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Revista Portuguesa de Imunoalergologia

versão impressa ISSN 0871-9721versão On-line ISSN 2184-3856

Rev Port Imunoalergologia vol.33 no.2 Lisboa jun. 2025  Epub 30-Jun-2025

https://doi.org/10.32932/rpia.2025.03.158 

ARTIGO ORIGINAL

Eficácia da imunoterapia com veneno de vespídeos: Experiência de um Hospital Central em Portugal

Efficacy of vespid venom immunotherapy: Insights from a Portuguese Central Hospital

1 Serviço de Imunoalergologia, Unidade Local de Saúde Gaia-Espinho, Espinho, Portugal

2 Serviço de Imunoalergologia, Unidade Local de Saúde Algarve, Faro, Portugal


RESUMO

Introdução:

A alergia ao veneno de vespídeos é uma causa comum de anafilaxia. A imunoterapia com veneno de vespídeos (ITVV) é o tratamento mais eficaz e seguro para prevenção de reações alérgicas graves. O objetivo deste estudo foi caraterizar doentes sob ITVV e avaliar a sua eficácia e segurança.

Métodos:

Realizou-se um estudo retrospetivo de doentes com história de reação sistémica a veneno de vespídeos submetidos a ITVV entre 2010 e 2024.

Resultados:

Foram incluídos 67 doentes, 54 homens, com mediana [mín-máx] de idade de início da ITVV de 44 [27-70] anos. As reações que motivaram a ITVV foram maioritariamente de grau IV (52,2%). Foi iniciada ITVV com veneno de Vespula spp em 43 doentes, de Polistes dominula em 12 e de Vespa velutina nigrithorax em 12. Durante a fase de iniciação nenhum doente apresentou reação sistémica. Na fase de manutenção, 2 doentes apresentaram reações sistémicas. Vinte e nove doentes foram repicados com uma mediana [mín-máx] de 24 [2-96] meses após o início da ITVV. Verificou-se uma diminuição estatisticamente significativa na gravidade das reações após ITVV (gravidade mediana [mín-máx]: 6 [3-6] antes vs. 1 [0-6] após ITVV, p<0,001). Cinco doentes foram repicados por vespídeos distintos do da reação pré-ITVV: 4 apresentaram reação local e 1 apresentou reação do tipo III. Este último estava sob ITVV Polistes e foi picado por 8 Vespas velutinas. Trinta e dois doentes completaram ou suspenderam ITVV, com redução estatisticamente significativa do valor da IgE total e específica para os vespídeos (p<0,05).

Conclusão:

Este estudo corrobora a eficácia e segurança da ITVV descritas na literatura. A realização de mais estudos e a partilha de experiências são cruciais para aumentar conhecimento e melhorar a orientação dos doentes.

Palavras-chave: Alergia; Himenópteros; Hipersensibilidade a venenos; Imunoterapia; Veneno de vespa; Reações Adversas

ABSTRACT

Introduction:

Allergy to vespid venom is a common cause of anaphylaxis. Vespid venom immunotherapy (VVI) is the most effective treatment for preventing severe allergic reactions, both safe and effective. This study aimed to characterize patients undergoing VVI and to evaluate its efficacy and safety.

Methods:

A retrospective study was conducted on patients with a history of systemic reaction to vespid venom treated with VVI between 2010 and 2024.

Results:

Sixty-seven patients were included, of whom 54 were men, with a median [min-max] age at VVI initiation of 44 [27-70] years. The reactions prompting VVI were predominantly grade IV (52.2%). VVI was initiated with Vespula spp venom in 43 patients, Polistes dominula venom in 12, and Vespa velutina nigrithorax in 12. During the initiation phase, no patients experienced systemic reactions. In the maintenance phase, two patients experienced systemic reactions. Twenty-nine patients were re-stung at a median [min-max] of 24 [2-96] months after starting VVI. There was a statistically significant decrease in reaction severity after VVI initiation (median [min-max] severity: 6 [3-6] before vs. 1 [0-6] after VVI, p<0.001. Five patients were re-stung by different vespids than those causing the initial reaction: 4 had local reactions and 1 had a type III reaction. The latter was on Polistes VVI and was stung by 8 Vespa velutina. Thirty-two patients completed or suspended VVI, with a statistically significant reduction in total and vespid-specific IgE levels (p<0,05).

