Este artigo começa com um caso clínico sumário ilustrando um problema clínico frequente. Posteriormente, é apresentada evidência relativa a essa patologia, focando diferentes aspetos que se consideram clinicamente relevantes, incluindo formas de abordagem. O artigo termina com as recomendações clínicas dos autores, tendo por base o caso clínico inicial.
CASO CLÍNICO
Doente do sexo feminino, com 32 anos, psicóloga, com antecedentes de eczema atópico, foi enviada à consulta de Imunoalergologia por queixas persistentes de rinorreia anterior e posterior aquosa e prurido nasal com dois anos de evolução, que associava à exposição a pó doméstico e ambientes húmidos. Ao exame objetivo não apresentava alterações à inspeção e palpação nasais; na rinoscopia anterior apresentava hipertrofia bilateral dos cornetos inferiores e mucosa de coloração normal; e à auscultação pulmonar tinha murmúrio vesicular audível bilateralmente, simétrico, sem ruídos adventícios.
Pela clínica compatível com rinite iniciou tratamento com furoato de fluticasona 27,5 mcg/dose intranasal 2id e loratadina 10mg (SOS). O estudo imunoalergológico com testes cutâneos por picada (TCP) com aeroalergénios (extratos padronizados GA2LEN e Lepidoglyphus destructor (Ld)) e doseamento de IgE específicas a Dermatophagoides pteronyssinus (Dp), Dermatophagoides farinae (Df) e Ld (ImmunoCAP®, Thermo-Fisher) foram negativos. Considerando a negatividade do estudo e a forte associação das queixas à exposição a pó doméstico, foi colocada a hipótese diagnóstica de rinite alérgica local (RAL).
INTRODUÇÃO
Rinite alérgica local (RAL) define-se como uma resposta alérgica localizada ao epitélio nasal, sem evidência sistémica de atopia, isto é, sem qualquer positividade nos TCP ou IgE específica sérica 1,2. O termo “Rinite Alérgica Local” foi introduzido em 2009 por Carmen Rondón 3, embora estudos de Huggings e Brostoff que remontam a 1975 tenham sugerido esta entidade após deteção de IgE nas secreções nasais de doentes com rinite sem evidência de sensibilização alergénica nos TCP3. Em 2003, Powe et al. introduziram o termo “entopia” referindo-se à produção local de IgE, em oposição à “atopia”, produção sistémica de IgE 4. A sua prevalência na população geral é incerta, mas estima-se que corresponda a cerca de 21-25% das rinites crónicas 5. Entre indivíduos não atópicos com sintomatologia nasal sugestiva de etiologia alérgica, a sua prevalência pode aproximar-se dos 50-75%. Indivíduos com o diagnóstico de rinite não alérgica (RNA), não submetidos a prova de provocação nasal específica (PPNE) têm uma elevada probabilidade de diagnóstico alternativo de RAL 5,6. Vários estudos sugerem que a prevalência de RAL nas regiões mediterrâneas poderá ser mais elevada comparativamente aos países do Norte da Europa e Ásia. São escassos os estudos que avaliam a sua prevalência em adultos e crianças, mas estima-se que seja semelhante em ambas as faixas etárias 6.
A RAL é um fenótipo estável e não um estádio inicial de rinite alérgica (RA) 7, e ambas podem coexistir 8. Indivíduos com RAL manifestam sintomatologia que pode ser intermitente ou persistente, semelhante à dos doentes com RA, distinguindo-se apenas pela ausência de TCP ou IgE sérica específica positivos na RAL.
Esta entidade caracteriza-se por um padrão inflamatório do tipo Th2 a nível da mucosa nasal, onde há produção local de IgE específica durante a exposição natural a aeroalergénios e uma resposta positiva na PPNE 2,9.
Assim, a PPNE positiva na RAL faz a distinção da RNA 1,2. Trata-se de um meio de diagnóstico com alta sensibilidade, especificidade e reprodutibilidade, sendo por isso considerado o gold standard para o diagnóstico 2.
Asma e conjuntivite são as comorbilidades mais frequentemente associadas à RAL. À semelhança da RA, os ácaros do pó doméstico, nomeadamente o Dermatophagoides pteronyssinus, representam os desencadeantes mais comuns da RAL persistente 6,9. O pólen das gramíneas é o desencadeante mais relevante na RAL intermitente 6.
Curiosamente, a Alternaria alternata está mais frequentemente envolvida na RAL do que na RA6. Os epitélios de animais e o pólen de Olea europaea encontram-se menos frequentemente associados à RAL, em comparação com a RA, pelo menos no que diz respeito às regiões do Mediterrâneo 6. Similarmente ao que ocorre na RA, os doentes com RAL podem apresentar reatividade nasal a alergénios 6.
