INTRODUÇÃO
As dermatites de contacto podem ter etiologia irritativa ou alérgica. A dermatite de contacto alérgica (DCA) é desencadeada pela interação de alergénios com a pele. Estes alergénios são frequentemente haptenos de baixo peso molecular que, em alguns indivíduos, desencadeiam uma reação de hipersensibilidade tardia, com consequentes manifestações cutâneas1. A idade mais jovem, o género feminino, o diagnóstico preexistente de atopia e outros fatores genéticos aumentam a probabilidade de DCA. Condições extrínsecas, como a temperatura, a humidade e a oclusão também podem aumentar esta suscetibilidade. Alguns alergénios podem ser transportados através do ar. Neste caso, as lesões cutâneas surgem nas regiões mais expostas, como a face ou os membros superiores. Por vezes, dependendo do tipo e da apresentação do alergénio, pode surgir outro tipo de sintomatologia acompanhante,
nomeadamente respiratória2.
A prevalência global da DCA não está perfeitamente estabelecida. Sabe‑se, no entanto, que cerca de ¼ da população europeia em geral apresenta alergia de contacto a pelo menos um alergénio presente na série básica europeia1 e que esta é uma das principais doenças dermatológicas profissionais3.
O diagnóstico da DCA pressupõe a existência duma alergia de contacto, normalmente identificada pela realização de testes epicutâneos que: 1) demonstram a presença de reação de hipersensibilidade tardia a determinado alergénio; 2) demonstram exposição corrente ao alergénio identificado ou a outros alergénios que possam ter reatividade cruzada; 3) evidenciam determinação da relevância clínica para o quadro apresentado1.
As isotiazolinonas são compostos químicos frequentemente utilizados como biocidas numa vasta gama de produtos (cosméticos, higiene doméstica e produtos industriais, como tintas, colas e detergentes). A utilização duma associação de metilisotiazolinona (MI) e metilcloroisotiazolinona (MCI) numa proporção de 1:3, denominada comercialmente por Kathon CG, foi responsável por um aumento muito significativo da incidência de dermatite de contacto associada a estes componentes nos anos de 19804. Desde então, foram impostas várias restrições à sua utilização. No ano 2000, a MI isoladamente começou a ser utilizada em produtos cosméticos na União Europeia (UE) em concentrações até 100 ppm (uma concentração superior ao autorizado quando utilizada em associação). O aumento do número de casos de sensibilização a MI levou à sua consequente regulamentação em 2013, não sendo possível desde então a sua presença em produtos cosméticos leave‑on, e estando limitada a concentrações de até 15 ppm em cosméticos rinse‑off5.
Se por um lado a indústria cosmética está sujeita a fortes restrições, por outro a regulamentação na indústria de produtos domésticos e industriais limita‑se a uma recomendação no sentido de assinalar a presença de isotiazolinonas na composição. Nestes produtos, as várias isotiazolinonas são frequentemente utilizadas como biocidas em concentrações elevadas.
Foram entretanto introduzidas no mercado outras moléculas da família das isotiazolinonas, como por exemplo a octilisotiazolinona (OIT) e a benzilisotiazolinona (BIT). Estas duas moléculas são estruturalmente semelhantes à MI. A sua utilização não é permitida em produtos cosméticos, mas são frequentes em produtos industriais.
Não é ainda claro que estas moléculas possam induzir reatividade cruzada. Esta confirmação é dificultada pela exposição concomitante frequente a todas estas moléculas, ainda que alguns trabalhos sugiram a possibilidade de reação alérgica a OIT em doentes previamente sensibilizados a MI6.
Neste trabalho apresentamos dois casos de doentes expostos a partículas aerotransportadas de MCI/MI e MI, com desenvolvimento de queixas cutâneas.
CASO CLÍNICO 1
Doente do género masculino, gestor de construção civil, com antecedentes pessoais de asma na infância. Referenciado à consulta de Dermatologia por dermatose crónica com quatro anos de evolução. As lesões cutâneas eram sugestivas de dermatite e estavam associadas a prurido.
As lesões agravavam sempre que visitava os locais de construção, particularmente quando estava a ser aplicada tinta ou quando esta havia sido aplicada recentemente.
A observação inicial ocrreu alguns dias após a permanência do doente num desses espaços. Observou‑se a presença duma dermatose eritematosa confluente que atingia toda a face, não poupando o triângulo submentoniano, pregas cutâneas ou região retroauricular. O doente apresentava ainda lesões dispersas pelo tegumento das mãos e antebraços. Não referia sintomas respiratórios concomitantes nem envolvimento mucoso.