Conclusion:

This study supports the efficacy and safety of VVI as described in the literature. Further studies and the sharing of experiences from different centers are essential to increase knowledge in the field and improve patient management.

Keywords: Adverse Reactions; Allergy; Hymenoptera; Immunotherapy; Wasp Venoms; Venom Hypersensitivity

INTRODUÇÃO

A alergia ao veneno de himenópteros é uma das causas mais comuns de anafilaxia em adultos e está frequentemente associada a anafilaxia grave. Os venenos dos himenópteros são constituídos por proteínas com ações tóxicas e enzimáticas, pelo que a picada, mesmo em indivíduos não alérgicos, pode desencadear reações, sobretudo locais, ou reações tóxicas quando ocorrem múltiplas picadas em simultâneo 1-3.

As imunoglobulinas E específicas (sIgE) para proteínas do veneno de vespídeos são produzidas após a picada por este inseto. Assim, dependendo dos vespídeos mais prevalentes em determinado ambiente, a sensibilização alérgica pode variar entre regiões 2.

A família Vespidae é composta por 6 subfamílias, quatro das quais estão presentes na Europa: Masarinae, Eumeniae, Polistinae and Vespinae, sendo que as primeiras duas têm um comportamento solitário pelo que não acarretam problemas de alergia. A subfamília Vespinae inclui os géneros Vespula, Dolichovespula e Vespa. A subfamília Polistinae inclui o género Polistes e Polybia 4. No sul da Europa a dupla sensibilização aos venenos de Vespula e Polistes é frequente 5.

Em 2004 a Vespa velutina nigrithorax, vulgarmente conhecida como vespa asiática, foi acidentalmente transportada da Ásia para o sul da França e confirmada a sua presença em Portugal em 2011, sendo uma predadora das abelhas, uma ameaça à biodiversidade e à saúde pública(6). Pertence à subfamília Vespinae e género Vespa.

O diagnóstico deste tipo de alergia baseia-se na obtenção de uma história clínica detalhada, nos testes cutâneos, na quantificação de sIgE séricas para os venenos e, mais recentemente, no diagnóstico por componentes moleculares 3. O problema surge quando as determinações de sIgE não são específicas ou são devidas a proteínas semelhantes presentes nos diferentes venenos, sendo este fenómeno conhecido como reatividade cruzada7)(8. A reatividade cruzada entre as subfamílias Vespina e Polistenae pode ser explicada pelo reconhecimento de proteínas homólogas presentes em ambos os venenos, destacando-se alergénios como a Fosfolipase A1 e o Antigénio 5 8. A glicosilação de alguns alergénios também pode estar na origem da reatividade cruzada entre venenos 9.

Estudos de inibição realizados num pequeno número de doentes com anafilaxia à Vespa velutina parecem demonstrar que, na população estudada, a Vespula comporta-se como o agente sensibilizante primário 9. O diagnóstico assertivo é crucial na seleção de venenos para imunoterapia com vespídeos (ITVV) e na sua eficácia. O diagnóstico molecular é útil nos casos em que o inseto responsável não foi identificado ou existem testes e análises positivas para mais que um veneno. Contribui para distinguir entre reatividade cruzada e sensibilização genuína, apoiando a escolha do veneno correto para ITVV 3. Contudo, em alguns casos, as ferramentas de diagnóstico tradicionais disponíveis são insuficientes para discriminar entre alergia a Vespula e Polistes 5.

