1. Introdução
A relação entre origens sociais e percursos escolares tem sido observada em sucessivos estudos ao longo das últimas décadas. Porém, a mesma continua a não ser reconhecida em discursos públicos e as transformações profundas que têm conhecido os sistemas educativos - nomeadamente, com a expansão acelerada dos públicos, dos percursos e dos diplomas escolares - são, frequentemente, citadas para remeter essa relação para o passado. Portugal é um caso flagrante desta mudança não apenas pelo carácter massivo e socialmente seletivo do insucesso e abandono escolares, na segunda metade do século XX (Benavente et al., 1994), mas também pela rápida diminuição desses fenómenos nas duas primeiras décadas do século XXI (Martins, 2022). Uma diminuição que importa analisar nas suas múltiplas cambiantes - externas e internas ao sistema educativo -, no sentido de compreender as reconfigurações dos percursos escolares e extraescolares, bem como as suas relações com as origens sociais.
Neste seguimento, considerou-se importante regressar a uma análise dos percursos escolares dos jovens, no sistema educativo português, à luz das desigualdades sociais de origem, recorrendo a uma base de dados recente, robusta e com amplitude nacional. De forma complementar, reconhecendo que os jovens são mais do que estudantes e que outros contextos sociais podem ser importantes na sua formação e integração social, exploram-se os padrões de participação juvenil em organizações cívicas, culturais e desportivas, segundo a sua classe social de origem. O objetivo é discutir até que ponto as origens de classe são condicionantes dos percursos escolares e de participação social dos jovens. Privilegia-se, assim, uma análise simultaneamente extensiva (alcance nacional) e multidimensional, que traz à discussão a relevância dos contextos familiar, escolar e extraescolar na compreensão dos (novos) processos de desigualdade social.
O artigo começa por enquadrar o estudo num filão de pesquisas, a nível nacional e internacional. Em seguida, explicitam-se os procedimentos metodológicos fundamentais, em particular, no que concerne à recolha e tratamento dos dados. Apresentam-se os principais resultados da análise e, por fim, procede-se à sua interpretação, em diálogo com a literatura sobre o tema.
2. Escolarização e outros contextos de socialização juvenil
A expansão dos padrões de escolarização tem sido um processo global, embora com ritmos e intensidades distintos. Trata-se de uma mudança particularmente célere em países como Portugal. Se, na viragem do milénio, mais de metade dos jovens abandonava a escola sem completar o ensino secundário, hoje, a generalidade dos adolescentes frequenta a escola até aos 18 anos e cerca de metade prossegue estudos para o ensino superior (Martins, 2022). As implicações desta mudança para os modos de integração e de socialização dos jovens são complexas e profundas.
Por um lado, numa perspetiva focada no sistema educativo, temos assistido a uma notável diversificação das ofertas formativas, a qual se tende a associar, em intensidades diversas, a desigualdades sociais de origem e de reconhecimento no mercado de trabalho. Falamos, aqui, das diferentes experiências e perspetivas de futuro proporcionadas por distintos estabelecimentos de ensino, dos complexos processos de composição das turmas, bem como da distribuição dos estudantes por modalidades de ensino (umas de cariz científico e humanista, outras de cariz vocacional) que tendem, igualmente, a associar-se a origens e destinos de classe diferenciados.
Em Portugal, alguns estudos têm mostrado a forte relação que persiste entre a classe social de origem, o nível de escolaridade obtido e a classe social presente dos indivíduos (Abrantes, 2022a; Costa & Mauritti, 2018). A nível escolar, têm-se observado as fortes assimetrias de resultados e percursos escolares entre estudantes de distintos contextos sociais e territoriais (Albuquerque et al., 2022; Justino & Santos, 2017). Outros estudos têm permitido compreender como a expansão do ensino secundário tem dado origem a contextos educativos socialmente contrastados, que, por sua vez, abrem oportunidades de futuro académico e profissional, também, assimétricas (e.g., Antunes & Sá, 2010; Abrantes & Roldão, 2019).
Paralelamente, a racionalização da rede escolar operada nas duas últimas décadas instituiu os agrupamentos de escolas como configuração organizacional dominante, ficando o ensino secundário integrado, na maioria dos casos, em “agrupamentos verticais completos” (55% num total de 713 agrupamentos) e, minoritariamente, em escolas secundárias não agrupadas (13%) (Lima & Torres, 2020). A distribuição geográfica dos agrupamentos acompanha o processo de litoralização e urbanização da sociedade portuguesa, sendo notórias as assimetrias regionais na oferta do ensino secundário, bem como a segregação de organizações escolares situadas em territórios vulneráveis (Abrantes, 2022b).
Embora as diferenças entre sociedades e entre sistemas educativos não sejam desdenháveis, trata-se de um fenómeno amplamente estudado a nível internacional. Em França, podemos reportar-nos à análise estruturalista de Pierre Bourdieu e Patrick Champagne (1993) sobre os “excluídos do interior” - estudantes com baixas classificações e relegados para vias subalternas do sistema escolar -, assim como aos estudos de François Dubet e Danilo Martuccelli (1996) sobre os diferentes sentidos da ação em contextos escolares contrastantes.
