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Revista Portuguesa de Imunoalergologia
versão impressa ISSN 0871-9721
Rev Port Imunoalergologia vol.21 no.3 Lisboa set. 2013
Anafilaxia em idade pediátrica: Do lactente ao adolescente
Anaphylaxis at pediatric age: From infancy to adolescence
Diana Silva1, Ângela Gaspar2, Mariana Couto1, Mário Morais-Almeida2
1Serviço de Imunoalergologia, Centro Hospitalar São João, Porto
2Centro de Imunoalergologia, Hospital CUF Descobertas, Lisboa
RESUMO
A anafilaxia é uma reacção alérgica grave, cuja prevalência tem vindo a aumentar, sobretudo em idade pediátrica.
A sua forma de apresentação clínica diverge entre grupos etários e ao longo do crescimento do indivíduo. Os principais agentes etiológicos são os alimentos, particularmente na idade pré-escolar, sendo que a anafilaxia a veneno de himenópteros e a fármacos também podem ocorrer, notando-se um aumento da sua prevalência na idade escolar e na adolescência.
Mesmo após terem sido estabelecidos novos critérios de diagnóstico consensuais, a anafilaxia continua a ser alvo de falta de reconhecimento e de deficiente abordagem terapêutica, particularmente nas faixas etárias pediátricas. Nestes casos, ocorre muito frequentemente o atraso ou mesmo a ausência da administração de adrenalina, principal terapêutica no tratamento do episódio agudo, aumentando o risco de reacção mais grave. Inerente à dificuldade de reconhecimento, há também um atraso na referenciação para esclarecimento etiológico da anafilaxia, o que pode potenciar o risco de futuras reacções. O imunoalergologista, pela sua prática clínica transversal em todas as idades, tem um contributo fulcral no adequado seguimento destes doentes, acompanhando a mudança dos sintomas ao longo do crescimento, a mudança para novos ambientes, como a escola, e a aquisição progressiva de autonomia no adolescente. A apropriada identificação e notificação destes casos será importante para posterior análise e, no futuro, adaptação e melhoria dos cuidados de saúde nestes doentes.
Palavras-chave: Adolescente, adrenalina, anafilaxia, criança, epidemiologia.
ABSTRACT
Anaphylaxis is a severe allergic reaction and its prevalence has been increasing, especially in children. Clinical manifestation of anaphylaxis, vary accordingly to age group and throughout the childrens growth. Food allergy is the commonest cause of anaphylaxis in children, especially in preschooler age. Hymenoptera venom and drug induced -anaphylaxis can also occur, but are more frequently encountered in scholar age and during adolescence. Consensual diagnostic criteria, adapted to all age groups, have been established; however anaphylaxis is still under diagnosed and not properly treated, especially in the pediatric age group. Adrenaline, the first line treatment of anaphylaxis, is commonly not used or its administration is delayed, which poses an important risk of more severe reaction in this age group. Allied to the lack of clinical recognition, there is also a delay in the allergist referral and in the diagnostic work -up to identify the causal allergen. This diagnosis delay prevents the appropriate prophylactic measures to avoid a reaction and also in the management of future reactions. The allergist has an essential role in the proper follow-up of these patients, monitoring the change of symptoms throughout the growth, during the change to a new environment, namely school, and in the progressive autonomy acquisition of the adolescent. The appropriate identification and notification of anaphylaxis in children will be crucial for future analysis, and for obtaining the best and more adapted medical care to this age group.
Keywords: Adrenaline, anaphylaxis, children, epidemiology, teenager.
INTRODUÇÃO
Apesar de descrita há mais de 100 anos por Portier e Richet1, apenas recentemente foram estabelecidos critérios de diagnóstico objectivos de anafi laxia, resultado do consenso entre o National Institute of Allergy and Infectious Disease (NIAID), a Food Allergy and Anaphylaxis Network (FAAN) e a European Academy of Allergy and Clinical Imunology (EAACI)2. Tratando-se de uma reação alérgica grave, de início rápido e potencialmente fatal2, é essencial o seu rápido diagnóstico para uma pronta actuação, não só no que toca ao tratamento do episódio agudo, como na investigação posterior dos seus factores etiológicos. A regra, porém, tem sido a falta de reconhecimento e a defi ciente abordagem, nomeadamente na subutilização de adrenalina, fármaco de primeira linha indiscutível em situações de emergência, assim como a falta de referenciação para esclarecimento etiológico destes quadros de extrema gravidade3-8. Tem-se observado um aumento da incidência e da prevalência desta patologia, sobretudo entre os grupos etários mais novos, assim como um aumento do número de hospitalizações e de mortes8-24.
O grupo etário pediátrico encerra algumas particularidades distintas do adulto no que concerne à apresentação, contextualização e abordagem da anafilaxia, pelo que o objectivo desta revisão foi, à luz da mais recente evidência, transmitir uma perspectiva actualizada sobre esta temática.
DEFINIÇÃO E MECANISMOS
A anafilaxia pode apresentar mecanismos imunológicos, anafilaxia alérgica, ou não imunológicos, designada como anafilaxia não alérgica. O termo reacção anafilactóide, previamente usado na descrição das reacções não mediadas por IgE, foi entretanto abolido25.
A anafilaxia alérgica, pode ser mediada por IgE, a qual se pauta pela libertação de mediadores de mastócitos e basófilos, motivada pela exposição a um alergénio para o qual o doente se encontra sensibilizado, como um alimento, medicamento (ex. antibióticos β -lactâmicos), picada de himenóptero, entre outros alergénios (ex. látex); ou por outros mecanismos, não mediados por IgE, que podem ser causados por citotoxicidade mediada por IgM ou IgG, imunocomplexos, activação do complemento ou da cascata de coagulação, dos quais são exemplo alguns tipos de reacções aos meios de contraste radiológicos ou durante as transfusões sanguíneas18. A anafilaxia idiopática é uma entidade menos frequente que se define pela presença de seis ou mais episódios de anafilaxia durante um ano, ou mais de dois episódios em dois meses, sem factor desencadeante aparente; a sua patogenia ainda não se encontra esclarecida, mas provavelmente será auto-imune26-29.