O doseamento dos níveis de IgE total (tIgE) em combinação com os resultados da sIgE pode ser útil para melhorar e simplificar o diagnóstico. Isto é particularmente importante em relação a níveis de sIgE muito baixos, uma vez que cada nível de sIgE tem uma relevância diferente se for produzido num ambiente com valores de tIgE altos ou baixos 3)(10. Além disso, a sIgE para venenos é frequentemente observada em indivíduos assintomáticos com tIgE elevada. Assim, o doseamento de tIgE pode fornecer orientação no contexto da relação sIgE/tIgE 10) (11.

A imunoterapia é considerada um tratamento altamente eficaz e seguro na prevenção de reações graves nas repicadas em doentes alérgicos ao veneno de himenópteros.

Está indicada em doentes com história prévia de reação alérgica sistémica, para além de sintomas cutâneos com a presença de sIgE documentada 2. Nos casos que apresentem apenas manifestações cutâneas, mas em que haja grande risco de repicadas e/ou diminuição da qualidade de vida, ou em doentes que vivem longe de hospitais, a imunoterapia pode ser também considerada 2,6.

Durante o tratamento com veneno de himenópteros foram relatadas diminuições graduais na sIgE e aumentos graduais na IgG4 específica, embora essas variações ao longo do tempo nem sempre se correlacionem com uma melhoria clínica 10-13. Segundo as recomendações atuais não está preconizado o uso da sIgE, IgG ou o cálculo dos ratios como preditores de proteção durante ou após ITVV 3.

Na atualidade, os extratos de vespídeos para ITVV disponíveis comercialmente são Vespula spp, Polistes dominula e recentemente Vespa velutina nigrithorax. Os protocolos utilizados na fase de iniciação (ou indução) variam entre centros e têm em conta diferentes pautas (convencionais, cluster, rush e ultra-rush) 6.

Segundo estudos prévios, a eficácia da ITVV pode variar entre 91% e 96% 14,15.

Atualmente, pouco se sabe acerca da proteção que a ITVV com determinado veneno confere relativamente a picadas com um inseto de outra espécie. Na literatura está descrito que o extrato de Vespula spp foi eficaz em doentes com história de anafilaxia à Vespa Orientalis, Vespa Crabro e Vespa velutina 16-18.

Neste trabalho, os autores pretendem avaliar e caraterizar os doentes sob ITVV, incluindo a sua eficácia tendo em conta repicadas após o início do tratamento.

MÉTODOS

Foi desenhado um estudo retrospetivo monocêntrico que incluiu uma população de doentes com história de reação de hipersensibilidade do tipo I a veneno de vespídeos e que foram submetidos a ITVV, seguidos no serviço de Imunoalergologia de um hospital central.

Procedeu-se à consulta dos processos clínicos dos doentes elegíveis para estudo, com colheita de dados demográficos, clínicos e laboratoriais, nomeadamente: idade, sexo, tipo de vespídeo envolvido na reação, grau da reação segundo a escala de Müeller 19, achados laboratoriais incluindo imunologia, e caraterização das repicadas durante ou após o término da ITVV, até agosto de 2024.

Para avaliar a gravidade das reações e possibilitar comparações em momentos distintos, convertemos a escala qualitativa que incluía as reações locais e as reações sistémicas segundo a escala de Müeller numa escala quantitativa de gravidade 19. Seguem-se as correspondências respetivas:

Nenhuma reação - 0

Reação local não exuberante (RLNE) -1

Reação local exuberante (RLE) - 2

Reação grau I na escala de Müeller - 3

Reação grau II na escala de Müeller - 4

Reação grau III na escala de Müeller - 5

Reação grau IV na escala de Müeller - 6

À data da colheita de dados, todos os doentes tinham iniciado imunoterapia para vespídeos nos últimos 14 anos, a maioria seguindo uma pauta ultra-rush (Tabela 1). O veneno foi escolhido com base na história clínica, nos testes cutâneos e nos resultados analíticos. Nos casos em que o inseto não foi identificado, esta escolha baseou-se nos resultados da imunologia e testes cutâneos.