Nos países anglo-saxónicos, com uma tradição mais liberal, a questão já se encontrava em estudos sobre as classes sociais, tais como Bowles e Gintis (1976), tendo sido aprofundada através do conceito de “circuitos de escolarização” (Gewirtz et al., 1995), considerando os efeitos de políticas neoliberais, focadas na privatização, na performatividade e na eficiência das escolas, nomeadamente na reconfiguração do sistema educativo enquanto mercado, cada vez mais global (Ball, 2004; Dale & Robertson, 2009; Whitty et al., 1998).
Este fenómeno tem vindo, igualmente, a ser objeto de análise no espaço iberoamericano, tendo em conta as profundas desigualdades históricas que o caracterizam. Veja-se o trabalho de Gonzalo Saraví (2015) sobre a fragmentação da juventude, considerando os distintos percursos educativos e de integração laboral que caracterizam o ser jovem em diferentes classes sociais.
Dado o aumento concomitante das populações migrantes, em diversos países, uma atenção crescente tem sido dada ao modo como estas questões se articulam com as (macro, meso e micro) políticas de gestão da diversidade cultural através dos sistemas educativos (Verhoeven, 2011). A questão territorial não é alheia a esta discussão, não apenas porque os distintos territórios tendem a apresentar ofertas educativas desiguais, mas também porque as estratégias das escolas, dos jovens e das suas famílias provocam alterações, em múltiplos sentidos, nos tecidos urbanos (Broccolichi & van Zanten, 1997; Henry & Hankins, 2012).
Por outro lado, estas questões tornam-se mais complexas quando alargamos a reflexão a outras esferas da socialização juvenil. Se é na escola que os jovens passam grande parte das suas vidas, não devemos obliterar a existência de espaços paralelos de socialização, geradores de fortes investimentos identitários (Ferro, 2011). Falamos de práticas desportivas, culturais, recreativas, cívicas e/ou religiosas, com relações diversas com o campo escolar e com processos posteriores de inserção laboral. Uma parte destes contextos tendem a organizar-se, hoje, como promotores de educação não formal, adotando, frequentemente, lógicas próximas da escolar, quando não mesmo em parceria, ou no interior das escolas (Palhares, 2009).
Aliás, a escolha de escolas particulares prestigiadas é alimentada por algumas famílias pela busca de uma educação mais “holística” para os seus filhos, em cujas instituições é possível encontrar um leque diversificado e concentrado de atividades extracurriculares articuláveis com as lógicas classistas de distinção social e compatíveis com a procura de competências mobilizáveis nos percursos educativos em curso e em projetos profissionais pré-definidos (Quaresma, 2015). Um estudo recente com jovens advogados mostrou como, em contextos de forte concorrência por lugares privilegiados no mercado de trabalho, a participação continuada em atividades culturais, desportivas e cívicas constitui uma dimensão do curriculum vitae valorizada pelas entidades empregadoras, a par dos diplomas académicos e de outras competências e capitais revelados ao longo dos processos de recrutamento (Abrantes & Santos, 2022).
Se confrontarmos as competências mais valorizadas pela escola e pelo mercado de trabalho, constatamos algumas contradições significativas: na escola, a tónica colocada no individualismo, na reprodução e nas competências técnicas e instrumentais colide com as lógicas da cooperação, da criatividade e da reinvenção face à imprevisibilidade e à valorização de talentos e capacidades potenciais requeridos pelo atual mercado de trabalho (Torres, 2019).
Nesta linha de pensamento, o desenvolvimento e a consolidação destas competências resultam de aprendizagens extraescolares propiciadas pela participação nos mais diversos contextos de socialização, abrindo-se, cada vez mais, a espaços e a tempos situados para além da esfera quotidiana. Por exemplo, as oportunidades de aprendizagem anunciadas pelos programas de mobilidade e intercâmbio têm sido, frequentemente, enfatizadas para ajudar a suplantar eventuais lacunas dos curricula escolares. Não raras vezes, nos documentos oficiais e de pesquisa produzidos no espaço europeu, tem-se insistido na necessidade de reconhecimento das aprendizagens não-formais e informais, bem como relevado estas aprendizagens no fomento da empregabilidade e dos vários tipos de capital (humano, social, cultural, entre outros). Também aqui, as desiguais oportunidades de envolvimento e de participação nos vários programas tendem a emergir, não obstante as reiteradas recomendações de necessária democratização (e.g., European Youth Forum, 2003; Friesenhahn et al., 2013; Souto-Otero, 2016; Böhler et al., 2019)
A relação destes múltiplos espaços de socialização juvenil com as desigualdades escolares, sociais e territoriais é complexa e merece mais investigação. Há, contudo, trabalhos que têm cautelosamente apontado evidências dessa relação (e.g., Vicent & Ball, 2007), enquanto outros sugerem, mesmo, que “as atividades extracurriculares são mais uma via para reproduzir as desigualdades” (Adler & Adler, 1994, p. 325). Em ambos os estudos se enfatiza a necessidade de compreensão do papel das famílias de classe média na disponibilização às suas crianças de atividades de enriquecimento educativo e cultural, quer como estratégia de socialização nas lógicas competitivas do mercado de trabalho, quer como indução precoce de “disposições legítimas” (Vicent & Ball, 2007) para a manutenção da sua posição na estrutura social. Há que ter em conta, também, que estas atividades não se encontram distribuídas de igual forma pelo território e implicam, cada vez mais, custos que apenas as famílias socialmente mais favorecidas podem suportar (Adler & Adler, 1994; King, 1982; Silva et al., 2022; Vicent & Ball, 2007). Além disso, algumas destas atividades tendem a ser vistas em concorrência com o percurso escolar, sujeitando os jovens a uma escolha sobre a modalidade que devem priorizar, enquanto outras - como é o caso das explicações e dos cursos de línguas - são entendidas em “prolongamento” e como propiciadoras da “excelência escolar” (Palhares, 2019).