A anafilaxia de causa não imunológica decorre da activação directa dos mastócitos, da qual se destacam como factores etiológicos o exercício, o frio ou a ingestão ou a administração de grandes quantidades de análogos da histamina ou derivados (ex. escombroidose, administração de opióides)30,31.
Os critérios clínicos para o diagnóstico de anafilaxia definem -se por, pelo menos, uma de três situações clínicas2,26,32, sendo estes critérios de diagnóstico transversais a todas as idades (Quadro 1).
EPIDEMIOLOGIA
A verdadeira incidência e prevalência da anafilaxia são difíceis de avaliar, tal como a sua evolução ao longo do tempo. Isto deve -se a uma multiplicidade de factores: o uso prévio de diferentes definições de anafilaxia33; a aplicação de formas de codificação de anafilaxia ambíguas ou díspares, que nem sempre corresponde aos novos critérios de diagnóstico, como é o caso do código ICD-934; a ausência de um exame laboratorial único que permita o diagnóstico de forma fácil, reprodutível e inequívoca26; as diferentes metodologias usadas na avaliação da incidência e prevalência; o estudo de anafilaxia em populações díspares (provenientes do ambulatório, urgência ou internamento), com factores causais diferentes da reacção8-24; e denotando também a falta de estudos de base populacional35. Em 2006, após estabelecimento de critérios clínicos de diagnóstico consensuais, foi melhorada a consistência nas definições, sendo que estes critérios têm demonstrado boa sensibilidade e especificidade diagnóstica36. Contudo, a apresentação clínica de anafilaxia pode ainda dificultar o seu reconhecimento, particularmente nas crianças e em especial nos lactentes37. O risco de anafilaxia na infância é difícil de avaliar de forma precisa e os dados pediátricos são escassos28.
Apesar de os desfechos fatais da anafilaxia serem raros12,16,17,38, os dados apontam para o seu aumento10,12,16.
No Quadro 2 encontram-se descritos os estudos epidemiológicos publicados desde 2006, que utilizaram os critérios de diagnóstico de anafilaxia do simpósio NIAID-FAAN e que apresentaram dados relativos à incidência e prevalência de indivíduos da faixa etária pediátrica. Denota-se que mesmo após uniformização da definição os valores de incidência e de prevalência variam de acordo com a origem da população estudada, se proveniente de centro de saúde18,21, serviço de urgência20,22,23 ou se houve necessidade de internamento39,40, sendo estes últimos menos prevalentes e incidentes, e do tipo de factor que causou a reacção, se alimentar22,41 ou medicamentosa19. De forma global, apesar de não ser consistente em todos os estudos, as crianças até aos cinco anos20,21 e a presença de comorbilidade, como a asma18, têm uma maior taxa de incidência de anafilaxia (Quadro 2). As crianças do género masculino têm também uma maior frequência de anafilaxia até aos 15 anos, sendo depois maior no género feminino42. Em relação aos dados portugueses de incidência e prevalência, eles variam também de acordo com a população estudada.
Na análise de um ano de seguimento de doentes na consulta de Imunoalergologia no Hospital Dona Estefânia, Centro Hospitalar de Lisboa Central, verificou-se uma prevalência de 1,34% de anafilaxia, correspondendo a 103 casos, dos quais 56 tinham menos de 18 anos43. Numa avaliação mais recente, também na região de Lisboa, no Centro de Imunoalergologia do Hospital CUF Descobertas, considerando a população pediátrica com menos de 18 anos, a prevalência foi de 1,76%44. Outro estudo, casuística, reporta 73 casos de anafilaxia numa retrospectiva de 9 anos de seguimento num hospital pediátrico do Porto, Hospital Maria Pia45. Num inquérito de base populacional em Portugal a prevalência de diagnóstico reportado pelos doentes de anafilaxia foi de 0,2%, tendo sido avaliados indivíduos apenas com mais de 14 anos46. O verdadeiro impacto epidemiológico da anafilaxia em idade pediátrica, tanto a nível internacional como nacional, ainda não é conhecido. As novas redes de bases de dados promovidas por sociedades científicas, como a Sociedade Portuguesa de Alergologia e Imunologia Clínica (SPAIC)47, e a sua notificação e registo em base única (Resumo Clínico Único do Utente, RCU2), da qual se destaca o recentemente implementado em Portugal, Catálogo de Alergias e outras Reacções Adversas (CPARA)48, são o caminho para o melhor reconhecimento e identificação de factores de risco associados, aliado à sua correcta notificação.
Principais responsáveis e factores de risco de anafilaxia na faixa etária pediátrica
Em muitos países, incluindo Portugal, a alergia alimentar é a principal responsável pelos quadros de anafilaxia em idade pediátrica35,43,49,50, e parece estar a aumentar11, tal como o espectro de alimentos associados35. Outras causas menos frequentes incluem a alergia medicamentosa, ao látex e a veneno de himenópteros. Reacções anafilácticas devidas à administração de imunoterapia específica foram também já descritas, sendo que pelo aumento dos protocolos de dessensibilização a alimentos é expectável um aumento do risco de anafilaxia iatrogénica4,28,51,52.
A anafilaxia de outras causas, nomeadamente as não alérgicas, é menos usual em crianças28.
