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Revista Portuguesa de Imunoalergologia
versão impressa ISSN 0871-9721
Rev Port Imunoalergologia vol.25 no.2 Lisboa jun. 2017
CASO CLÍNICO
Angioedem induzido por inibidores da enzima de conversão da angiotensina Casos clínicos
Angioedema induced by angiotensin converting enzyme inhibitors clinical cases
Alexandru Ciobanu, Joana Pita, Carlos Loureiro, Ana Todo-Bom
Serviço de Imunoalergologia, Centro Hospitalar e Universitário de Coimbra
RESUMO
Os inibidores de enzima de conversão de angiotensina (IECA) são frequentemente prescritos na prática clínica para controlo da pressão arterial, no enfarte do miocárdio, insuficiência cardíaca e doença renal crónica. Podem induzir angioedema (AE) em 0,1 a 0,68 % dos doentes. Os antagonistas dos recetores da angiotensina (ARA) podem causar AE, embora numa percentagem inferior. Quando o diagnóstico de AE induzido por IECA é estabelecido, a evicção de IECAs é obrigatória. Os autores descrevem dois casos clínicos de angioedema induzido por IECA/ARA.
Palavras‑chave: Angioedema, antagonistas de recetores de angiotensina (ARA), bradicinina, inibidores de enzima de conversão de angiotensina (IECA).
ABSTRACT
Angiotensin converting enzyme inhibitors (ACEI) are often prescribed in clinical practice to control blood pressure in myocardial infarct, heart failure, and chronic renal disease. They can induce angioedema (AE) in 0.1 to 0.68% of patients. The angiotensin receptor blockers (ARB) can cause AE, although on a lower percentage. When the diagnosis of AE induced by ACE inhibitors is established, the avoidance of ACEI is mandatory. The authors describe two cases of angioedema induced by ACE inhibitors/ARB.
Keywords: Angioedema, angiotensin converting enzyme inhibitors (ACEI), angiotensin receptor blockers (ARB), bradikynin.
INTRODUÇÃO
A principal causa de angioedema (AE) induzida por medicamentos é provocada pelos inibidores de enzima de conversão de angiotensina (IECA), por prescrição extensiva deste grupo de anti-hipertensores. O primeiro relato sobre 13 casos de AE em doentes tratados com enalapril foi feito pelo Committee on Safety of Medicines em 19861.
O AE induzido por IECA manifesta‑se por edema labial, da língua ou da face, podendo apresentar‑se com dor abdominal episódica, diarreia, vómitos, anorexia ou ascite por angioedema intestinal sem associação com urticária ou prurido. Desenvolve‑se num intervalo de minutos a horas com resolução entre 24 a 72 horas, mas pode perdurar dias ou semanas mesmo com a descontinuação do fármaco.
As manifestações do AE induzido por IECA relacionam‑se com os níveis elevados de bradicinina. Os IECAs bloqueiam a atividade da enzima de conversão de angiotensina (ECA) através da sua ação no eixo renina‑angiotensina‑aldosterona e na degradação da bradicinina. A angiotensina II também é responsável pela inativação da bradicinina, enquanto a ECA é a principal peptidase envolvida na degradação da bradicinina.
Em mais de 50 % dos casos ocorre na primeira semana de exposição ao IECA. Cerca de 2/3 dos episódios de AE por IECA ocorrem nos primeiros 3 a 6 meses de terapêutica2, mas períodos mais longos também podem ocorrer.
Na atualidade o diagnóstico é clínico, verificando‑se uma resolução dos sintomas depois da suspensão do fármaco.
Existem alguns casos de recorrência do AE meses após a suspensão do fármaco.
O tratamento consiste na suspensão destes fármacos e na monitorização da permeabilidade de vias aéreas durantea crise.
CASO CLÍNICO 1
Doente de sexo feminino, 68 anos, referenciada à consulta de Imunoalergologia por angioedema labial. Referia 3 episódios de angioedema labial e do mento. O primeiro episódio em janeiro de 2015, sem prurido ou lesões cutâneas associadas, sem queixas respiratórias, gastrointestinais ou outras. Foi medicada no serviço de urgência (SU) com anti‑histaminico e corticoide sistémico, tendo alta com alguma melhoria e resolução total dos sintomas em 12 horas. O segundo episódio com recurso ao SU em março de 2015 foi semelhante ao anterior, tendo tido alta com a mesma medicação e foi referenciada à consulta de Imunoalergologia. O terceiro episódio, em abril de 2015, foi controlado no domicílio com bilastina 20 mg
Sem história familiar de angioedema ou atopia, atopia pessoal, alergia alimentar ou medicamentosa.
