SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
vol.30 número3Rinossinusite crónica com e sem polipose nasalOral tolerance induction protocol to egg white - A report of three pediatric cases índice de autoresíndice de assuntosPesquisa de artigos
Home Pagelista alfabética de periódicos  

Serviços Personalizados

Journal

Artigo

Indicadores

Links relacionados

  • Não possue artigos similaresSimilares em SciELO

Compartilhar


Revista Portuguesa de Imunoalergologia

versão impressa ISSN 0871-9721

Rev Port Imunoalergologia vol.30 no.3 Lisboa set. 2022  Epub 30-Set-2022

https://doi.org/10.32932/rpia.2022.09.089 

CASO CLÍNICO

Anafilaxia a beta-lactâmicos - Quando a tolerância não exclui alergia

Beta-lactams anaphylaxis - When tolerance doesn’t exclude allergy

1 Serviço de Imunoalergologia, Hospital de Dona Estefânia, Centro Hospitalar Universitário de Lisboa Central (CHULC), EPE, Lisboa, Portugal

2 CEDOC, Integrated Pathophysiological Mechanisms Research Group, Nova Medical School, Lisboa, Portugal


RESUMO

Os beta-lactâmicos são uma das principais causas de anafilaxia nos adultos. Descrevemos dois casos de doentes com sintomas de anafilaxia após toma de beta-lactâmicos que, após resolução da reação inicial, mantiveram terapêutica e toleraram um curso completo de tratamento. Na investigação efetuada, os testes cutâneos foram positivos para o beta-lactâmico suspeito e a prova de provocação identificou beta-lactâmico alternativo. A aparente “tolerância” após a reação alérgica poderá dever-se ao facto de a anafilaxia ter levado a consumo dos mediadores da inflamação alérgica, permitindo uma tolerância temporária dos mastócitos e basófilos ao respetivo fármaco, a qual se manteve por exposição contínua ao mesmo. Alerta-se para a possibilidade de a tolerância após reação alérgica a fármacos poder ser ilusória. Assim, destaca-se a importância de realizar investigação alergológica em situações de tolerância imediatamente após anafilaxia, que permitirá excluir/confirmar a existência de hipersensibilidade e reduzir o risco de recorrência de quadros potencialmente fatais.

Palavras-chave: Alergia a fármacos; anafilaxia; beta-lactâmicos; tolerância

ABSTRACT

Beta-lactams are a major cause of anaphylaxis in adults. We describe two cases of patients with symptoms of anaphylaxis after taking beta-lactams that after the resolution of the initial reaction were able to keep the drug and tolerated a completed treatment period. During the investigation, the skin tests were positive for the suspected beta-lactam and the patients underwent a drug provocation test, which identified an alternative beta-lactam. We suggest that anaphylaxis led to a consumption of mediators of the allergic inflammation, allowing a temporary tolerance of mast cells and basophils to the drugs in question, which was maintained by continuous exposure. We intent to alert to the possibility that tolerance after an allergic reaction to drugs may be misleading. Thus, the importance of carrying out allergic investigation in situations of tolerance immediately after anaphylaxis, which will allow to exclude/confirm the existence of hypersensitivity and reduce the risk of recurrence of potentially fatal conditions.

Keywords: Anaphylaxis; beta-lactams; drug allergy; tolerance

INTRODUÇÃO

As reações de hipersensibilidade a beta-lactâmicos são reportadas em até 10% dos doentes1-3 mas, quando investigadas, mais de 90% toleram o fármaco suspeito1. A incidência de reações IgE mediadas à penicilina parece estar a diminuir nos EUA1; contudo, esta é variável e depende dos padrões regionais de consumo de antibióticos (ATB)2,3.

Apesar deste facto, os beta-lactâmicos são uma das principais causas de anafilaxia em adultos. Estima-se que a penicilina seja responsável por 0,7 a 10% de todas as anafilaxias4, sendo rara a ocorrência desta reação com amoxicilina oral e ainda menos frequente com cefalosporinas5. A reatividade cruzada estimada entre penicilina/aminopenicilinas e cefalosporinas é de cerca de 2%5.