Têm sido estudadas as principais causas de uma reacção anafiláctica, bem como os factores de risco e os cofactores associados a essa reacção (Quadro 3)35,53,54. Como descrito, o asmático parece ter um maior risco de anafilaxia e este risco acresce com a gravidade da asma18,54.
Outro factor importante é a idade, sendo que no caso dos lactentes as manifestações clínicas podem passar despercebidas, atrasando o diagnóstico55-57.
Recentemente, através do uso de alguns modelos de regressão logística, tem-se reconhecido a associação de factores a reacções de maior gravidade, permitindo uma abordagem mais adequada na prevenção da reacção anafiláctica52.
Como co factores, o exercício físico, os anti-inflamatórios não esteróides e o álcool associam-se a reacções mais graves. Nas crianças, sendo geralmente muito activas, é importante ter em consideração esta possibilidade na abordagem diagnóstica e terapêutica58. A infecção parece também ser relevante em cerca de 2,5 a 3% das reacções anafilácticas53. No caso do exercício físico, a associação com a ingestão alimentar pode ser o principal desencadeador da reacção. Esta associação levou à definição de uma nova entidade, a anafilaxia induzida pelo exercício dependente da ingestão de alimentos, que se carateriza por estar dependente de um grupo de alimentos específicos ou componentes alimentares ou apenas da ingestão alimentar inespecífica. O mecanismo que explica o papel destes cofactores ainda não se encontra totalmente esclarecido, mas parece estar dependente do aumento da absorção intestinal, no caso da ingestão alimentar, do alergénio potenciado por estes elementos, o que promove a indução de anafilaxia mesmo com pequenas doses de alergénio53.
DIAGNÓSTICO
A história clínica é a ferramenta mais importante, não só para estabelecer o diagnóstico de anafilaxia, como para determinar o factor causal. É essencial, desde logo, conhecer para poder reconhecer as manifestações de anafilaxia, particularmente em idade pediátrica.
A apresentação clínica é variável ao longo da idade, podendo ter formas de apresentação menos comuns que nos adultos, nomeadamente no primeiro ano de vida49,59,60.
Num estudo que caraterizou as manifestações clínicas de anafilaxia de acordo com a idade em cerca de 605 crianças que recorreram ao serviço de urgência por um período de 6 meses, verificou-se que o envolvimento cutâneo era predominante em ≥85% em todos os grupos etários (lactente, idade pré -escolar, escolar e adolescentes), contudo não é obrigatória a sua presença numa reacção anafiláctica4,61.
Em ≥50% as crianças apresentaram sintomas gastrintestinais, sendo a sintomatologia respiratória frequente em mais de 70% dos casos, contudo mais prevalente na idade pré-escolar (atingindo os 80%). Esta tendência clínica tem sido corroborada por estudos prévios em outras séries mais pequenas de casos62,63.
Na avaliação diagnóstica é necessária uma anamnese completa, descrevendo a data e a duração de todos os episódios, a evolução da sintomatologia, o local/ambiente em que a criança se encontrava, o número de episódios reprodutíveis ocorridos no passado, a presença de história pessoal de atopia, o tratamento administrado e todas as possíveis causas e cofactores49,53,64. Devem ser sistematicamente inquiridas as ingestões alimentares e medicamentosas prévias ao episódio, a ocorrência de picada de himenóptero, o contacto com látex, a concomitância com exercício físico ou a relação com outro factor físico, como o calor, o frio, ou a actividade sexual, e se houve ingestão de bebidas alcoólicas, particularmente no caso dos adolescentes31,49. Considerando-se também a clínica e os potenciais diagnósticos diferenciais, que serão dependentes da idade da criança em questão31.
Anafilaxia no lactente e em idade pré-escolar
Encontram-se reportadas reacções anafilácticas desde o primeiro mês de vida4, tendo sido já identificados casos com alguns desfechos fatais38,65,66. O lactente apresenta um risco acrescido de anafilaxia. Os motivos que o justificam não se encontram ainda completamente esclarecidos, mas parecem estar dependentes da dificuldade do reconhecimento por parte dos cuidadores, potenciada pela presença de comorbilidades nestes, como depressão, uso de medicação, como sedativos, abuso de álcool ou outras drogas, que afectem a sua capacidade de prestação de cuidados; para além disso o lactente encontra-se de forma mais frequente com infecções respiratórias que podem ser um co factor para uma maior gravidade da reacção55.
A peculiaridade diagnóstica da anafilaxia no lactente encontra-se associada à dificuldade no seu reconhecimento clínico, que é partilhada pelos profissionais de saúde55,56.
Esta dificuldade é explicada por diferentes motivos: frequentemente ser nesta idade que ocorre a primeira manifestação clínica de sensibilização ao alergénio; a subjectividade na identificação dos sintomas, como prurido, congestão nasal, sensação de náusea ou cólica55,56; a presença de sinais difíceis de interpretar, pois podem ocorrer num lactente normal ou associados a outra patologia, como a regurgitação, dejecções líquidas após a amamentação, cólicas abdominais, choro súbito e irritabilidade, ou rubor, rouquidão/disfonia após uma crise de choro e a presença de sinais facilmente reconhecidos, mas inespecíficos, como urticária generalizada, sintomas respiratórios súbitos de tosse, engasgamento, estridor, pieira ou alteração do estado de consciência com letargia55. Topal et al. Comparou a sintomatologia entre crianças e lactentes e verificou que a presença de vómitos recorrentes foi significativamente mais frequente em lactentes e que estes apresentavam uma elevada percentagem de sintomas inespecíficos, como irritabilidade (69%), choro persistente (44%) e sonolência (26%)63.
