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Revista Portuguesa de Imunoalergologia

versão impressa ISSN 0871-9721

Rev Port Imunoalergologia vol.27 no.2 Lisboa jun. 2019

https://doi.org/10.32932/rpia.2019.07.012 

CASO CLÍNICO

 

Anafilaxia a proteínas do leite de cabra após indução de tolerância oral específica ao leite de vaca

Anaphylaxis to goat’s milk proteins after specific oral tolerance induction to cow’s milk

 

Filipe Benito-Garcia, Sofia Couto, Ângela Gaspar, Susana Piedade, Mário Morais-Almeida

Centro de Imunoalergologia, Hospital CUF Descobertas, Lisboa

 

Correspondência para:

 

RESUMO

A alergia às proteínas do leite de vaca (APLV) é a alergia alimentar mais comum em idade pediátrica. Descrevem-se dois casos de doentes com APLV grave e persistente mediada por IgE que foram submetidos com sucesso a protocolo de indução de tolerância oral (ITO) específica às proteínas do leite de vaca e que na fase de manutenção da ITO desencadearam anafilaxia após contacto acidental com proteínas de leite de cabra, num caso 6 anos e no outro caso 2 anos após iniciarem ITO. Os doentes mantêm a tolerância às proteínas do leite de vaca, com ingestão diária da dose de manutenção de 200mL de leite de vaca. Realça-se que após completar um protocolo de ITO às proteínas do leite de vaca é importante manter uma dieta com evicção de leite e derivados de cabra e ovelha, a qual deve ser cumprida até ser comprovada tolerância por prova de provocação oral.

Palavras-chave: Alergia ao leite de vaca, anafilaxia, indução de tolerância oral específica, leite de cabra, leite de ovelha.

 

ABSTRACT

Cow’s milk protein allergy (CMPA) is the most common food allergy in pediatric age. We described two patients with severe and persistent IgE-mediated CMPA who successfully underwent a specific oral tolerance induction (OTI) protocol to cow’s milk proteins, in whom during the maintenance phase of OTI anaphylaxis was triggered after the accidental intake of goat’s milk proteins, in one case 6 years and in the other case 2 years after starting OTI. The patients maintain tolerance to cow’s milk proteins, with daily intake of maintenance dose of 200mL of cow’s milk. We emphasized that after completing an OTI protocol on cow’s milk proteins, it is important to maintain avoidance of goat’s and sheep’s milk and cheese, until tolerance is assessed by oral provocation test.

Keywords: Anaphylaxis, cow’s milk allergy, goat milk, sheep milk, specific oral tolerance induction.

 

INTRODUÇÃO

A alergia às proteínas do leite de vaca (APLV) é a alergia alimentar mais comum nos primeiros anos de vida, podendo afetar mais de 5% das crianças1,2. Leites provenientes de outras espécies de mamíferos têm sido sugeridos como possíveis alternativas nutricionais, no entanto, diversos estudos têm demonstrado um risco elevado de reatividade cruzada com as proteínas do leite de vaca (PLV)3,4. Os alergénios mais importantes na APLV são as caseínas e as proteínas do soro do leite, alfa-lactoalbumina e beta-lactoglobulina.

As caseínas são alergénios principais na APLV, e tem sido demonstrado um elevado grau de reatividade cruzada entre as caseínas do leite nas diferentes espécies de mamíferos4. A reatividade cruzada resulta de uma homologia entre as sequências de aminoácidos destas proteínas3.

Indivíduos alérgicos às PLV estão sensibilizados às proteínas do soro, à caseína ou a ambos, e a maioria reage a leite de cabra e ovelha devido ao elevado grau de homologia entre as proteínas correspondentes. Todavia, a alergia a leite de cabra e ovelha não envolvem reatividade cruzada com o leite de vaca (LV). Um indivíduo pode sensibilizar-se a proteínas específicas do leite de cabra ou ovelha que não apresentam reatividade cruzada com as PLV, permitindo, deste modo, explicar a razão pela qual doentes alérgicos toleram LV, mas não leite de cabra, de ovelha ou de outros mamíferos5. Os alergénios responsáveis são essencialmente as caseínas, nomeadamente caseína-αS1, caseína-αS2 e caseína-β. As proteínas do soro não estão envolvidas5. Polimorfismos genéticos na caseína-αS1 podem explicar doentes exclusivamente alérgicos a leite de cabra ou ovelha6.