Os testes cutâneos (TC) constituem uma das primeiras abordagens na investigação da suspeita de alergia a beta-lactâmicos1,2. Um TC positivo na concentração máxima não irritativa é altamente específico, ajudando a confirmar o diagnóstico na presença de uma história clínica típica3. Contudo, a prova de provocação (PP) continua a ser o gold standard para o diagnóstico de alergia a beta-lactâmicos1.

CASOS CLÍNICOS

CASO 1: Doente de 49 anos, género masculino, medicado com amoxicilina/clavulanato (A+C) 875mg + 125mg e ibuprofeno 600mg, de 12/12 horas durante 8 dias, por amigdalite aguda. Minutos após a primeira toma destes fármacos, o doente iniciou sensação de prurido intenso do couro cabeludo com generalização a todo o tegumento, eritema cutâneo associado, edema facial e dispneia.

Foi assistido no domicílio, medicado com clemastina e hidrocortisona endovenosas e adrenalina intramuscular e transportado de ambulância para o hospital. À chegada ao serviço de urgência (SU) da área de residência, encontrava-se hemodinamicamente estável, com resolução de todos os sintomas. Teve alta medicado com deflazacort e anti-histamínico, com indicação para suspender o ATB e referenciação ao serviço de Imunoalergologia. Menos de 12h após a reação, por manter odinofagia marcada, o doente decidiu tomar novamente A+C, não tendo feito qualquer outro fármaco dos que lhe tinham sido prescritos.

Completou 8 dias de ATB sem qualquer reação. Previamente já tinha tolerado A+C, e posteriormente à reação já tolerou ibuprofeno. Após a reação, manteve a toma de perindopril, fármaco com que estava medicado para a hipertensão (HTA).

CASO 2: Doente de 47 anos, género feminino, medicada com cefuroxima 500mg de 12/12h, por infeção urinária. Menos de uma hora após a quarta dose de ATB iniciou sensação de mal-estar, prurido palmar e orofaríngeo, seguido de incontinência de esfíncteres anal e vesical. Ainda no domicílio tomou 50mg de hidroxizina e recorreu ao SU da área de residência, onde já apresentava eritema cutâneo disperso e edema labial e lingual, mantendo-se sem sintomas respiratórios. Foi tratada com hidrocortisona, sem melhoria do edema, e metoclopramida endovenosa, pelas queixas gastrointestinais. Teve alta ao fim de 4h, medicada com prednisolona 20mg oral e metoclopramida 10mg durante 5 dias, loperamida 2mg após cada dejeção diarreica e Saccharomyces boulardii cápsulas e com indicação para manter terapêutica com cefuroxima. Retomou a toma de ATB 12h após a reação, que tolerou, completando cinco dias de tratamento. Manteve bisoprolol+hidroclorotiazida, com os quais se encontrava medicada para a HTA. Previamente a doente referia dois episódios de exantema e edema facial que coincidiram com períodos de toma de ATB, tendo sido utilizado cefuroxima em pelo menos um deles.

Em ambos os casos apresentados, após uma primeira consulta para analisar a história clínica do doente, propusemos realização de investigação de suspeita de alergia a beta-lactâmicos, começando com testes cutâneos por picada (TCP) e testes intradérmicos (TID), seguido de prova de provocação (PP) com o ATB alternativo, de acordo com os resultados do TCP/TID. A investigação foi realizada 4 e 2 meses após a reação nos casos 1 e 2, respetivamente. Em nenhum dos casos foi pedida triptase no SU. No caso 1 foram pedidas IgE especificas para penicilina G, penicilina V e ampicilina que foram negativas, não tendo sido realizada para amoxicilina por ausência de reagente no laboratório à data de investigação. No caso 2, foram feitos doseamentos com penicilina G, penicilina V, amoxicilina e cefuroxima, que foram negativos.

Realizámos TCP e TID para os beta-lactâmicos nas concentrações máximas não irritativas3,4,6,7, discriminadas na Tabela 1. Relativamente aos TID, realizamos os testes nas diluições de 1/100, 1/10 e 1/1 das concentrações máximas não irritativas. Após o resultado dos testes cutâneos, foi efetuada PP com ATB alternativo utilizando um protocolo aberto com incrementos de dose (10%, 20%, 30% e 40% da dose) a intervalos de 30 minutos entre cada dose, até alcançar a dose-alvo, correspondente à dose de uma toma. Os doentes permaneceram em vigilância por um período de 2 horas após a última toma.

