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Revista Portuguesa de Educação

versão impressa ISSN 0871-9187versão On-line ISSN 2183-0452

Rev. Port. de Educação vol.37 no.1 Braga jun. 2024  Epub 06-Jun-2024

https://doi.org/10.21814/rpe.31625 

Artigos Originais

Escuta e formação: O silêncio pedagógico em Montessori

Listening and formation: The pedagogical silence in Montessori

Escucha y formación: El silencio pedagógico en Montessori

Alberto Filipe Araújoi 
http://orcid.org/0000-0002-4693-8681

Joaquim Machado de Araújoii 
http://orcid.org/0000-0003-1875-9640

Iduina Mont’Alverne Chavesiii 
http://orcid.org/0000-0003-4732-8436

i Instituto de Educação, Universidade do Minho, Portugal

ii Universidade Católica Portuguesa, Portugal

iii Universidade Federal Fluminense, Brasil


Resumo:

O silêncio é um fenómeno multifacetado com diferentes implicações no processo educativo. Remetido para as margens do discurso educacional, o tema do silêncio ressurge pela sua ligação aos temas da atenção e da escuta, bem como pela sua influência no ambiente de sala de aula e na qualidade do processo de ensino e aprendizagem. Pressupondo que a reconstrução da pedagogia se fortalece quando parte dos germes de construção nova contidos na sua própria conceção socio-histórica e cultural, este estudo retoma a proposta pedagógica de Maria Montessori. Neste sentido, pretende-se identificar a ideia e os tipos de silêncio preconizados no método desta pedagoga, assim como interpretá-los como expressão de princípios que marcaram o debate sobre a educação escolar no século XX. Este estudo, de natureza hermenêutica, destaca não apenas uma conceção positiva do silêncio como também a valorização do silêncio interior e a sua faceta de recolhimento. Assim, ainda serão relevantes as perspetivas da sua exercitação em contexto formal de educação infantil e do desenvolvimento pessoal e social potenciado pela unidade entre corpo e mente.

Palavras-chave: Silêncio; Escuta; Autonomia; Disciplina; Formação.

Abstract:

Silence is a multifaceted phenomenon with different implications in the educational process. The concept of silence, which has been set aside from educational discourse, reappears due to its connection to the themes of attention and listening. It also resurfaces due to its influence on the classroom environment and the quality of the teaching and learning process. Assuming that the reconstruction of pedagogy is strengthened when it starts from the germs of new construction contained in its own socio-historical and cultural construction, this study takes up Maria Montessori's pedagogical proposal to identify the conception and types of silence advocated in the method of this pedagogue and interpret them as an expression of principles that marked the debate on school education in the 20th century. This study, of a hermeneutic nature, highlights a positive conception of silence, the appreciation of inner silence and its facet of recollection, as well as the perspectives of its exercise in a formal context of early childhood education and personal and social development enhanced by the unity between body and mind.

Keywords: Silence; Listening; Autonomy; Discipline; Formation.

Resumen:

El silencio es un fenómeno multiforme con diferentes implicaciones en el proceso educativo. Relegado a los márgenes del discurso pedagógico, la cuestión del silencio resurge por su conexión con los temas de la atención y la escucha, su influencia en el ambiente del aula y en la calidad del proceso de enseñanza y aprendizaje. Asumiendo que la reconstrucción de la pedagogía se fortalece cuando parte de los orígenes de nueva construcción contenidos en su propia estructura socio-histórica y cultural, este estudio retoma la propuesta pedagógica de Maria Montessori con el objetivo de identificar la concepción y los tipos de silencio preconizados en el método de esta pedagoga e interpretarlos como expresión de principios que marcaron el debate sobre la educación escolar en el siglo XX. Este estudio hermenéutico destaca una concepción positiva del silencio, revalorizando el silencio interior y su faceta de recogimiento, las perspectivas de su ejercicio en el contexto formal de la educación infantil, del desarrollo personal y social potenciado por la unidad entre cuerpo y mente.

Palabras clave: Silencio; Escucha; Autonomía; Disciplina; Formación.

1. Introdução

A pedagogia escolar tem privilegiado a comunicação através da palavra - falada e escrita - aqui e ali auxiliada pela imagem. Embora a literatura pedagógica pareça subestimar o silêncio (Caranfa, 2004; 2006), é nele que ganha sentido a palavra dita ou escrita, porque, onde ele está ausente, imperam o ruído e a desordem, a comunicação sofre interferências, e a interação é descontinuada.

Mesmo quando se foca no conteúdo a ensinar e no modo de o transmitir, a literatura pedagógico-didática preocupa-se com métodos e técnicas de ensino, com as interações que se estabelecem na aula e com o ambiente que propicia um clima positivo de aprendizagem, onde o silêncio assume significação e influencia o processo formativo.

O nosso estudo pressupõe que a pedagogia se fortalece quando é capaz de se reconstruir a partir dos germes de uma construção nova que, por sua vez, a sua própria construção socio-histórica e cultural transporta. Apesar de o legado pedagógico do século XX incluir um número vasto de pedagogos (nomeadamente, John Dewey, Célestin Freinet e Paulo Freire), este estudo incide na proposta pedagógica de Maria Montessori, porque esta autora, baseando a sua pedagogia na biologia e na psicologia do seu tempo, dá corpo a essa “pedagogia científica” na Casa dei Bambini com crianças dos três aos seis anos; contrapõe o silêncio aí “ensinado” ao que nas “escolas comuns” resulta da imposição do professor ou das normas regulamentares; e preconiza níveis de silêncio interior que atualmente são valorizados em várias escolas e não apenas instituições educativas que reivindicam para si o nome de Montessori.

Assim sendo, este estudo é de cariz hermenêutico e analisa como Montessori aborda o silêncio interior, tal como o seu enquadramento nos princípios orientadores da própria pedagogia montessoriana. Identifica, portanto, os princípios orientadores da “pedagogia científica” que estão na base da sua consideração do silêncio como um fenómeno positivo; distingue tipos e níveis de sentido na arte de escutar; descreve exercícios que conduzem as crianças a vivenciar o silêncio; e realça caraterísticas do silêncio que apontam para níveis mais elevados de atenção e escuta. O estudo releva, também, a importância de um silêncio de tipo ontológico no desenvolvimento da sua interioridade enquanto processo de elevação espiritual, contribuindo para a especificidade do legado pedagógico de Montessori no âmbito do plural e multifacetado movimento de “educação nova” em que ela se integra.

