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Revista Portuguesa de Imunoalergologia

versão impressa ISSN 0871-9721

Rev Port Imunoalergologia vol.33 no.1 Lisboa mar. 2025  Epub 30-Mar-2025

https://doi.org/10.32932/rpia.2025.03.155 

ARTIGO ORIGINAL

Avaliação da qualidade de vida em doentes com imunodeficiência comum variável sob tratamento com imunoglobulina endovenosa

Quality of life evaluation in patients with common variable immunodeficiency treated with intravenous immunoglobulin

1 Serviço de Imunoalergologia, Unidade Local de Saúde Gaia-Espinho, Vila Nova de Gaia, Portugal


RESUMO

Introdução:

A imunodeficiência comum variável (IDCV) é a imunodeficiência primária sintomática mais frequente. Caracteriza-se por apresentar uma enorme heterogeneidade de manifestações clínicas, imunológicas e genéticas, sendo por isso considerada um “diagnóstico em guarda-chuva”. O maior reconhecimento e os progressos no tratamento da IDCV permitiram aumentar a sobrevida dos doentes. No entanto, a reposição de imunoglobulina humana permanece a base do tratamento. A perspetiva do doente sobre a qualidade de vida (QV) relacionada com a saúde, como um fator que influencia o bem-estar e a funcionalidade física e emocional, é cada vez mais explorada nos cuidados de saúde. O objetivo deste estudo foi avaliar a QV dos doentes com IDCV sob terapêutica de substituição com imunoglobulina endovenosa, aplicando o questionário de QV MOS SF-36.

Métodos:

Foram incluídos 23 doentes com IDCV seguidos na consulta de Imunoalergologia-Imunodeficiências Primárias da Unidade Local de Saúde Gaia-Espinho, que responderam ao questionário de QV (MOS SF-36). Compararam-se os valores de QV dos doentes com valores de referência previamente publicados, referentes a uma amostra representativa da população portuguesa (n=2459).

Os valores das diferentes dimensões de QV foram comparados segundo o sexo, idade de início dos sintomas/diagnóstico/atual, presença de infeções recorrentes e complicações não infeciosas.

Resultados:

Os doentes com IDCV apresentaram uma diminuição estatisticamente significativa da componente física e mental. Na componente física, o desempenho e a dor física foram os mais afetados. Nos parâmetros que avaliam a componente mental, a saúde mental, função social e vitalidade, também apresentaram uma diminuição significativa. As diferenças encontradas foram independentes da idade de diagnóstico, tempo até ao diagnóstico, sexo e complicações não infeciosas.

Conclusão:

Os doentes em seguimento por IDCV apresentam diminuição significativa da componente física e mental da qualidade de vida. Salientamos a relevância de uma avaliação multidisciplinar adequada às necessidades de cada doente com o objetivo de intervir nos parâmetros afetados.

Palavras chave: Imunodeficiência comum variável; qualidade de vida; questionário MOS SF-36; saúde física; saúde mental

ABSTRACT

Introduction:

Common Variable Immunodeficiency (CVID) is the most common symptomatic primary immunodeficiency in adulthood. It is characterized by heterogeneous clinical, immunological, and genetic manifestations and is therefore considered an “umbrella diagnosis”. Greater recognition and progress in the treatment of CVID has led to increased patient survival. However, human immunoglobulin replacement remains the first-line treatment. Acknowledgment of the patient’s perspective regarding health-related quality of life (QoL) as a factor influencing well-being in both physical and mental domains is emerging in healthcare. This study aimed to evaluate the QoL of patients with CVID undergoing intravenous immunoglobulin replacement therapy, applying the MOS SF-36 QoL questionnaire.

Methods:

We included 23 patients with CVID followed in the Allergy and Clinical Immunology department at the Unidade Local de Saúde Gaia-Espinho. The patients’ QoL questionnaire scores were compared with previously published reference values from a sample of the Portuguese population (n=2459). Scores of diferente QoL dimensions were analyzed regarding age, sex, age at onset of symptoms/diagnosis/current, recurrent infections, and comorbidities.

Results:

CVID patients showed a statistically significant decrease in the physical and mental domains. In the physical domain, patients expressed significantly lower scores in functioning and physical pain. The subgroup scores for mental health, social function, and vitality in the mental component also showed a significant decrease. There was no significant correlation between age at diagnosis, time until diagnosis, sex, and non-infectious comorbidities.

