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Revista Portuguesa de Imunoalergologia
versão impressa ISSN 0871-9721
Rev Port Imunoalergologia vol.27 no.1 Lisboa mar. 2019
https://doi.org/10.32932/rpia.2019.03.006
CASO CLÍNICO
Proctocolite induzida por proteína alimentar em lactente sob aleitamento materno exclusivo
Food-protein induced proctocolitis in an exclusive breastfed infant
Carolina Prelhaz1, Anna Sokolova2, Carlos Escobar2, Marta Moniz2, Pedro Nunes2, Clara Abadesso2, Helena Loureiro2
1 Centro Hospitalar Barreiro Montijo, Setúbal
2 Hospital Prof. Doutor Fernando Fonseca, Amadora
RESUMO
Introdução: A protocolite induzida por proteína alimentar é uma reação de hipersensibilidade não-IgE mediada, mais frequentemente desencadeada pela ingestão de leite de vaca ou soja mas também já reconhecida no contexto de aleitamento materno exclusivo. Pode manifestar -se nas primeiras semanas de vida e o seu diagnóstico constitui um desafio pela inespecificidade das manifestações clínicas, muitas vezes levando a intervenções médicas desnecessárias e invasivas. Caso clínico: Os autores apresentam um lactente com um mês de vida sob aleitamento materno exclusivo, avaliado por dejeções hemáticas, recusa alimentar e irritabilidade, cuja investigação clínica foi consecutivamente negativa e cujas manifestações clínicas reverteram após evicção do leite materno e início de leite extensamente hidrolizado. Conclusões: A evicção da proteína alimentar desencadeante resulta numa recuperação clínica geralmente completa e sem sequelas tardias. Pode ser necessária a suspensão do aleitamento materno em lactentes nos quais não seja identificada outra causa para a hipersensibilidade.
Palavras -chave: Proctocolite, hipersensibilidade, leite materno.
ABSTRACT
Introduction: Food-protein induced proctocolitis is a non-IgE mediated hypersensitivity reaction, most often triggered by the ingestion of cow’s or soy milk but it has also been recognized in exclusive breastfed infants. It may occur in the first weeks of life and its diagnosis is challenging given the lack of specificity of clinical manifestations, often leading to invasive and unnecessary medical interventions. Clinical report: The authors present a one-month old infant, exclusively breastfed, admitted for bloody stools, irritability and declining oral intake, whose clinical investigation was consecutively negative and whose clinical manifestations reversed after excluding breast milk eviction and introducing of extensively hydrolyzed milk. Conclusions: The exclusion of the triggering food protein usually leads to complete clinical response and no late sequelae. It may be necessary to stop breastfeeding in infants in whom no other cause for hypersensitivity has been identified.
Keywords: proctocolitis; hypersensitivity; breast milk
INTRODUÇÃO
A proctocolite induzida por proteína alimentar (PCIPA) é uma hipersensibilidade alimentar não IgE mediada, cujo mecanismo fisiopatológico não está ainda bem esclarecido1,2,4,6. Leite de vaca e soja são os desencadeantes mais comuns, mas alimentos sólidos podem estar implicados1,2,3,5,6.
A PCIPA pode manifestar -se nas primeiras semanas de vida, de forma aguda ou crónica, sendo a última mais rara, associada a início mais precoce e a sintomas menos exuberantes (vómitos intermitentes, diarreia hemática, má progressão ponderal e letargia)1,4,8 e estando já descrita em recém -nascidos (RN)/lactentes sob aleitamento materno exclusivo6,7,8.
O diagnóstico é essencialmente clínico e muitas vezes tardio, por não haver um teste diagnóstico definitivo ou manifestações cutâneas e respiratórias concomitantes3, com remissão dos sintomas após evicção do agente desencadeante2,3. Implica diagnóstico diferencial com outras situações clínicas de natureza alérgica, infecciosa, cirúrgica, metabólica, hematológica ou imunológica4,9, levando frequentemente a tratamentos desnecessários4.
A maioria adquire tolerância alimentar no primeiro ano de vida, devendo esta ser documentada por prova de tolerância oral2,3.
CASO CLÍNICO
Lactente do sexo masculino, sob aleitamento materno exclusivo desde o nascimento, com adequada progressão ponderal. História de períodos prolongados de choro inconsolável desde o nascimento. Pais com história de asma moderada.
