetivas entre as pessoas e os ambientes do ecossistema cultural. No entanto, nem sempre haverá coerência entre as camadas comunicativas. Tendo em vista essa possibilidade, é preciso que os professores estejam sempre atentos para buscar uma coerência em suas interações com as crianças e, assim, sob a orientação de valores como o protagonismo infantojuvenil, os processos de canalização cultural por eles proporcionados poderão dar condições para que os sujeitos se expressem e possam agir e reagir de maneira mais autônoma e participativa, revelando suas ideias, sentimentos, crenças e interesses. Mesmo em meio às práticas culturais ainda tradicionais da escola, essa dinâmica dialógica poderá ocorrer, a depender dos valores e da disposição de cada professor.
Nesse caso, a agência e autonomia dos alunos poderá ser desenvolvida por meio da promoção progressiva e planejada do diálogo, de forma integrada e participativa, incluindo os alunos, os membros da gestão escolar e as famílias. Esta é uma estratégia sutil, que exige paciência, determinação, repetição e consistência, porém se mostra eficaz e promissora para a promoção da paz através do estímulo à valorização das crianças e adolescentes, à adoção do protagonismo infantojuvenil e à colaboração entre todos como valores importantes para orientar as práticas sociais nos ambientes escolares.
Vejamos, então, um exemplo mais geral a partir do qual poderemos aplicar diversos dos conceitos teóricos apresentados. Trata-se de outro excerto do relatório de pesquisa de Borges de Miranda (2022), indicando uma conversa sobre uma professora que é respeitada pelos alunos e sobre quais são os comportamentos identificados como diferenciais para essa avaliação:
53. Fabíola: Primeiro dia que ela chegou, cheguei atrasada na aula dela, ela olhou assim pra mim com uma cara de má e eu falei “professora chata, já não gostei da cara dela”... Mas aí na hora da aula, ela chamou nós de coração, de meu bem, de meu amor, ela canta com nós, ela dança na sala.
54. Maria: Na minha sala, ela põe a música lá e começa a dançar, ela é mó de boa... [uma gíria brasileira que significa “uma pessoa tranquila”]
55. Fabíola: Ela tá explicando o negócio no quadro, ela brinca com nóis, ela começa a cantar...
56. Maria: Ela tá explicando um negócio no quadro, a gente faz piada, ela faz piada também... Ela não dá bronca, isso que é mais incrível.
57. Fabíola: Não dá mesmo... Eu era assim, saía na aula dela e não voltava né... Igual agora, mas aí ela ia atrás de mim, ou se não ela mandava a direção ou as meninas atrás de mim, aí eu parei com isso... Aí agora ela deixa eu ir no banheiro.
58. Pesquisadora: Ela não queria deixar mais você ir...
59. Fabíola: É, eu ia e não voltava...
60. Pesquisadora: Mas por que você fazia isso?
61. Fabíola: Eu ficava três horários fora de sala, fazendo o que eu não sei... Preguiça de estudar, professora, é ruim demais...
62. Maria: Como passa de ano desse jeito?
63. Fabíola: Pois é, mas eu melhorei bastante...
64. Maria: Ela é a melhor professora, eu queria que todos os professores fossem assim...
65. Fabíola: Se todas as professoras fossem assim, eu seria um nojo [muito boa] na escola, ia estudar ó, horrores..
[....]
99. Pesquisadora: Mas o que ela faz de diferente?
100. Maria: Ela brinca, ela não dá muita bronca, ela não tem esse negócio de tirar ponto, se o ponto é seu, ela não tira...
101. Fabíola: Ela tá explicando o negócio, ninguém entendeu, ela já não vai pra parte de explicar aquilo ali é errado, ela já vai pra parte de brincadeira, coloca um exemplo...