Os dados recolhidos são apresentados e discutidos em torno de quatro importantes dimensões: os princípios orientadores de uma pedagogia da primeira infância de base científica; a distinção entre fins práticos e fim último da educação como segredo do aperfeiçoamento dos movimentos da criança; a compaginação entre liberdade e disciplina no ensino do silêncio; a lição do silêncio como exercício de quietude e desenvolvimento do silêncio interior. Por fim, o estudo assinala, ainda, como, em Montessori, a vivência do silêncio pela criança se orienta para o aprofundamento ontológico da interioridade e para o bem-estar físico e psíquico, sustentando um processo educacional de elevação espiritual.

2. A arte de escutar

Os verbos ouvir e escutar são comummente usados como sinónimos, mas, pela sua etimologia, recebem significação diferente: ouvir significa perceber pelo sentido do ouvido, ter a faculdade da audição; escutar significa ouvir prestando atenção, dar ouvidos a algo ou alguém, auscultar, procurar conhecer. Torralba (2010) distingue escutar de ouvir conforme o estímulo é interno ou externo: ouvimos mesmo o que não queremos e apenas escutamos o que queremos: “só escuta quem quer escutar” (p. 16). Assim, a escuta é precedida pelo desejo, em cuja base está a expectativa de que nos pode interessar o que o outro tem a dizer: “Nós escutamos porque desejamos previamente a escuta” (p. 15). O autor usa o verbo escutar no sentido de entender o que está a ser captado pela audição e, por isso, ser capaz de processar internamente a informação recebida: para escutar não basta apenas ouvir o som das palavras, é preciso prestar atenção ao significado do que é emitido pelo som, para que a palavra não seja vã. É este processamento interno do que se ouve que resulta do ato de escuta.

Fiumara (1985) assinala, na trajetória do pensamento ocidental, estes dois significados prevalentes no dizer (o da emissão, ligado mais ao termo Logos; e o da receção, ligado ao verbo leghein), realçando o desenvolvimento da capacidade de elaboração conceptual, mas sem poder conceber “um dizer que esteja separado da escuta, um falar que não seja parte integral do escutar, um discurso que não seja recolhido” (p. 10). Assim sendo, “a escuta é a pedra basilar da prática educativa” (Torralba, 2010, p. 59), porque sem ela não há aprendizagem significativa nem uma boa relação entre educador e educando: o êxito da ação educativa depende da disposição do outro a escutar e a acolher as palavras para as fazer suas e para se apropriar delas.

Educador e educando “precisam, dialeticamente, um do outro” (Torralba, 2010, p. 61), mas não podemos reduzir a comunicação ao uso da palavra (e até da entoação com que ela é dita) pelo emissor ou da faculdade de audição do recetor. Ela pode dispensar a linguagem verbal ou associar-lhe linguagem não verbal, como gestos e expressões corporais e faciais, imagens e símbolos, que são tão importantes como as palavras ditas para o processamento interno do que o recetor ouve ou lê e vê (associando-as, até, a anteriores experiências sensoriais e desencadeando sentimentos e emoções), já que podem alterar ou reforçar o sentido das palavras.

Na arte de escutar, podemos distinguir dois níveis conforme ela se orienta para fora (ad extra) ou para dentro (ad intra) do sujeito que escuta. Na abordagem pedagógica, o primeiro nível tem privilegiado, sobretudo, a “cultura do ouvido” (Plutarque, 1995), que se foca na relação pensamento-discurso e acentua a receção e inteleção do discurso do mestre. No entanto, no plano da interação pedagógica, a escuta deve, também, ser desenvolvida pelo mestre para melhor compreender as respostas do discípulo, as razões das intermitências e eventuais confusões na receção. Por conseguinte, aplica-se, ainda, à introdução de alterações quer no seu discurso quer na metodologia de ensino, recorrendo a métodos e técnicas mais adequados que envolvam observação, participação, experimentação, experienciação e descoberta.

Por seu turno, o segundo nível prioriza o cultivo da interioridade, focando-se na relação razão-sentimento e assinalando não apenas a influência das emoções na cognição e no pensar como também a importância do conhecimento e da consciência de si para uma relação saudável consigo mesmo e com os outros.

Assim, se o primeiro nível se foi alargando no desenvolvimento de múltiplas inteligências - a linguística, a lógico-matemática, a naturalista, a espacial, a corporal-cinestésica, a interpessoal e a intrapessoal (Gardner, 2011) -, o segundo nível realça a influência do quociente emocional no desenvolvimento cognitivo (Goleman, 2014) e a da consciência de si no autodomínio das emoções, na promoção do bem-estar individual e da classe e, consequentemente, na criação de um ambiente positivo de aprendizagem. Estes dois níveis na arte de escutar são complementares no “permanente movimento de busca do ser mais” de educando e educador (Freire, 1987, p. 42).

Contudo, a formação do indivíduo vai além da inteleção dos programas escolares e, por isso, a cultura do ouvido, se não quer ser “pobre auxiliar da arte oratória”, deve ser complementada com a exigência de escuta interior e “servir os votos secretos da meditação filosófica” (Plutarque, 1995, p. 92). Este grau superior de escuta pressupõe a orientação ad extra e a ad intra e privilegia um processo formativo do espírito baseado na relação indagação-invenção. Não obstante, este ponto não se contenta com a primeira virtude da aprendizagem - a da cópia e inteleção do exposto pelo mestre ou adquirido mediante as sensações -; ela requer ser complementada com a virtude da inventio: “é preciso inventar ao mesmo tempo que se aprende”, afirma Plutarque (1995, p. 87), acrescentando que o filósofo aprendiz deve reportar ao seu estudo “uma disposição de espírito, que não será nem a de um sofista nem a de um homem que apenas quer conhecer os factos, mas a de um conhecimento e de um enraizamento filosóficos” (pp. 87-88). Fiumara (1985) realça este aspeto inventivo da atitude filosófica de escuta, afirmando que “um pensamento contemporâneo mais germinal e verídico pode desenvolver-se no forjar instrumentalidade interna adequada para ‘sentir’ novas ressonâncias no pensamento do passado e para promover, portanto, uma conjugação de horizontes cognoscitivos” (p. 105). Por outras palavras, a escuta converte-se, num primeiro passo, em processo maiêutico, mas junta-lhe a “segunda” arte, também sugerida por Sócrates a Teeteto, de preparar as melhores combinações, fazendo, assim, da maiêutica “a arte de fazer nascer o melhor modo de pensar”, sem a qual resta a “desordem na tentativa de juntar os pensamentos” (Fiumara, 1985, p. 193).