Uma pesquisa sobre a excelência escolar no ensino secundário português revelou, justamente, este efeito de reforço e de intensificação de algumas atividades, ao evidenciar que cerca de metade dos alunos com elevados desempenhos académicos (médias internas iguais e superiores a 18 valores) frequentava explicações e escolas de línguas (Torres & Palhares, 2017). Recentemente, um estudo sobre as atividades complementares de apoio ao estudo no final do ensino secundário (Direção-Geral de Estatísticas da Educação e Ciência [DGEEC], 2021) revelou que 38% dos estudantes em Portugal recorria a estas atividades, na sua larga maioria, fora da escola. Também aqui se denotou que eram os estudantes em cursos científico-humanísticos, oriundos das classes mais favorecidas, com melhores desempenhos académicos e com expectativas de prosseguimento dos estudos, quem mais recorria a estes apoios complementares.
De resto, estas relações não podem ser dissociadas de questões mais amplas da análise social, em particular, sobre a unidade ou pluralidade das dimensões da vida nas sociedades contemporâneas, assim como sobre a socialização ao longo da vida. Se é certo que a interação em campos distintos da vida social dá origem a alguma “pluralidade disposicional” (Lahire, 2001), não existem sinais de que a associação entre classes sociais, contextos de socialização e estilos de vida tenha enfraquecido, nas últimas décadas (Petev, 2013). A este propósito, é importante considerar que o envolvimento em práticas específicas, por exemplo, de índole religioso (Berghammer, 2012) ou cívico (Dewey, 2021), é influenciado por um reportório familiar “herdado”, cuja relação com o espaço das classes sociais é variável.
Por seu lado, uma parte dos jovens de condições mais humildes (sobretudo, aqueles que têm trajetos escolares bem-sucedidos) envolvem-se ativamente, quando têm essa oportunidade, em contextos de socialização que se associam a classes sociais mais favorecidas, procurando, desta forma, impulsionar trajetórias de aculturação e mobilidade social ascendente (Daenekindt & Roose, 2013; Mallman, 2017).
Em qualquer dos casos, o processo de socialização familiar permanece um pilar estruturante dos percursos educativos e de vida, uma vez que é neste espaço plural e denso que ocorrem aprendizagens que demarcarão os trajetos, as opções e as estratégias educativas. Igualmente, é neste espaço de socialização que se geram processos de diferenciação e desigualdade social inter- e intra- classes (Dubet, 2008; Dubet & Martuccelli, 1996; Duru-Bellat, 2002; Felouzis, 2014; Lahire, 2019).
3. Nota metodológica
Em Portugal, o estudo desta temática tem enfrentado limitações decorrentes da falta de dados representativos a nível nacional acerca dos percursos juvenis, articulando, em simultâneo, a dimensão familiar, escolar e extraescolar. Por isso, os trabalhos citados anteriormente e que procuraram combinar estas várias dimensões assentaram, quase sempre, em estudos de caso, em escolas ou municípios específicos. No entanto, os inquéritos realizados pelo Observatório dos Trajetos dos Estudantes do Ensino Secundário (OTES), da Direção-Geral de Estatísticas da Educação e Ciência (DGEEC), recolhem informação útil relativa a estas várias dimensões, a partir de amostras nacionais muito robustas da rede escolar no território continental, ainda que excluindo as regiões autónomas.
Assim, a análise que em seguida se apresenta baseia-se numa análise própria dos dados recolhidos e disponibilizados por esta entidade, em particular, nas quatro primeiras edições do Inquérito aos Estudantes à Entrada do Ensino Secundário, as quais se realizaram em 2008, em 2011, em 2014 e em 2017, respetivamente (a 5.ª edição, em 2020, foi suspensa devido à pandemia da COVID-19). A generalidade das escolas no território continental - públicas e privadas - com oferta de ensino secundário para jovens (tanto de cursos científico-humanísticos como de dupla certificação) têm sido convidadas, sendo o questionário aplicado nas turmas do 10.º ano de escolaridade das escolas que aceitem participar.
Segundo informação publicada pelo próprio observatório, as amostras foram compostas por: 46.175 estudantes de 588 escolas, em 2007/08; 67.043 estudantes de 748 escolas, em 2010/11; 60.448 estudantes de 699 escolas, em 2013/14; e 67.720 alunos de 727 escolas, em 2016/17.
