INTRODUÇÃO
O Centro para Controlo e Prevenção de Doenças (Centers for Disease Control and Prevention, CDC) considerou indivíduos acima dos 65 anos e com doenças crónicas como de maior risco para contrair doença COVID‑191. De igual forma, foi também referido que os doentes com asma moderada‑grave estariam incluídos nesse grupo de maior risco. Atualmente o CDC reporta que a asma está presente em 27% dos doentes COVID‑19 hospitalizados, tornando‑a a quarta comorbilidade mais frequente logo a seguir à hipertensão, obesidade e diabetes2. Contudo, outros estudos têm reportado taxas inferiores de doentes asmáticos infetados com SARS‑CoV‑2.
Num estudo que envolveu 1590 doentes de 575 hospitais na China, com o objectivo de analisar o impacto das comorbilidades na COVID‑19, não foi encontrado nenhum doente asmático3. Também num outro estudo, em Wuhan, avaliando as características clínicas e alergias de 140 doentes, não foi reportado nenhum caso de asma ou rinite alérgica4. Alguns autores tentam explicar a razão da baixa prevalência de doentes asmáticos hospitalizados com COVID‑195. Poder‑se‑á dever a um subdiagnóstico desta patologia, especialmente na China. Por outro lado, pensa‑se que poderá estar subjacente uma resposta imunológica diferente. O SARS‑CoV‑2 entra nas células através da ligação aos receptores da enzima de conversão de angiotensina 2 (ACE2, angiotensin‑converting enzyme 2) e uma vez que os asmáticos parecem apresentar níveis baixos destes receptores tal poderá potencialmente conferir proteção contra a doença6. Especula‑se ainda que a terapêutica utilizada no tratamento das doenças respiratórias crónicas seja igualmente protetora contra a COVID‑195.
O presente estudo teve então como objetivo fazer uma caracterização dos doentes asmáticos internados no Centro Hospitalar Vila Nova de Gaia/Espinho (CHVNG/E) com COVID‑19.
MATERIAL E MÉTODOS
Desenho do estudo
Foi realizada uma análise retrospetiva observacional com consulta de processos clínicos dos doentes internados no CHVNG/E durante o período entre 1 de março e 30 de junho de 2020 com infeção por SARS‑CoV‑2 confirmada laboratorialmente por teste RT‑PCR (Reverse transcription polymerase chain reaction).
Foram analisadas as seguintes variáveis demográficas e clínicas: idade, género, tabagismo (presente, passado, nunca), comorbilidades - hipertensão (HTA), diabetes mellitus (DM), cardiopatia, neoplasia, doença renal crónica (DRC), imunossupressão (IMS), diagnóstico de asma (confirmado ou apenas reportado), gravidade da asma - tendo em conta o degrau de tratamento segundo as guidelines do Global Initiative for Asthma (GINA) 2020(7) sendo considerada “ligeira” no degrau 1‑2 e “moderada‑grave” nos degraus 3‑5, sintomatologia, estudo laboratorial - leucócitos, neutrófilos, eosinófilos, linfócitos e proteína C‑reativa (PCR), exames de imagem - radiografia e tomografia axial computorizada (TAC) torácicas, tratamento - oxigenoterapia, antibioterapia, corticoterapia sistémica e inalada, hidroxicloroquina, lopinavir/ritonavir, teto terapêutico - estabelecido pelo médico responsável pelo doente (definido como um limite nas intervenções terapêuticas tendo em conta o prognóstico do doente).
Outcomes
Foram definidos como outcomes: número total de dias de internamento, admissão em unidade de cuidados intensivos polivalente (UCIP), tempo de internamento em UCIP, necessidade de ventilação invasiva (VI), números de dias sob VI, mortalidade, reinternamento.
Para análise dos outcomes fez‑se comparação entre o grupo dos asmáticos e não asmáticos e também entre os grupos com asma ligeira e asma moderada‑grave.
Análise estatística
A análise estatística foi feita utilizando o programa SPSS (IBM® SPSS, Chicago, IL, EUA), versão 25. As variáveis contínuas são apresentadas como medianas, valor mínimo e valor máximo, e as variáveis categóricas são apresentadas como frequências e percentagens. Para comparação entre variáveis contínuas e categóricas foi utilizado o teste não paramétrico de Mann‑Whitney U, dado as variáveis contínuas não apresentarem distribuição normal. O teste do qui quadrado foi utilizado para análises de variáveis categóricas. Os resultados foram considerados
como estatisticamente significativos quando p value inferior a 0,05.