A anafilaxia de causa alimentar é a etiologia mais comum nesta faixa etária4,6,43,44,67-71. Os alimentos mais frequentemente envolvidos na grande maioria das séries são o leite de vaca e o ovo4,43,44,61,67,70,72, contudo há algumas excepções, e noutros países, como a Austrália12 e nos Estados Unidos61, há uma preponderância do amendoim e dos frutos secos, mas também em outros países a soja, os frutos frescos, o peixe e o marisco têm sido implicados12,73.
Contudo, qualquer alimento pode estar envolvido, incluindo produtos muitas vezes encarados pelos pais / prestadores de cuidados como inofensivos, como é o caso de alguns tipos de fórmulas lácteas, ou produtos contaminados pelo alergénio; também pode ocorrer reacção com alimentos que habitualmente não fazem parte da dieta nesta idade, como por exemplo sésamo, cujos vestígios podem passar despercebidos4,61,67,70,72. Por outro lado, os cuidadores podem não estar a par de exposições acidentais que tenham contribuído para a sensibilização, e por isso o diagnóstico de anafilaxia de causa alimentar não deve ser excluído quando estes negam o contacto prévio da criança com o alergénio. Apesar de menos frequentes, os fármacos, principalmente os antibióticos, e entre estes os β -lactâmicos, seguidos dos anti -inflamatórios não esteróides, como o ibuprofeno, também podem estar implicados43,44,47,74,75.
A alergia ao látex tem uma ligação com a exposição a intervenções cirúrgicas prévias, contudo o contacto é frequente nesta faixa etária, em brinquedos de borracha, chupetas, tetinas de biberão e aspiradores nasais, sendo que podem ter também potencial para sensibilização e serem indutores de reacção alérgica76. As picadas de himenópteros também estão descritas como causa de anafilaxia, mas de uma forma menos frequente e menos ainda nos lactentes71. Relativamente às vacinas, um motivode preocupação nos pais/prestadores de cuidados, raramente são causa de anafilaxia, incluindo em lactentes; estima -se que há um risco de reacção de apenas 1,53 casos por milhão de administrações (IC95%: 0,04 -8,52)77.
Anafilaxia em idade escolar
As doenças alérgicas afectam uma em cada 4 crianças em idade escolar78, não sendo por isso de surpreender que cerca de 80% dos episódios de anafilaxia em idade pediátrica ocorra nesta faixa etária9. Clinicamente apresentam sintomatologia mais específica, com predomínio de sintomas cutâneos, seguidos dos respiratórios e dos gastrintestinais52,63. Os sintomas cardiovasculares foram observados de forma menos frequente, aliada à dificuldade de avaliação e interpretação dos valores da pressão arterial na criança52,63. Tal como nos lactentes, a causa mais comum de anafilaxia é a alergia alimentar6,43,44,65,67,79,80, notando-se um aumento do espectro de alimentos associados a uma reacção anafiláctica35.
Mantendo-se o leite e o ovo como os mais predominantes, os frutos secos e o amendoim ocupam o primeiro lugar em algumas séries23,80 e o marisco e os frutos frescos aumentam a sua prevalência como causa de anafilaxia nestas idades23,41,44,63,70,72,73. Nota-se também um aumento da frequência de anafilaxia induzida por outras causas, como por medicamentos, principalmente antibióticos e anti-inflamatórios não esteróides, por veneno de himenópteros, associada ao exercício e ao contacto com o frio23,43,63,72,73.
O local onde ocorrem as reacções pode sofrer mudanças, sendo que quase 30% das anafilaxias ocorrem em ambientes exteriores63,81 e entre 10 a 18% das reacções alérgicas de causa alimentar ocorrem na escola62,79. Esta alteração pode ser um motivo de preocupação para os cuidadores. Num estudo efectuado no Reino Unido, cerca de 2/3 das escolas tinham pelo menos uma criança em risco de anafilaxia (definida pela presença de história clínica compatível ou pelo facto de serem portadoras de dispositivo para auto-administração de adrenalina), mas menos de metade tinham um professor treinado na abordagem desta patologia e apenas cerca de 10% das escolas tinham adrenalina disponível para administração9,82. Uma vez que cerca de 1/5 das reacções anafilácticas inaugurais ocorre na escola83, ainda que não haja nenhuma criança em risco de anafilaxia inscrita, é importante que todos os estabelecimentos de ensino tenham pelo menos um elemento, professor ou enfermeiro, capacitado no reconhecimento e abordagem da anafilaxia, assim como fármacos disponíveis para o seu tratamento28,78. De igual modo na avaliação diagnóstica do agente etiológico, caso a reacção ocorra num ambiente externo ao familiar, deve ser averiguada a descrição da reacção e os eventos que a precederam por quem assistiu ao evento, como o professor.
Anafilaxia no adolescente
A adolescência é uma época de rápido desenvolvimento, a nível físico, cognitivo, psicológico e social. Os adolescentes têm de se adaptar aos seus novos direitos, novas responsabilidades e compromissos e desenvolver uma maior auto-suficiência, nomeadamente no âmbito da sua saúde84. Esta é a faixa etária em que se registam mais desfechos fatais decorrentes de reacções alérgicas38,65,85,86 e algumas explicações têm sido apontadas: a redução de supervisão dos cuidadores; os adolescentes têm de tomar decisões sobre as suas escolhas, nomeadamente na necessidade de evicção; o reconhecimento e tratamento de uma reacção alérgica é -lhes imputado ou aos que os rodeiam, muitas vezes pessoas que não os seus cuidadores; os comportamentos de risco em adolescentes são geralmente atribuídos a uma valorização reduzida de perigos potenciais e uma crença de que as consequências podem ser controladas2,86.