Tabela 1 Concentrações não irritativas dos testes cutâneos aos beta-lactâmicos investigados 

TCP - Teste cutâneo por picada; TID - Teste intradérmico

No caso 1, os TCP foram negativos, enquanto os TID foram positivos na leitura imediata para A+C e negativos para todas as outras substâncias mencionadas na Tabela 1. Face a estes resultados, assumiu-se reação de hipersensibilidade imediata a A+C. Foi então realizada PP oral com beta-lactâmico alternativo, cefuroxima, que foi negativa (dose cumulativa de 500mg). Por ausência de reagente, apenas posteriormente foram realizados TID com amoxicilina e clavulanato em separado, tendo sido positivos para clavulanato e negativos para amoxicilina. Realizou PP oral com amoxicilina, que foi negativa, assumindo-se reação de hipersensibilidade imediata a clavulanato.

No caso 2, a doente realizou TCP com todos os fármacos referidos, que foram positivos para cefuroxima (TCP e TID com PPL, MDM, benzilpenicilina e A+C foram todos negativos). Concluiu-se que a doente apresentou uma reação imediata à cefuroxima. Posteriormente, realizou PP oral com beta-lactâmico alternativo, amoxicilina (dose cumulativa de 500mg), que foi negativa.

DISCUSSÃO

A história clínica compatível com anafilaxia e a presença de TC positivos nos casos apresentados suportam o diagnóstico de reação de hipersensibilidade a clavulanato e cefuroxima, respetivamente, de acordo com o definido no position paper da European Academy of Asthma and Clinical Immunology7. Apesar de as PP serem o gold standard no diagnóstico de alergia a fármacos, a clínica compatível com anafilaxia e a positividade dos TC para os beta-lactâmicos permitem-nos fazer o diagnóstico de reação de hipersensibilidade aos antibióticos em causa7.

A PP nestes casos foi usada para encontrar alternativas seguras. O doseamento da triptase sérica aquando da reação e pelo menos 48h após a mesma, se demonstrasse uma elevação durante a reação, teria sido mais um fator a favor do diagnóstico proposto.

A anafilaxia representa uma emergência médica, cujo rápido diagnóstico e tratamento podem fazer a diferença entre a vida e a morte. Daí a importância de reconhecer os seus sintomas e identificar prováveis desencadeantes, de forma a evitá-los. Na anafilaxia as principais células envolvidas no mecanismo fisiopatológico são os mastócitos,

constituindo o mecanismo IgE mediado uma das formas de ativação destas células. Estudos in vitro e in vivo revelam níveis aumentados de substâncias com atividade vasoconstritora endógena (epinefrina, norepinefrina e angiotensina II) minutos após o início de uma anafilaxia8. Existe também evidência de que o bloqueio beta-adrenérgico pode exacerbar a anafilaxia, particularmente quando combinado com inibidores da enzima conversora da angiotensina (IECA). Estes achados suportam o papel dos vasoconstritores endógenos na limitação da gravidade das alterações fisiopatológicas na anafilaxia8 e podem constituir um dos fatores que contribuem para a sobrevivência à anafilaxia sem tratamento.

Da experiência adquirida com a dessensibilização a fármacos sabe-se que através da administração de pequenos incrementos de dose, em intervalos de tempo definidos, é possível induzir nos mastócitos e basófilos vias de sinalização predominantemente inibitórias, que através de alterações no influxo de cálcio e na polimerização da actina, impedem a libertação dos mediadores inflamatórios responsáveis pelas reações imediatas9,10.

A administração de doses inferiores ao limiar indutor de reação altera a capacidade de internalização dos complexos Ag/IgE/FεcRI, que permanecem na superfície das células e inibem a libertação de mediadores mastocitários, como a beta-hexosaminidase, prevenindo a produção de prostaglandinas e leucotrienos a partir do ácido araquidónico, num processo específico de antigénio9,10.

Não encontramos na literatura descrições de casos de doentes que toleraram o fármaco suspeito após anafilaxia. Geralmente, a tolerância a um fármaco que se verifica durante um curso terapêutico permite-nos excluir o diagnóstico de alergia ao fármaco implicado.