RESULTADOS
No período analisado, 237 doentes estiveram internados no CHVNG/E com COVID‑19. Destes, 16 (6,8%) tinham diagnóstico reportado de asma, e diagnóstico confirmado apena sem 10. Seis doentes mantinham seguimento atual em consulta (4 em consulta hospitalar e 2 no centro de saúde) havendo outros 6 em que se desconhecia o seguimento.
Tendo em conta o degrau de tratamento, baseado nas orientações do GINA 20207, metade dos doentes tinham asma ligeira, 6 (37,5%) asma moderada e 2 (12,5%) asma grave (Figura 1).
Os doentes asmáticos eram maioritariamente mulheres (62%), não fumadores no presente (100%) com uma mediana de idades de 70 anos (mínimo 37 e máximo 88 anos). Comparativamente aos não asmáticos, eram significativamente mais novos (p=0,027), sem diferenças, contudo, relativamente ao género e hábitos tabágicos.
À semelhança da população geral, as comorbilidades mais frequentes nos doentes asmáticos foram HTA, DM e cardiopatia. Comparativamente aos doentes não asmáticos, os doentes com asma apresentaram significativamente menos comorbilidades (1 vs 2, p=0,014) havendo apenas 4 (25%) doentes com multimorbilidades (25% vs 57%, p=0,013).
Os sintomas mais comuns nos asmáticos, e acompanhando igualmente a tendência da população geral, foram febre, tosse e dispneia. Nenhum doente asmático se apresentou com exacerbação de asma à admissão havendo inclusivamente 4 (25%) que não apresentaram quaisquer sintomas respiratórios. Não se verificaram diferenças significativas nas manifestações clínicas nem nas análises laboratoriais analisadas entre o grupo dos asmáticos e dos não asmáticos. Relativamente aos exames imagiológicos, a realização de radiografia do tórax foi praticamente universal, havendo apenas um doente asmático, admitido para medidas de conforto, que não realizou nenhum estudo adicional. Apesar de a TAC do tórax ter sido mais requisitada em doentes asmáticos (50% vs 20,8%, p=0,013), a prevalência e tipologia de alterações observadas foi semelhante em ambos os grupos.
Os achados mais commumente descritos foram padrão em vidro despolido, consolidações e padrão crazy paving (Tabela 1). Relativamente à abordagem terapêutica, 12 asmáticos (75%) necessitaram de aporte de oxigénio suplementar. Nove (56,3%) fizeram no mínimo um antibiótico, onde se inclui a azitromicina, embora esta última tivesse sido usada em apenas 5 doentes (31,3%).
Os doentes asmáticos apresentaram maior taxa de utilização de corticosteroides inalados (50% vs 21,7%, p=0,027). Estes foram prescritos sob a forma de inalador pressurizado administrado por câmara expansora. Quatro doentes (25%) realizaram corticoterapia sistémica (oral ou endovenosa) durante o internamento. Verificou‑se maior taxa de administração de hidroxicloroquina (75% vs 48,9%, p=0,044) e semelhante utilização de lopinavir/ritonavir (37,5% vs 21,7%, p=0,212) nos asmáticos. Apenas em 1 doente asmático foi estabelecido um teto terapêutico, mais especificamente após ser admitido no serviço de urgência já em fim de vida, o que foi significativamente inferior quando comparado com o grupo dos não asmáticos (6,3% vs 38%, p=0,011) (Tabela 2).
Outcomes
Treze dias foi a mediana de tempo de internamento dos doentes asmáticos. Quatro (45%) asmáticos tiveram necessidade de internamento na UCIP e três (19%) destes foram submetidos a ventilação invasiva. Um dos doentes asmáticos foi admitido na UCIP para maior vigilância e pela iminência de necessitar de ventilação invasiva, mas dada a evolução favorável a mesma não se justificou e teve alta da UCIP passados dois dias. A taxa de mortalidade nos doentes asmáticos (n=2, 12,5%) foi significativamente inferior à dos não asmáticos (12,5% vs 37,1%, p= 0,047). O primeiro caso correspondeu a um doente do sexo masculino, com 77 anos, com asma moderada‑grave seguido previamente em consulta de Imunoalergologia.
Estaria institucionalizado e totalmente dependente para as atividades de vida diária (AVD). Como comorbilidades tinha demência, HTA e história prévia de AVC isquémico. Foi admitido no serviço de urgência (SU) já em fim de vida, tendo sido estabelecidas medidas de conforto. Faleceu no primeiro dia de internamento. O segundo caso tratou‑se de uma senhora de 82 anos com uma asma moderada‑grave, seguida previamente em consulta de Pneumologia. Parcialmente dependente para as AVD devido a queda recente, apresentava como comorbilidades HTA, DM, dislipidemia e cardiopatia. Foi admitida no SU com quadro de prostração e desorientação, tendo sido constatada infeção respiratória complicada com derrame pleural e pericárdico. Iniciou primeiramente antibioterapia empírica que foi suspensa após confirmação de infeção pelo SARS‑CoV‑2.