Nos antecedentes patológicos são de referir hipertensão arterial (HTA), diabetes mellitus (DM) tipo 2, hiperuricemia e hipercolesterolemia. Medicação habitual: olmesartan 20 mg/dia, alopurinol 100 mg/dia, sitagliptina 100 mg/dia, ácido acetilsalicílico 100 mg/dia, zofenopril 30 mg/dia e rosuvastatina 10 mg/dia.
Exame físico sem alterações de relevo. Pressão arterial (PA) 138/88 mmHg. Na consulta de Imunoalergologia foram suspensos zofenopril e olmesartan, que a doente cumpria há cerca de 2 anos, sendo substituídos por clortalidona 50mg/dia, com bom controlo da PA.
O estudo realizado na consulta de Imunoalergologia revelou: testes cutâneos por picada com aeroalergénios negativos. Hemograma e bioquímica sem alterações. Imunoglobulinas séricas e estudo do complemento sem alterações.
Com a alteração da terapêutica anti‑hipertensora não houve recidiva do angioedema durante os 16 meses de seguimento.
CASO CLÍNICO 2
Doente de sexo masculino, 65 anos, referenciado à consulta de Imunoalergologia por angioedema. O doente referia um primeiro episódio em agosto de 2006, aos 56 anos, com edema exuberante do lábio superior, sem erupções cutâneas, prurido, dispneia ou outras manifestações clínicas. No SU, após terapêutica sintomática, houve recuperação em menos de 1 hora, tendo tido alta para o domicílio. O segundo episódio ocorreu em Setembro de 2006, com edema do lábio inferior e prurido orofaríngeo. No serviço de urgência foi medicado com anti‑histaminico e corticoide sistémico, com melhoria parcial em 24 horas.
Nos seus antecedentes patológicos registaram‑se HTA, dislipidemia, DM tipo 2 e hipertrofia benigna da próstata. Estava medicado com lisinopril + hidroclorotiazida 20/12,5 mg/dia, que cumpria há cerca de 10 anos, metformina 1000 mg 2/dia; atorvastatina 20 mg/dia e cloridrato de tansulosina 0,4 mg/dia. Sem história familiar de angioedema ou atopia, atopia pessoal, alergia alimentar ou medicamentosa.
O anti‑hipertensor foi substituído por nifedipina de libertação prolongada 30 mg/dia. Do estudo efetuado na consulta de Imunoalergologia: PA: 138/86 mmHg; hemograma e bioquímica sem alterações. Imunoglobulinas séricas e complemento sem alterações. No período de vigilância clínica de cerca de 12 meses o doente manteve‑se assintomático e referenciado em 2007 para o médico assistente.
No início de 2015 foi medicado pelo médico de família com perindopril + amlodipina 10/10 mg/dia e em Julho desse mesmo ano apresentou novo episódio de angioedema labial com recurso ao SU. Foi medicado com anti‑histaminico, corticoide e ácido aminocaproico, com melhoria gradual e referenciado novamente à consulta de Imunoalergologia.
Foi substituído o perindopril por rilmenidina 1 mg/dia, com bom controlo da PA (130/77 mmHg) e sem recorrência de angioedema durante os 18 meses de seguimento.
DISCUSSÃO
O AE induzido por ARA é menos grave e surge mais precocemente quando comparado com o AE que se desenvolve durante o tratamento com IECA.
Os IECA bloqueiam a atividade da ECA reduzindo deste modo, a taxa de degradação de bradicinina. No entanto, só uma pequena percentagem dos doentes tratados com IECA desenvolve AE 0,1 a 0,68 %, o que pode sugerir o envolvimento de outros mecanismos na sua patogénese2,3.
O AE induzido por IECA parece resultar de um defeito de degradação de pelo menos três péptidos vasoativos: bradicinina, des‑Arg9‑bradicinina (metabolito da bradicinina originado pela ação da cininase I) e substância P 2.
Quando a ECA é inibida, as enzimas secundárias no metabolismo da bradicinina têm um papel predominante na degradação da bradicinina, des‑Arg9‑bradicinina e substância P. Defeitos nestas enzimas podem predispor ao desenvolvimento de AE.