Afirma Torralba (2010) que o desenvolvimento do potencial de escuta conduz ao momento oportuno de “pronunciar as palavras adequadas” (p. 12), mas há um conjunto de condições para a escuta acontecer: a vontade de escutar; a prévia depuração dos preconceitos (religiosos, espirituais, psicológicos, científicos) e dos temores que turvam a imagem que nós mesmos construímos do outro; a disponibilização de tempo (de expressão, mas também de compreensão e, posteriormente, de resposta); a suspensão provisória da própria voz e a investida na palavra interior que existe no fundo da palavra exterior do outro (esvaziamento do ego); a ascética mental (guardar silêncio e praticar a contenção mental para evitar a dispersão); o discernimento correto de a quem se deve dar atenção e do que há para escutar; e, até, a escuta desinteressada ou “piedosa”, isto é, aquela cuja “principal motivação é a alegria que o outro sente ao ser escutado” (p. 43).

3. O silêncio na prática pedagógica

A escuta comporta silêncio - termo que, etimologicamente, se refere a uma situação de ausência de voz, som ou ruído. A literatura sobre o silêncio dá conta de um vasto uso deste conceito e do conteúdo proposicional que teria sido proferido se ele não acontecesse (Kurzon, 1992): ele significa abstenção de fala ou elocução, mas também estado de total não audibilidade ou omissão de menção ou aviso; opõe-se ao ruído exterior e ao interior, implica a distinção entre escutar e ouvir e pode ser portador de significados opostos; refere-se tanto a uma situação de quietude (tranquilidade, serenidade, calmaria, sossego) propícia à escuta, à concentração, à reflexão, à meditação, à elaboração criativa e à comunicação, como a uma situação de mudez compulsiva, repressão, censura ou escamoteamento da liberdade de pensamento e de expressão das próprias ideias e sentimentos (Rodrigues, 2016). Por outro lado, as situações de silêncio tanto podem resultar de imposição alheia como ser opção voluntária de quem o faz.

Os professores valorizam o silêncio e consideram que a sua ausência influencia negativamente as condições de aprendizagem, o ambiente de ensino e/ou a relação pedagógica na escola. Contudo, esta valorização é menos consensual quanto ao processo pedagógico de o obter, porque se jogam nele conceções diferentes sobre a criança, sobre a organização do processo de aprendizagem e sobre a natureza do silêncio a criar no interior e no exterior da sala de aula. Esta divergência conceptual acentua-se, sobretudo, no segundo quartel do século XX, com o crescimento do(s) movimento(s) de renovação pedagógica e a sua proposta de “nova educação” face à “pedagogia tradicional” (Dewey, Freinet, Ferrière) ou “educação bancária” (Freire, 1987) - ou, se quisermos usar a expressão utilizada por Maria Montessori (1965), ao “sistema antigo” vigente nas “escolas comuns” (p. 92). De forma não dita, esta divergência conceptual está presente na linha epistemológica perfilhada por Lees (2012; 2016) e Alerby (2019; 2020) quando realçam a positividade do uso do silêncio na sala de aula não só enquanto meio inspirador e poderoso para o desenvolvimento das competências curricularmente consignadas, para a autoconsciência do aluno e para o bem-estar individual e coletivo, como também na qualidade de contributo para aceder a um nível superior de silêncio, de atenção e de escuta, promovendo, assim, a igualdade na e pela escolarização.

Alerby (2020) distingue três tipos de silêncio usados na sala de aula: o silêncio literal - o aluno está calado, ouvindo o professor (ou devaneando) e opta por não intervir; o silêncio epistemológico - o aluno tem dificuldade em exprimir-se em determinado contexto ou nalguma matéria; e o silêncio ontológico - o aluno experiencia algo (relativo ou não à aprendizagem académica) que o afeta positiva ou negativamente, criando condições para acontecer o fiat lux e, fascinado pela luz, abraça o silêncio que, por sua vez, dá substância, sentido e peso ôntico à palavra.

Schultz (2009) identifica cinco formas e funções de silêncio: resistência, poder, proteção, resposta a trauma e, ainda, tempo e espaço de aprendizagem e criatividade. Posteriormente (2012, p. 80), assinala a função de produtividade: um silêncio é produtivo quando é sinal de forte respeito, pensamento profundo, envolvimento mais ou menos intenso na aprendizagem, alegria inexprimível ou paixão, e protege o aluno do possível ridículo. Por outro lado, é improdutivo quando revela desrespeito, alienação, medo e raiva. Também Kurzon (2007) distingue o silêncio no âmbito do discurso falado - alguém não fala (silêncio conversacional) ou não fala sobre um assunto específico iniciado por outrem (silêncio temático) - e no seio do grupo - para fazer leitura silenciosa de um texto (silêncio textual) ou simplesmente para permanecer em silêncio (silêncio situacional).