Porém, num estudo publicado recentemente envolvendo adolescentes com anafilaxia de causa alimentar, era muito maior a percentagem que assumia comportamentos de risco ao ingerir um produto que potencialmente poderia desencadear uma reacção anafiláctica na presença dos pais (36%) do que a que assim procedia quando saía com amigos (14%)87.
Clinicamente os adolescentes apresentam, em relação às crianças mais novas, uma maior prevalência de sintomas cardiovasculares, encontrando -se valores de cerca de 12% nas séries publicadas61. Outras causas de anafilaxia assumem também maior preponderância neste grupo etário, como é o caso da alergia medicamentosa e da alergia a veneno de himenópteros43,63,72.
Relativamente à alergia alimentar, os alimentos envolvidos são também diferentes, destacando-se a alergia ao marisco e aos frutos secos22,43,44. Dentro dos factores causais, na adolescência os quadros de anafilaxia associada ao exercício, dependente ou não da ingestão alimentar, são também mais frequentes63,72.
Diagnóstico diferencial nas faixas etárias pediátricas
Na abordagem diferencial diagnóstica nas crianças, deve ser considerada a urticária aguda generalizada e a crise de asma, que coexistem frequentemente numa reacção anafiláctica26.
Na avaliação do quadro clínico deve-se, no caso do lactente e em idade pré-escolar, adaptar este diferencial de acordo com a sintomatologia manifestada55,56. Considerando outras causas de dificuldade respiratória, como obstrução respiratória congénita (ex. laringomalacia) ou adquirida (ex. laringite, bronquiolite e aspiração de corpo estranho); outras razões para a presença de sintomas gastrintestinais, como obstruções congénitas (ex. estenose do piloro) ou adquiridas, nomeadamente a invaginação intestinal, a gastrenterite infecciosa ou a enterocolite induzida por proteínas; do ponto de vista neurológico, a crise convulsiva ou estado pós -ictal que podem ocorrer pela primeira vez na infância, bem como a possibilidade de traumatismo craniano, sobretudo, mas não só, se outros estigmas de abuso ou maus-tratos estiverem presentes; e, ainda, é necessário excluir a possibilidade de uma intoxicação medicamentosa ou a presença de uma doença metabólica55,56. Nos lactentes, tem-se incluído também a síndrome da morte súbita do lactente neste diagnóstico diferencial56. Estudos prévios demonstraram uma associação a casos de morte súbita de etiologia não esclarecida de uma elevação no sangue da forma β -triptase88. A triptase sérica é um marcador mastocitário que apresenta duas isoformas: a α-triptase é constitucional e está aumentada na mastocitose sistémica; a β -triptase aumenta durante a activação e desgranulação dos mastócitos que ocorre na reacção anafiláctica32. A reacção vaso-vagal, por vezes associada a hipotensão, pode confundir-se com anafilaxia, contudo melhora com o decúbito e normalmente associa-se a palidez, diaforese e bradicardia, na ausência de sintomas cutâneos, como urticária ou flushing31,49. As síndromes pós-prandiais, patologias associadas a flushing ou síndromes com excessiva produção endógena de histamina, da qual se destacam a mastocitose sistémica e alguns tipos de leucemia, são situações menos frequentes que devem ser também consideradas31,32.
Doenças não orgânicas, como um ataque de pânico, a disfunção das cordas vocais ou mesmo a síndrome de Munchausen ou o Munchausen by proxy, podem entrar no diagnóstico diferencial31,49. Quando da recolha da história clínica, e de forma adaptada à idade e ao momento em que ocorreram, devem ser mantidas em mente as hipóteses de diagnóstico diferencial, mesmo em doentes com antecedentes prévios de anafilaxia49.
Papel dos exames complementares de diagnóstico
Os exames complementares de diagnóstico, embora inespecíficos, podem apoiar ou confirmar uma suspeita clínica de anafilaxia ou excluí-la mediante a comprovação de outro diagnóstico. Do ponto de vista laboratorial, algumas opções estão disponíveis, como o doseamento de histamina ou triptase séricas na altura do episódio. A elevação dos seus níveis é um indicador favorável, embora não seja específico de anafilaxia; por exemplo, os níveis de histamina podem encontrar-se elevados em doentes com escombroidose, com enfarte agudo do miocárdio ou em trauma. Acresce que os níveis de triptase, formada durante a activação e desgranulação dos mastócitos numa reacção, estão habitualmente aumentados na anafilaxia de causa medicamentosa ou por picada de himenópteros, assim como nos indivíduos com hipotensão e choque, mas é menos provável a sua elevação nos casos de anafilaxia de causa alimentar64,89. O seu doseamento, em particular da β-triptase, recomenda-se que seja efectuado até um máximo de 6 horas após o início dos sintomas (idealmente entre os 30 e os 90 minutos), sendo que a sua avaliação seriada, com elevação seguida de regressão em menos de 24 a 48 horas para valores basais, é indicativa de activação mastocitária e permite apoiar o diagnóstico32. Outros marcadores de anafilaxia têm sido investigados, e parece promissor o papel do doseamento da carboxipeptidase64. Contudo, nenhum destes estudos laboratoriais permite predizer o risco de anafilaxia ou o grau de gravidade da reacção26,28,78.
A confirmação do factor etiológico de anafilaxia é efectuada com base na história clínica, apoiada por exames complementares que permitem avaliar a presença de sensibilização alergénica. É fundamental que a estratégia de investigação seja individualizada e contextualizada, pois muitos são os casos de sensibilização assintomática na população em geral90. Dentro da avaliação podem ser efetuados testes in vivo e/ou in vitro91. A avaliação in vivo deve ser efectuada pelo menos 3 a 4 semanas após a reacção, de forma a permitir que os mastócitos recuperem a sua normal capacidade de libertação de mediadores31. Incluindo-se neste grupo os testes cutâneos por picada ao agente causal suspeito (ex. alergénios alimentares, látex, antibióticos β-lactâmicos e venenos de himenópteros), sob a forma de extracto alergénico padronizado32. Na presença de testes cutâneos por picada com extractos alergénicos negativos, uma suspeita clínica forte, particularmente no caso de alergénios alimentares, a realização de testes por picada com o alimento em natureza pode ser necessária92.