Com um mês de vida submetido a herniorrafia inguinal bilateral. Alta no próprio dia, clinicamente bem e a tolerar leite materno. No mesmo dia, por dejeções com muco e vestígios de sangue, recusa alimentar e irritabilidade, recorreu ao serviço de urgência pediátrico.
À admissão objetivava febre (38,6ºC), gemido e má perfusão periférica, com distensão abdominal. Analiticamente destacava -se: Hb 8,6g/dL, leucócitos 7500/mm3, plaquetas 384000/mm3, PCR 1,76mg/dL. Gasimetria venosa sem alterações.
Pela distensão abdominal, realizou ecografia que revelou espessamento parietal do íleo terminal, cego e colon ascendente, com episódios de peristaltismo aumentado e marcada distensão gasosa. Mostrou também lâmina de líquido interansas em topologia pélvica e formações ganglionares infracentimétricas. Estas alterações foram descritas como sugestivas de invaginação intestinal intermitente, sem indicação cirúrgica urgente, tendo sido admitido para vigilância na Unidade de Cuidados Intensivos Pediátricos, em pausa alimentar.
Manteve -se em ar ambiente e com frequências cardíacas (FC) entre 150 e 170 bpm. Por manter febre repetiu avaliação analítica em D1 de internamento: Hb 7,1 g/dL e PCR 5,6 mg/dl. Foi decidida transfusão de concentrado eritocitário em D2 por aumento da FC. Pela subida dos parâmetros de infeção realizou punção lombar, com exame citoquímico negativo. Apesar de se encontrar sem febre em D2 de internamento, iniciou ampicilina, cefotaxima e metronidazol, que suspendeu em D4 após exames culturais (urocultura, líquor e hemocultura) negativos.
Repetiu ecografia abdominal, que revelou espessamento parietal do cólon, com pequena quantidade de líquido puro interansas nos quadrantes direitos.
Perante o quadro de dejeções hemáticas, realizou cintigrafia que excluiu divertículo de Meckel. Pesquisa de rotavírus, E. coli O:157, Campylobacter, Yersinia, Salmonella e Shigellanas fezes negativa. Toxina de Clostridium dificille negativa.
Ainda em D1 de internamento iniciou alimentação entérica com leite extensamente hidrolizado, com tolerância e regressão das dejeções hemáticas. Reiniciou aleitamento materno em D2. Em D3, por aparecimento de exantema maculopapular de distribuição centrífuga, poupando os membros inferiores, e edema palpebral bilateral, com nova dejeção com sangue vivo, retomou leite extensamente hidrolizado, com resolução das alterações descritas. Neste contexto, foi avaliado por Imunoalergologia, tendo sido pedidas IgE específicas para leite total, alfa -lactoalbumina, beta-lactoglobulina e caseína, todas com resultado <0,35 kU/l. Não foram realizados, no internamento, testes cutâneos por picada.
Foi considerada como hipótese diagnóstica provável proctocolite induzida por proteínas alimentares, com resposta cutânea após reintrodução do leite materno.
Teve alta em D7 de internamento, clinicamente bem, mantendo alimentação com leite extensamente hidrolisado para o domicílio, por decisão dos pais.
DISCUSSÃO
A hipersensibilidade alimentar consiste numa resposta imunológica anormal a proteínas alimentares, podendo apresentar -se clinicamente de formas diversas: reacções mediadas por IgE, reações mistas (mediadas por IgE e por células) e reações mediadas por células. Nestas últimas incluem-se a enteropatia (EPIPA), proctocolite (PCIPA) e enterocolite (EIPA), induzidas por proteínas alimentares, a doença celíaca e a hemossiderose pulmonar, induzida por alimentos2,3.
As reações de hipersensibilidade mediadas por células parecem ser mais frequentes no sexo masculino e associar-se a antecedentes pessoais ou familiares de atopia2,3. Os sintomas surgem tipicamente entre o 1.º e o 3.º meses de vida, embora os relacionados com alimentos sólidos tendam a surgir mais tardiamente, com a diversificação alimentar2. O leite de vaca e soja são os alimentos mais frequentemente implicados1,2,3,5,6. Também reações de hipersensibilidade não -IgE mediadas desencadeadas por proteínas presentes no leite materno são possíveis e devem ser consideradas na presença de cenário clínico sugestivo8.
Embora raras, reações alérgicas, como urticária e anafilaxia associadas à ingestão de leite materno, têm sido descritas7.