De referir que este questionário é administrado pelas escolas, sob a coordenação do referido serviço de estatísticas da administração central. Devido ao aumento acentuado, ao longo das últimas duas décadas, da taxa de escolarização dos jovens no ensino secundário - em particular, entre os 15 e os 17 anos (DGEEC, 2023) -, podemos assumir que esta “coorte” se aproxima do universo dos jovens na referida faixa etária, ainda que outros estudos nos advirtam que algumas minorias - como é o caso da população cigana, em função de níveis ainda elevados de insucesso e de abandono escolar precoce - se encontrarão, certamente, sub-representadas (DGEEC, 2020).
A utilização destes dados implicou um extenso trabalho de colaboração entre 2021 e 2023, incluindo o estabelecimento da parceria institucional; a consulta de dados em safe center; a seleção e recodificação de variáveis; os testes de proteção do segredo estatístico; a entrega dos dados; a limpeza da base de dados; a transferência para o software IBM SPSS Statistics; a etiquetagem; e as recodificações finais.
A principal mais-valia desta metodologia foi o acesso a uma base de microdados produzida pela entidade oficial dedicada às estatísticas da educação, incluindo amostras representativas da população no ensino secundário, nas suas várias modalidades (cursos científico-humanísticos, cursos profissionais e outras vias profissionalizantes), tanto em escolas públicas como privadas. Foi, assim, possível reunir respostas de um total de 241.341 estudantes, com uma distribuição equilibrada entre as quatro edições, entre tipologias de estabelecimento de ensino e entre modalidades de ensino, atendendo à dimensão das mesmas consultada através das estatísticas oficiais. Além disso, este inquérito tem a particularidade de ter sido construído por uma equipa de sociólogos, incluindo uma bateria alargada de indicadores, relativos às origens sociais, ao percurso escolar e a outras dimensões da vida dos jovens.
Por seu lado, além da morosidade no acesso aos dados, a utilização de bases de dados institucionais apresenta, sempre, o constrangimento de limitar os investigadores às variáveis e categorias existentes, as quais frequentemente não permitem o aprofundamento do objeto de estudo pretendido, pelo menos, de acordo com o quadro teórico desenhado. Em todo o caso, pareceu-nos um manancial de informação bastante rico para explorar esta temática, sobretudo, considerando a escassez de dados resultantes de amostras representativas a nível nacional.
No presente artigo, pretendemos explorar em que medida a classe social de origem condiciona o percurso escolar dos estudantes do ensino secundário, assim como a sua participação em atividades cívicas, culturais e desportivas, dentro ou fora da escola.
A hipótese de partida, fundamentada no quadro teórico anteriormente apresentado, foi a de que os jovens de classes sociais dominantes - os quais concentram os maiores volumes de capitais económicos, sociais e culturais - terão percursos escolares mais favorecidos, tal como uma maior participação em atividades desportivas, cívicas e culturais, tanto dentro como fora da escola.
A classe social de origem foi operacionalizada a partir de uma análise do grupo profissional e do nível de escolaridade da mãe dos jovens, seguindo de perto a tipologia ACM (Costa, 1999; Costa & Mauritti, 2018). Esta opção assenta em vários fatores observados na sociedade portuguesa atual: (a) as taxas de emprego a tempo inteiro das mulheres são praticamente semelhantes às dos homens; (b) a homogamia educativa e de classe é elevada; e (c) uma parte significativa dos estudantes vivem, hoje, em famílias monoparentais, quase sempre, com a mãe. Alguns testes complementares foram conduzidos tendo por referência o grupo profissional e o nível de escolaridade do pai, confirmando-se a hipótese de que as relações com as variáveis relativas ao percurso escolar e extraescolar dos jovens não se alteram, face aos dados da mãe, ainda que os níveis de correlação sejam tendencialmente mais baixos. Por isso, para efeitos de economia de espaço, neste artigo, a origem social dos estudantes é identificada pelo grupo profissional das mães e pelo seu nível de escolaridade.
O percurso escolar foi caracterizado por quatro variáveis: a frequência da educação pré-escolar; o número de retenções no ensino básico; a classificação média no 9.º ano de escolaridade; bem como a modalidade de ensino e o tipo de escola no ensino secundário.
Tendo em conta os indicadores existentes na base de dados, o envolvimento em atividades extracurriculares foi analisado a partir das seguintes variáveis:
na escola - participação em equipas de desporto escolar; participação em atividades da associação de estudantes; participação em clubes temáticos e iniciativas solidárias;
fora da escola - filiação em clube desportivo; filiação em associação cultural ou recreativa; filiação em associação humanitária, ecologista ou de solidariedade; filiação no movimento escutista.
4. Resultados
A desigualdade dos percursos escolares começa na frequência da educação pré-escolar. Efetivamente, uma proporção significativa dos jovens que ingressaram no ensino secundário, em Portugal, entre 2007 e 2016, não havia frequentado um jardim de infância, sendo este valor bastante mais expressivo entre aqueles cujas mães eram operárias (Figura 1).
Nota: Elaboração Própria, a partir dos dados do Inquérito aos Estudantes à Entrada do Ensino Secundário, OTES (2007-2017), DGEEC (dados agregados da 1.ª, 2.ª, 3.ª e 4.ª edições).