No estudo de alergia a veneno de himenópteros e para os fármacos, quando apropriado e quando o teste cutâneo por picada tiver sido negativo, devem ser realizados testes cutâneos intradérmicos, segundo metodologia normalizada93-95; contudo têm a desvantagem de poderem acompanhar-se de reacções sistémicas e serem mais dolorosos, o que pode limitar o seu uso em crianças. Quando a suspeita é a anafilaxia induzida pelo frio, o teste do cubo de gelo deve ser utilizado, aplicado por um período variável até 20 minutos, sendo que quanto menor for o intervalo de tempo até à reacção, maior a probabilidade de uma reacção sistémica grave91.
Na pesquisa do diagnóstico do factor causal podem ser aplicados estudos in vitro, dos quais se destacam o doseamento sérico de IgE específica e a avaliação de sensibilização a alergénios major, que de acordo com sensibilização a determinado componente alergénico pode ter um papel na avaliação do prognóstico, probabilidade de recorrência e persistência das reacções90,96. De forma a melhorar o valor preditivo positivo diagnóstico das avaliações por IgE, nomeadamente na alergia alimentar, têm-se efectuado estudos para definir níveis de decisão diagnóstica com determinação de valores cut -off. Porém, estes devem ser interpretados de forma cautelosa, pois tendem a variar entre diferentes centros, encontrando -se dependentes da idade, do tipo de doentes seleccionados, do protocolo e dos critérios de diagnóstico usados na confirmação clínica da alergia96.
As provas de provocação são o gold-standard no diagnóstico e poderão estar indicadas em circunstâncias específicas, a realizar em meio hospitalar e em centros diferenciados, pelo risco de reacções graves, com o intuito de confirmação ou exclusão desse agente causal26,32,90. Dependendo do agente suspeito, pode ser efectuada com alimentos, fármacos ou com exercício físico, associado ou não à ingestão de alimentos26,32.
A abordagem diagnóstica, particularmente nas faixas etárias pediátricas, deverá ser adaptada à idade, mas também ao caso em particular. As diferentes formas de apresentação clínica e a probabilidade de determinado agente etiológico estar implicado, variando de acordo com a idade, deve ser considerada, bem como os diagnósticos diferenciais.
Da mesma forma o tratamento, apesar de assentar em iguais pilares, pode necessitar de algumas adaptações de acordo com a faixa etária.
ABORDAGEM DA ANAFILAXIA TRATAMENTO DO EPISÓDIO AGUDO
Os factores-chave na abordagem da anafilaxia estão dependentes de um diagnóstico adequado e intervenção médica imediata, sendo a precocidade da intervenção fundamental para o sucesso terapêutico97. O tratamento de primeira linha, de acordo com a medicina baseada na evidência90,98,99, assenta na administração de adrenalina intramuscular, numa dose máxima de 0,5mg (0,01mg/kg) de uma solução a 1:1000, podendo ser repetida após 5 minutos26,90.
No tratamento da anafilaxia, os efeitos α1 adrenérgicos da adrenalina (vasoconstrição, aumento da resistência vascular periférica e diminuição do edema da mucosa) e alguns dos efeitos β2 adrenérgicos (broncodilatação e diminuição da libertação de mediadores por mastócitos e basófilos) são de importância crucial90,98,100,101. A não utilização de adrenalina é um factor de risco para anafilaxia bifásica e para maior gravidade da reacção e morte90,98. A anafilaxia bifásica consiste na ocorrência de uma segunda reacção anafiláctica após um período assintomático habitualmente de 1 a 8 horas, mas que pode prolongar -se até 24 horas, ou mesmo em casos excepcionais até 72 horas. Uma abordagem protocolada, guiada por um algoritmo simples e rápido, permite melhorar a eficácia e a rapidez do tratamento32,52,90 (Figura 1).
Numa fase inicial, particularmente na faixa etária pediátrica, é fundamental, aliado ao reconhecimento clínico, obter uma estimativa do peso corporal e idade do doente, pois este vai guiar a dose-alvo de adrenalina e da restante terapêutica a administrar26,28,90,102(Figura 1). A via e o local de administração da adrenalina mais adequado é a injecção intramuscular na face antero-lateral da coxa26,98,100,101,103. Num estudo comparativo entre a administração por via intramuscular versus a subcutânea em crianças, demonstrou-se que a absorção por via intramuscular é significativamente mais rápida (o tempo necessário para obter o pico máximo de adrenalina plasmática é em média de 8 minutos, contrastando com 34 minutos para a via subcutânea)32,104. Comparando a administração de adrenalina por via intramuscular efectuada na coxa versus no braço, concluíram que a aplicação na coxa permite obter níveis plasmáticos de adrenalina significativamente mais elevados105.
A verificação e a reavaliação contínua do doente é essencial para assegurar e monitorizar a resposta clínica e, caso necessário, instituir novas medidas e manter medidas gerais, nomeadamente adequação da posição do doente e verificação e manutenção da permeabilidade das vias aéreas e melhorar a oxigenação com suplementação de oxigénio32. Tal como se encontra descrito na Figura 1, se necessário podem-se utilizar medidas adicionais, nomeadamente a administração de anti-histamínicos H1 e H2, corticosteróides, fluidoterapia e terapêutica broncodilatadora32.
