INTRODUÇÃO
As reações alérgicas a carnes vermelhas têm sido, até à data, consideradas extremamente raras.
Nos últimos dez anos houve um aumento significativo do número de casos documentados em adultos e crianças1, associados à sensibilização a alfa‑gal, oligossacarídeo expresso em mamíferos não primatas1.
Os indivíduos que produzem IgE específica (sIgE) alfa‑gal podem reagir após a ingestão de carnes vermelhas, vísceras e gelatina de origem animal, sendo esta definida como síndrome alfa‑gal2.
O primeiro caso clínico foi descrito em 2009 nos Estados Unidos da América (EUA)3. Na Europa, entre 2011 e 2017, foram descritos 96 casos, 2 deles em Portugal4.
A sensibilização a alfa‑gal ainda não está devidamente esclarecida, no entanto tem sido associada a dois factores importantes: a picada de carraça (Ixodes ricinos na Europa, Amblyomma americanum nos EUA) e ao tratamento com anticorpo monoclonal cetuximab1,5. Também a presença de distúrbios parasitológicos, sobretudo nos estudos africanos, ou sensibilização ao pelo de gato foram observados em alguns doentes1. A atopia não parece ser fator de risco1.
A prevalência na Europa ainda não é conhecida. Nos EUA estima‑se uma prevalência de 13/100 000 habitantes, com a carne de vaca mais frequentemente implicada (53%), seguida da carne de porco (47%), cordeiro (9,1%) e veado (7,3%)6.
Habitualmente esta síndrome surge anos após ingestão de carnes vermelhas sem intercorrências. Ao contrário da maioria dos casos de alergia alimentar, em que os sintomas ocorrem até 2 horas, nesta síndrome surgem entre 3 a 6 horas após a ingestão. As manifestações são sobretudo cutâneas, como urticária e/ou angioedema, embora também tenham sido descritas algumas reações anafiláticas2,7.
CASOS CLÍNICOS
São descritos dois casos clínicos de doentes do sexo masculino enviados à consulta de Imunoalergologia por suspeita de alergia alimentar.
Caso A
Doente de 47 anos, taxista, praticante de caminhada nos tempos livres, com antecedentes pessoais de asma alérgica, sensibilizado a ácaros e fungos. Foi enviado à consulta por urticária generalizada e angioedema do lábio recorrentes. Em alguns episódios associava à ingestão de marisco (camarão e lapa), noutros episódios não associava a fatores desencadeantes. Negava sinais/sintomas de outros sistemas. Iniciou evicção de camarão e lapa, mantendo as queixas. Por vezes recorria ao serviço de urgência (SU), realizando terapêutica com corticoide e anti‑histaminico, com melhoria da sintomatologia. Outros episódios tiveram resolução espontânea.
Na consulta foi possível apurar que na maior parte das vezes os sintomas surgiam 5‑6 horas após ingestão de carne de porco/carne de vaca. No entanto, reportou um episódio 2 horas após ingestão de língua de vaca e outro 30 minutos após ingestão de borrego. Neste último tinha ingerido concomitantemente vinho tinto. Nunca apresentou queixas com laticínios.
Do estudo imunoalergológico realizado salienta‑se testes cutâneos em picada (TCP) e prick‑prick para marisco (camarão, gamba e lapa) negativos, TCP para carne de porco e vaca negativos e prick‑prick positivos para carne de porco e vaca, cabrito e borrego. O doseamento de sIgE foi positivo para carne de porco: 2,98 kUA/L, carne de vaca 7,77 kUA/L e alfa‑gal 14,60 kUA/L e negativa para camarão, gamba e lapa. Realizou ainda provas de provocação oral (PPO) com camarão e lapa que foram negativas. Ingere atualmente ambos sem intercorrências.
Caso B
Doente de 42 anos, pescador, não atópico e sem antecedentes pessoais de relevo. Enviado à consulta por urticária generalizada 6 horas após ingestão de carne de porco. Em três episódios referia também sensação de “aperto da orofaringe”.