Tabela 1 Protocolo ultra-rush de imunoterapia com veneno de vespídeos utilizado 

Os dados foram anonimizados e posteriormente armazenados e processados nos programas Microsoft Excel 2019® e Statistical Package for Social Sciences® (SPSS) versão 28. Foi realizada estatística descritiva para caracterizar a amostra, sendo que as variáveis categóricas foram descritas como frequências absolutas e relativas. As variáveis contínuas foram descritas com base na média e desvio-padrão ou na mediana mínimo e máximo, dependendo dos requisitos de normalidade.

Os testes t para amostras emparelhadas ou Wilcoxon foram utilizados para comparação dos grupos em diferentes momentos, dependendo dos requisitos de normalidade. O valor de significância estatística foi p<0,05.

RESULTADOS

Neste estudo foram incluídos 67 doentes, 54 homens e 13 mulheres, com mediana de idade de início de ITVV de 44 anos, compreendida entre 27 e 70 anos. Da totalidade da amostra, 43 doentes iniciaram IT com veneno de Vespula, 12 com veneno de Polistes e 12 com veneno de Vespa velutina.

Todos os doentes tinham história de reação sistémica após picada de vespídeo, com maior prevalência de reações de grau IV (52,2%), seguindo-se as de grau III (32,8%), e de grau I e II (14,9%), segundo a escala de Müeller. Dez doentes (14,9 %) apresentaram um REMA score positivo (≥2), sendo que, destes, apenas 1 era mulher.

O estudo prévio ao início da ITVV revelou uma mediana [mín-máx] de tIgE de 132,0 [3,8-1818,0] kU/L; de sIgE Vespula 6,3 [0,0-62,4] kU/L; de sIgE Polistes 2,2 [0,0‑50,8] kU/L; de sIgE Vespa velutina 6,5 [1,0-31,2] kU/L; triptase basal 4,4 [0,0-22,0] ug/L.

Cinco doentes apresentaram valores de triptase basal elevados (superiores ao limite de referência definido pelo laboratório do hospital, 15 μg/L), motivo pelo qual foram encaminhados para consulta de Hematologia, com o objetivo de excluir mastocitose sistémica, tendo sido submetidos a estudo, incluindo biópsia de medula óssea.

Destes doentes, 2 apresentaram um score REMA positivo (≥2), tendo sido confirmado o diagnóstico de mastocitose sistémica em ambos; os seus valores de triptase basal eram de 22 μg/L e 16,3 μg/L. O primeiro doente completou 6 anos de ITVV com Polistes, com algumas RLNE na fase de iniciação e manutenção, sem registo de repicadas. O outro doente diagnosticado com mastocitose sistémica encontra-se no quarto ano de ITVV com Vespula, sem reações ou repicadas registadas. Esta patologia foi excluída nos 3 doentes restantes, sendo que 1 deles foi posteriormente diagnosticado com alfa-triptassemia hereditária. Oito doentes tinham REMA score ≥ 2, apesar de triptase sérica basal <15 ug/L, não tendo registo de estudo adicional até à data de colheita de dados.

A idade, o sexo, o valor da triptase basal, tIgE ou sIgE não se associaram com a gravidade da reação inicial.

Reações durante imunoterapia com veneno de vespídeos

Durante a fase de iniciação, nenhum doente teve reação sistémica, 20 (29,9%) apresentaram reação local não exuberante (RLNE) e 4,0 (6,0%) reação local exuberante (RLE).

