INTRODUÇÃO
As reações de hipersensibilidade a beta-lactâmicos são reportadas em até 10% dos doentes1-3 mas, quando investigadas, mais de 90% toleram o fármaco suspeito1. A incidência de reações IgE mediadas à penicilina parece estar a diminuir nos EUA1; contudo, esta é variável e depende dos padrões regionais de consumo de antibióticos (ATB)2,3.
Apesar deste facto, os beta-lactâmicos são uma das principais causas de anafilaxia em adultos. Estima-se que a penicilina seja responsável por 0,7 a 10% de todas as anafilaxias4, sendo rara a ocorrência desta reação com amoxicilina oral e ainda menos frequente com cefalosporinas5. A reatividade cruzada estimada entre penicilina/aminopenicilinas e cefalosporinas é de cerca de 2%5.
Os testes cutâneos (TC) constituem uma das primeiras abordagens na investigação da suspeita de alergia a beta-lactâmicos1,2. Um TC positivo na concentração máxima não irritativa é altamente específico, ajudando a confirmar o diagnóstico na presença de uma história clínica típica3. Contudo, a prova de provocação (PP) continua a ser o gold standard para o diagnóstico de alergia a beta-lactâmicos1.
CASOS CLÍNICOS
CASO 1: Doente de 49 anos, género masculino, medicado com amoxicilina/clavulanato (A+C) 875mg + 125mg e ibuprofeno 600mg, de 12/12 horas durante 8 dias, por amigdalite aguda. Minutos após a primeira toma destes fármacos, o doente iniciou sensação de prurido intenso do couro cabeludo com generalização a todo o tegumento, eritema cutâneo associado, edema facial e dispneia.
Foi assistido no domicílio, medicado com clemastina e hidrocortisona endovenosas e adrenalina intramuscular e transportado de ambulância para o hospital. À chegada ao serviço de urgência (SU) da área de residência, encontrava-se hemodinamicamente estável, com resolução de todos os sintomas. Teve alta medicado com deflazacort e anti-histamínico, com indicação para suspender o ATB e referenciação ao serviço de Imunoalergologia. Menos de 12h após a reação, por manter odinofagia marcada, o doente decidiu tomar novamente A+C, não tendo feito qualquer outro fármaco dos que lhe tinham sido prescritos.
Completou 8 dias de ATB sem qualquer reação. Previamente já tinha tolerado A+C, e posteriormente à reação já tolerou ibuprofeno. Após a reação, manteve a toma de perindopril, fármaco com que estava medicado para a hipertensão (HTA).
CASO 2: Doente de 47 anos, género feminino, medicada com cefuroxima 500mg de 12/12h, por infeção urinária. Menos de uma hora após a quarta dose de ATB iniciou sensação de mal-estar, prurido palmar e orofaríngeo, seguido de incontinência de esfíncteres anal e vesical. Ainda no domicílio tomou 50mg de hidroxizina e recorreu ao SU da área de residência, onde já apresentava eritema cutâneo disperso e edema labial e lingual, mantendo-se sem sintomas respiratórios. Foi tratada com hidrocortisona, sem melhoria do edema, e metoclopramida endovenosa, pelas queixas gastrointestinais. Teve alta ao fim de 4h, medicada com prednisolona 20mg oral e metoclopramida 10mg durante 5 dias, loperamida 2mg após cada dejeção diarreica e Saccharomyces boulardii cápsulas e com indicação para manter terapêutica com cefuroxima. Retomou a toma de ATB 12h após a reação, que tolerou, completando cinco dias de tratamento. Manteve bisoprolol+hidroclorotiazida, com os quais se encontrava medicada para a HTA. Previamente a doente referia dois episódios de exantema e edema facial que coincidiram com períodos de toma de ATB, tendo sido utilizado cefuroxima em pelo menos um deles.
Em ambos os casos apresentados, após uma primeira consulta para analisar a história clínica do doente, propusemos realização de investigação de suspeita de alergia a beta-lactâmicos, começando com testes cutâneos por picada (TCP) e testes intradérmicos (TID), seguido de prova de provocação (PP) com o ATB alternativo, de acordo com os resultados do TCP/TID. A investigação foi realizada 4 e 2 meses após a reação nos casos 1 e 2, respetivamente. Em nenhum dos casos foi pedida triptase no SU. No caso 1 foram pedidas IgE especificas para penicilina G, penicilina V e ampicilina que foram negativas, não tendo sido realizada para amoxicilina por ausência de reagente no laboratório à data de investigação. No caso 2, foram feitos doseamentos com penicilina G, penicilina V, amoxicilina e cefuroxima, que foram negativos.
Realizámos TCP e TID para os beta-lactâmicos nas concentrações máximas não irritativas3,4,6,7, discriminadas na Tabela 1. Relativamente aos TID, realizamos os testes nas diluições de 1/100, 1/10 e 1/1 das concentrações máximas não irritativas. Após o resultado dos testes cutâneos, foi efetuada PP com ATB alternativo utilizando um protocolo aberto com incrementos de dose (10%, 20%, 30% e 40% da dose) a intervalos de 30 minutos entre cada dose, até alcançar a dose-alvo, correspondente à dose de uma toma. Os doentes permaneceram em vigilância por um período de 2 horas após a última toma.