Por sua vez, Lees (2012) identifica experiências práticas de silêncio nas escolas num continuum entre silêncio fraco (weak) e silêncio forte (strong): o fraco perspetiva o silêncio como coerção e privilegia a fala do professor, envolve desiguais relações de poder, delas resultando situações educativas fragilizadas, descritas em termos de negação, opressão, dominação, medo e marginalização; o forte assume formas não coercivas, retratadas em termos positivos que evidenciam a sua eficácia na aprendizagem dos alunos e o seu contributo para o bem-estar, como, por exemplo, a meditação, os momentos de silêncio, os espaços tranquilos, a disciplina na sala de aula, a concentração, a prática da memória, o reforço do respeito mútuo e a autenticidade do eu. Nestas experiências práticas de silêncio, jogam-se modos de interação muito presentes na sociedade e nas “escolas comuns” da primeira metade do século XX, em que emerge e se desenvolve a pedagogia montessoriana e a sua orientação para a paz.

4. Atenção e silêncio na pedagogia montessoriana

Na base da “pedagogia científica” de Maria Montessori (1965) está a observação das manifestações espontâneas da criança. As experiências efetuadas na Casa dei Bambini estão na génese dos três pontos essenciais no método montessoriano: o ambiente adequado, a mestra humilde e o material científico (Montessori, s. d., [19--]). Se o material científico é um dos maiores legados da obra pedagógica de Montessori, a ideia de que as crianças necessitam de um ambiente apropriado onde possam viver e aprender é “o conceito fundamental que a sustenta” (Röhrs, 2010, p. 17). Trata-se, como abaixo expomos, de um ambiente de paz onde o seu sentido de ordem, de disciplina, de liberdade e de dignidade possa florescer. Na Casa dei Bambini, liberdade e disciplina equilibram-se, e o princípio fundamental é que uma não pode ser conquistada sem a outra.

Essas experiências sustentam-se num conjunto de princípios orientadores da educação da primeira infância, sabendo que toda ela “deve estar penetrada deste princípio: auxiliar o desenvolvimento natural da criança” (Montessori, 1965, p. 98). Destacamos outros cinco princípios: influência da experiência - são as experiências, mais do que as palavras do educador, que impressionam mais as crianças; ordem das coisas - tudo deve estar no seu lugar, competindo às crianças empreender as diversas tarefas para que tudo esteja em ordem; finalidade superior da atividade prática - a aprendizagem de coisas práticas é apenas o estímulo para promover uma profunda necessidade de organização; perfeição - a perfeição atinge-se quando se reconhece e executa com precisão os movimentos estritamente necessários; e, por fim, idade oportuna para aprender - a “idade sensível” é o período da vida da criança “em que os movimentos possuem um interesse fundamental”, ela parece estar ávida por “equilibrar seus conhecimentos com sua necessidade de movimentar-se” (Montessori, 1965, p. 85).

Assim, na educação da primeira infância, Montessori (1965) destaca a educação dos movimentos e a dos sentidos: os “dois meios de atividade, capazes de se aperfeiçoar indefinidamente”, e que “a educação, destinada a elevar a inteligência, deverá elevar, sempre mais” (p. 102). Enquanto na educação dos sentidos nos focamos nos exercícios do silêncio, na dos movimentos, elegemos o exercício da linha como sugestiva ilustração da progressividade dos exercícios de aperfeiçoamento, do seu contributo para a educação integral da criança e da sua preparação para “entrar em todos ambientes mais elevados” (p. 91).

4.1 Segredo do aperfeiçoamento dos movimentos da criança

O exercício da linha é um meio importante para auxiliar a criança a “tornar mais sólido o equilíbrio da sua pessoa e, ao mesmo tempo, aperfeiçoar-lhe um movimento fundamental entre todos: o andar” (Montessori, 1965, p. 89). Mais concretamente, consiste em desenhar no pavimento uma linha, em forma de uma longa elipse, e caminhar com o pé inteiramente sobre ela. Segue-se um conjunto de passos para aumentar o grau de dificuldade do movimento a praticar, acrescentando-se um novo objetivo no seu aprimoramento: o primeiro visa incrementar o equilíbrio, e a criança deve colocar exatamente a ponta e o calcanhar sobre a linha; juntando-se, depois, o propósito de colocar os pés sempre na posição devida, tocando com o calcanhar do pé que vai na frente na ponta do pé que ficou atrás.

Se o primeiro passo implica o esforço da criança para manter o equilíbrio, o segundo exige, também, uma profunda atenção. Na Casa dei Bambini, são, ainda, proporcionados à criança outros três passos de nível superior de exigência, sugerindo-lhe que leve consigo um objeto a fim de poder controlar os seus movimentos: uma bandeira, um copo cheio de líquido colorido ou um sininho. Estes três “exercícios ulteriores implicam dificuldades maiores ainda, exigindo da criança esforço e atenção” (Montessori, 1965, p. 90): avançar com a bandeira numa posição elevada exige dividir a atenção entre os pés, que caminham sobre a linha, e o braço, que sustenta a bandeira; avançar com o copo sempre alinhado requer muita concentração para o líquido não cair, bem como domínio e controlo da mão pela mesma cautela e vontade que, simultaneamente, dirige os pés que caminham sobre a linha; passar sobre a linha, pegar um sininho e conservá-lo numa posição vertical, solicita, também, uma dedicação elevada para não deixar o sininho tocar (pp. 89-90).

Como refere Montessori (1965), estes exercícios, utilizados de um modo agradável e cativante, têm em vista “o aperfeiçoamento do indivíduo” e é “mediante um exercício prolongado e repetido” que a criança se torna capaz de uma atividade motora muito maior e “senhora dos seus atos”, sendo “um ser cheio de alegria e de saúde, facilmente identificável pela sua calma e disciplina” (p. 91). Acrescenta, ainda, que “a dignidade e a graciosidade de conduta, a desenvoltura [da criança] são dons sobrepostos aos seus laboriosos e pacientes trabalhos de conquistas básicas. São criaturas ‘controladas’: seu autocontrolo livra-as do controlo alheio” (p. 92). Todavia, adverte que “o segredo do aperfeiçoamento está na repetição” e que esta se consegue “combinando os exercícios com as funções costumeiras da vida de cada dia”, sem as quais ela “não poderia adquirir uma habilidade verdadeira e real” (p. 92). É este enquadramento dos exercícios de aperfeiçoamento na vida prática e de ligação de tudo o que se ensina à vida que distingue a “nova educação” do “sistema de educação antigo”:

Convém distinguir entre ensinar como se deve agir, deixando, porém, as crianças livres nas aplicações práticas, e (é o que ocorre comumente) conduzir os menores gestos das crianças, impondo-lhes a habilidade e a vontade do adulto. Com o sistema antigo, pretende-se defender a liberdade da criança, mas o que se faz é deixá-la sem vontade nem habilidade, visto a criança ser completamente substituída pelo adulto. Não se pense, por isso, que nosso método de educação seja negativo: muito pelo contrário, nossa educação não se destina a impedir, mas a intensificar e aperfeiçoar. (Montessori, 1965, p. 92)

Acrescenta Montessori (1965) que a “nova educação” não se limita a dar à criança os meios de realizar as ações, mas “propicia ainda a liberdade de dispor delas” (p. 94) e exorta:

Deixemos a criança livre na aplicação das suas habilidades: ela se revelará sensível às conquistas superiores que se hão de seguir. Comportar-se-á com escrupulosa diligência, exercendo cada atividade em seu próprio tempo e lugar, assim como o petiz de idade inferior (o de dois anos) sente orgulho em saber colocar os objetos em devido lugar. (Montessori, 1965, p. 94)

Nesta perspetiva, a “nova educação” contraria o postulado de que “a criança deve fazer o que quer”, como poderia deduzir uma leitura superficial do método montessoriano, quando este advoga que “a atividade da criança há de ser impulsionada pelo seu próprio eu e não pela vontade da mestra” (Montessori, 1965, p. 97).

Como ilustra o exercício da linha no chão, a criança, “ao caminhar, é obrigada a colocar, cuidadosamente, os pés sobre uma linha traçada no chão” e a “exercitar-se em reduzir o seu corpinho a uma minuciosa imobilidade, trabalhando com a paciência de um servo e analisando cuidadosamente cada um dos seus movimentos” (p. 92). Mais ainda, “a criança acaba por concentrar-se no seu exercício, com tal intensidade que não se distrai com o que a rodeia, e continua a trabalhar, repetindo o exercício uniformemente dezenas e dezenas de vezes consecutivas” (p. 96). A este “fenómeno da concentração e da repetição do exercício acha-se intimamente relacionado o desenvolvimento interior […], a abstração do mundo exterior e a ligação estreitíssima com o mundo íntimo e secreto da criança” (p. 96).

Na verdade, é a consideração do silêncio como “mais um dos exercícios sensoriais” (p. 91) que permite à “nova educação” praticada na Casa dei Bambini chegar a um “silêncio profundo, conseguido até mesmo em classe de mais de quarenta crianças de três a seis anos de idade” (p. 138). Esta “obra coletiva” pode ser conseguida, não porque é imposta, mas porque é “realizada mediante a procura de uma satisfação interior entre essas crianças habituadas a agir cada uma por conta própria” (p. 139).

4.2 Ensino do silêncio e disciplina voluntária

Para ensinar o silêncio às crianças, executam-se “diversos exercícios que contribuem surpreendentemente para criar nos petizes uma capacidade de autodisciplina” (Montessori, 1965, p. 139).

O primeiro exercício é um ensaio que parte da chamada de atenção da educadora (a própria autora), “pedindo-lhes que mantivessem silêncio comigo” (Montessori, 1965, p. 139). Trata-se de “ensaios, entremeados de breves palavras e advertências concisas”, de “momentos de imobilidade e silêncio”, nos quais a educadora se conserva “em pé ou sentada, imóvel, silenciosa” (p. 139) e segue um roteiro: (i) chama cada criança e pede-lhe que a imite; (ii) convida as crianças a prestar atenção (a) aos próprios movimentos das crianças até então impercetíveis, (b) aos ruídos da sala (como o tique-taque do relógio de parede) e (c) aos ruídos do pátio que parecia silencioso (um pássaro que pia, uma criança que passa); (iii) convida a escutar e atender à chamada pelo próprio nome. Com este exercício, as crianças apercebem-se do ruído que antes faziam, inadvertidamente, “descobrem que são mais felizes no silêncio […], um silêncio absoluto em que nada, absolutamente nada, se move”, também “observam, com a máxima atenção, cada parte de seu corpo, numa vontade ansiosa de manter absoluta imobilidade” (Montessori, p. 139). Por conseguinte, como se a sala se esvaziasse, à medida que o silêncio se torna mais profundo e intenso, ouve-se o ruído da sala e/ou do pátio, antes impercetível. Depois, à chamada suave da educadora, a criança nomeada, “ao ouvir o seu nome, levantava-se silenciosamente, esforçando-se por não fazer barulho com a cadeira e caminhando na ponta dos pés, o mais impercetível possível: seus passos, todavia, ressoavam em meio àquele absoluto silêncio” (p. 140). Assevera Montessori (1965) que esta fruição do silêncio e este estado de emoção e de alegria são compensação suficiente pela superação dos esforços realizados, porque, explica a autora, “a alma infantil possui dentro de si mesma suas recompensas e alegrias espirituais” (p. 141).

Os exercícios do silêncio incorporam uma disciplina voluntária por parte das crianças. Esta, assegura Montessori (1965), é “alcançada por via indireta, graças ao desenvolvimento do trabalho espontâneo” (p. 286), por isso, não se obtém com ordens ou discursos, nem com repreensões e advertências, que apenas ensejam uma ilusão de obediência. Os “alvores” da verdadeira disciplina nascem com o trabalho: “Quando uma criança toma interesse pelo trabalho, a expressão de seu ambiente, a atenção, a constância de seu exercício, comprovam sua aplicação. Esta criança acha-se no caminho da disciplina” (p. 285). A mestra pode favorecê-la mediante repetidas “lições de silêncio” - “a imobilidade perfeita, a atenção necessária para perceber a chamada, em voz baixa, do seu próprio nome, a coordenação dos movimentos que impedem os encontrões com pessoas e coisas, o caminhar silencioso” - com vista a estabelecer o fenómeno da concentração e vigiando-o “com precisão, graduando os exercícios”. Estes exercícios “constituem uma preparação eficaz para aprumar a personalidade, motora e psíquica” (p. 285).