O primeiro episódio ocorreu 5 anos antes da primeira consulta e referia mais de 10 episódios subsequentes, sempre associados à ingestão de carne de porco, aparentemente sem queixas com a ingestão de outras carnes vermelhas, leite ou derivados. Não associava a outros desencadeantes ou a cofatores. Referia, no entanto, alguns anos após início do quadro, episódio de infeção cutânea no dorso associado a picada de carraça.
Em todos os episódios recorreu ao SU e realizou terapêutica com corticoide e anti‑histaminico. Não foi objetivado edema da úvula ou língua em nenhum dos episódios. Iniciou evicção de carne de porco durante 2 anos, não referindo qualquer queixa. Após este período, voltou a ingerir carne de porco e na segunda ingestão (<50 g) apresentou quadro cutâneo semelhante aos descritos.
À data da primeira consulta, mantinha evicção de carne de porco desde há 1 ano. Do estudo imunoalergológico realizado salienta‑se TCP positivos para carne de porco, negativos para aeroalergénios e carne de vaca e prick‑prick negativos para carne de vaca. O doseamento de sIgE positiva para carne de porco: 3,99 kUA/L, carne de vaca 5,16 kUA/L e alfa‑gal 7,46 kUA/L.
As características clínicas de ambos os doentes e o estudo imunoalergológico realizado na consulta encontram‑se detalhados no Quadro 1. Ambos os doentes realizaram ainda estudo analítico completo incluindo hemograma, bioquímica, marcadores tumorais, estudo do complemento, tendo‑se excluído qualquer alteração nestes valores. Foram também realizados TCP e prick‑prick controlo em 5 doentes atópicos, todos negativos.
Doente A | Doente B | ||||
Caraterísticas clínicas | Sexo, idade | Masculino, 47 anos | Masculino, 42 anos | ||
Atopia Sensibilização aeroalergénios | Sim Dpt Blomia tropicalis Aspergillus fumigatus | Não | |||
Antecedentes pessoais (Hipertensão arterial, alcoolismo, tabagismo…) | Não | Não | |||
Antecedentes de picada de carraça | Possível | Sim | |||
Quadro clínico | Urticária e angioedema do lábio | Urticária e sensação de aperto orofaríngeo | |||
Alimento suspeito | Camarão Lapa Carne de porco Carne de vaca Carne de ovelha | Carne de porco | |||
Tempo médio de início dos sintomas | 3 horas | 6 horas | |||
Cofatores Exercício, álcool,AINE | Sim Álcool (vinho tinto) | Não | |||
Avaliação Imunoalergológica | TCP alimentos (mm) | Extrato comercial | Histamina Camarão Lapa Gamba Carne de porco Carne de vaca | 10x10 Neg Neg Neg Neg Neg | 11x10 NR NR NR 6x5 Neg |
Prick-Prick | Histamina Camarão cru Camarão cozinhado Lapa crua Lapa cozinhada Gamba crua Gamba cozinhada Carne de porco crua Carne de porco cozinhada Carne de vaca crua Carne de vaca cozinhada Carne de borrego crua Carne de borrego cozinhada Carne de cabrito crua Carne de cabrito cozinhada | 10x10 Neg Neg Neg Neg Neg Neg 5x5 5x3 8x5 5x5 7x5 5x5 10x10 10x8 | 11x10 NR NR NR NR NR NR NR NR Neg Neg NR NR NR NR | ||
IgE (kU/L)* | Total | 422 | 44,2 | ||
Específica | Carne de porco Carne de vaca Alfa-Gal | 2,98 7,77 14,60 | 3,99 5,16 7,46 | ||
Relação sIgE Alfa-Gal/IgE total (%) | 3,45 | 16,8 | |||
Prova de provocação oral Camarão Lapa | Neg Neg | NR NR |
Os doentes foram instruídos para evicção de carnes vermelhas e não apresentaram nenhum episódio subsequente.
Mantêm a ingestão de leite e derivados, carnes brancas sem intercorrências. São portadores de relatório médico com descrição do desencadeante implicado e de terapêutica a ser realizada em caso de reação acidental (corticoide e anti‑histaminico orais). Foram ainda instruídos para a evicção de picada de carraça através do uso de vestuário apropriado, repelente e da lavagem da roupa a altas temperaturas após atividades no exterior ou contacto com animais.