Conclusion:

CVID patients show a significant reduction in the physical and mental parameters of QoL. We emphasize the relevance of a multidisciplinary approach to assess their individual needs regarding the affected parameters.

Keywords: Common variable immunodeficiency; quality of life; MOS SF-36 questionnaire; mental health; physical health

INTRODUÇÃO

A imunodeficiência comum variável (IDCV) caracteriza-se por baixos níveis de anticorpos secundário a alterações na diferenciação terminal das células B1. A IDCV é considerada o erro inato do sistema imune sintomático mais frequente na população, com uma prevalência estimada entre 1:10 000 e 1:100 000 casos, afetando de igual modo ambos os sexos. O início dos sintomas/manifestações clínicas tem dois picos de maior incidência, entre a primeira e a terceira década de vida2.

Segundo a classificação da European Society for Immunodeficiencies (ESID), são critérios de IDCV a presença de pelo menos uma manifestação clínica característica (infeções recorrentes, doença autoimune, doença granulomatosa, linfoproliferação policlonal sem etiologia clara ou história familiar de défice de anticorpos) associada a: 1) diminuição do nível de IgG e IgA, com ou sem diminuição de IgM (pelo menos dois desvios-padrão abaixo do valor médio para o grupo etário), 2) deficiente resposta à vacinação (e/ou ausência de iso-hemaglutininas) e/ou diminuição dos linfócitos B de memória switched (inferior a 70% para a idade), 3) diagnóstico após os 4 anos (sintomas podem estar presentes previamente), e 4) exclusão de causas secundárias de hipogamaglobulinemia3.

A IDCV apresenta uma enorme heterogeneidade de manifestações clínicas, imunológicas e alterações genéticas, sendo por isso considerada um “diagnóstico em guarda- chuva”3. O espetro de manifestações clínicas engloba, para além das infeções crónicas, graves e recorrentes, as doenças autoimunes, granulomatosas e linfoproliferativas3,4. Apesar dos progressos no conhecimento dos mecanismos genéticos subjacentes aos vários fenótipos da IDCV, a etiologia desta síndrome permanece pouco esclarecida 3,4. O maior reconhecimento e avanços no tratamento da IDCV permitiram aumentar a sobrevida dos doentes. No entanto, a terapêutica de reposição regular com imunoglobulina permanece a base do seu tratamento. É de salientar que a reposição de imunoglobulinas se associa a melhor prognóstico e redução da frequência e gravidade das infeções. Contudo, parece menos eficaz no controlo da linfoproliferação, autoimunidade e malignidade decorrentes da IDCV 5,6.

Apesar do termo “comum” associado à denominação desta patologia, a IDCV é uma entidade rara, cujo diagnóstico é um desafio. Trata-se de uma doença pouco conhecida da comunidade médica geral, com diferentes manifestações clínicas não integradas como um todo, mimetizando outras doenças e com desvalorização da frequência e gravidade das infeções7. Consequentemente, estão descritos atrasos no diagnóstico de 4-9 anos desde o início dos sintomas8. Este facto é da maior importância, pois o atraso do diagnóstico e, consequentemente, do início do tratamento, está associado a pior prognóstico e menor sobrevida9,10.

A qualidade de vida relacionada com a saúde é uma perceção subjetiva do indivíduo sobre o estado de saúde (doença e tratamento) referente ao seu bem-estar físico, psicológico e social 11. A perspetiva do doente em relação à qualidade de vida relacionada com saúde, como um fator que influencia o bem-estar e a funcionalidade física e emocional, é cada vez mais explorada pelos médicos e restantes prestadores de cuidados de saúde 12,13,14.

Nos doentes com IDCV, além da carga inerente ao próprio diagnóstico de uma doença rara, a qualidade de vida dos doentes é também comprometida pelas complicações da própria doença e limitação física que lhe está associada, pela necessidade de acesso frequente a cuidados de saúde e pelas opções terapêuticas disponíveis15.

No entanto, existem poucos artigos publicados que avaliem a qualidade de vida neste grupo de doentes.