102. Maria: Ela me coloca no exemplo, ela coloca a turma inteira no exemplo. [ênfases adicionadas]. (p. 175)
A transcrição dessa parte da conversa no grupo focal é bastante ilustrativa sobre como divergir das práticas sociais instaladas na escola pode ser um caminho produtivo para o desenvolvimento do distanciamento, da autorreflexão e da promoção da autonomia infantojuvenil. Serve, também, como exemplo sobre a influência pessoal na transformação da cultura coletiva pela reflexividade da construção afetivo-semiótica.
A escola faz parte do ecossistema cultural dessas crianças. Como subsistema, possui as suas peculiaridades e uma parte das práticas sociais canalizam crenças e valores sociais a que as crianças estão sujeitas naquele subsistema.
Uma possível abordagem metodológica para chegarmos a evidenciar essas crenças e valores é compararmos os comportamentos individuais com as práticas sociais promovidas em determinado estabelecimento de ensino, o que faríamos pela busca de concordâncias e discordâncias. Nesse exemplo, a pesquisadora tenta investigar quais são as diferenças entre os professores considerados bons ou que merecem o respeito dos alunos.
A transcrição inicia com uma cena que reforça a importância dos elementos não-verbais e metacomunicativos e o seu poder em estabelecer uma primeira impressão que pode orientar o início das relações na sala de aula. Fabíola (linha 53) indica que, mesmo sem conhecer a professora, teve uma primeira impressão ruim e que ela “tinha cara de má”, o que a desagradou.
Entretanto, na sequência, Fabíola destaca outros elementos semióticos da relação que a fizeram mudar de ideia. O fato da professora ter demonstrado afeto e carinho pela forma como se dirigiu às crianças foi o diferencial. Além disso, a utilização de outras modalidades de linguagem, como a dança e o canto, foram mencionados pelos alunos como estratégias que os surpreenderam (linhas 53 a 55). É importante observar o destaque que a criança dá aos elementos afetivos e não apenas à dimensão cognitiva da relação entre ela e a professora. Isso indica o poder dos elementos emocionais em estabelecer uma valência entre as diferentes experiências, a ponto de superar até mesmo as primeiras impressões negativas.
A expressão “mó de boa” que, na gíria brasileira, significa que a pessoa é tranquila, serve de indicador sobre o esforço da professora para estabelecer a relação com os alunos de forma mais paritária e a não enfrentar expressões de violência ou de desordem de forma recíproca. Diferentemente do que narram ser o comportamento de outros professores, os alunos testemunham que ela utiliza estratégias que contradizem as práticas sociais na escola, como enunciado por Maria - “ela brinca, ela não dá muita bronca, ela não tem esse negócio de tirar ponto, se o ponto é seu, ela não tira” (linha 100). Essa assertiva da aluna nos indica que as desavenças entre alunos e professores são frequentes, ao que essa professora, em particular, difere dos demais.
Há, também, a menção a um valor mais importante e profundo: a justiça. Na mesma enunciação, a criança faz menção à utilização das avaliações como medida de controle do comportamento. Essa é uma prática muito comum na educação brasileira, da qual qualquer estudante já foi vítima em algum momento da escolarização. Então, Maria reconhece que essa professora se diferencia em relação aos demais por proceder de forma justa.
Outro indicador muito relevante encontramos na expressão de Fabíola [linha 101] quando revela que, diante da falta de compreensão sobre algum conteúdo, a professora “não vai pra parte de explicar aquilo ali é errado, ela já vai pra parte de brincadeira, coloca um exemplo”. Esse testemunho nos transmite a ideia da motivação da professora em ajudar seus alunos a superarem as dificuldades de aprendizagem, evidenciando sua empatia e a canalização de afetos positivos para enfrentar as dificuldades de aprendizagem dos alunos.
Evidência, sumamente relevante acerca das ações pró-sociais da professora, é mencionada por Fabíola sobre o seu comportamento de evasão das aulas. A aluna revela que chegava a ficar três horários fora das aulas e “fazendo o que eu não sei...” (linha 61). Essa expressão nos indica que Fabíola foi capaz de, a partir da ação pedagógico-afetiva da professora, distanciar-se de seu comportamento de escapar do compromisso de assistir às aulas. Mostra, ainda, que avançou na capacidade de tecer críticas a si mesma e de reconhecer as suas dificuldades e os seus avanços. Diante da provocação de Maria, ela reflete: “pois é, mas eu melhorei bastante...” (linha 63).