Os anti-histamínicos são utilizados particularmente para alívio sintomático dos sintomas de prurido, urticária e angioedema, bem como dos sintomas nasais e oculares, contudo a sua eficácia no tratamento da anafilaxia não está comprovada26,106. Relativamente ao uso de corticosteróides sistémicos, não existem ensaios clínicos, controlados e randomizados que apoiem a sua utilização, mas têm o potencial teórico de poderem reduzir a presença e a gravidade das reacções tardias, bem como os sintomas bifásicos107. Em caso de anafilaxia refractária (por ex. em doentes medicados com β -bloqueantes) pode ser necessária a administração de glucagon (com efeitos cronotrópico e inotrópico positivos, independentes dos receptores β-adrenérgicos)32.
Após a terapêutica aguda de uma reacção anafiláctica, o doente deve ser mantido em vigilância pelo menos 8 a 24 horas, individualizado de acordo com o quadro clínico, e com facilidade de acesso aos cuidados de saúde49 (Figura 1). Um motivo que contribui para a necessidade de vigilância é a possibilidade de uma reacção bifásica26,100, que tem sido descrita em 5 a 20% dos casos, com menor frequência em idade pediátrica (frequência máxima descrita de 11%)26,95,108. Em algumas séries a percentagem de reacções bifásicas chega a ocorrer em cerca de 6% das crianças internadas com anafilaxia109. Os factores de risco que têm sido identificados para ocorrência de reacção bifásica são: ausência ou atraso na administração de adrenalina; ausência de administração de corticosteróides; resposta inicial mais grave (com necessidade de >1 dose de adrenalina para a resolução) ou mais prolongada108,110. Na altura da alta, a criança deve ser orientada para consulta de Imunoalergologia e prescrito dispositivo para auto-administração de adrenalina em caso de novo episódio de anafilaxia.
ABORDAGEM APÓS A ALTA E PREVENÇÃO
No momento da alta a criança e os seus cuidadores devem estar preparados caso ocorra um novo episódio de anafilaxia52. Para tal, devem ter um plano de acção de emergência de anafilaxia por escrito e serem portadores de um dispositivo para auto -administração de adrenalina26,28. No caso da criança, este plano deve também ser fornecido à escola. Neste deverá constar o diagnóstico, a descrição dos sintomas possíveis e a atitude terapêutica adaptada caso a caso, bem como a identificação dos contactos de emergência32.
O doente e a sua família, ou conviventes, com destaque para os prestadores de cuidados na escola, devem também aprender o manejo correcto do auto-injector de adrenalina e devem estar alertados para a necessidade de verificação do prazo de validade do mesmo32,83.
A nível mundial, apenas 59% dos países pertencentes à World Allergy Organisation (WAO) têm disponíveis dispositivos para auto -administração de adrenalina (WAO survey 2007): Anapen® (Lincoln Medical, Salisbury, Reino Unido), EpiPen® (Dey, Napa, Estados Unidos) ou Twinjet® (Verus Pharmaceuticals, San Diego, Estados Unidos)32. Existem em Portugal dois dispositivos auto -injectores de adrenalina em doses fixas: Anapen® 0,15mg e Anapen® 0,3mg. Em adultos ou em crianças com ≥30kg deve ser prescrito 0,3mg, nas crianças com <30kg o de 0,15mg é o mais adequado; no entanto, em crianças com peso entre 20 e 30kg pode ser ponderada a dose de 0,3mg em situações de maior risco, como: diagnóstico concomitante de asma; anafilaxia a amendoim ou frutos secos; anafilaxia a veneno de himenópteros; história de reacção muito grave / potencialmente fatal; dificuldade no acesso a cuidados médicos de emergência32. Nestas circunstâncias pode ser recomendada a prescrição de dois dispositivos auto-injectores de adrenalina28,32,52. Mais recentemente, não estando aindadisponível a nível nacional, foi produzido um dispositivo auto -injector de adrenalina com uma dose de 0,5mg (Anapen ® 0,5mg) indicada para indivíduos com peso corporal >60kg32. Para as crianças com menos de 15 kg, a dose de 0,15 mg pode levar a uma ligeira sobredosagem, contudo esta não apresenta risco de maior na criança saudável, sendo que para os cuidadores a necessidade de adequar a dose com uso de uma ampola de adrenalina traz francas limitações associadas à dificuldade e tempo de administração numa emergência28,55.
Aconselha-se também que a criança e adolescente seja portador de identificativo (cartão, pulseira ou colar) da sua situação clínica, e deve ser reconhecida por todos os funcionários da escola28.
Tem-se verificado que muitas crianças e adolescentes que sofrem uma anafilaxia, mesmo quando associada a sintomas graves com dificuldade respiratória, sibilância ou disfonia e perda de consciência, não usam adrenalina52. Num estudo multicêntrico com avaliação de 969 crianças e adolescentes, apenas 16,7% (IC95% entre 11,7 -21,3%) usaram o seu auto-injector de adrenalina111. O principal motivo neste estudo foi não terem considerado que seria necessário efectuar medicação111. Em outro estudo, numa população de adolescentes, os principais motivos para a não utilização do auto -injector de adrenalina foram a falha no reconhecimento dos sintomas, as dúvidas na técnica e o receio na sua administração112. De facto, o período da idade escolar e adolescência consiste num momento em que ocorre uma transferência de responsabilidades dos pais para as crianças na identificação da reacção e no uso do auto-injector de adrenalina, devendo esta mudança ser mediada na consulta pelo imunoalergologista113. Para melhorar a qualidade de vida e a forma como lidam com a doença é necessário manter um constante apoio psicossocial e educacional85,87, que pode ocorrer sob a forma de: sessões educacionais no hospital / clínica; revisão frequente da técnica do auto-injector e treino com dispositivos reais; sensibilização para os riscos e consequências da não utilização do dispositivo auto-injector de adrenalina.