A imobilidade e o trabalho, enquanto comportamentos exteriores, são um meio para que a criança atinja o seu desenvolvimento interior, e esta observação é capital, porque nos permite compreender que a disciplina não constitui, em si, uma finalidade, mas antes um “caminho pelo qual a criança conquista a conceção da sabedoria com uma precisão que poderia ser qualificada de científica” (Montessori, 1965, p. 287) e vem a ser, portanto, um caminho que lhe revela a sua “vida interior no seu íntimo” (p. 287).

4.3 Lição do silêncio e aprofundamento ontológico da interioridade

Os graus de exigência de atenção nos exercícios de controlo dos movimentos sugerem a Montessori (1965) a associação a um silêncio de outra espécie, que “procura tornar possível o silêncio absoluto […] numa medida e modo adequados à natureza das crianças” (p. 90). Deste modo, “o alvo visado não é somente um silêncio aproximativo e uma relativa imobilidade; mas uma perfeição, gradualmente adquirida de tal modo que não se ouça nenhum barulho, nenhum som ou voz, nenhum ruído com os pés, mãos ou respiração” (pp. 90-91). Nesta perspetiva, “o silêncio absoluto equivale a uma absoluta imobilidade” (p. 91).

A pedagoga afiança que a educação dos movimentos aperfeiçoa as crianças que, quando assim educadas, são “capazes de penetrar em todos os ambientes elevados”, nomeadamente “entrar num lugar sagrado, onde a imobilidade e o silêncio são obrigações para quantos queiram aí entrar” (Montessori, 1965, p. 91), descrevendo, então, o andar que os “petizes” da Casa dei Bambini desenvolvem e são capazes de controlar:

Ei-los ativos, naquela sua atenção que se prolonga por todos os músculos. Podem andar sem fazer barulho: sentam-se, levantam-se, transportam cadeiras sem perturbar a quietude do santuário. Tudo isto, na verdade, não é ainda um sentido religioso consciente: os petizes, entretanto, estão, praticamente, preparados para visitar, com dignidade, um lugar em que se pratica a religião. (Montessori, 1965, p. 91)

Mas, segundo Montessori (1965), o silêncio é mais do que “suspensão de todo o movimento” e cessação dos “ruídos que excedem o ruído normal na classe”. No entanto, as escolas do “sistema antigo” ou “escolas comuns” procuram esse conceito “mediante ordens categóricas”, reduzindo-o “a pausa de uma reação, a negação da desordem e da algazarra” (p. 138). Aí, ignora-se que “exigir ‘imobilidade’ equivalia a suspender o ritmo vital durante aqueles momentos de silêncio” (p. 138), enquanto a perspetiva montessoriana entende o silêncio:

De um modo positivo, como um ‘estado superior’ à ordem normal das coisas, como uma inibição instantânea que exige um esforço, uma tensão da vontade, que elimina os ruídos da vida quotidiana, como que isolando a alma das vozes exteriores. (Montessori, 1965, p. 138)

Na escola montessoriana, a disciplina exterior dá paulatinamente lugar à interior, que se reflete no comportamento calmo, mas também na tranquilidade psíquica (o modo como a criança ordena os seus raciocínios, desenvolve a atividade espontânea da associação de ideias, …): “nas nossas crianças, porém, a calma exterior é um fenómeno demasiado físico que nos oculta a verdadeira disciplina que se desenvolve no seu íntimo” (1965, p. 293). Em última instância, com todos os exercícios baseados na ordem, Montessori (1965, 2016) esperava que a disciplina e o desenvolvimento intelectual, enquanto “frutos da vida espiritual”, fossem uma constante na vida infantil: “Os exercícios silenciosos de Montessori parecem, sem qualquer hesitação, apresentar o silêncio como um instrumento didático perfeito para convidar as crianças a exercerem poder sobre si próprias - sem que o professor intervenha mais” (Verstraete, 2017, p. 509).

Defende Montessori (1965) que cada criança “deve encontrar a possibilidade de ‘se recolher’: a atividade calma e silenciosa, cujos objetivos não são exteriores, mantém acesa essa luz interior que ilumina a nossa vida” (p. 286). E, por isso, o silêncio, enquanto exercício de quietude, é-lhes revelado incidentalmente: o episódio do bebé de quatro meses (levado ao colo pela mãe) foi a “lição sobre o silêncio” que se veio a revelar “sobremaneira eficaz para aperfeiçoar o nosso silêncio” (p. 142), afiança Montessori.

Mais concretamente, Montessori mostra o bebé às crianças, e elas, aproximando-se, contemplavam-no com um misto de ternura e alegria. A pedagoga diz-lhes que ele era um “professor” na medida em que era um modelo de quietude, de paz e de inspiração de silêncio. Assim, as crianças deixavam-se impressionar até mesmo com a respiração silenciosa e com a imobilidade dele e “estavam sérias, compenetradas da superioridade de seu ‘mestre” (Montessori, 1965, p. 142); elas “sentem a poesia do silêncio e da paz que envolvem uma vida humana nascente” (2014, p. 241). Ao tratar do silêncio no livro A Criança (Montessori, s. d., [19--]), a autora apresenta este episódio e acrescenta que a respiração do bebé suscitou nas crianças presentes uma “serena atitude de meditação” e um silêncio impressionante.

Como realça Pier Verstraete (2017), na “lição sobre o silêncio” de Montessori, este é apresentado como um bem valioso e “as crianças são seduzidas a silenciar por um fator intermédio, a saber, o bebé” e assinala: “é esta abordagem particular do silêncio, bem como esta perceção moderna de como exercer poder sobre os outros, que se espalharia cada vez mais no pensamento do século XX sobre educação e escolarização” (p. 509). Ainda mediante a “lição sobre o silêncio”, Montessori não só atribui um papel importante ao mesmo como também lhe reconhece uma função educadora. Neste sentido, perspetiva o silêncio como condição essencial para uma autoeducação baseada na trilogia autonomia-liberdade-disciplina, cujo objetivo maior é a formação de crianças virtuosas, imbuídas de luz, de alegria, de paciência, de bondade, de mansidão e de modéstia. Deste modo, surgem como anunciadoras do futuro “Homem Novo” numa sociedade amante da paz (Montessori, 1996).