O objetivo deste estudo foi avaliar a qualidade de vida dos doentes com IDCV sob terapêutica de substituição com imunoglobulina endovenosa há mais de 6 meses, aplicando uma escala de avaliaçã o da perceção da qualidade de vida (MOS SF-36) validada para a população portuguesa 16,17. Este instrumento avalia duas dimensões de saúde (física e mental) e é composto por 36 itens agrupados em 8 conceitos importantes em saúde: função física, desempenho físico, dor física, saúde em geral, vitalidade, função social, desempenho emocional, e saúde mental.

MATERIAL E MÉTODOS

População

Foram incluídos todos os doentes com IDCV sob tratamento com imunoglobulina endovenosa por mais de 6 meses consecutivos na consulta de Imunoalergologia - Imunodeficiências Primárias da Unidade Local de Saúde Gaia Espinho (n=23). Os questionários de qualidade de vida foram entregues no início de uma sessão de tratamento com imunoglobulina endovenosa e devolvidos no final da sessão ou na sessão seguinte. A recolha de questionários decorreu entre 1 janeiro e 31 maio de 2022.

Para comparação com uma população saudável foram utilizados dados de referência de uma amostra representativa da população portuguesa (n=2449)18.

Instrumentos

Para avaliar a qualidade de vida foi utilizada uma escala genérica do estado de saúde, Medical Outcomes Study Short-Form 36 (MOS SF-36), validada para a população portuguesa 16,17. O MOS SF-36 é uma escala que não é específica de doença ou grupo etário, sendo a simplicidade da sua execuçã o um fator importante que facilita a sua utilização. Esta escala é composta por 36 itens que fornecem pontuaçõ es em oito dimensões: função física (desempenho das atividades diárias, como autocuidado, vestir-se, tomar banho ou subir escadas), desempenho físico (impacto da saúde física no desempenho das atividades diárias e/ou profissionais), dor física (intensidade da dor e o impacto no desempenho das atividades diárias e/ou profissionais), saúde em geral (perceção subjetiva do estado geral de saúde), vitalidade (capacidade dos doentes na realização de tarefas do quotidiano), função social (interferência da condição de saúde nas atividades sociais), desempenho emocional (impacto das condições emocionais no desempenho das atividades diárias e/ou profissionais) e saúde mental (escala de humor e bem-estar).

A pontuação para cada item varia entre 0 e 100 pontos, que refletem, respetivamente, o pior e o melhor estado geral de saúde. Estes oito parâmetros podem ser agrupados em duas medidas sumárias: a componente de saúde física (funçã o física, desempenho físico, dor física e saúde geral) e a componente de saúde mental (saúde mental, desempenho emocional, função social e vitalidade).

Os valores médios de cada conceito foram transformados em percentagem do total da pontuação máxima possível. Da amostra de doentes foram também avaliados dados demográficos e comorbilidades.

Análise estatística

Foram incluídos na análise estatística doentes adultos (mais de 18 anos de idade) com diagnóstico de IDCV que se encontravam sob tratamento com imunoglobulina endovenosa há mais de 6 meses consecutivos e que completaram o questionário MOS SF-36. A análise das variáveis incluiu medidas de estatística descritiva (frequências absolutas e relativas, média e desvio-padrão ou mediana e intervalo-interquartil, IIQ). A normalidade de distribuição dos valores das variáveis foi analisada com o teste de Shapiro-Wilk e observaçã o do histograma.

As pontuações das 8 dimensões de qualidade de vida foram analisadas de acordo com o sexo, idade de início dos sintomas, idade de diagnóstico, idade atual, presença de infeções recorrentes e complicações não infeciosas (doença respiratória, gastrointestinal, linfoproliferativas, neoplasias sólidas, autoimunidade e esplenomegalia). Para tal foi utilizado o teste não paramétrico Mann-Whitney (sexo, infeções recorrentes e comorbilidades) e coeficiente de correlação de spearman (idade de início dos sintomas/diagnóstico/atual).

Compararam-se os scores de qualidade de vida dos doentes com valores de referência previamente publicados, referentes a uma amostra representativa da população portuguesa de idade adulta (n=2459) 18. Para esta comparação foi utilizado o teste t para uma amostra. O nível de significância considerado foi um valor de p<0,05.

Toda a análise estatística foi efetuada utilizando o programa Statistical Package for the Social Sciences (SPSS) 29.0.