No caso 1, os TCP foram negativos, enquanto os TID foram positivos na leitura imediata para A+C e negativos para todas as outras substâncias mencionadas na Tabela 1. Face a estes resultados, assumiu-se reação de hipersensibilidade imediata a A+C. Foi então realizada PP oral com beta-lactâmico alternativo, cefuroxima, que foi negativa (dose cumulativa de 500mg). Por ausência de reagente, apenas posteriormente foram realizados TID com amoxicilina e clavulanato em separado, tendo sido positivos para clavulanato e negativos para amoxicilina. Realizou PP oral com amoxicilina, que foi negativa, assumindo-se reação de hipersensibilidade imediata a clavulanato.
No caso 2, a doente realizou TCP com todos os fármacos referidos, que foram positivos para cefuroxima (TCP e TID com PPL, MDM, benzilpenicilina e A+C foram todos negativos). Concluiu-se que a doente apresentou uma reação imediata à cefuroxima. Posteriormente, realizou PP oral com beta-lactâmico alternativo, amoxicilina (dose cumulativa de 500mg), que foi negativa.
DISCUSSÃO
A história clínica compatível com anafilaxia e a presença de TC positivos nos casos apresentados suportam o diagnóstico de reação de hipersensibilidade a clavulanato e cefuroxima, respetivamente, de acordo com o definido no position paper da European Academy of Asthma and Clinical Immunology7. Apesar de as PP serem o gold standard no diagnóstico de alergia a fármacos, a clínica compatível com anafilaxia e a positividade dos TC para os beta-lactâmicos permitem-nos fazer o diagnóstico de reação de hipersensibilidade aos antibióticos em causa7.
A PP nestes casos foi usada para encontrar alternativas seguras. O doseamento da triptase sérica aquando da reação e pelo menos 48h após a mesma, se demonstrasse uma elevação durante a reação, teria sido mais um fator a favor do diagnóstico proposto.
A anafilaxia representa uma emergência médica, cujo rápido diagnóstico e tratamento podem fazer a diferença entre a vida e a morte. Daí a importância de reconhecer os seus sintomas e identificar prováveis desencadeantes, de forma a evitá-los. Na anafilaxia as principais células envolvidas no mecanismo fisiopatológico são os mastócitos,
constituindo o mecanismo IgE mediado uma das formas de ativação destas células. Estudos in vitro e in vivo revelam níveis aumentados de substâncias com atividade vasoconstritora endógena (epinefrina, norepinefrina e angiotensina II) minutos após o início de uma anafilaxia8. Existe também evidência de que o bloqueio beta-adrenérgico pode exacerbar a anafilaxia, particularmente quando combinado com inibidores da enzima conversora da angiotensina (IECA). Estes achados suportam o papel dos vasoconstritores endógenos na limitação da gravidade das alterações fisiopatológicas na anafilaxia8 e podem constituir um dos fatores que contribuem para a sobrevivência à anafilaxia sem tratamento.
Da experiência adquirida com a dessensibilização a fármacos sabe-se que através da administração de pequenos incrementos de dose, em intervalos de tempo definidos, é possível induzir nos mastócitos e basófilos vias de sinalização predominantemente inibitórias, que através de alterações no influxo de cálcio e na polimerização da actina, impedem a libertação dos mediadores inflamatórios responsáveis pelas reações imediatas9,10.
A administração de doses inferiores ao limiar indutor de reação altera a capacidade de internalização dos complexos Ag/IgE/FεcRI, que permanecem na superfície das células e inibem a libertação de mediadores mastocitários, como a beta-hexosaminidase, prevenindo a produção de prostaglandinas e leucotrienos a partir do ácido araquidónico, num processo específico de antigénio9,10.
Não encontramos na literatura descrições de casos de doentes que toleraram o fármaco suspeito após anafilaxia. Geralmente, a tolerância a um fármaco que se verifica durante um curso terapêutico permite-nos excluir o diagnóstico de alergia ao fármaco implicado.
Nos casos presentes, parece que a anafilaxia conduziu ao consumo dos mediadores envolvidos na inflamação alérgica, permitindo uma tolerância temporária dos mastócitos e basófilos aos fármacos em questão, a qual se manteve por exposição contínua aos mesmos, permitindo aos doentes completarem o seu tratamento nestas condições particulares. Os mecanismos descritos poderão ter contribuído de alguma forma para a tolerância observada, assim como a presença de outros cofatores, como a toma de prednisolona durante o tratamento com cefuroxima, no caso 2. Como referido, a toma de IECA e anti-inflamatório, como no caso 1, e de beta-bloqueante, como no caso 2, são fatores que podem contribuir para o aumento da gravidade das reações. Não obstante, é importante realçar que numa futura reexposição aos mesmos ATB os doentes desenvolverão, certamente, nova reação anafilática.
Este relato clínico pretende alertar para o facto de a tolerância imediata após anafilaxia nem sempre significar ausência de reação de hipersensibilidade. Uma história clínica detalhada é de extrema importância, permitindo-nos identificar estas situações e implementar a marcha de diagnóstico correta, de forma a identificar o fármaco implicado.