A autora encara o silêncio de uma forma positiva, em oposição ao silenciamento da educação do “sistema antigo”, e não se cinge tão-somente ao silêncio exterior, mas antes, e sobretudo, preconiza e implementa o seu “ensino” às crianças. Assim, convida-as a vivenciá-lo e, portanto, a internalizarem a sua necessidade, a aprenderem a saboreá-lo, a conhecerem-no para melhor o afirmar em si (enquanto experiência de interioridade) e nas suas relações intersubjetivas, vivendo-o como dom espiritual e oferenda devotada de cada um para si mesmo, assim como de cada um para o outro - agora considerado como outro “eu”.

Na “lição sobre o silêncio”, a sua aprendizagem vem a ser um conjunto de práticas mediante as quais as crianças aprendem a sabedoria da quietude, da tranquilidade e, até, da própria meditação. Aquele que vivencia a quietude sente-se recetivo e pronto a libertar-se da mente para se lançar em níveis elevados da consciência, em que o ruído da mente não se faz praticamente ouvir.

5. Bem-estar e elevação espiritual

Montessori (1965), partindo da constatação de que o trabalho psíquico é também “fruto […] dos órgãos do sentido e do sistema muscular” e “não […] somente do cérebro” (p. 77), defende a ativação do funcionamento destes em relação com a vida psíquica:

O trabalho mental deve ser acompanhado de sensações de verdade e de beleza que o reanimem, e de movimentos que permitam a exteriorização das ideias e as projetem num mundo em que os homens devem auxiliar-se mutuamente. Os exercícios musculares hão de estar sempre a serviço da vida psíquica; jamais deveriam abdicar dessa função, para pôr-se a serviço da parte material da vida vegetativa, da “vida física”. (Montessori, 1965, pp. 77-78)

Esta preocupação com a saúde psicossocial e com o bem-estar das crianças traduz-se numa estratégia pedagógica para promover a concentração, a meditação, a compaixão solidária e a calma das crianças, cativando-as para meditarem e para focarem a sua atenção numa dada tarefa ou no interior de si-mesmas. Congruentemente com esta perspetiva do silêncio como atividade livre e alegre, o silêncio imposto das escolas do “sistema antigo” cede lugar, na “nova educação” montessoriana, a um ambiente de liberdade e de autodisciplina, de atividade e de quietude, requerendo uma mestra de tipo novo: ela há de “adquirir uma habilidade moral, […] habilidade feita de calma, de paciência, caridade e humildade” (Montessori, 1965, p. 144); deve “facilitar à criança um trabalho ativo e contínuo, orientando-a, porque compete a esta ‘escolher os objetos’ e ‘exercitar-se com eles’”, bem como contentar-se com “indicar e orientar, pondo à disposição das crianças uma graduação de exercícios mentais” (p. 144); tem de considerar que “o fim a atingir é estabelecer com ordem a atividade espontânea da criança” (p. 155); precisa de “saber claramente que o seu dever é guiar, e que o exercício individual deverá ser sempre o trabalho da criança” (p. 157).

Montessori (1965) assegura que, com tais mestras-guias - humildes por funcionarem como “traço de união entre o material e a criança”, ela, sim, a “entidade ativa” -, as crianças “progridem: tornam-se indivíduos de caráter firme, afeitos à disciplina; adquirem uma saúde interior que é, precisamente, o resultado da libertação da própria alma” (pp. 144-145).

A autora (Montessori, 1965) aprecia o silêncio para fomentar a disciplina e a própria ordem mental e motora das crianças, segundo a passagem da sua Pedagogia Científica em que trata da “elevação” espiritual da criança (pp. 167-170). No entanto, esta elevação está além das técnicas e das estratégias centradas no aumento da atenção e no desenvolvimento da consciência. Trata-se, é certo, de aprumar a personalidade - a motora e a psíquica -, podendo “favorecer tal disciplina mediante repetidas ‘lições do silêncio’” (p. 285). Porém, é, também, o aperfeiçoamento espiritual, que resulta daquilo que a autora designa como “ordem média”: o silêncio é o ponto de partida para a “elevação espiritual” e este pressuposto é ajudado por aquilo que ela denomina de “silêncio de imobilidade”, o qual, ao suspender a vida normal, interrompe o trabalho útil e, como tal, não tem nenhum “fim prático”:

O alvo visado [o silêncio absoluto] não é somente um silêncio aproximativo e uma relativa imobilidade; mas uma perfeição, gradualmente adquirida, de tal modo que não se ouça nenhum barulho, nenhum som de voz, nenhum ruído com os pés, mãos ou respiração. O silêncio absoluto equivale a uma absoluta imobilidade. (Montessori, 1965, pp. 90-91)

Esta suspensão da vida comum eleva, por conseguinte, “o indivíduo a um nível superior”, pelo que “não é a utilidade o que se procura, mas sim uma conquista” do referido “grau superior” e, por isso, podemos afirmar que o silêncio total tem como horizonte último “a perfeição”. Contudo, esta “jamais seria alcançada” se “não existisse, na criança, ‘sob a forma de uma necessidade’, uma tendência que torna possível essa elevação” (Montessori, 1965, p. 168). Não sendo a elevação estranha às crianças, concerne aos adultos ajudá-las nesse sentido: “dar-lhes mais do que elas seriam capazes de adquirir com as suas próprias forças, […] dar-lhes uma filosofia das coisas” (p. 169), a partir da qual a criança, usando a sua capacidade mental, consegue apreender as ideias abstratas - “conceções sintéticas do espírito tornadas independentes das coisas reais” (p. 169). Desde esse nível de abstração, a criança coloca-se em condições “de atingir a mais elevada conquista de que o seu espírito é capaz” (p. 170).