Por suspeita de dermatite de contacto alérgica foram realizados testes epicutâneos com as séries básica e de aditivos da borracha, plástico e colas do Grupo Português de Estudo das Dermatites de Contacto (GPEDC).
Os alergénios foram aplicados no dorso, em câmaras IQ UltraTM com oclusão durante 48 horas. A leitura dos testes foi realizada de acordo com as orientações do International Contact Dermatitis Research Group (ICDRG)7.
Verificou‑se positividade a MI a 0,2 % em água (+++), à mistura de MCI/MI (Kathon CG) a 0,02% em água (+++) e OIT a 0,1% em vaselina (++) (Figura 1) nas leituras em D3 e D7.
CASO CLÍNICO 2
Doente do género masculino, 30 anos, com antecedentes pessoais de asma na sua infância. Referenciado à consulta por dermatose aguda que atingia toda a face, com envolvimento da conjuntiva. As lesões terão surgido cerca de 24 a 48 horas após a aplicação de tinta na sua casa. Também neste caso parecia haver envolvimento das áreas de pele exposta.
Para além destas queixas, o doente referia ainda o aparecimento de lesões eczematosas pruriginosas nos dedos das duas mãos quando utilizava alguns produtos cosméticos pessoais. Manteve‑se sempre sem queixas respiratórias.
Por suspeita de dermatite de contacto foram também aplicados testes epicutâneos de hipersensibilidade tardia com as séries básica e de fragrâncias do GPEDC. Os alergénios foram aplicados no dorso, em câmaras IQ UltraTM com oclusão durante 48 horas. A leitura dos testes foi realizada de acordo com as orientações do ICDRG7.
Verificou‑se resultado fortemente positivo para a MI a 0,2 % em água (++), para a mistura de MCI/MI (Kathon CG) a 0,02% em água (++), e para o bálsamo-do-peru a 25% em vaselina (++) nas leituras realizadas em D3 e D7 (Figura 2).
DISCUSSÃO
As lesões cutâneas observadas, do tipo eczematoso, com prurido associado e relação temporal com determinadas atividades, indicam‑nos que estes dois casos são sugestivos de DCA.
A distribuição preferencial das lesões por áreas de tegumento expostas (face nos dois casos e mãos e antebraços no Caso Clínico 1), não poupando o triângulo submentoniano, pregas cutâneas e região retroauricular sugere um padrão de sensibilização a alergénios aerotransportados, em detrimento da hipótese de dermatite
fotoagravada ou fotoinduzida.
Nos dois casos foi identificada uma reação de hipersensibilidade tardia a MCI/MI e MI. No primeiro associava‑se reação a OIT. Esta hipersensibilidade foi considerada relevante para o contexto clínico dos dois doentes: no primeiro caso, identificou‑se a MCI/MI como biocida nas tintas utilizadas nos locais de construção geridos pelo doente; no segundo caso esta associação estava presente na tinta decorativa da habitação, assim como em alguns produtos cosméticos utilizados pelo doente (condicionador capilar), o que sugere que nos dois casos terá ocorrido sensibilização por partículas aerotransportadas deste biocida2.
Não é possível dizer se a sensibilização primária nestes casos terá sido por contacto com produtos cosméticos, dada a sua presença em inúmeros produtos deste tipo, nomeadamente em toalhitas de limpeza8. A reatividade cruzada entre os vários compostos do grupo é um assunto em debate6. No entanto, estão descritos casos de doentes que após sensibilização por contacto vieram a desenvolver sintomas cutâneos e respiratórios quando expostos ao mesmo composto na tinta industrial9.
A evicção do alergénio será a medida terapêutica fundamental, sendo necessária a sua identificação nos produtos que o doente utiliza, quer em termos de cuidados pessoais, quer em termos profissionais, não esquecendo a hipótese de exposição ambiental associada à dispersão de partículas no ar ambiente após pinturas com tintas com este composto, identificadas até 42 dias após a sua aplicação10.
Embora a utilização de isotiazinolonas em produtos cosméticos na UE seja fortemente regulada, a sua evicção é dificultada pela sua presença praticamente ubíqua em produtos industriais e de higiene doméstica9.
O doente do Caso Clínico 1 delineou estratégias para reduzir a presença em locais onde havia sido feita uma aplicação recente de tinta, com alguma melhoria clínica. No segundo caso, a evicção foi mais fácil, dado que o doente mantinha apenas contacto com alguns produtos cosméticos com estes biocidas, os quais conseguiu substituir.
Os dois casos apresentados documentam a relevância da alergia a MCI e MI, que se mantém como um problema de saúde, quer de cariz ocupacional, quer pessoal, alertando o clínico para os diferentes contextos de sensibilização e exposição, bem como para a variabilidade da expressão clínica, que pode assumir contornos de maior gravidade.