Dados apresentados em n (%), exceto se indicado em contrário. HTA - hipertensão arterial; DM- diabetes mellitus; DRC - doença renal crónica; PCR - proteína C reativa
Nesta doente foi tentado tratamento com hidroxicloroquina, que suspendeu por aumento dos marcadores cardíacos, e lopinavir/ritonavir. Ao 16.º dia de internamento reiniciou febre e evolução desfavorável, vindo a falecer ao 30.º dia de internamento.
O número de readmissões no serviço de urgência após a alta foi globalmente baixo, não havendo nenhum doente asmático com necessidade de ser readmitido (Tabela 3). Não se verificaram diferenças significativas nos outcomes analisados entre os doentes com asma ligeira e com asma moderada‑grave (Tabela 4).
DISCUSSÃO
Desde o início da pandemia COVID‑19, inúmeros estudos têm sido publicados no sentido de compreender melhor a doença e descobrir o melhor método para combatê‑la.
Paralelamente, tornou‑se imprescindível identificar os grupos de risco para doença de maior gravidade.
A doença respiratória crónica, que inicialmente foi sinalizada como potencial fator de risco, mostrou ao longo do tempo diferentes frequências entre doentes infetados por vários países. Em estudos preliminares na China4,8 e Itália9,10 foram descritos poucos casos (quando existentes) de asma em doentes com COVID‑19 internados.
Por outro lado, estudos nos Estados Unidos da América (EUA)11 e Reino Unido12 relevaram taxas de doentes asmáticos com COVID‑19 internados significativamente superiores, superando a prevalência de asma na população geral. Atendendo a esta divergência de resultados, consideramos fazer sentido a análise da situação no nosso centro.
No período analisado, os asmáticos corresponderam a menos de 7% dos doentes internados por COVID‑19 no nosso hospital. De acordo com a último relatório do Observatório Nacional de Doenças Respiratórias13, estima‑se que a prevalência de asma na população portuguesa ronde os 10%, pelo que concluímos que os asmáticos não estão sobrerrepresentados entre os doentes internados com COVID‑19.
Para além disso, nenhum caso foi interpretado como agudização de asma à admissão. Isto é concordante com outros estudos publicados recentemente14 que indicam que não parece haver relação entre infeção por SARS‑CoV‑2 e agudizações de asma, à semelhança do que aconteceu com os coronavírus pandémicos prévios (SARS‑CoV e MERS‑CoV)15.
No presente estudo, metade dos doentes tinham asma ligeira, 37% asma moderada e 13% asma grave. Não existem muito estudos que estratifiquem a gravidade da asma quando esta patologia está presente entre as comorbilidades. Contudo, um estudo realizado em Itália, que envolveu 1348 doentes hospitalizados por COVID‑19, reportou 26 doentes com asma, dos quais 21 (81%) tinham asma ligeira e 5 (19%) tinham asma moderada16. Comparativamente, no nosso estudo houve menos doentes asmáticos com asma ligeira.
Em relação às análises laboratoriais não se verificaram diferenças significativas da contagem de leucócitos, neutrófilos, eosinófilos, linfócitos ou PCR entre a população asmática e não asmática. A ausência de diferenças em relação ao estudo laboratorial já foi igualmente referida noutros estudos17. Salienta‑se, contudo, o facto de se ter verificado eosinopenia em ambos os grupos. Também num estudo realizado em Paris 78% dos doentes internados com COVID‑19 não tinham eosinófilos detetáveis no sangue periférico18. A eosinopenia é mais comummente encontrada em doentes tratados com corticosteroides inalados ou sob tratamento anti‑IL5, pelo que poderia ser esperada na população asmática. Contudo, achados semelhantes foram reportados na população não asmática COVID‑19 em Wuhan, China, em que a eosinopenia foi encontrada em 53% dos doentes4. A eosinopenia foi sugerida como potencial marcador de doença grave, dado o papel importante dos eosinófilos na imunidade a vírus respiratórios(19), mas mais estudos serão necessários.
No presente estudo, embora com maior tendência para os doentes asmáticos realizarem TAC torácica, não se verificou maior taxa de alterações (nem na tipologia das mesmas) comparativamente ao grupo dos não asmáticos.
As alterações mais frequentemente visualizadas foram, por ordem decrescente, opacidades em vidro despolido, consolidações e padrão crazy‑paving, à semelhança do que se tem observado noutros estudos18.