Durante a fase de manutenção, 2 doentes (3,0%) apresentaram reações sistémicas. A primeira doente tratava-se de uma mulher de 37 anos, com reação inicial de grau III ao veneno de Polistes, que cerca de 6 meses após o inico da ITVV apresentou impressão orofaríngea, sabor metálico, sensação de calor, prurido cutâneo e lipotimia sem perda de consciência, 15 minutos após a administração de ITVV com Polistes, tendo sido tratada com adrenalina, corticoide e anti-histamínico sistémicos, com resolução total. Dado tratar-se de uma doente com adiamentos sucessivos da ITVV por intercorrências infeciosas e com episódios semelhantes ao previamente descrito em administrações posteriores, optou-se pela suspensão da ITVV. O outro, um homem de 56 anos, com reação inicial de grau III, submetido a 4 anos e 4 meses de imunoterapia com veneno de Polistes (inseto envolvido na picada inicial). A administração de ITVV decorreu sem intercorrências até ao quarto ano, quando iniciou episódios reprodutíveis de impressão orofaríngea e pigarro poucos minutos após a administração de ITVV, de difícil resolução com tratamento com adrenalina, corticoide e anti-histamínico sistémicos, que persistiu ao longo de semanas.

Pelo tempo de tratamento e pela reação apresentada, decidiu-se, em conjunto com o doente, suspender ITVV. Dos restantes doentes, 55 (82,1%) não apresentaram qualquer tipo de reação na fase de manutenção, 9 (13,4%) apresentaram RLNE e 1 (1,5%) teve RLE.

Repicadas

Registou-se um total de 29 doentes com repicadas por vespídeos: 21 (75,9%) com história de imunoterapia com Vespula; 3 (10,3%) com ITVV com Polistes e 5 (17,2%) com ITVV com Vespa velutina. Sete doentes apresentaram mais do que uma repicada em momentos diferentes. O tempo mediano [mín-máx] de ocorrência da primeira repicada foi de 24 [2-96] meses.

Verificou-se uma diminuição estatisticamente significativa na gravidade das reações quando comparando as picadas pré-início de ITVV (gravidade mediana [mín-máx]: 6 [3-6]) relativamente às repicadas após início de ITVV (gravidade mediana [min-máx]: 1 [0-6], p<0,001).

Nos doentes cujo inseto da repicada foi o mesmo da picada inicial (pré-ITVV) (n=20) verificou-se também uma diminuição estatisticamente significativa na gravidade das reações (gravidade mediana [mín-máx]: 6 [3-6] na picada pré-ITVV e 1 [0-3] na repicada após início de ITVV; p<0,01).

Destes 20 doentes, 19 (95,0%) não apresentaram reações sistémicas e o único doente restante apresentou uma reação de grau I, tendo a reação inicial sido de grau IV.

Na Figura 1 encontra-se a representação gráfica da gravidade das picadas pré-ITVV e das repicadas após início de ITVV.

Figura 1 Classificação das reações com base na gravidade pré-início de ITVV e após início de ITVV (repicadas pelo mesmo inseto responsável pela reação inicial) 

Dos doentes sob ITVV de Vespula (n=43), 17 foram repicados por Vespula vulgaris. Destes, apenas 1 doente teve repicada com reação sistémica, classificada como grau I na escala de Müeller, 2 anos após início de ITVV, sendo que a reação pré-ITVV foi classificada como grau IV. O doente fez a sua medicação de emergência (autoinjetor de adrenalina, corticoide e anti-histamínico sistémicos) com estabilização das queixas. Dos restantes 16, 5 não apresentaram quaisquer reações e os outros apresentaram reações locais. Um doente foi repicado por um vespídeo diferente da reação pré-ITVV (Tabela 2). Três doentes não identificaram o inseto da repicada, sendo que 1 destes foi repicado em 5 momentos distintos, quer durante quer após ter completado os 5 anos de ITVV, com reações sistémicas de grau IV, tendo sido assumida falência terapêutica.