Esta desigualdade aprofunda-se, ao longo do ensino básico. Como é possível observar na Tabela 1, os jovens cujas mães são profissionais técnicas e de enquadramento têm percursos escolares com menos retenções (15%), classificações médias mais elevadas no 9.º ano (25% com média de 5 valores), menor presença em vias alternativas de conclusão do ensino básico (95% no ensino regular) e maior propensão para ingressar nos cursos científico-humanísticos do ensino secundário (83%). A este propósito, ainda que bastante minoritária, vale a pena salientar a situação singular do ensino artístico (em regime integrado ou articulado), na qual as classes sociais mais favorecidas se encontram “sobre-representadas”.
No extremo oposto, encontram-se os filhos de operários, com um historial de mais retenções (40% já reprovou, pelo menos, um ano de escolaridade à entrada do ensino secundário) e classificações mais baixas (apenas 6% concluiu o 9.º ano com média de 5 valores), bem como uma maior percentagem de ingresso em vias profissionalizantes, logo no ensino básico (10%) e, sobretudo, no ensino secundário (48%).
De referir que, nestes vários indicadores, os descendentes de empresários, dirigentes e profissionais liberais encontram-se numa posição intermédia, entre estes dois polos, enquanto os trabalhadores independentes e empregados executantes se encontram claramente mais próximos do percurso dos filhos dos operários, ainda que em valores não tão extremados.
Nota: Elaboração Própria, a partir dos dados do Inquérito aos Estudantes à Entrada do Ensino Secundário, OTES (2007-2017), DGEEC (dados agregados das 1.ª, 2.ª, 3.ª e 4.ª edições).
Se as taxas de retenção em Portugal se reduziram de forma significativa, nos períodos de 2005 a 2010 e de 2014 a 2020 (DGEEC, 2023), não é certo que tenha enfraquecido a relação entre origens sociais e resultados escolares. A Tabela 2 mostra que o aumento da percentagem dos jovens que concluíram o ensino básico com uma classificação média de 4 ou 5 valores foi transversal às várias classes sociais, permanecendo muito mais frequente entre os estudantes de origens favorecidas, cujas mães são profissionais técnicas e de enquadramento (PTE) ou empresárias, dirigentes e profissionais liberais (EDL). Assim, a transversalidade no aumento do rendimento escolar, no final do 3.º ciclo do ensino básico, não atenua as tendências estruturais observadas no período considerado.
Pelo contrário, de 2007/08 para 2016/17, as diferenças neste nível de rendimento escolar parecem ter-se aprofundado entre as várias classes sociais. Ilustrativamente, na última edição do inquérito em análise, constatou-se que um aluno cujas mães integravam os PTE diferenciava-se, nas referidas classificações médias de 4 e 5 valores, em mais de 26,4 pontos percentuais de um aluno oriundo do operariado e em 22,6 pontos percentuais dos alunos cujas mães eram trabalhadoras independentes. Estas tendências já foram, similarmente, apontadas por Machado e colaboradores (Gabinete de Estatística e Planeamento da Educação [GEPE], 2011) na análise dos dados recolhidos na 2.ª edição do inquérito OTES, 2010/2011. Globalmente, os valores percentuais apurados no presente estudo para classificações 4 e 5 não diferem muito dos então apontados, à exceção do rendimento escolar de topo dos alunos oriundos dos empregados executantes. Tal se deve, em nosso entender, ao uso não idêntico do indicador socioprofissional de classe, pois, enquanto no trabalho do GEPE (2011) se “atribuiu ao agregado a categoria socioprofissional do elemento com a categoria mais elevada” (p. 25), aqui, privilegiou-se o lugar de classe da mãe como variável indicativa da origem de classe dos alunos, pelos motivos referidos na nota metodológica.
Classe social da mãe | 2007/2008 | 2010/2011 | 2013/2014 | 2016/2017 |
Empresários, Dirigentes e Prof. Liberais | 49,7 | 56,1 | 55,5 | 58,3 |
Prof. Técnicos e de Enquadramento | 56,2 | 64,2 | 63,0 | 65,7 |
Trabalhadores Independentes | 37,6 | 44,3 | 41,1 | 43,1 |
Empregados Executantes | 43,6 | 49,6 | 48,9 | 50,1 |
Operários | 31,7 | 39,5 | 37,9 | 39,3 |
Nota: Elaboração Própria, a partir dos dados do Inquérito aos Estudantes à Entrada do Ensino Secundário, OTES (2007-2017), DGEEC (1.ª, 2.ª, 3.ª e 4.ª edições).
Este quadro de desigualdades é, ainda, acentuado quando comparamos os percursos segundo o nível de qualificações da mãe. Na Tabela 3, é possível observar como os filhos de mulheres com um nível de escolaridade que não foi além do ensino básico continuam a enfrentar maiores dificuldades no sistema educativo: à entrada do ensino secundário, 42% já repetiu, pelo menos, um ano de escolaridade; quase dois terços (64%) concluiu o ensino básico com a classificação positiva mínima (3 valores, numa escala de 1 a 5); e praticamente metade prosseguiu cursos profissionalizantes no ensino secundário (48%, agregando aqueles que frequentam cursos profissionais e outras ofertas de dupla certificação).