A reatividade cruzada entre as PLV de cabra ou de ovelha significa que a maioria dos doentes com APLV não consegue tolerar estes leites3,4,7, significando, deste modo, que leite de cabra e ovelha estão proibidos em doentes com APLV. As recomendações atuais para doentes com APLV são a evicção rigorosa de LV, de cabra e de ovelha.

No entanto, não existe consenso sobre a extensão desta recomendação em doentes com APLV que foram submetidos a protocolo de indução de tolerância oral (ITO) às PLV8.

Descrevem-se os casos de dois adolescentes com APLV submetidos com sucesso a protocolo de ITO às PLV que desencadearam anafilaxia após contacto acidental com leite de cabra e queijo de ovelha num caso, e após contacto acidental com queijo de cabra noutro caso.

CASO CLÍNICO 1

Adolescente do género masculino com 13 anos de idade, com asma, rinite alérgica, eczema atópico e alergia ao ovo para o qual adquiriu tolerância aos 5 anos de idade.

Aos 6 meses de idade, imediatamente após a ingestão de um iogurte contendo PLV, teve uma reação anafiláctica com angioedema facial, urticária generalizada, rinoconjuntivite e pieira, referindo vómitos desde a introdução de papa láctea. Após confirmação de diagnóstico de APLV mediada por IgE iniciou evicção de PLV com substituição por fórmula de leite extensamente hidrolisado (eHF). No entanto, vários episódios reprodutíveis de urticária ocorreram imediatamente após ingestão desta fórmula. Analiticamente apresentava IgE total de 45,8UI/mL e IgE específica (sIgE) positiva para LV (55,2kU/L), caseína (54,8kU/L), alfa-lactoalbumina (42,9kU/L) e beta-lactoglobulina (16,6kU/L). Por teste cutâneo positivo para eHF e síndrome de enterocolite induzida por proteína de soja após ingestão de leite de soja, a criança iniciou uma fórmula de aminoácidos (Neocate®, Nutricia) com tolerância. Manteve-se sob fórmula de aminoácidos em evicção de PLV até aos 6 anos de idade. Durante este período os pais relataram episódios de urticária de contacto para PLV, mas nenhum episódio de ingestão acidental de PLV, pelo que aos 6 anos foi realizada prova de provocação oral que foi positiva 17 minutos após a ingestão de 1mL de LV, com urticária generalizada, rinoconjuntivite e edema palpebral, que regrediu após cetirizina e betametasona orais. Analiticamente apresentava sIgE positivas para LV (13,3kU/L), caseína (12,2kU/L), alfa-lactoalbumina (4,5kU/L) e beta-lactoglobulina (3,7kU/L). Os testes cutâneos por picada (TC) eram positivos para eHF (Aptamil®Pepti Junior, Milupa) (pápula 8mm), LV (9mm), caseína (10mm), alfa-lactoalbumina (8mm) e beta-lactoglobulina (9mm).

Em junho de 2011 iniciou ITO em ambiente hospitalar de acordo com o protocolo publicado pelos autores1.

Desde o final do protocolo, o doente manteve a ingestão diária de 200mL de LV com liberalização progressiva da dieta, mantendo evicção de leite e derivados de cabra e ovelha. Um ano após ter terminado ITO realizou reavaliação analítica com redução das sIgE para LV e PLV (LV 2,76kU/L, caseína 2,12kU/L, alfa-lactoalbumina 2,02kU/L e beta-lactoglobulina 1,59kU/L) e valores elevados de IgG4 para LV (>30mg/L) e caseína (>30mg/L).

Em setembro de 2017, aos 12 anos, refere reacção anafilática imediatamente (<5 minutos) após ingestão acidental de cerca de 40mL de leite de cabra, com dor abdominal, aperto orofaríngeo, prurido generalizado, urticária, edema periorbitário e sensação de desmaio, que regrediu após autoadministração de adrenalina 0,3mg intramuscular e cetirizina 20mg e prednisolona 60mg orais. Os TC foram positivos para leite de cabra (5mm) e de ovelha (5mm) em natureza, tendo sido negativos para LV e PLV. Analiticamente apresentava sIgE positivas para leite de cabra (18,5kU/L) e leite de ovelha (21,4kU/L).

Em abril de 2018, enquanto se encontrava de férias em Espanha, teve nova reação acidental (com urticária, tosse e vómito) imediata após ingestão de “tapa” contendo queijo de ovelha, que regrediu após toma de cetirizina 20mg e prednisolona 60mg.

Atualmente, o doente mantém a ingestão diária de 200mL de LV com dieta livre, mantendo evicção de produtos contendo proteínas de leite de cabra e ovelha.