Fabíola atribui o desenvolvimento de sua capacidade de distanciamento e de autoavaliação à persistência da professora em promover o amadurecimento e de empregar estratégias para a aluna comparecer às aulas. Como testemunhado por Fabíola, “saía na aula dela e não voltava né... Igual agora, mas aí ela ia atrás de mim, ou se não ela mandava a direção ou as meninas atrás de mim” (linha 57). Segundo a avaliação da aluna, essa persistência da professora, em buscar a sua presença, transpareceu como uma ação de genuíno interesse e promoveu a sua mudança de atitude em relação às aulas: “aí eu parei com isso...”, Fabíola nos conta. Essa fala nos evidencia o final do processo de internalização no qual tanto os aspectos emocionais, quanto os cognitivos com relação à ausência às aulas são reorientados.
Finalizamos a nossa breve análise ilustrativa pela indicação de que as ações afetivo-pedagógicas da professora também foram efetivas para promover a alteração das perspectivas de futuros cenários mais favoráveis para os seus alunos. Fabíola, a partir da constatação do aumento pelo gosto das aulas, avalia que “se todas as professoras fossem assim, eu seria um nojo [muito boa] na escola, ia estudar ó, horrores [muito]”. Esse testemunho nos indica o reconhecimento da criança sobre a influência positiva da professora para a mudança de seu comportamento naquela disciplina. É, também, indicador da microgênese de uma nova perspectiva positiva em relação ao estudo. A aluna evidenciou a visualização um novo padrão de comportamento acerca do estudo, com mudanças até mesmo nas suas emoções, pois só passa a estudar muito quem ganha gosto pela atividade.
5. CONCLUSÃO
No presente artigo, tratamos de explicitar os aspectos teóricos relevantes sobre como a promoção do protagonismo infantojuvenil, no ambiente escolar, pode auxiliar a enfrentar a invisibilidade das crianças e, também, facilitar o desenvolvimento de crianças e adolescentes. Iniciamos, explicando que o conceito de protagonismo proposto difere do comumente adotado no senso comum, segundo o qual o protagonista assume o papel principal.
Sob a ótica da Psicologia Cultural de orientação dialógica e semiótica, a pessoa protagonista é aquela que está inserida de maneira ativa nos contextos da produção de práticas, crenças e valores, conseguindo compartilhar as tarefas e responsabilidades com os demais participantes, segundo suas capacidades.
Argumentamos como o envolvimento de crianças, adolescentes e adultos nas práticas sociais e atividades pedagógicas pode facilitar o desenvolvimento da agência, da responsabilidade bem como promover a construção coletiva de interações, crenças e valores pró-sociais. Foi sublinhada a relevância da análise do ecossistema cultural escolar, para identificar quais os fatores que, possivelmente, estão conduzindo os processos de canalização cultural que aí ocorrem. Enfatizamos a necessidade dessa análise integral para que os educadores estejam alertas sobre quais valores suas práticas tendem a desenvolver e fortalecer em seus alunos.
Finalmente, argumentamos e exemplificamos sobre como a criação de um ambiente propício ao diálogo pode se contrapor às concepções de incapacidade e incompletude infantojuvenil, concepção esta que está na raiz da invisibilidade dessa população. Nesse contexto, o protagonismo infantojuvenil, na condição de valor social, é fundamental para a promoção de práticas sociais que valorizem os estudantes, suas opiniões, suas sugestões e suas ações, no ambiente escolar. Tais práticas, uma vez estabelecidas, aumentarão, sensivelmente, a probabilidade do desenvolvimento dos estudantes, especialmente aspectos referentes à agência, autonomia e autorreflexão tanto das crianças e adolescentes, quanto dos adultos.