Tabela 2 Grupo de doentes com repicadas cujo inseto identificado foi diferente do da reação pré-imunoterapia com veneno de vespídeos 

Notas: m - masculino; f - feminino; RLE - reação local exuberante; RLNE - reação local não exuberante; ITVV - imunoterapia com veneno de vespídeos

*cada doente iniciou imunoterapia com veneno relativo ao inseto dessa picada

**sIgE representa a IgE específica (kU/L) para o vespídeo da repicada, medido antes do início da ITVV, se disponível.

***picado por 8 Vespas velutinas

Relativamente aos doentes com história de imunoterapia com veneno de Polistes, apenas um identificou esse inseto na repicada. A reação pré-ITVV deste doente foi classificada como grau III na escala de Müeller, tendo sido repicado por um Polistes 2 anos após ter completado os 5 anos de ITVV sem qualquer tipo de reação. Os restantes 2 doentes foram repicados por insetos diferentes (Tabela 2).

Dos doentes sob ITVV com veneno de Vespa velutina, 2 apresentaram repicadas com Vespa velutina. Tratava-se de 2 doentes com reações de grau IV pré-ITVV, sendo que nas repicadas apresentaram reações locais, sem sinais de gravidade. Um doente não identificou o inseto e os restantes 2 foram repicados por himenópteros distintos (Tabela 2).

Doentes que terminaram ou suspenderam ITVV De um total de 67 doentes, 27 (40,3%) completaram e 5 (7,5%) suspenderam a ITVV, com um tempo mediano [mín-máx] de tratamento de 5 [1-6] anos. O tempo mediano [mín-máx] de tratamento dos doentes que completaram a ITVV foi de 5 [4,9-6] anos. Foram suspensas duas ITVV por intercorrências patológicas (recidiva de neoplasia e intercorrência cirúrgica); uma por incompatibilidade laboral do doente e duas por intercorrências decorrentes da administração da ITVV, já descritas previamente.

Nos doentes que completaram ITVV verificou-se uma diminuição estatisticamente significativa dos valores medianos da sIgE de Vespula (p<0,01), de Polistes (p=0,01) e IgE total (tIgE) (p<0,01), assim como do ratio sIgE / tIgE de Vespula (p<0,01), como podemos verificar na Tabela 3. O ratio sIgE / tIgE de Polistes diminuiu com a imunoterapia, contudo não se verificou uma diferença estatisticamente significativa (p=0,07).

Tabela 3 Comparação dos valores da IgE total, IgE específica (sIgE) e dos ratio IgEs/IgE total, entre os momentos pré-início da ITVV e após término da imunoterapia com veneno de vespídeos nos doentes que completaram tratamento. 

Nota: Med - mediana; min - mínimo; máx - máximo; ITVV - imunoterapia com veneno de vespídeos

DISCUSSÃO

As picadas de vespídeos podem induzir reações graves de hipersensibilidade IgE mediada, sendo a imunoterapia com o respetivo veneno o único tratamento capaz de preveni-las 1,3. Na literatura têm sido descritos fatores de risco associados a reação grave a picada de himenópteros, como idade mais avançada, sexo masculino, picada de abelha e elevação da triptase sérica 20. Neste estudo, em que foi realizada uma avaliação dirigida exclusivamente ao veneno de vespídeos, os fatores como a idade, o sexo e o valor da tríptase basal não se associaram à gravidade das reações.

O diagnóstico de mastocitose sistémica foi estabelecido em 2 doentes. A presença desta patologia em doentes com alergia a himenópteros é particularmente relevante para o diagnóstico e tratamento, pois estes doentes podem apresentar reações anafiláticas graves, mesmo na ausência de sensibilização evidente por sIgE. O diagnóstico requer uma avaliação cuidadosa, incluindo biópsia da medula óssea em casos suspeitos.

Mesmo na ausência de evidência de sensibilização por IgE, a ITVV pode ser considerada em doentes com alto risco de anafilaxia, especialmente em casos de mastocitose sistémica 21. A ITVV é habitualmente bem tolerada na maioria dos doentes com mastocitose sistémica; contudo, podem ocorrer efeitos adversos com maior frequência. Este tratamento pode ser menos protetor em doentes com mastocitose sistémica, sendo esta uma condição associada ao risco de falência da ITVV 3,21. Assim, a ITVV pode ser prolongada nestes doentes, permanecendo ainda incerto se o tratamento deve ser mantido durante toda a vida 3,21.