CASO CLÍNICO 2

Adolescente do género feminino com 14 anos de idade, com asma e rinoconjuntivite alérgica. Aos 5 meses de idade, imediatamente após ingestão de biberão de leite adaptado, teve uma reação anafilática com urticária generalizada e vómitos. Após confirmação de diagnóstico de APLV mediada por IgE iniciou evicção de PLV com substituição por eHF. Analiticamente apresentava IgE total de 40,5UI/mL e sIgE positivas para LV (15,2kU/L), caseína (4,84kU/L), alfa-lactoalbumina (2,8kU/L) e beta-lactoglobulina (1,6kU/L).

Aos 8 anos mantinha queixas de APLV, efectuando como substituição leite de soja, referindo vários episódios de queixas mucocutâneas (prurido, eritema e urticária peribucal) e respiratórias (tosse e pieira) imediatos após ingestão acidental de PLV (bolo, empadão e manteiga).

Foi proposto iniciar ITO às PLV. Analiticamente apresentava sIgE positivas para LV (31kU/L), caseína (14,5 kU/L), alfa-lactoalbumina (2,5kU/L) e beta-lactoglobulina (0,81kU/L). Os TC eram positivos para LV (6mm), caseína (11mm), alfa-lactoalbumina (9mm) e beta-lactoglobulina (3mm).

Em abril de 2015 iniciou ITO em ambiente hospitalar1. Desde o final do protocolo, a doente manteve a ingestãodiária de 200mL de LV com liberalização progressiva da dieta, mantendo evicção de leite e derivados de cabra e ovelha. Um ano após ter terminado ITO realizou reavaliação analítica com redução das sIgE para LV e PLV (LV 6,80kU/L, caseína 3,16kU/L, alfa-lactoalbumina 1,39kU/L e beta-lactoglobulina 0,46 kU/L) e valores elevados de IgG4 para LV (>30mg/L) e caseína (>30mg/L).

Em junho de 2017, aos 12 anos, refere reação anafiláctica imediatamente (5 a 10 minutos) após ingestão acidental de queijo de cabra, com dor abdominal, sensação de mal-estar, urticária generalizada, edema labial, dispneia, tonturas e hipotensão (60-33mmHg após chegada do INEM). Foi encaminhada para urgência hospitalar onde fez 0,5mg de adrenalina intramuscular e clemastina e hidrocortisona por via endovenosa, com regressão das queixas. Os TC foram positivos para queijo de cabra (13mm) e de ovelha (11,5mm) em natureza, mantendo TC positivos para LV (6,5mm), caseína (5mm), alfa-lactoalbumina (5mm) e beta-lactoglobulina (4mm).

Atualmente, a doente mantém a ingestão diária de 200mL de LV com dieta livre e a evicção de produtos contendo proteínas de leite de cabra e ovelha.

DISCUSSÃO

A ITO às PLV induz tolerância às PLV mas não garante tolerância ao leite de outros mamíferos2,7-9. É específica de espécie e não implica tolerância a leites de outras espécies8,9. Epítopos altamente específicos para as caseínas do leite de cabra e ovelha parecem estar envolvidos nesta alergia, refletindo a especificidade alergénica da ITO às PLV para o LV mas não para o leite de cabra ou ovelha.

O doseamento de sIgE para caseína do LV, leite de cabra e leite de ovelha tem uma boa correlação com diagnóstico de alergia a leite de cabra e ovelha, apesar de a prova de provocação oral ser a abordagem de eleição para o diagnóstico de alergia alimentar.

Pouco se sabe sobre a aquisição de tolerância a leite de cabra e ovelha em doentes com APLV submetidos a protocolo de ITO às PLV, havendo poucos estudos publicados sobre este tema. Alves-Correia et al.10 num follow-up até 9 anos de quatro doentes submetidos com sucesso a ITO às PLV constataram que três destes doentes toleravam as proteínas de leite de cabra e ovelha que ingeriam regularmente na dieta, nomeadamente em queijo, sem reacção adversa.

Martorell-Aragonés et al.7 num estudo que incluiu 8 crianças que toleravam LV após protocolo de ITO às PLV, dividiram a amostra em dois grupos de quatro doentes: um grupo não tolerava leite de cabra e o outro grupo tolerava. Através da realização de immunobloting por inibição com LV e de cabra, os autores concluíram que as crianças que não toleravam leite de cabra após ITO às PLV estavam sensibilizadas a caseínas específicas deste leite sem reatividade cruzada com LV, explicando a especificidade da indução de tolerância oral ao alimento implicado.