Evicção e imunomodelação
A prevenção específica, após diagnóstico etiológico da anafilaxia, baseia-se essencialmente na evicção do estímulo alergénico implicado (alimento, fármaco ou látex), frio, exercício ou ingestão alimentar nas 4 a 6 horas antes do exercício26,32,90. A educação do doente, família e contactos, bem como a informação presente num plano de acção e disseminado na comunidade, é imprescindível para que esta evicção seja eficaz, devendo também estar alertados para a problemática dos alergénios ocultos e da reactividade cruzada entre alergénios49,78,90,102.
No caso dos alergénios alimentares, os doentes e familiares devem reconhecer a possibilidade de uma reacção alérgica após ingestão, contacto ou mesmo inalação deste tipo de alergénios26-28. A monitorização da possibilidade de presença de alergénios ocultos ou de reactividade cruzada, que podem constituir um perigo potencial no ambiente em que a criança está envolvida, infantário, restaurantes, casa de amigos, entre outros, é essencial28. Todavia, este é um comportamento que gera ansiedade tanto nas crianças, como nas suas famílias, e mesmo com alguns cuidados podem ocorrer exposições acidentais90. Portanto, estas medidas devem ser adaptadas não só ao alimento a que o doente está sensibilizado, mas aos seus hábitos de dieta e métodos de preparação dos alimentos, e devem ser particularmente cautelosos nas refeições fora de casa, em que por vezes há algum desconhecimento dos métodos de preparação dos alimentos e da potencial presença de vestígios90,114.
No caso particular da alergia ao látex devem ser assumidas precauções quando a criança é submetida a cirurgia ou durante procedimentos médico-cirúrgicos, como tratamentos dentários28,115. A possibilidade de alergia a frutos e outros alimentos de origem vegetal com reactividade cruzada descrita com látex deve também ser investigada, e deve ser fornecida ao doente e prestadores de cuidados a lista de alimentos implicados na síndrome látex-frutos115. A imunoterapia é uma forma de intervenção específica que se tem revelado muito eficaz na anafilaxia a veneno de himenópteros e na anafilaxia ao látex. No caso da anafilaxia por veneno de himenópteros, a protecção mostrou eficácia em 98% dos doentes em idade pediátrica27. Outra forma de intervenção terapêutica específica que tem vindo a ter uma importância crescente é a dessensibilização oral a fármacos (antibióticos, anti -inflamatórios não esteróides, citostáticos) e a alimentos (leite de vaca, amendoim e ovo)90,116.
No caso de anafilaxia idiopática, com episódios frequentes (≥6 episódios por ano ou ≥2 episódios em 2 meses), deve ser instituída terapêutica diária preventiva com anti -histamínicos H1 e corticoterapia sistémica prolongada49.
O papel da comunidade na prevenção
Sendo que, particularmente nas crianças e adolescentes, o ambiente exterior, que inclui a escola e outros locais onde estas permanecem por longos períodos e podem encontrar-se em risco para reacção anafiláctica, são necessárias medidas globais para manter este ambiente controlado.
Será importante que os profissionais de saúde assumam um papel sensibilizador da comunidade em geral e das autoridades. As autoridades devem ser alertadas de forma a estabelecerem medidas que indiquem um maior controlo destes ambientes e atenção para situações de risco. O exemplo de implementação de medidas legislativas é o da província do Ontário, no Canadá, que instituiu a Sabrina`s Law. Esta lei permitiu criar e alertar nas escolas públicas para medidas preventivas que incluem: minimização da exposição ao alergénio, treino dos que frequentam a escola e autorização do uso de auto-injectores de adrenalina na suspeita de reacção anafiláctica, mesmo se previamente não diagnosticada52,117. Num estudo que comparou a presença ou não desta medida legislativa demonstrou que havia mais esforços no sentido de dar melhores cuidados aos estudantes em risco nessas escolas com apoio legislativo117.
CONCLUSÃO
Uma reacção anafiláctica pode ocorrer em qualquer idade. A sua abordagem nas faixas etárias pediátricas requer competências clínicas no reconhecimento da sua sintomatologia, bem como a adequação dos seus critérios diagnósticos e abordagem terapêutica. A sintomatologia clínica é variável desde o primeiro ano de vida até àadolescência, sendo que esta mudança deve ser acompanhada pelo médico, identificada e alertada ao prestador de cuidados. Na criança com anafilaxia, a mudança dos sintomas clínicos, bem como os estímulos envolventes de um novo meio, a escola, e a aquisição de autonomia no adolescente devem ser acompanhados durante o seguimento pelo médico assistente. A orientação clínica precoce desde o primeiro episódio para consulta de Imunoalergologia, especialidade transversal a todas as idades, permitirá a atempada investigação do agente causal, indicações das melhores atitudes preventivas de contacto com esse agente e eventual controlo, caso necessário, de uma reacção anafiláctica. A necessidade de uma abordagem em comunidade, instituição de políticas adequadas e comportamentos preventivos nas escolas terá também um papel na melhoria do cuidado da anafilaxia nestas faixas etárias. Mais ainda, a necessidade de conhecer a realidade da anafilaxia na criança implica uma adequada notificação através de bases de dados nacionais, como o CPARA. Melhorando o conhecimento deste problema, será possível encontrar novas estratégias de controlo e abordagem adaptadas para estas faixas etárias. A melhoria dos cuidados permitirá melhorar a qualidade de vida destes doentes e das suas famílias e diminuir o risco de futuras reacções.
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