A imunoterapia com himenópteros pode cursar com reações adversas em 9,3% dos casos, sendo mais frequentes com veneno de abelha (14,2%) do que com veneno de Vespula (2,8%) 22. Neste estudo, a ITVV revelou-se como um tratamento seguro, sendo que na fase de iniciação não se registaram reações sistémicas e na fase de manutenção verificaram-se em 3,0% da amostra, de gravidade sobreponível à reação inicial, concordante com o que está reportado na literatura 2.22.

Durante o curso da ITVV ocorrem alterações analíticas relacionadas com a modelação imunológica provocada por esta terapêutica. Atualmente não está preconizado dosear os níveis de IgE para avaliar a aquisição de proteção pelo tratamento. Contudo, os níveis de sIgE para venenos, assim como os ratios (sIgE / tIgE), podem auxiliar a monitorização destes doentes. Deste modo, avaliámos os doentes que terminaram ITVV e concluímos que houve uma redução significativa dos valores da sIgE, tIgE e dos ratios, o que está de acordo com a informação descrita na literatura 3,10-13,23.

A imunoterapia com veneno de abelha e vespídeos tem tido bons resultados, com valores de eficácia distintos entre os dois tipos de venenos: no veneno de abelha varia entre 77% e 84%, comparado com 91 e 96% para o veneno de vespídeos 3,13,14. As razões desta diferença são ainda pouco claras. Neste estudo, verificou-se uma diminuição estatisticamente significativa na gravidade das reações nas repicadas quando comparadas com as picadas pré-ITVV, o que corrobora a eficácia deste tratamento, já descrita na literatura.

Adicionalmente, analisámos o perfil dos cinco doentes que foram repicados após o início da ITVV por um vespídeo distinto do da picada pré-ITVV e que motivou o início da mesma. Verificamos que quatro destes doentes não apresentaram qualquer reação ou tiveram apenas uma reação local. O outro apresentou uma reação sistémica, classificada como grau III segundo a escala de Müeller, com a particularidade de ter sido picado por oito Vespas velutinas, pelo que pode estar associado a um componente tóxico confundidor. Como referido previamente, tem sido demonstrada eficácia da imunoterapia com venenos de vespídeos distintos daqueles que causaram a reação 16-18. Os achados obtidos podem dever-se à ausência de reatividade cruzada entre os diferentes vespídeos ou, caso esta exista, à proteção conferida pela imunoterapia. Dado o número reduzido de casos, não é possível formular conclusões.

Este aspeto será crucial, tendo em conta a complexidade no diagnóstico, a reatividade cruzada entre os venenos e a escolha do veneno para ITVV.

Este estudo apresenta algumas limitações que devem ser consideradas na sua interpretação, entre elas a sua natureza retrospetiva, o facto de ser monocêntrico e o reduzido tamanho amostral, que pode ser insuficiente para detetar diferenças pequenas, especialmente em subgrupos de doentes. Adicionalmente, a precisão dos relatos dos doentes sobre as reações pré e após imunoterapia pode ser influenciada pela memória e pela capacidade de reconhecer e distinguir os insetos.

CONCLUSÃO

Este estudo parece corroborar a eficácia e segurança da ITVV descrita na literatura. A continuidade dos estudos sobre alergia ao veneno de vespídeos é crucial para aprofundar a compreensão dos mecanismos imunológicos subjacentes, desenvolver novas formulações de ITVV, avaliar a eficácia a longo prazo e melhorar a segurança dos tratamentos.

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Recebido: 17 de Novembro de 2024; Aceito: 26 de Janeiro de 2025

Autor correspondente Ana Cristina Coelho Serviço de Imunoalergologia Unidade Local de Saúde Gaia-Espinho Rua Conceição Fernandes 4434-502 Vila Nova Gaia E-mail: anacristinabrg@gmail.com

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