DISCUSSÃO
A síndrome alfa‑gal pode afetar doentes de qualquer idade2,8, embora seja mais prevalente na idade adulta (idade média 51 anos) e no sexo masculino (54%)2.
Na Europa pensa‑se que a principal causa de sensibilização seja a picada de carraça. Após este contacto, os níveis de alfa‑gal aumentam e podem ocorrer sintomas4. Estudos prospetivos sobre anticorpos IgE após picada de carraça mostraram um aumento nos níveis de IgE específica para alfa‑gal > 20 vezes e uma forte correlação entre história de picada de carraça e os níveis de IgE9. No doente A, apesar de não haver história reportada de picada, há possibilidade da sua ocorrência, uma vez que faz regularmente caminhadas nas serras. O doente B tinha história prévia de picada associada a infeção local. A evolução arrastada das reações locais a picada sugerem a possibilidade de sensibilização a alfa‑gal4.
O início tardio da reação, 2‑6 horas após a ingestão de carne vermelha, pode explicar a inexistência de mais casos descritos, pois as reações podem ser interpretadas como idiopáticas6‑8.
Por exemplo, no caso A, o doente suspeitou de alergia ao marisco, uma vez que se trata de um alimento mais expectável como causador de alergia. O facto de, após ter iniciado evicção de mariscos, ter mantido queixas, não favorece este diagnóstico. O episódio em que os sintomas surgiram de forma imediata após ingestão de borrego pensa‑se poder estar relacionado com a presença de álcool como cofactor (ingestão de vinho tinto).
O diagnóstico é baseado essencialmente numa história clínica detalhada e no doseamento de sIgE para as carnes suspeitas e alfa‑gal (Thermo Fisher Scientific)1,5,7. O estudo de Mebelane T et al. concluiu que um valor de sIgE alfa‑gal >5,5 kU/L e de relação sIgE alfa‑gal/IgE >2,1% está relacionado com maior risco de o doente apresentar alergia às carnes vermelhas10. Nestes casos clínicos ambos apresentavam episódios reprodutíveis com a ingestão de carnes vermelhas e doseamento de sIgE superiores a 5,5 kU/L (A: 14,6 e B: 7,46 kU/L) e com relação superior a 2,1% (3,5 e 17%, respetivamente), o que torna o diagnóstico muito provável4,7.
Os TCP com extrato comercial são frequentemente negativos, apresentando baixa sensibilidade1, enquanto os prick‑prick com o alimento, sobretudo se realizados com vísceras, parecem ter maior sensibilidade4. Nestes casos, ambos apresentaram TCP positivos para carne de porco (A e B) e TCP e prick‑prick positivos para outras carnes vermelhas (A). No doente B não se realizaram prick‑prick com carne de porco, visto o TCP com extrato ter sido positivo.
Nos casos em que a anafilaxia é excluída e a marcha diagnóstica prévia é negativa, a prova de provocação alimentar pode estar indicada, demonstrando um atraso no início dos sintomas até 7‑8 horas1,7. Apesar de ser o gold‑standard no diagnóstico da alergia alimentar, não foi considerada a sua realização nestes doentes, visto a história clínica ser sugestiva, com episódios reprodutíveis após ingestão de carnes vermelhas, inclusive com resolução dos sintomas após interrupção da ingestão das mesmas e com estudo imunoalergológico concordante (testes e sIgE positivas, incluindo alfa‑gal).
A alergia alfa‑gal deve ser considerada em doentes com urticária/angioedema recorrentes ou anafilaxia sem causa aparente e na suspeita de alergia alimentar com a ingestão de carnes vermelhas.
Nos casos de alergia a alfa‑gal, deve ser recomendada a evicção de carnes vermelhas, mantendo‑se a ingestão de leite e derivados (se tolerância) e carnes brancas. Pelo risco de eventos futuros, quer através da ingestão de produtos alimentares ou não alimentares que possam conter produtos derivados de mamíferos, quer pela possível contaminação de carnes (restaurante/talho), ou futuras picadas de carraça7, é fundamental que os doentes sejam identificados, possuam um plano de tratamento de emergência e relembrados dos cuidados para a evicção de picadas.