Por outro lado, há uma clara concentração dos jovens com mães diplomadas do ensino superior nos percursos escolares sem retenções, com classificações elevadas no 9.º ano de escolaridade e com ingresso nos cursos científico-humanísticos do ensino secundário.
Nota: Elaboração Própria, a partir dos dados do Inquérito aos Estudantes à Entrada do Ensino Secundário, OTES (2007-2017), DGEEC (dados agregados das 1.ª, 2.ª, 3.ª e 4.ª edições).
Estes padrões são confirmados na Figura 2, resultante de uma análise de correspondências múltiplas, onde se projetam, no espaço fatorial, duas dimensões denominadas Contextos e Percursos de Escolarização (dimensão 1, inertia = ,336) e Identidades Sociais e Culturais (dimensão 2, inertia = ,213). No plot obtido, foi possível observar uma proximidade entre categorias, formando dois perfis “típicos”: um composto por origens sociais desfavorecidas, historial de retenções, classificações baixas no ensino básico e ingresso em cursos profissionais; outro formado por origens sociais favorecidas, percursos escolares sem retenções, classificações elevadas e integração em cursos científico-humanísticos no ensino secundário.
Nota: Elaboração Própria, a partir dos dados do Inquérito aos Estudantes à Entrada do Ensino Secundário, OTES (2007-2017), DGEEC (dados agregados das 1.ª, 2.ª, 3.ª e 4.ª edições).
Por seu lado, os resultados relativos à filiação em organizações da comunidade e ao envolvimento em atividades extracurriculares na escola indicam, em primeiro lugar, taxas de participação relativamente baixas dos estudantes no 10.º ano de escolaridade, destacando-se a área do desporto enquanto aquela em que a participação adquire valores mais elevados, tanto dentro como fora da escola (Tabela 4).
Nota: Elaboração Própria, a partir dos dados do Inquérito aos Estudantes à Entrada do Ensino Secundário, OTES (2007-2017), DGEEC (dados agregados das 1.ª, 2.ª, 3.ª e 4.ª edições)
Um olhar mais atento às desigualdades associadas às origens sociais dos estudantes permite constatar que estas, não sendo particularmente vincadas, não deixam de se refletir em níveis de participação assimétricos, sobretudo quando os desagregamos por nível de escolaridade da mãe (Tabela 5). No caso da filiação em organizações da comunidade, destaca-se, efetivamente, uma maior presença dos estudantes das classes sociais favorecidas e com mães com escolaridade superior em coletividades culturais, desportivas, escutistas e de solidariedade. Embora as desigualdades sejam em menor grau, também no envolvimento em atividades extracurriculares nas escolas se observa alguma primazia dos jovens de origens sociais mais favorecidas.
5. Discussão
A redução acentuada das taxas de retenção e de abandono precoce da educação e formação, em Portugal, ao longo das últimas duas décadas (DGEEC, 2023), tem permitido alargar notavelmente as oportunidades educativas dos jovens, sobretudo aqueles que são provenientes das classes sociais mais desfavorecidas e que apresentavam, até ao final do século XX, taxas massivas de insucesso e de abandono precoce (Benavente et al., 1994). É, aliás, isso que explica que mais de metade dos jovens que responderam a este questionário (56%) tenham mães cujo nível de escolaridade não vai além do ensino básico. Sendo, também, o que nos permite tomar estes dados como um retrato, em traços gerais, do universo dos adolescentes portugueses (15-17 anos), sem esquecer a existência, ainda, de algumas franjas mais vulneráveis da juventude que não alcançam o ensino secundário.
Apesar desta inegável transformação, a presente análise revela a persistência de desigualdades relevantes no percurso educativo dos jovens e que tendem a reproduzir as desigualdades das suas origens sociais. Embora cada um dos indicadores, por si só, possa não revelar um contraste dramático, o que sobressai é a acumulação de (des)vantagens, desde a frequência do pré-escolar, o número de retenções, as classificações obtidas e as modalidades de ensino frequentadas. Estas vão encaminhando uma parte dos jovens, maioritariamente de origens sociais privilegiadas, para percursos de formação superior, qualificações elevadas e acesso a categorias profissionais mais favorecidas. Em contrapartida, relegam os restantes, na sua larga maioria, das classes sociais mais desfavorecidas, para percursos formativos menos qualificados, os quais dão acesso a atividades laborais mais duras e subordinadas, menos prestigiadas e remuneradas.
Confirmando, em traços gerais, estudos anteriores sobre este tema, tanto a nível internacional (Bourdieu & Passeron, n.d.; Bourdieu & Champagne, 1993; Gewirtz et al., 1995) como nacional (Abrantes & Roldão, 2019; Antunes & Sá, 2010; Albuquerque et al., 2022), esta análise sugere, assim, a existência de percursos escolares desiguais, os quais vão resultando de uma sequência de processos de seleção, cada um regido por um conjunto complexo de fatores, entre os quais a origem social dos alunos e os seus resultados escolares, que continuam a ter um peso importante (fatores que, aliás, tendem a manter uma forte relação entre si).