RESULTADOS

Foram incluídos 23 doentes adultos, 65% do sexo feminino, com mediana de idade atual de 63 anos (IIQ 46;70). O início dos sintomas (mediana de 24 anos (IIQ 17-27)) foi significativamente diferente entre sexos, com uma mediana de idade de 25 anos (IIQ 20-28) nas mulheres e 17 anos (IIQ 14-25) nos homens (p=0,034). A mediana de idade na altura do diagnóstico (mediana de 38 anos (IIQ 33-53)) foi de 40 anos (IIQ 34-54) nas mulheres e 38 anos (IIQ 32-53) nos homens. As características dos doentes encontram-se sistematizadas na Tabela 1.

Todos os doentes que participaram neste estudo estavam sob terapêutica de reposição regular com imunoglobulina endovenosa. As características do tratamento encontram-se representadas na Tabela 2.

Nesta série de doentes as infeções respiratórias recorrentes estavam presentes em 15 (65%) indivíduos, sendo os agentes isolados mais frequentes o Streptococcus pneumoniae, Haemophilus influenzae e Pseudomonas aeruginosa.

As infeções gastrointestinais estavam presentes em 4 (17%), sendo o Campylobacter jejuni e o Clostridium difficile os agentes mais frequentemente implicados. A patologia respiratória crónica foi a manifestação não infeciosa mais frequente (n=13), havendo 5 doentes com doença pulmonar obstrutiva crónica, 4 com asma, 2 com doença pulmonar intersticial linfocítica granulomatosa (GLILD) e 2 com bronquiolite obliterante com pneumonia organizativa.

Do total de doentes com patologia respiratória crónica, 7 (54%) apresentavam bronquiectasias. A patologia autoimune foi encontrada em 5 (22%) doentes, sendo a anemia hemolítica autoimune, trombocitopenia, síndrome Sjögren, lúpus eritematoso sistémico e hipotiroidismo os diagnósticos associados. As doenças linfoproliferativas foram diagnosticadas em 3 (13%) doentes, neoplasias sólidas (carcinoma de cólon) e esplenomegalia em 2 (9%) e, por último, diarreia crónica em 3 (13%), sendo detetada hiperplasia nodular linfoide em 2 (67%) deles.

Os valores médios das pontuações do questionário MOS SF-36 nos doentes adultos com IDCV (n=23) e na amostra representativa da população portuguesa de idade adulta (18 a 64 anos) encontram-se esquematizados na Tabela 3 e na Tabela 4. Os doentes com IDCV, em comparação com a amostra representativa populacional, apresentaram diminuição significativa da componente física (média de 49,2 vs 66,4) e mental (média de 47,1 vs 67,8), ambas estatisticamente significativas (p=0,001). As diferenças encontradas foram independentes da idade de diagnóstico, tempo até ao diagnóstico, sexo e comorbilidades.

Tabela 1 Características dos doentes com IDCV 

Tabela 2 Características do tratamento com Imunoglobulina. 

EV - Endovenosa; Me - Mediana; min - mínimo; max - máximo

Tabela 3 Média de scores nas componentes física e mental - Comparação entre doentes e população de referência. 

*Utilizado teste t para uma amostra. DP - Desvio-Padrão

Tabela 4 Média de scores MOS SF-36 - Comparação entre doentes e população de referência. 

*Utilizado teste t para uma amostra. DP - Desvio-Padrão

No que diz respeito aos parâmetros avaliados na componente física, o desempenho físico (média de 40,2 vs 71,2) e a dor física (média de 39,6 vs 63,3) foram os mais afetados na população estudada, em comparação com a população geral portuguesa, com significância estatística (p=0,004; p=0,001, respetivamente). Nas questões que avaliam a saúde em geral, a média é semelhante à da população ativa portuguesa (média de 55,9 vs 55,8).

Nos parâmetros que avaliam a componente mental, a saúde mental (média de 51,6 vs 64), função social (média de 40,4 vs 74,9) e vitalidade (média de 40,0 vs 58,4) apresentaram uma diminuição significativa na população estudada em comparação com a população geral. Não foram encontradas diferenças no que diz respeito ao desempenho emocional.

DISCUSSÃO

As publicações internacionais encontradas refletem a necessidade de maior investimento na avaliação da qualidade de vida dos doentes com doenças crónicas 11.