Rodríguez-del-Río et al.8 realizaram um estudo prospectivo no qual incluíram 58 doentes com APLV que completaram com sucesso ITO às PLV, com o intuito de avaliar tolerância ao leite de cabra e ovelha e pesquisar marcadores preditivos de alergia às proteínas do leite de cabra e ovelha. Foram realizados TC com PLV, queijo de cabra e queijo de ovelha, e doseamentos de sIgE para PLV, leite de cabra e leite de ovelha. A avaliação de tolerância ao leite de cabra e ovelha foi realizada através de provas de provocação oral com queijo do leite implicado (dose cumulativa de 100g). Foi documentada uma elevada prevalência (26%) de alergia ao leite de cabra e ovelha na população estudada (15 em 58 doentes com APLV submetidos a ITO às PLV tiveram prova de provocação positiva). O doseamento de sIgE para caseína de LV, leite de cabra e leite de ovelha foram 13,2, 18 e 21,4kU/L no grupo de doentes com alergia ao leite de cabra e ovelha e 6,6, 6,5 e 6,5kU/L no grupo de doentes não alérgico, demonstrando serem marcadores de alergia. A realização de immunobloting por inibição demonstrou a existência de uma reatividade cruzada limitada (máximo de 77%) entre a caseína do LV e as caseínas de leite de cabra e ovelha no grupo de doentes alérgicos, em contraste com praticamente 100% no grupo dos não alérgicos. Quase metade (47%) dos doentes submetidos a prova de provocação oral teve reação anafilática, enfatizando a relevância de avaliar a tolerância a leite de cabra e ovelha neste grupo de doentes.

Os autores concluem que após completar com sucesso um protocolo de ITO às PLV, uma dieta com evicção de leite e derivados de cabra e ovelha deve ser cumprida rigorosamente até ser comprovada a tolerância por prova de provocação oral.

 

REFERÊNCIAS

1. Morais-Almeida M, Piedade S, Couto M, Sampaio G, Santa-Marta C, Gaspar A. Inovação na indução de tolerância oral específica em crianças com anafilaxia às proteínas do leite de vaca. Ver Port Imunoalergologia 2011;19:161-9.         [ Links ]

2. Mota I, Piedade S, Gaspar A, Benito-Garcia F, Sampaio G, Borrego LM, et al. Cow’s milk oral immunotherapy in real life: 8-year long-term follow-up study. Asia Pac Allergy 2018;8:e28.

3. Restani P, Gaiaschi A, Plebani A, Beretta B, Cavagni G, Fiocchi A, et al. Cross-reactivity between milk proteins from different animal species. Clin Exp Allergy 1999;29:997-1004.         [ Links ]

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6. Ballabio C, Chessa S, Rignanese D, Gigliotti C, Pagnacco G, Terracciano L, et al. Goat milk allergenicity as a function of αS1-casein genetic polymorphism. J Dairy Sci 2011;94:998-1004.         [ Links ]

7. Martorell Aragonés A, Martorell Calatayud C, Pineda F, Félix Toledo R, Cerdá Mir JC, de las Marina MD. Persistence of allergy to goat’s milk after specific induction of tolerance to cow’s milk. J Investig Allergol Clin Immunol 2012;22:286-312.

8. Rodríguez del Río P, Sánchez-García S, Escudero C, Pastor-Vargas C, Sánchez Hernández JJ, Pérez-Rangek I, et al. Allergy to goat’s and sheep’s milk in a population of cow’s milk-allergic children treated with oral immunotherapy. Pediatr Allergy Immunol 2012;23:128-32.

9. Alonso-Lebrero E, Fuentes V, Zapatero L, Pérez-Bustamante S, Pineda F, Martinez-Molero MI. Goat’s milk allergies in children following specific oral tolerance induction to cow’s milk. Allergol Immunopathol 2008;36:180-1.

10. Alves-Correia M, Gaspar A, Borrego LM, Azevedo J, Martins C, Morais-Almeida M. Successful oral desensitization in children with cow’s milk anaphylaxis: Clinical and laboratory evaluation up to nine-years follow-up. Allergol Immunopathol (Madr) 2019;47:133-40.

 

Contacto:

Ângela Gaspar

Centro de Imunoalergologia, Hospital CUF Descobertas

Rua Mário Botas, 1998-018 Lisboa

E-mail: angela.gaspar@sapo.pt

 

Conflito de interesses

Os autores declaram que não existem conflitos de interesse.

 

Data de receção / Received in 14/01/2019

Data de aceitação / Accepted for publication in: 04/02/2019

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