O facto de os ARA não atuarem sobre o metabolismo da bradicinina pode explicar a baixa incidência de AE induzida por ARA (0,11%), inferior a metade da taxa observada em ensaios com doentes tratados com IECA4.
O tratamento primário do AE induzida por IECA é a descontinuação obrigatória do medicamento em causa e tratamento de suporte enquanto o AE se resolve. A protecção cuidadosa das vias aéreas superiores é crucial na presença de edema da língua, úvula ou da glote. Obstrução das vias aéreas superiores ocorre até 10 % dos casos, podendo ser necessário a intubação e a ventilação mecânica.
A terapêutica habitual com anti‑histaminicos, corticóides ou epinefrina é pouco efetiva porque a histamina tem um papel limitado na fisiopatologia do AE induzido por IECA/ARA.
Em doentes com ameaça de obstrução de vias aéreas superiores e que não melhoram pode utilizar‑se o icatibant, um antagonista de recetores B2 de bradicinina. Se o icatibant não estiver disponível podem administrar‑se 2 unidades de plasma fresco congelado, que contém ACE e Inibidor de C1 (C1 INH) que se mostrou útil no AE induzido por IECA5. O icatibant e C1INH são medicamentos muito dispendiosos, sendo por isso utilizados apenas nos casos graves, com edema das vias respiratórias altas.
Também tem sido reportado AE com inibidores da dipeptidil peptidase IV (DDP IV), como sitagliptina, embora estes agentes muitas vezes sejam usados em simultâneo com IECA e ARA. Existem dados limitados sobre o papel destes anti‑diabeticos na fisiopatologia do AE6.
No caso clínico 1 esta medicação foi continuada sem recorrência de episódios de AE.
Numa revisão recente, a incidência de AE induzido por aliskiren (o inibidor direto da renina), IECA, ARA e betabloqueadores (BB) foi idêntica com IECA e aliskiren, com cerca de 4,38 por 1000 indivíduos por ano. Já para ARA e BB foi de 1,66 por 1000 indivíduos por ano7.
Nos casos clínicos apresentados, salientamos a história clínica sugestiva de AE induzido por IECA: edema localizado à face e lábios, sem outras localizações, sem urticária ou prurido associados. Os primeiros sintomas surgiram, no primeiro caso, após 2 anos de tratamento com zofenopril e olmesartan e no segundo caso 10 anos após o início de lisinopril + hidroclortiazida, com um período assintomático de 8 anos, verificando‑se o reaparecimento do AE após 4 meses de terapêutica com perindopril + amlodipina.
O tempo que decorre entre o início da terapêutica com IECA e o desenvolvimento de AE é variável. Alguns doentes podem desenvolver sintomas em horas, enquanto outros podem desenvolver sintomas após anos de terapêutica8.
O estudo do complemento revelou valores normais em ambos os casos, o que permitiu realizar diagnóstico diferencial com outros tipos de AE.
O diagnóstico foi estabelecido com base no aparecimento de sintomas e a medicação (IECA e/ou ARA), verificando‑se a sua resolução após a suspensão destes fármacos. No primeiro caso clínico foram suspensos os dois medicamentos, porque cada um deles podia ser a causa de AE. Os sintomas de AE podem persistir algum tempo depois de descontinuação de fármacos. Num estudo retrospetivo de longa duração ocorreram 88 % de recorrências no primeiro mês de suspensão da medicação, podendo, em alguns casos, prolongar‑se por seis meses9.
Está identificado um risco de AE (inferior a 10 %) com a utilização de ARA em doentes com antecedentes de AE relacionado com IECA. Assim, a decisão terapêutica terá necessariamente de considerar o risco‑beneficio10.
CONCLUSÃO
É importante alertar para os riscos de reintrodução de IECA em doentes com antecedentes de AE induzido por estes fármacos. Em ambos os casos foi possível atingir um bom controlo da pressão arterial com anti‑hipertensores de outros grupos farmacológicos.
REFERÊNCIAS
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9. Beltrami L, Zanichelli A, Zingale L, Vacchini R, Carugo S, Cicardi M. Long term follow up of 111 patients with ACE induced angioedema. J Hipertens 2011; 29: 2273‑7. [ Links ]
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Alexandru Ciobanu
Centro Hospitalar e Universitário de Coimbra
Avenida Bissaya Barreto
3000-076 Coimbra
Financiamento: Nenhum.
Declaração de conflito de interesses: Nenhum.
Data de receção / Received in: 07/04/2016
Data de aceitação / Accepted for publication in: 20/02/2017