Dito de outra forma, os capitais culturais, económicos e sociais das famílias continuam a ser relevantes para o sucesso escolar dos estudantes, desde o ensino básico, e para o seu encaminhamento para as modalidades do ensino secundário que abrem melhores (ou piores) perspetivas de progressão académica e de integração profissional. De referir que não se pretende negar, aqui, as possibilidades de qualificação e valorização profissional abertas pelo ensino profissional. Essa análise encontra-se fora do alcance do presente estudo. Contudo, cabe salientar que o acesso às duas classes sociais favorecidas, de acordo com a tipologia anteriormente apresentada, se encontra, cada vez mais, dependente de um diploma do ensino superior (Abrantes, 2022a), sendo o acesso a este muito mais frequente entre os estudantes que se inscreveram nos cursos científico-humanísticos.
Além da persistência da relação entre origens sociais e percursos escolares, o presente estudo permitiu, também, explorar a participação destes jovens noutros contextos de aprendizagem não formal e informal. Estes envolvimentos poderiam, de alguma forma, “compensar” as desigualdades observadas no percurso escolar, nomeadamente, propiciando aos jovens a aquisição de competências e a pertença a redes que permitem outros processos de integração social e profissional, não tão dependentes dos diplomas escolares.
A este propósito, uma primeira nota tem a ver com as fracas taxas de participação dos jovens nestes contextos - com a exceção da filiação (dos rapazes) em clubes desportivos -, as quais se poderão associar a fragilidades tradicionais da sociedade civil portuguesa, mas também a uma ideologia securitária e “escolocêntrica”, que tende a negligenciar a importância formativa das experiências extraescolares ou extracurriculares, quando não mesmo a considerá-las um risco e um obstáculo ao sucesso escolar - sobretudo no ensino secundário. Estudos recentes confirmam, aliás, que a participação em organizações sociais e políticas por parte dos jovens não difere muito da tendência geral cristalizada na sociedade portuguesa, exceção feita à participação em grupos desportivos e associações juvenis e estudantis (Lobo & Sanches, 2017). Sem haver um levantamento sociológico sobre o envolvimento dos jovens em atividades extracurriculares, há, porém, alguns traços mais amplos de política educativa que nos mostraram que o foco nestas atividades no contexto escolar (e para além dele) se dirigiu ao alongamento do currículo (Smith, 2007).
Independentemente da controvérsia sobre o impacto da frequência de atividades extracurriculares nos resultados académicos, se mais no desenvolvimento de dimensões cognitivas ou de não cognitivas (Bradley & Conway, 2016), o que parece mais alinhado com o pensamento sociológico é que o “tempo extracurricular também é desigual” (Bonal & González, 2021, p. 55) e fez evidenciar (por altura do confinamento) a correlação entre a quantidade de atividades frequentadas com o capital cultural e económico das famílias.
Quando nos centramos no subconjunto dos jovens que participam nestas atividades, apesar de as desigualdades não serem tão marcantes como relativamente aos percursos escolares, o que o estudo permitiu observar é uma tendência de acumulação das vantagens por parte dos jovens das classes sociais favorecidas. Ou seja, tal como já haviam observado Silva et al. (2022) no contexto específico dos territórios de fronteira, são os jovens com origens sociais privilegiadas quem mais participa em organizações da comunidade e em atividades extracurriculares nas próprias escolas, o que tende, também, a contribuir para uma acumulação de competências e capitais, os quais poderão facilitar, posteriormente, a sua integração académica, social e profissional. De igual modo, uma investigação recente desenvolvida sobre os alunos com elevados desempenhos no ensino secundário revela que os percursos de excelência estão fortemente associados às classes sociais mais favorecidas e à participação em múltiplas atividades fora e dentro da escola (Torres & Palhares, 2017).
Será útil ponderar estes resultados, à luz de estudos que têm revelado, na sociedade portuguesa, o peso das desigualdades sociais nas práticas culturais tanto do lado da procura quanto da oferta (Lopes, 2000; Pais et al., 2022), assim como aqueles que têm sublinhado a decrescente participação e interesse dos jovens na política e na vida pública, os quais alcançam os valores mínimos entre os jovens em contextos sociais mais desfavorecidos (Lobo & Sanches, 2017). No mesmo sentido, como nota Pedro Moura Ferreira (2008) num estudo sobre o associativismo juvenil, “a classe social e a educação são duas variáveis que mantêm associações significativas com a participação social e política” (p. 122).
A este propósito, se a participação em organizações da comunidade depende, frequentemente, de recursos económicos, culturais e sociais que as famílias mais pobres não possuem, por seu lado, o menor envolvimento dos jovens das classes sociais mais desfavorecidas nas atividades extracurriculares - tendo em conta que, em Portugal, a grande maioria dos jovens, independentemente da classe social, frequenta o sistema público de ensino, no qual estas atividades são gratuitas - não deixa de merecer uma análise mais cuidada. É possível que a socialização primária nas classes sociais favorecidas tenha dotado os jovens de disposições culturais que os orientem para essa participação e que as famílias também apoiem, em maior medida, a participação dos jovens nestas atividades. O caso das associações de estudantes é, a esse propósito, paradigmático: tal como observado em Abrantes e Santos (2022), alguns jovens entendem hoje essa possibilidade como uma forma de distinção, acumulação de “capital social” e aquisição de competências associadas com a “liderança”, visão que encontra respaldo em segmentos sociais e profissionais mais elitistas. Também é possível que, nas classes populares, essa participação seja menos reconhecida e que a escassez de certas soft skills constituam um obstáculo a que essa participação seja valorizada pelos agentes escolares e pelos seus colegas de condição mais favorecida. São hipóteses que deverão ser exploradas através de metodologias qualitativas.