Apesar dos parâmetros de qualidade de vida serem frequentemente incluídos nos ensaios clínicos, a sua avaliação na prática clínica é limitada 11. A utilização de Patient-Reported Outcome Measures (PROM) na prática clínica tem sido proposta como meio facilitador da comunicação médico-doente, identificando problemas, monitorizando a doença e o tratamento 19.

Este estudo centrou-se na avaliação do impacto do diagnóstico de IDCV na qualidade de vida e na identificação dos fatores físicos e mentais mais afetados.

O diagnóstico de IDCV foi realizado em idade adulta (mediana de 38 anos), associado a complicações crónicas com perda de função permanente na maioria dos doentes.

Estes resultados têm semelhanças com os encontrados na literatura, que indicam uma idade média ao diagnóstico de 35 anos e apresentam várias complicações não infeciosas associadas, sendo a doença pulmonar crónica a mais frequente, como nesta população 4,20.

A análise dos dados nesta população mostrou que os doentes com IDCV apresentavam uma saúde física e mental significativamente diminuída em comparação com uma amostra representativa da população ativa portuguesa.

Estes resultados são concordantes com os resultados de outros autores, como num estudo de Quinti et al. de uma população italiana (n=96) de doentes com IDCV que apresentou menor qualidade de vida (medida pelo MOS SF-36) quando comparado com uma amostra da população geral, sendo a doença pulmonar crónica e a diarreia crónica os principais fatores associados a valores inferiores no MOS SF-36 11. No estudo de Rider et al. em que foi aplicado o questionário SF-12, que avalia a perceção do indivíduo em relação a aspetos da sua saúde física e mental nas quatro semanas prévias, os doentes adultos com IDCV apresentaram um bem-estar físico e mental significativamente diminuído, independente da via de administração da imunoglobulina (endovenosa ou subcutânea) 21. Estes resultados demonstram que os efeitos na componente física e mental conferidos pelo diagnóstico de uma doença crónica, com importantes complicações, tem significativas limitações na qualidade de vida.

Os doentes apresentaram uma diminuição de todos os parâmetros avaliados no questionário MOS SF-36, com a exceção da perceção da saúde em geral. Estes dados sugerem que, apesar dos progressos no tratamento e diagnóstico mais precoce, a população estudada tem características que afetam significativamente a sua vida diária, com efeitos negativos na sua saúde mental e física.

O facto de não se encontrarem fatores diferenciadores nesta população poder-se-á dever a fatores relacionados com o reduzido tamanho da amostra e às suas características biológicas: população com idade avançada (mediana de 63 anos), com pluripatologia não relacionada com a IDCV e, provavelmente, com menos compromissos laborais, pois mais de metade dos doentes apresentam uma idade atual próxima da idade média de aposentação.

No registo europeu de 1996-2006, 20% dos doentes foram diagnosticados 15 anos após o início dos sintomas22. Neste registo, cada ano adicional de atraso no diagnóstico associou-se a um aumento da mortalidade de 1,7% 22,23. O atraso no diagnóstico foi mais evidente na nossa população do que nos dados europeus referidos, com uma média de tempo desde o início dos sintomas até ao diagnóstico de 19 anos, o que poderá explicar a maior prevalência de complicações não infeciosas (87%) na nossa população em comparação com o reportado na literatura 24.

Num estudo publicado em 2020, que inclui 623 doentes com IDCV, as manifestações não infeciosas estavam presentes em 68,1% da amostra, sendo a autoimunidade (33,2%) e a doença pulmonar crónica (30,2%) as mais frequentes, seguidas da hiperplasia linfoide/esplenomegalia (20,9%), doença hepática (12,7%), granulomas (9,3%), doença gastrointestinal (7,3%), linfoma (6,7%) e outras doenças malignas (6,4%) 24.

Um estudo publicado em 2016 por Routes et al. procurou obter informações sobre o impacto da doença entre doentes recém diagnosticados com défice de produção de anticorpos e explorar a qualidade de vida após o início do tratamento com imunoglobulina 25. Os resultados apresentados sugerem que doentes adultos têm valores inferiores de qualidade de vida e produtividade antes do início do tratamento. Após 12 meses de tratamento com imunoglobulina apresentaram melhor qualidade de vida, que se refletiu por aumentos significativos e clinicamente relevantes em duas pontuações do domínio da saúde física (saúde geral e desempenho físico) e um domínio da saúde mental (função social) no questionário MOS SF-36 25. Estes dados realçam a importância do diagnóstico precoce, que está associado frequentemente a angústia e ansiedade.