FISIOPATOLOGIA
A fisiopatologia da RAL é semelhante à da RA, mas limitada ao epitélio nasal. Numa fase de sensibilização alérgica, as células dendríticas presentes na mucosa nasal captam o alergénio e transportam-no até aos gânglios linfáticos. Aí, o alergénio é apresentado às células T naive, originando linfócitos Th1 e Th2 específicos do alergénio.
Ainda no gânglio, as células Th1 comunicam com células B naive, originando células B memória (IgG+) específicas do alergénio, que, bem como as células Th2, atingem a corrente sanguínea e consequentemente a mucosa nasal. Concomitantemente à ativação das células dendríticas, são também ativadas as células linfoides inatas tipo 2, que, por sua vez, produzem IL-4, IL-5 e IL-13.
Estas citocinas assumem preponderância quer numa fase precoce, estimulando a maturação das células dendríticas, quer na fase de reexposição ao alergénio, onde são adjuvantes no processo de class switch recombination das células B memória IgG+ para IgE+, levando à produção de elevada quantidade de IgE por plasmócitos IgE+ 10.
Esta IgE vai-se ligar ao FcεRI presente na membrana dos mastócitos da mucosa. Aquando da sua ativação, gera-se assim um infiltrado inflamatório padrão T2, com um aumento de mastócitos e eosinófilos locais, com libertação de mediadores pró-inflamatórios, como triptase e proteína catiónica eosinofílica 3. Na RA, a quantidade de IgE produzida é suficiente para saturar os FcεRI da mucosa nasal, atingir a corrente sanguínea, saturar os FcεRI dos basófilos circulantes e acabar por se ligar aos FcεRI dos mastócitos cutâneos (daí a positividade nos testes cutâneos e nos doseamentos de IgE), enquanto na RAL a IgE produzida não é suficiente para ser detetada à distância11. Apesar de nem todos os trabalhos serem concordantes no que toca à deteção de IgE na mucosa nasal de indivíduos com RAL, um estudo recente que recorreu à colocação de esponjas intranasais para colheita de secreções mostrou a presença de IgE em >90% dos doentes 12.
Embora as semelhanças entre RAL e RA sugiram que possam trata-se de diferentes fases de sensibilização ao alergénio, estudos de seguimento comprovaram que a RAL é um fenótipo diferente da RA e que não evolui para atopia sistémica a longo prazo 5,6.
DIAGNÓSTICO
O diagnóstico de RAL deverá ser considerado num doente com suspeita de RA, cujos resultados dos TCP e doseamento de IgE específicas séricas (IgEs) para aeroalérgenios relevantes sejam negativos (Figura 1) 13-15. Por outro lado, a sensibilização local e sistémica a diferentes aeroalergénios pode coexistir, e o diagnóstico de RAL deverá também ser considerado quando o perfil de sensibilização não explica adequadamente o padrão dos sintomas nasais 4,8,14. Por exemplo, um doente com sintomas peranuais e exacerbações sazonais poderá revelar uma sensibilização apenas a alergénios sazonais e uma PPNE positiva a alergénios perenes, ou vice-versa 8,14.
Este fenótipo foi observado tanto em crianças como em adultos e denomina-se rinite alérgica dupla (RAD) (dual allergic rhinitis) 8,14,16. Neste contexto, uma história clínica dirigida ao padrão de sensibilização e métodos que avaliem possíveis sensibilizações locais são essenciais para o diagnóstico de RAL. O exame físico e meios complementares de diagnóstico adicionais são de igual importância para diferenciar distúrbios nasais de apresentação semelhante. Alguns dos diagnósticos diferenciais a considerar incluem a rinossinusite crónica com e sem polipose nasal, subfenótipos de rinite não alérgica, por exemplo atrófica, medicamentosa ou hormonal, doenças sistémicas como a fibrose quística, discinesia ciliar primária, granulomatose, sarcoidose e amiloidose e alterações anatómicas do nariz 8,14,16.
Prova de provocação nasal específica
A PPNE é considerada o gold standard para o diagnóstico de RAL 13. Consiste num método de indução de uma resposta nasal específica, através da colocação do alergénio a ser testado na mucosa nasal, ao nível dos cornetos inferiores 9,13,17. Trata-se de um procedimento de fácil execução, com elevada especificidade e sensibilidade, reprodutível, e com metodologia padronizada a nível europeu, com valores cut-off de positividade bem definidos 13,14. As suas limitações incluem a imprecisa padronização dos extratos de aeroalergénios, o incómodo causado ao doente pela possível indução de sintomas, o tempo e material específico necessários para a sua execução 13,14,18. A prova é segura em crianças e adultos, incluindo doentes com asma, desde que cumpridas as devidas indicações e precauções 14,19. Uma análise retrospetiva de 11499 PPNE, realizadas em 518 crianças e 5830 adultos, não observou qualquer efeito adverso sistémico ou respiratório inferior, mesmo nas provas com múltiplos alergénios e sessões 19. Nesse mesmo estudo, a administração do alergénio a nível nasal usando spray e micropipeta foram igualmente seguros 19.