6. Conclusão

Os princípios orientadores da “pedagogia científica” de Montessori perspetivam uma educação baseada na sua liberdade de escolher a atividade a exercitar para experienciar e desenvolver as suas potencialidades. Desta forma, procura-se gradualmente uma maior perfeição nos exercícios adequados ao seu nível de desenvolvimento, não podendo a mestra esquecer que a finalidade última não é a prática de cada exercício, mas o aperfeiçoamento. Aliás, o segredo está na repetição e na continuidade na execução das tarefas quotidianas.

Os princípios da influência da experiência, da ordem das coisas, da finalidade superior da atividade prática, do gradual aperfeiçoamento da execução dos exercícios e da idade oportuna para cada aprendizagem estão na base da consideração do silêncio como um fenómeno positivo e da sua necessidade tanto para a exercitação da atenção de cada criança como para a sua perceção do mundo que a envolve.

O método montessoriano destaca-se, então, por considerar o silêncio na sua positividade. Mais do que a mera ausência de som e do que a simples renúncia da palavra (Picard, 2019), pressupõe a liberdade de adesão e, por oposição ao silêncio por imposição do mestre, posiciona-se longe do silenciamento entendido como opressivo e repressor da voz dos alunos, admitindo, porém, aquele que deriva da vontade destes. Como refere Pieter Verstraete (2016), Montessori encontra uma saída para a tensão entre a autoridade educativa da mestra e a ênfase da liberdade da criança, substituindo “o silêncio incómodo do sistema escolar desatualizado […] por uma atividade alegre e lúdica em que as crianças se tornam responsáveis pela sua própria atividade”, onde não é já o professor que pede ou ordena às crianças que fiquem em silêncio: a mestra está presente, mas “parece ter-se tornado o pano de fundo no qual a atividade educativa ocorre” (p. 67).

Montessori considera o silêncio exterior, mas requer também o interior, porque “fazer silêncio” é mais do que suster as palavras e os sons, exige contenção mental, sendo o primeiro o ponto de partida de um percurso de aprofundamento do segundo. Assim, para tal, é preciso “silenciar as vozes da mente, mas também os gritos do coração” (Torralba, 2010, p. 38). A contenção mental favorece a escuta ativa, que é condição para um melhor conhecimento de si, do outro e do mundo. Como tal, vem a ser uma técnica que liberta a palavra das crianças (Rogers, 1999).

Na verdade, os exercícios do silêncio na Casa dei Bambini desenvolvem a acuidade auditiva e, em simultâneo, visam o apuramento da personalidade e a elevação espiritual de cada criança, pelo que não se deixam capturar numa forma específica de silêncio - reduzido a um mero instrumento facilitador da aprendizagem de conteúdos e de habilidades estabelecidas no âmbito de determinada disciplina ou unidade curricular -; e apontam para níveis de atenção e de escuta potenciadores do desenvolvimento da interioridade.

Efetivamente, o silêncio é um fenómeno complexo, multifacetado, intangível e difuso. Embora com variações de intensidade, na proposta montessoriana de exercitação e de experienciação do silêncio, há indícios de uma conceção da vida como viagem existencial em que se conjugam as vertentes exterior e interior do fenómeno. Estão, ainda, presentes os três níveis de escuta previamente enunciados e, por eles, o viandante procura não apenas o conhecimento da vida, da sociedade e do mundo mas também resposta à pergunta “quem sou eu?”, favorecendo uma maior convergência do “eu” que parte com o seu “eu” verdadeiro (d’Ors, 2022, p. 104), no intuito de restaurar a unidade psíquica da mente e do corpo (Lillard, 1988) mediante um processo de radical transformação interior.

A aprendizagem do silêncio comporta, pois, uma disciplina própria. Também Montessori tende a encarar a experiência do silêncio como salvífica do espírito infantil e como uma necessidade radical (física, psicológica, intelectual, moral ou espiritual) que faz da criança um ser mais equilibrado, harmónico, pacífico e perfeito. A autora, mais do que colocar a tónica nos malefícios do ruído (que enerva; deprime; impede o pensamento e a emoção), prefere acentuar os benefícios do silêncio: ele protege; tranquiliza; favorece o exercício do pensamento e a vivência das próprias emoções; melhora o comportamento e o caráter das crianças. Não é, portanto, o silêncio exterior-epidérmico ou passivo que ela deseja promover, mas antes o interior, meditativo ou ativo.

Assim, o ideal da “lição sobre o silêncio” prende-se, a nosso ver, com o desejo de Montessori de instituir na sala um silêncio interior, meditativo, que não só permita que cada criança trabalhe - no sentido mais artesanal do termo - a sua interioridade em ordem à sua transformação, entendida como Umbildung (Sola, 2003), como também a inspire a pensar e a escutar o apelo do silêncio que a habita. Dessa escuta recolhida, provavelmente, ressoa na criança o apelo da palavra autêntica que é aquela que traduz a plenitude do silêncio e a que está mais próxima da verdade do sentido e do mundo. Neste caso, estamos perante o silêncio ontológico, e falar dele é entrar num universo que se estende além das palavras; nele, a meditação tem lugar enquanto procura de elevados estádios de consciência (Rassam, 2017).

Mais especificamente, este tipo de silêncio - ontológico - insere-se numa perspetiva que comporta uma pedagogia e uma disciplina do silêncio, que requer continuidade e não pode esgotar-se no espaço e tempo escolares. Embora possa sentir-se no apelo que exerce em aplicações pragmáticas da meditação, o silêncio ontológico solicita sempre a via de exercitação longa e profunda da própria meditação, e a sua aprendizagem acontece mediante uma pedagogia do silêncio como paideia, porquanto extravasa o alcance da educação escolar (Araújo, 2019). Esta pedagogia do silêncio leva a aprender a estar em silêncio, bem como a vivê-lo devotamente, a perscrutá-lo e a escutá-lo. É uma forma de aprender que é, já em si, um convite à meditação, à reflexão e, também, a que cada um vá ao encontro da sua interioridade: não para se alienar mas para realizar a vocação (ontológica e histórica) de se humanizar (Freire, 1987).

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Recebido: 22 de Junho de 2023; Aceito: 22 de Janeiro de 2024

Toda a correspondência relativa a este artigo deve ser enviada para: Alberto Filipe Araújo afaraujo@ie.uminho.pt

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