Atendendo às diferenças encontradas na nossa população em relação à qualidade de vida da população portuguesa, a nossa análise sugere que há um amplo espaço para melhorar no que diz respeito ao bem-estar dos doentes com IDCV. Os doentes desta amostra apresentaram uma redução significativa da qualidade de vida em relação à população portuguesa de referência, não só nas variáveis que avaliam a componente física, mas também nas respeitantes à componente mental. A função social destes doentes também foi significativamente inferior. Estes dados corroboram a multidimensionalidade da IDCV como sendo uma doença física grave com grande morbimortalidade, mas também uma doença com enorme impacto na saúde mental e na relação social dos doentes. Além do impacto da doença e do “sentir-se doente”, os tratamentos regulares, a constante dependência de serviços de saúde e os condicionalismos impostos pela suscetibilidade acrescida a infeções contribuem enormemente para o compromisso na saúde mental e relação interpessoal.

Um dado a salientar é o de que nesta amostra, apesar do compromisso em todas as outras variáveis, a perceção individual da saúde em geral foi semelhante nos doentes com IDCV em comparação com a população geral (55,9 ±14,1 vs 55,8 ±18,8, diferença de +0,1, p=0,989). A perceção da saúde em geral é avaliada por questões mais gerais sobre a saúde atual, resistência à doença e aspeto saudável, em comparação com os restantes conceitos que englobam a componente física (função, desempenho e dor), o que poderá ser difícil de valorizar numa síndrome tão complexa como a IDCV, pelo que os autores consideram ser um dos fatores que explica a perceção da saúde geral semelhante à população de referência.

A reduzida dimensão da amostra e a ausência de aleatorização poderão ser consideradas as principais limitações deste trabalho. Contudo, foram incluídos todos os doentes seguidos num hospital central do Norte do país.

O facto de os doentes apresentarem tempos de diagnóstico e duração de tratamento com imunoglobulina diferentes pode também influenciar os resultados obtidos.

O questionário utilizado é uma escala de medida geral da qualidade de vida e não se destina a uma população específica. Pelas particularidades desta população, seria importante o uso de questionários específicos da doença.

Em 2016 foi publicado o primeiro questionário de qualidade de vida em doentes com IDCV, desenvolvido e inicialmente validado por Quinti et al. Segundo os autores, o CVID_QoL foi capaz de identificar características relevantes dos doentes com IDCV 26. No entanto, é essencial a validação prévia em diferentes populações. Ainda assim, estes resultados são importantes como primeiros dados publicados nesta área em Portugal.

CONCLUSÃO

Os doentes com IDCV constituem um grupo heterogéneo de doentes com diferenças no espetro clínico e na gravidade da doença. Embora a IDCV esteja mais associada a défices na saúde física, o presente estudo também encontrou diminuições significativas na saúde mental.

Reforçamos a importância do risco de ansiedade e depressão a que esta população está sujeita e a importância do apoio psicológico no seguimento destes doentes. Esta população apresentou valores significativamente inferiores em dois parâmetros da saúde física (desempenho físico e dor física) e em três da saúde mental (vitalidade, saúde mental e função social). Estes dados fornecem informações sobre os fatores mais afetados, o que nos poderá ajudar a melhorar a qualidade de vida dos doentes com IDCV.

Salientamos ainda a relevância de uma avaliação multidisciplinar adequada às necessidades de cada doente com o objetivo de intervir nos parâmetros afetados.

O impacto na qualidade de vida da IDCV provavelmente não é totalmente compreendido usando apenas uma escala de medida geral (MOS-SF 36). Assim, seria interessante a validação na população portuguesa de questionários específicos para a população com IDCV e, pelo enorme impacto na saúde mental e desempenho físico encontrado nesta amostra, a avaliação do núcleo familiar e identificação de necessidades poderá ajudar na implementação de estratégias e recursos para otimização da vida quotidiana dos nossos doentes.

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Recebido: 07 de Maio de 2024; Aceito: 08 de Dezembro de 2024

Autor correspondente Liliana Pereira Dias Serviço de Imunoalergologia, Unidade Local de Saúde Gaia-Espinho Rua Conceição Fernandes 4434-502 Vila Nova Gaia E-mail: liliana.pereira.dias@ulsge.min-saude.pt

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