INTRODUÇÃO
A urticária é a manifestação cutânea de um grupo heterogéneo de doenças e carateriza-se pela presença de lesões maculopapulares eritematosas pruriginosas associadas ou não a angioedema. A resolução das lesões individuais é tipicamente inferior a 24 horas sem lesão residual. De acordo com o tempo de evolução é classificada em urticária aguda (se inferior a 6 semanas) ou em urticária crónica (se superior a 6 semanas).
A urticária crónica pode ainda ser classificada como urticária crónica indutível ou urticária crónica espontânea. Falamos de urticária crónica espontânea quando não é possível identificar o seu fator desencadeante e de urticária crónica indutível quando o aparecimento de lesões é desencadeado por um fator exógeno identificado 1.
A urticária crónica indutível compreende as urticárias físicas (dermografismo sintomático, urticária ao frio, urticária de pressão retardada, urticária solar, urticária ao calor, angioedema vibratório) e outras formas de urticária, nomeadamente a urticária colinérgica, a urticária de contacto e a urticária aquagénica 1. Alguns estudos sugerem ainda que perturbações emocionais poderão ser também um fator desencadeante importante 2,3. Uma meta-análise recente de estudos observacionais veio fortalecer esta associação, demonstrando uma possível correlação entre a urticária crónica e sintomas de ansiedade e depressão 4.
Estima-se que a urticária crónica afete até 1% da população em algum momento da vida, não havendo dados específicos relativamente à sua prevalência em Portugal.
A urticária crónica espontânea representa até dois terços das urticárias crónicas 5.
Na maioria dos casos a urticária crónica espontânea é uma doença autolimitada com uma duração entre 1 e 5 anos, mas até 20% dos doentes podem ter doença entre 5 e 10 anos, estando descritos casos raros de duração superior a 50 anos 1.
A urticária crónica espontânea, pelas suas características clínicas (imprevisibilidade das crises, prurido associado, compromisso da imagem corporal), pode afetar de forma importante o desempenho das atividades diárias, a qualidade do sono e a qualidade de vida em geral. Estes doentes recorrem muitas vezes a várias especialidades médicas e mesmo a outros profissionais numa tentativa de aliviar os seus sintomas, acarretando um elevado custo para os sistemas de saúde. Além dos custos diretos consideráveis pelo consumo de medicação e utilização recorrente dos serviços de saúde, também os custos indiretos associados ao absentismo e pior desempenho escolar ou profissional devem ser tidos em conta 6. O impacto negativo na qualidade de vida reportado pode ser superior ao de outras patologias dermatológicas crónicas como o eczema atópico 7,8.
Este estudo teve como objetivo explorar a associação da urticária crónica espontânea com a patologia psiquiátrica, avaliando o consumo de psicofármacos por parte dos doentes com UCE.
MATERIAL E MÉTODOS
Realizamos um estudo retrospetivo de doentes adultos (maiores de 18 anos) avaliados em primeira consulta de Imunoalergologia ao longo de um ano, onde comparamos os dados de um grupo de estudo com UCE com os de um grupo de controlo. O grupo de estudo incluiu doentes com sintomas compatíveis com diagnóstico de urticária crónica espontânea. O grupo controlo incluiu doentes avaliados ao longo do mesmo período por doença respiratória (62,5% [n=75], por rinite e 37,5% [n=45] por asma e rinite), emparelhados com o grupo de estudo em género e grupo etário.
O uso de psicofármacos (ansiolíticos, antidepressivos, sedativos e antipsicóticos) pelo doente foi obtido a partir da história clínica colhida na consulta e por consulta da aplicação prescrição eletrónica médica (PEM) relativamente à prescrição e dispensa dos psicofármacos. Sendo esta uma aplicação dos Serviços Partilhados do Ministério da Saúde que permite a prescrição eletrónica de medicamentos e a consulta de medicamentos prescritos e a sua dispensa na farmácia. O consumo de psicofármacos foi considerado naqueles doentes em que existia prescrição pelo menos desde o ano anterior à consulta de Imunoalergologia.
A análise estatística foi realizada no SPSS versão 22 e, para comparação dos grupos, foi utilizado o teste X2 com intervalo de confiança de 95%.