As manifestações clínicas e laboratoriais de EIPA e PCIPA são diferentes: EIPA pode manifestar-se durante o primeiro ou segundo anos de vida, enquanto PCIPA se manifesta mais frequentemente nos primeiros 6 meses e geralmente nas primeiras 4 semanas de vida, ocasionalmente em lactentes sob aleitamento materno exclusivo2,3.
Nestes, as alterações clínicas são geralmente mais insidiosas3. Contrariamente ao observado na EIPA, em que a emese é mais exuberante, podendo haver progressão para choque hipovolémico e acidemia, na PCIPA a característica mais significativa é a presença de dejeções pastosas com sangue em lactente com bom estado geral, ocasionalmente com cólica mas raramente com progressão para desidratação2,3. Nestes, anemia e hipoalbuminemia são raras2,3. No caso apresentado, a anemia deveu-se, provavelmente, não só a perdas intestinais ocultas no contexto da proctocolite, mas também a perdas relacionadas com o procedimento cirúrgico realizado. Considerando as características clínicas e laboratoriais de ambas as situações clínicas, o caso clínico apresentado parece ser mais sugestivo de PCIPA. As alterações descritas colocam diagnóstico diferencial com fissura anal, gastroenterite infeciosa, anafilaxia, alterações metabólicas, sépsis, invaginação intestinal ou enterocolite necrotizante, muitas vezes culminando em tratamento antibiótico e intervenções invasivas desnecessárias3,4,9. Endoscopicamente, a colite é mais exuberante na EIPA e mais focal na PCIPA3. A PCIPA parece resolver mais precocemente, geralmente nos primeiros 12 meses de vida2,3.
As provas de provocação oral são o gold standard diagnóstico. No entanto, não são necessárias na maioria dos lactentes, especialmente quando existe história clínicasugestiva, com resolução dos sintomas após evicçãodo alimento desencadeante1,2,3. A prova de provocaçãooral é importante na documentação da tolerância, devendoser realizada depois dos 12 meses de idade nas hipersensibilidades induzidas pelas proteínas do leite devaca ou, mais precocemente, a partir dos 6 meses, sehipersensibilidade à soja2. A maioria dos doentes temtestes cutâneos por picada (TCP) negativos e IgE específicas indetetáveis na altura do diagnóstico. Só muitoraramente os doseamentos de IgE específicas são positivos1,2,6e estes casos parecem associar-se a doença maisgrave e/ou prolongada e até apresentar alteração do fenótipoclínico para o de reação de hipersensibilidadeimediata2,3. Apesar de os TCP se mostrarem promissoresno diagnóstico desta condição, ainda não estão estabelecidoscomo testes diagnósticos ou de aquisição de tolerância,parecendo no entanto existir uma relação entrea positividade dos TCP e a ausência de aquisição de tolerânciaoral2.
Em RN/lactentes sob aleitamento materno exclusivo a eliminação do agente desencadeante da dieta materna resulta geralmente numa resolução gradual dos sintomas3.
No caso clínico apresentado, no entanto, a evicção do agente desencadeante da dieta materna não foi tentada, por decisão dos pais. Mais raramente, a persistência de hemorragia intestinal, apesar de evicção materna adequada, pode dever-se a incorreta identificação da proteína desencadeante ou a hipersensibilidade às próprias proteínas do leite materno3.
A hipersensibilidade gastrointestinal mediada por células a proteínas alimentares parece ser uma condição autolimitada e sem sequelas, exceto naqueles com IgE específicas positivas3. Alguns estudos descrevem progressão para doença atópica (eczema, asma). Parece haver um maior risco de alergia alimentar IgE mediada no grupo de doentes com EIPA. Não existem documentados casos de progressão para doença inflamatória intestinal3.
Um baixo índice de suspeição é a principal causa de atraso diagnóstico4. Com este caso os autores pretendem alertar para esta condição clínica que tem vindo a ser reconhecida de forma crescente, mesmo em RN/lactentes sob aleitamento materno exclusivo.
REFERÊNCIAS
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Carolina Prelhaz
Centro Hospitalar Barreiro Montijo
Av. Movimento das Forças Armadas, 2830 -003 Barreiro
E-mail: carolinaprelhaz@gmail.com
Data de receção / Received in: 15/11/2017
Data de aceitação / Accepted for publication in: 23/04/2018