Nos casos presentes, parece que a anafilaxia conduziu ao consumo dos mediadores envolvidos na inflamação alérgica, permitindo uma tolerância temporária dos mastócitos e basófilos aos fármacos em questão, a qual se manteve por exposição contínua aos mesmos, permitindo aos doentes completarem o seu tratamento nestas condições particulares. Os mecanismos descritos poderão ter contribuído de alguma forma para a tolerância observada, assim como a presença de outros cofatores, como a toma de prednisolona durante o tratamento com cefuroxima, no caso 2. Como referido, a toma de IECA e anti-inflamatório, como no caso 1, e de beta-bloqueante, como no caso 2, são fatores que podem contribuir para o aumento da gravidade das reações. Não obstante, é importante realçar que numa futura reexposição aos mesmos ATB os doentes desenvolverão, certamente, nova reação anafilática.

Este relato clínico pretende alertar para o facto de a tolerância imediata após anafilaxia nem sempre significar ausência de reação de hipersensibilidade. Uma história clínica detalhada é de extrema importância, permitindo-nos identificar estas situações e implementar a marcha de diagnóstico correta, de forma a identificar o fármaco implicado.

REFERÊNCIAS

1. Har D, Solensky R. Penicillin and beta-lactam hypersensitivity. Immunol Allergy Clin North Am 2017;37(4):643-62. doi: 10.1016/j.iac.2017.07.001. [ Links ]

2. Torres MJ, Adkinson NF, Caubet JC, Khan DA, Kindon MI, Mendelson L, et al. Controversies in drug allergy: Beta-lactam hypersensitivity testing. J Allergy Clin Immunol Pract 2019;7(1):40-5. doi: 10.1016/j.jaip.2018.07.051. [ Links ]

3. Blanca-Lopes N, Jimenez-Rodriguez TW, Somoza ML, Gomez E, Al-Ahmad M, Perez-Sala D, et al. Allergic reactions to penicillins and cephalosporins: diagnosis, assessment of cross-reactivity and management. Expert Rev Clin Immunol 2019;15(7):707-21. doi: 10.1080/1744666X.2019.1619548. [ Links ]

4. Mirakian R, Leech SC, Krishna MT, Richter AG, Huber PA, Farooque S, et al. Management of allergy to penicillins and other beta-lactams. Clin Exp Allergy 2015;45(2):300-27. doi: 10.1111/cea.12468. [ Links ]

5. Shenoy ES, Macy E, Rowe T, Blumenthal KG. Evaluation and management of penicillin allergy: A review. JAMA 2019;321(2):188-99. doi: 10.1001/jama.2018.19283. [ Links ]

6. Brockow K, Garvey LH, Aberer W, Atanaskovic-Markovic M, Barbaud A, Bilo MB, et al. Skin test concentrations for systemically administered drugs - an ENDA/EAACI Drug Allergy Interest Group position paper. Allergy 2013;68(6):702-12. doi: 10.1111/all.12142. [ Links ]

7. Romano A, Atanaskovic-Marcovic M, Barbaud A, Bircher AJ, Brockow K, Caubet JC, et al. Towards a more precise diagnosis of hypersensitivity to beta-lactam - an EAACI position paper. Allergy 2020;75(6):1300-15. doi: 10.1111/all.14122. [ Links ]

8. Reber LL, Hernandez JD, Galli SJ. The pathophysiology of anaphylaxis. J Allergy Clin Immunol 2017;140(2):335-48. doi: 10.1016/j.jaci.2017.06.003. [ Links ]

9. Sánchez LV, Alenazy LA, Garcia-Neuer M, Castells MC. Drug hypersensitivity and desensitizations: Mechanisms and new approaches. Int J Mol Sci 2017;18(6):1316. doi: 10.3390/ijms18061316. [ Links ]

10. Castells M. Drug hypersensitivity and anaphylaxis in cancer and chronic inflammatory diseases: The role of desensitizations. Front Immunol 2017;8:1472. doi: 10.3389/fimmu.2017.01472. [ Links ]

Recebido: 06 de Janeiro de 2021; Aceito: 29 de Maio de 2021

Autora correspondente: Ana Patrícia Galamba Palhinha E-mail: palhinha.ana@gmail.com

Conflito de interesses

Os autores declaram que não existem conflitos de Interesses.

Creative Commons License Este é um artigo publicado em acesso aberto sob uma licença Creative Commons