RESULTADOS
População
O grupo de estudo incluiu 60 doentes, 70% (n=42) do sexo feminino e a mediana de idade foi de 43,5 anos [mínimo 18 anos e máximo de 75 anos].
Neste grupo, 65% (n=39) dos doentes negaram tratamento prévio com psicofármacos e 35% (n=21) estavam a cumprir tratamento com pelo menos um fármaco dos seguintes grupos fármacológicos: 48,8% (n=20) ansiolíticos, 41,5% (n=17) antidepressivos e 9,7% (n=4) sedativos.
Analisando os dados sobre o número de psicofármacos utilizados pelos doentes: 23,8% (n=5) encontravam-se sob tratamento apenas com um psicofármaco (4 com ansiolítico e 1 com antidepressivo), 57,2% (n=12) com dois psicofármacos (12 com ansiolítico e antidepressivo) e 19% (n=4) com três psicofármacos (4 com ansiolítico, antidepressivo e sedativo). A análise dos resultados encontra-se representada na Tabela 1.
O grupo de controlo incluiu 120 doentes, 67,5% (n=81) do sexo feminino com mediana de idade de 40,2 anos [mínimo de 19 anos e máximo de 84 anos].
No grupo de controlo 78,3% (n=94) dos doentes negaram tratamento prévio com psicofármacos e 21,7% (n=26) estavam em tratamento com pelo menos um dos seguintes fármacos: 47,7% (n=21) ansiolíticos, 45,5% (n=20) antidepressivos e 6,8% (n=3) sedativos.
Analisando os dados sobre o número de psicofármacos utilizados pelos doentes deste grupo verifica-se que: 42,3% (n=11) realizavam tratamento apenas com um psicofármaco (6 com ansiolítico, 4 com antidepressivo e 1 sedativo), 50% (n=13) com dois psicofármacos (13 com ansiolítico e antidepressivo), 7,7% (n=2) com três psicofármacos (2 com ansiolítico, antidepressivo e sedativo).
Os resultados estão ilustrados na Tabela 1.
Associação entre urticária crónica espontânea e consumo de psicofármacos
De forma global não se verificou diferença estatisticamente significativa (p=0,054) no consumo de psicofármacos entre os grupos avaliados.
Embora se verifique uma tendência de maior consumo de ansiolíticos e sedativos no grupo de estudo, constituído por doentes com urticária crónica espontânea, esta diferença não é estatisticamente significativa quando avaliamos os dados por classe farmacológica.
Verificamos que os doentes do grupo de estudo apresentam maior tendência ao consumo de mais do que um psicofármaco (p= 0,017), independentemente do grupo farmacológico envolvido.
DISCUSSÃO E CONCLUSÃO
A urticária crónica espontânea é uma patologia comum na prática clínica de Imunoalergologia, com um pico de incidência entre os 20 e os 40 anos de idade, sendo duas vezes mais prevalente no género feminino 5. A amostra de doentes com urticária crónica espontânea no presente estudo apresenta uma predominância do género feminino (70%), com uma mediana de idade de 43,5 anos, dados que vão ao encontro do descrito na literatura.
Também é importante destacar que o grupo controlo (doentes com sintomas compatíveis com patologia respiratória), ao ser emparelhado, partilha as mesmas caraterísticas demográficas, com 67,5% de mulheres e uma mediana de idade de 40 anos.
Portugal é o segundo país da Europa com a prevalência mais elevada de doenças psiquiátricas, sendo que 22,9% dos portugueses sofre de uma perturbação psiquiátrica.
As perturbações de ansiedade são as que apresentam uma prevalência mais elevada (16,5%), seguida das perturbações do humor (7,9%) 9. Dados do IV inquérito nacional ao consumo de substâncias psicoativas na população geral em Portugal entre 2016/2017 mostram que o consumo foi de 23%, refletindo os dados de prevalência de perturbações psiquiátricas 10. A mediana de idades neste inquérito para a primeira experiência de consumo de substâncias psicoativas foi de 40 anos, mostrando que a presente amostra, com caraterísticas idênticas, é adequada para a caracterização do consumo de psicofármacos.