Previamente à realização da PPNE deverá ser garantido um período de estabilização clínica de pelo menos 4 semanas para qualquer doença alérgica de base. No que se refere à suspensão prévia dos corticoides nasais, as recomendações variam entre 48 horas e 4 semanas. Enquanto o Comité de Rinoconjuntivite da SEAIC e uma revisão da AAAAI recomendam a suspensão 48 a 72 horas, o grupo Allergic Rhinitis - Clinical Investigator Collaborative recomenda 2 semanas e o estudo previamente mencionado que incluiu 11499 PPNE recomendou aos participantes a suspensão pelo menos 4 semanas antes da PPNE 19-22. Relativamente aos anti-histamínicos e vasoconstritores nasais, estes devem ser suspensos durante 2 semanas e 1 semana, respetivamente. Infeções virais ou bacterianas agudas implicam adiar a prova pelo menos 4 semanas e cirurgia nasal ou dos seios paranasais pelo menos 6 a 8 semanas 13,14,18. Outras precauções temporárias incluem a suspensão do consumo de álcool e tabaco durante 48 horas, e em provas com alergénios sazonais a PPNE deverá ser realizada pelo menos 4 semanas após a época polínica respetiva 13,14,18. As contraindicações absolutas incluem idade inferior a 5 anos, gravidez, asma não controlada ou outra doença obstrutiva com volume expiratório máximo no 1.º segundo ou pico de fluxo expiratório inferior a 70% do previsto, comorbilidades graves, como doença cardiopulmonar instável com diminuição da capacidade pulmonar, tumores malignos ou doenças autoimunes, perfuração do septo nasal, reação anafilática, imunoterapia em curso com o respetivo alergénio e utilização de extratos alergénios não padronizados na PPNE 13,14,18. Relativamente à padronização dos extratos alergénicos, recomenda-se a utilização de kits comerciais pela sua melhor padronização.
As diluições, o modo e frequência de administração podem variar entre os kits comerciais e, portanto, devem ser seguidas as indicações de cada fabricante. Desta forma é assegurada a segurança, precisão e reprodutibilidade da prova, ainda que as próprias diferenças referidas entre kits possam implicar viés nos resultados 13,14,18.
Não existe atualmente nenhum critério de positividade universal para definir o resultado da PPNE, pelo que as recomendações apoiam a utilização adaptada de métodos que avaliem parâmetros subjetivos (esternutos, prurido nasal, rinorreia, obstrução nasal e sintomas oculares) e parâmetros objetivos (patência nasal) 13.
Para a avaliação dos parâmetros subjetivos várias escalas estão recomendadas: a escala de Linder, escala de Lebel, total nasal symptom score (TNSS, score total de sintomas nasais) e a escala visual analógica, sendo as duas últimas as mais utilizadas 13. Para a avaliação de parâmetros objetivos estão disponíveis várias técnicas: pico do fluxo nasal inspiratório (PNIF, peak nasal inspiratory flow), rinometria acústica ou rinomanometria. A técnica mais utilizada na prática clínica diária é o PNIF, pela sua simplicidade, custo e portabilidade. A rinometria acústica é uma técnica objetiva não invasiva, que mede a área e o volume da cavidade nasal através de ondas sonoras emitidas através das narinas, enquanto a rinomanometria se baseia na medição do fluxo e pressão transnasal, permitindo calcular a resistência nasal ao fluxo aéreo 23,24.
Apesar da utilidade da avaliação objetiva, nem todos os centros têm os meios técnicos disponíveis, o que limita a avaliação da resposta na PPNE. Realça-se que a concordância entre os parâmetros subjetivos e objetivos nem sempre se verifica, pelo que as guidelines da European Academy of Allergy and Clinical Immmunology (EAACI) recomendam a utilização concomitante de medidas subjetivas e objetivas, que avaliam aspetos diferentes da obstrução nasal e poderão ser usadas em conjunto para definir a positividade na PPNE 13. O futuro da avaliação objetiva poderá passar pela utilização de técnicas computorizadas, como a “Dinâmica de fluidos computorizada” (por exemplo o Flowgy®) 25; no entanto, a utilidade desta técnica na avaliação da resposta na PPNE ainda não está estabelecida e será limitada pela necessidade de imagem de tomografia computorizada. IgE específica nasal e teste de ativação de basófilos (TAB)
A quantificação de níveis de IgE específicas nasais (NIgEs) e o TAB são métodos adicionais úteis para o diagnóstico de RAL e RAD. As amostras de secreções e mucosa nasal podem ser obtidas através de métodos invasivos como a biópsia, escovagem e raspagem, ou não invasivos, como a lavagem nasal e esponjas nasais 26,27.