Ainda assim, o presente estudo permitiu observar variações que não deixam de ser significativas. As atividades de escutismo (fora da escola) e os clubes temáticos (dentro das escolas), apesar de taxas de participação relativamente baixas, emergiram como contextos nos quais as diferenças entre classes sociais surgem diluídas, podendo contribuir para a igualdade de oportunidades.
6. Notas conclusivas
Objeto de estudo clássico da sociologia da educação, o tema das desigualdades escolares apresenta, na atualidade, contornos singulares decorrentes dos processos de alongamento da escolaridade obrigatória, de massificação escolar e de diversificação da oferta formativa. Compreender o papel das heranças familiares e os fatores que geram e reproduzem as desigualdades na escola exige um olhar sistémico, que cruze e intersete os vários espaços, experiências e contextos de aprendizagem dos jovens estudantes. Este estudo constitui um primeiro exercício de aproximação a este olhar integrado, socorrendo-se de alguns contributos teóricos relevantes sobre esta problemática e apoiando-se em dados extensivos recolhidos no âmbito de um questionário aplicado por uma entidade oficial em todo o país.
Algumas tendências extraídas da análise dos dados sugerem complexos processos de fabricação das desigualdades nos percursos escolares que, não podendo ser desligados das origens sociais dos alunos, não deixam de as transcender. Ao invés de um mecanismo forte de seleção e de exclusão, os resultados apontam para uma sucessão de etapas e dinâmicas em que as (des)vantagens se vão encadeando e acumulando, o que oculta o carácter social e legitima as próprias desigualdades, apresentando-as, frequentemente, como mero resultado das escolhas dos jovens e/ou das suas famílias.
A diferenciação observada ao nível da participação em atividades extracurriculares (fora e dentro da escola) pode estar associada ao movimento de “pedagogização” da vida familiar e social, em particular, das atividades extracurriculares como estratégia de rentabilização pedagógica.
O acompanhamento educativo desenvolvido na esfera familiar, sobretudo entre as classes médias e superiores, é considerado determinante nos percursos de sucesso escolar. A “profissionalização pedagógica dos pais” (Garcia, 2019, p. 20) reflete-se na mobilização de práticas muito estruturadas e dirigidas à incorporação do ethos escolar, em particular na seleção de atividades e experiências de cariz educativo que se revelem potenciadoras das aprendizagens escolares.
O período de pandemia foi revelador destes efeitos invisíveis da socialização familiar, ao evidenciar as diferentes práticas de acompanhamento dos filhos no espaço doméstico, em particular, o uso do tempo; a estratégia de planeamento; o exercício da autoridade e da disciplina; o uso da linguagem e o cultivo das leituras; os investimentos nos lazeres e no desporto; entre outras dimensões relevantes (Torres et al., 2023).
Este estudo aponta tanto especificidades como invariantes nas dinâmicas de participação dos jovens. Os estudantes mais participativos provêm de classes médias e altas - beneficiando de um ambiente familiar propício ao desenvolvimento de disposições culturais mais próximas da cultura escolar -, sendo expectável a acumulação de vantagens competitivas entrelaçadas que os colocam numa posição favorável à obtenção de bons resultados escolares. Por outro lado, a participação em atividades escutistas (fora da escola) e em clubes (dentro da escola) parece indiciar um processo de socialização interclasses, mais inclusivo e potencialmente mais democrático.
No entanto, o que sobressai com mais nitidez é a manutenção de algumas continuidades históricas associadas às origens sociais, em particular às condições socioculturais das famílias. A débil participação dos jovens na globalidade das atividades extraescolares e a persistência da sua relação com o meio social de origem e com os resultados escolares mostram a complexidade dos mecanismos intervenientes na produção das desigualdades escolares. Embora os resultados apresentados neste texto sugiram que as origens de classe são relevantes e preditoras dos percursos escolares, importa considerar os efeitos em cadeia de um conjunto de fatores intra- e extra- escolares que condicionam a escolarização e poderão transcender as meras fronteiras da classe social.
Trata-se de um estudo exploratório, pretendendo-se aprofundar esta análise, nomeadamente, através de um olhar mais detalhado sobre os percursos juvenis - combinando variáveis escolares e extraescolares - e atento às permanências e às mudanças ao longo do tempo. Poderá ser, também, relevante analisar a relação destes percursos com a construção social do género, bem como proceder a uma comparação mais sistemática entre os jovens em cursos científico-humanísticos e em cursos profissionais. Por seu lado, estas análises também deverão beneficiar de um maior diálogo com pesquisas qualitativas, sensíveis aos quadros de interação e de significado que dão sentido a estes padrões estatísticos.