Verificou‑se que os doentes com asma eram tendencialmente do sexo feminino, mais novos e com menos comorbilidades. Praticamente não foi estabelecido teto terapêutico nestes doentes. Em relação aos outcomes, evidenciou‑se, ainda que de forma não significativa, uma tendência para mais tempo de internamento total, maior taxa de admissão em UCIP e de ventilação invasiva, associado, curiosamente, a menor duração de internamento em UCIP. O primeiro estudo publicado que avaliou o impacto da asma nos outcomes dos doentes com COVID‑1917 evidenciou quer resultados concordantes quer discordantes. Nesse estudo, também com uma prevalência do sexo feminino na população asmática internada com COVID‑19, observou-se igualmente uma tendência para maior tempo de internamento. Por outro lado, verificaram uma maior duração de ventilação invasiva nos asmáticos.
No que respeita a mortalidade, verificamos que esta foi significativamente inferior nos doentes asmáticos. No mesmo estudo já referido19, também a asma não se associou a maior mortalidade. Por outro lado, num estudo realizado na Alemanha20, a asma foi a segunda comorbilidade mais frequente em doentes falecidos por COVID‑19, logo a seguir à doença coronária.
No nosso estudo, possivelmente o facto de os doentes asmáticos serem relativamente mais novos, provavelmente aliado ao receio da presença de uma patologia respiratória de base, poderá justificar as medidas mais “intensivas” tomadas nestes doentes.
Pelo exposto, na população estudada, a asma não pareceu ser fator de risco para doença COVID‑19 de maior gravidade. Alguns estudos têm obtido resultados semelhantes, os quais podem ser explicados pela diminuição da expressão dos recetores ACE2 para o SARS‑CoV‑221. À semelhança do que acontecia com o SARS‑CoV e coronavírus NL63, o SARS‑CoV‑2 entra nas células através da ligação ao recetor ACE222.
Jackson et al21 sugeriu que doentes com asma alérgica tinham expressão reduzida dos recetores ACE2 nas células epiteliais nasais e brônquicas. Também os corticosteroides inalados, amplamente utilizados no tratamento da asma, têm sido apontados como responsáveis pela redução da expressão desses recetores23. Assim, podemos estar perante um efeito “protetor” inerente ao doente asmático que poderá justificar a ausência de piores outcomes nesta população.
Os CDC consideraram especificamente os doentes com asma moderada‑grave como de risco aumentado para doença COVID‑19 de maior gravidade1. Contudo, à luz do nosso conhecimento, nenhum estudo até à data avaliou o impacto da asma nos outcomes da COVID‑19, tendo em conta a gravidade da asma. Neste sentido, neste estudo fizemos ainda uma análise comparando os outcomes entre os doentes com asma ligeira e asma moderada‑grave, sendo que não se verificaram diferenças entre os dois grupos.
Como limitações neste estudo, temos o facto de, no que respeita a análise estatística, não ter sido realizado um ajuste para possíveis variáveis de confundimento, nomeadamente, idade, obesidade, esta última cada vez mais associada a pior prognóstico em doentes com COVID‑1923 e tipologia das restantes comorbilidades, para melhor percebermos o verdadeiro impacto da asma no prognóstico da COVID‑19.
Este ajuste não foi feito em consequência de outra limitação deste trabalho que é o reduzido tamanho amostral da população asmática. Outra limitação prende‑se com alguns diagnósticos de asma terem sido meramente reportados e não confirmados. Ainda assim, a medicação habitual diária foi analisada para prevenir possíveis diagnósticos erróneos. Também como limitação temos a incapacidade de conhecer o controlo da asma no momento da admissão. Contudo, salientamos a ausência de registos de aumento da dose e/ou frequência na utilização de inaladores do domicílio ou toma de corticosteroides orais, e, como já mencionado, o facto de nenhum caso ter sido interpretado como agudização de asma.
CONCLUSÃO
A asma teve uma prevalência de 6,8% nos doentes internados por COVID‑19 no nosso hospital, taxa esta ligeiramente inferior à reportada mais recentemente na população portuguesa. Os asmáticos eram doentes tendencialmente mais novos, tendo menos comorbilidades.
Verificou‑se uma taxa de mortalidade significativamente inferior ao grupo dos não asmáticos, sendo que o grau da asma não pareceu influenciar nenhum dos outcomes avaliados. Portanto, a asma não pareceu contribuir para doença COVID‑19 de maior gravidade. Dada a impossibilidade de ajuste de possíveis fatores de confundimento devido ao reduzido tamanho amostral, mais estudos, no futuro, com inclusão de maior número de doentes, serão necessários para avaliar o verdadeiro impacto da asma na clínica e prognóstico da COVID‑19.