As técnicas laboratoriais para a deteção de NIgEs são as mesmas utilizadas para o doseamento de IgE específicas séricas (ImmunoCAP, ELISA, Microarray ou RIA) 26.
A quantificação de NIgEs apresenta uma especificidade de 100%, no entanto uma sensibilidade global de 20-60%, que varia consoante a técnica de colheita utilizada. Para obter a máxima sensibilidade é aconselhada uma PPNE prévia ao doseamento e o uso técnicas de colheita que evitem diluição da amostra 2,14,28. Apesar da comodidade e elevada especificidade, o doseamento de NIgEs carece de padronização, o seu custo é elevado e não se encontra disponível em todos os centros. O TAB, ao invés da deteção de NIgEs, é um método validado, com valores de cut-off bem definidos para positividade e que não requer PPNE prévia para obter a máxima sensibilidade.
A especificidade do TAB para o diagnóstico RAL e RAD é de 100%, enquanto a sensibilidade é de cerca de 50-66% 14,28,29. Um TAB positivo, para além de evidenciar a presença de NIgEs, indica que as NIgEs presentes são funcionais 14,15. Apesar da elevada especificidade de ambos os métodos e da padronização do TAB, estas técnicas atualmente são aconselhadas apenas como suporte à PPNE, quando existem contraindicações para realização da PPNE ou em contexto de investigação 2,14,28.
TRATAMENTO
A RA e a RAL partilham características clínicas e imunológicas, pelo que a abordagem terapêutica pode ser similar, incluindo, por exemplo, educação para a saúde, evicção alergénica e tratamento sintomático com anti-histamínico oral e corticoide nasal 2. Por outro lado, os anti-histamínicos intranasais, apesar de por norma serem menos eficazes do que o corticoide nasal na RA, têm um efeito significativo na congestão nasal e na redução do prurido e dos esternutos, com eficácia igual ou superior à dos anti-histamínicos orais de segunda geração, podendo a terapêutica combinada com o corticoide nasal trazer benefícios adicionais 9. No entanto, a maioria dos tratamentos farmacológicos não foram testados especificamente na RAL, sendo a sua eficácia extrapolada do uso na RA. Nos doentes com RA que não respondem completamente à terapêutica farmacológica, está indicada a imunoterapia com alergénios (ITA). A ITA é atualmente o único tratamento que tem a capacidade de modificar a história natural da doença, aumentando a tolerância imunológica, reduzindo os sintomas clínicos e a necessidade de medicação 2.
Além de muito eficaz, é segura e confere benefício clínico a longo prazo 2. Dadas as semelhanças entre a RA e a RAL, vários estudos têm sido feitos para avaliar o potencial da imunoterapia subcutânea (SCIT) com alergénios no tratamento da RAL. Três ensaios clínicos randomizados duplamente cegos controlados por placebo, respetivamente de SCIT com Dp 30, com Phleum pratense 31 e com Betula verrucosa 32, vieram recentemente suportar a eficácia clínica da SCIT mantida a curto e a longo prazo em doentes com RAL. Esta eficácia reflete-se principalmente numa melhoria da gravidade da rinite, dos sintomas e da necessidade de medicação.
Os três estudos mostraram ainda que a SCIT induz um aumento significativo da tolerância alergénica, bem como um aumento progressivo dos níveis séricos de sIgG4 2. Estes resultados confirmam que a SCIT é um tratamento eficaz para a RAL, com um impacto muito positivo na qualidade de vida dos doentes 2.
CONCLUSÃO
No caso clínico descrito, a clínica de rinite era desencadeada, de forma reprodutível, após contacto com pó doméstico, sugerindo alergia a ácaros. Nesse sentido foi realizada PPNE com extrato de Dp que se revelou positiva segundo o TNSS (score 7 aos 5 minutos), confirmando o diagnóstico de RAL. Realizou a posteriori PPNE com Ld que foi negativa. Foi prescrita imunoterapia específica subcutânea com extrato de Dp a 100%.
Atualmente cumpre o terceiro ano de tratamento, com melhoria significativa da sintomatologia nasal, sem necessidade de terapêutica de manutenção, apresentando rinorreia anterior esporádica, que resolve com a toma de loratadina SOS.
A RAL é um fenótipo de rinite, em que, como o próprio nome indica, a resposta alérgica ocorre localmente.
O diagnóstico é feito pela PPNE. O seu tratamento é semelhante ao da RA, destacando-se o benefício e eficácia da ITA, apesar de não existir evidência de alergia sistémica. É importante a sua divulgação e conhecimento para evitar o subdiagnóstico, que pode limitar a orientação e tratamento adequado destes doentes.