Na presente amostra de doentes com urticária crónica espontânea, 35% dos doentes estavam sob tratamento com psicofármacos, enquanto no grupo de controlo a percentagem foi de 21,7%. A percentagem de consumo de psicofármacos neste grupo controlo assemelha-se à dos dados nacionais de perturbação psiquiátrica e de consumo de psicofármacos, o que nos leva a acreditar que este grupo pode representar o risco basal da população geral. De acordo com os dados, existe uma maior tendência para o consumo de psicofármacos pelos doentes com urticária crónica espontânea e verificamos que no grupo de estudo o uso de mais que um psicofármaco é superior.
Estes dados sugerem que as perturbações emocionais se poderão associar ao aparecimento de urticária crónica espontânea, dados que são corroborados por vários autores 11-13.
Admite-se ainda que as doenças inflamatórias da pele, nas quais se inclui a urticária crónica espontânea, envolvam disfunções do sistema neuroimune-endócrino de interação entre o cérebro e a pele 14. Assim, é possível inferir que a urticária crónica espontânea possa ser exacerbada pelo stress e que se encontre associada a distúrbios psicoemocionais. Mesmo que os eventuais distúrbios psiquiátricos sintomas psicológicos surjam após o aparecimento da UCE, e não intervenham na sua patogénese, os doentes poderão beneficiar de avaliação psiquiátrica e eventual intervenção terapêutica dirigida com potencial impacto positivo na evolução e na qualidade de vida.
O mastócito é uma célula determinante na relação entre o cérebro e a pele, uma vez que é a célula central na inflamação neurogénica, atendendo à sua localização de proximidade com vasos e terminações nervosas. Em vários estudos os dados suportam a associação entre a ativação mastocitária e os problemas mentais 4. Numa publicação recente, os níveis de depressão em doentes com mastocitose demonstraram estar significativamente associados com os níveis de triptofano 15. Existem alterações no metabolismo do triptofano na mastocitose e isto associou-se com stress e depressão, sugerindo que os mastócitos participam nas vias inflamatórias associadas com depressão. A ativação mastocitária também aumenta comportamentos ansiosos 16, enquanto a depressão e a ansiedade estão associadas com aumento do número de mastócitos e da sua desgranulação 17. Existe cada vez mais evidência de que os mastócitos são críticos para a fisiopatologia das doenças inflamatórias 15,18. Dados da literatura mostram que a depressão se associa, em parte, a transtornos inflamatórios, incluindo alterações da interleucina-6 (IL-6), fator de necrose tumoral alfa, IL-1 β, IL-2 e proteína C reativa 19,20. Uma meta-análise pôs em evidência que doentes com depressão têm aumento dos níveis de fator de necrose tumoral alfa e da IL-6 21 e vários estudos apontam para o papel importante dos mastócitos na depressão induzida pela inflamação 15,22.
O presente estudo tem algumas limitações, maioritariamente associadas ao facto de ser um estudo retrospetivo.
Assim, não foi possível avaliar a possibilidade de existirem outras comorbilidades associadas à prescrição de psicofármacos nem estabelecer uma verdadeira relação causal entre os distúrbios psiquiátricos, o consumo de psicofármacos e a urticária crónica espontânea. Trata-se também de um estudo com uma amostra pequena de doentes seguidos num hospital terciário numa área urbana, não sendo possível generalizar a outras populações os resultados obtidos.
Seria importante a realização de estudos multicêntricos e prospetivos para melhor estabelecer a relação entre a urticária crónica espontânea, a patologia psiquiátrica e o consumo de psicofármacos.
O esclarecimento desta relação, nomeadamente se a patologia psiquiátrica é um desencadeante da urticária crónica espontânea ou se a urticária crónica espontânea leva ao desenvolvimento de patologia psiquiátrica, seria muito importante para uma melhor abordagem diagnóstica e terapêutica destes doentes.
Em conclusão, o consumo de psicofármacos na população controlo deste estudo reflete os achados descritos na população geral a nível nacional (22.9% dos portugueses sofrem de perturbações psiquiátricas). No entanto, verificamos que os doentes com UCE apresentam maior tendência ao consumo de mais do que um psicofármaco (p= 0,017), independentemente do grupo farmacológico envolvido. Estes dados favorecem a ideia de que a avaliação psicológica possa ser importante na abordagem diagnóstica e terapêutica destes doentes.