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Nascer e Crescer

versão impressa ISSN 0872-0754

Nascer e Crescer v.20 n.2 Porto jun. 2011

 

Hematoma subdural em Pediatria Diagnosticar e tratar precocemente

 

Marisa Carvalho1, Ema Leal1, Margarida Santos1, José Ramos1, Luís Távora2, Deolinda Barata1

1 Unidade de Cuidados Intensivos Pediátricos

2 Serviço de Neurocirurgia, H Dona Estefânia, CH Lisboa Central

CORRESPONDÊNCIA

 

RESUMO

Introdução: O hematoma subdural agudo não traumático é uma entidade rara em Pediatria. A presença de sintomas neuro­lógicos de instalação aguda associada a anticoagulação obriga à exclusão desta entidade.

Caso clínico: Apresentamos o caso de uma criança, do sexo masculino, de sete anos de idade, com prótese mitral mecâ­nica, medicada com varfarina, que recorreu ao serviço de urgência por cefaleias intensas e progressivas, associadas a alteração no estado de consciência e convulsões. A nível laboratorial o INR (In­ternational Normalized Ratio) era de 4,2. Foi admitida na Unidade de Cuidados Intensivos Pediátricos (UCIP) em coma com aniso­coria. Iniciou ventilação mecânica, medidas anti-edema cerebral e antiepilépticos.O exame de imagem mostrou hematoma subdural agudo à esquerda, com desvio da linha média. Foi submetida a craniotomia descompressiva, 56 horas após o início da sintomato­logia, com recuperação clínica e actualmente sem sequelas.

Conclusão: Este caso clínico ilustra a importância da sus­peição clínica de hematoma subdural em doentes anticoagula­dos, bem como a necessidade de optimização das condições cirúrgicas e da utilização das técnicas não invasivas na monitori­zação do nível de consciência.

Palavras-chave: anticoagulação, cardiopatia congénita, hematoma subdural.

 

Subdural hematoma in pediatrics – Early diagnosis and treatment

ABSTRACT

Introduction: Non-traumatic acute subdural hematoma is a rare entity in children. In the presence of acute neurological symptoms associated with long termanticoagulation, it is manda­tory to rule out this entity.

Case report: We report the case of a seven-year-old boy, with mechanical mitral valve prosthesis under warfarin treat­ment, presenting severe and progressive headache associated with altered level of consciousness and seizures. Laboratory studies revealed a high value of International Normalized Ratio(INR: 4,2). He was admitted to the Pediatric Intensive Care Unit in a coma with anisocoria. He was mechanically ventilated and started on specific measures to reduce cerebral edemain ad­dition to anticonvulsants. Cranial computerized tomography (CT scan) revealed acute left subdural hematoma, with midline shift. Fifty-six hours after the onset of symptoms, he was submitted to decompressive craniectomy. There was progressive clinical re­covery with neurological and imaging improvement and an excel­lent outcome.

Discussion: This case illustrates the importance of the clinical suspicion of a subdural hematoma in patients treated with anticoagulants, as well as the need of optimizing surgical condi­tions and the use of non invasive techniques for monitoring the level of consciousness.

Keywords: anticoagulation, congenital heart disease, sub­dural hematoma.

 

INTRODUÇÃO

O hematoma subdural resulta da acumulação de san­gue entre a membrana dural e o espaço subaracnoideu. Pode estender-se a vários lobos cerebrais, no entanto, encontra-se limitado pela foice do cérebro e pela tenda do cerebelo. Caracte­risticamente, toma a forma de um crescente bicôncavo, ao con­trário do hematoma epidural que tem uma forma biconvexa.

A hemorragia resulta da lesão de pequenos vasos, artérias ou veias (mais frequentemente estas últimas), com consequen­te sangramento para o espaço subdural e posterior aumento da pressão intracraniana, podendo resultar em morte por herniação cerebral. Pode ter uma evolução aguda, subaguda ou crónica (com instalação de um a três meses).

A etiologia varia com a idade da criança. Nos recém­-nascidos pode ocorrer em 8% dos partos de termo e não é si­nónimo de parto traumático. É frequentemente assintomático e desaparece em quatro semanas.(1) Em crianças com menos de dois anos, o traumatismo não acidental é a principal causa, pelo que a hipótese de maus tratos deve ser equacionada.(2) Em crian­ças mais velhas e adolescentes, o hematoma subdural resulta de acidentes que provocam traumatismos graves. Também pode ocorrer após pequenos traumatismos, sobretudo em crianças com factores de risco(3): alterações hematológicas (trombocito­penia, hemofilia, anticoagulação);retracção cerebral (drenagem ventricular no tratamento da hidrocefalia); atrofia cerebral, higro­ma subdural ou hematoma crónico (após hematoma agudo ou meningite), quisto aracnóideo, acidúriaglutárica tipo 1, osteogé­nese imperfeita, entre outras.

Por vezes, a história clínica não fornece informação que su­gira uma hemorragia cerebral, o que pode atrasar o diagnóstico. Frequentemente, não há menção a traumatismo.

Na criança as manifestações clínicas principais são: febre, irritabilidade, letargia, convulsões, coma, défices neurológicos, abaulamento da fontanela, aumento do perímetro craniano, he­matoma do couro cabeludo, anemia com palidez cutânea ou choque hemorrágico. Em crianças com menos de dois anos de idade deve ter-se um elevado índice de suspeição de maus tra­tos, aquando da realização do exame objectivo. A bradicardia, hipertensão e as alterações pupilares são sinais tardios pelo que não devemos esperar pelo seu aparecimento para suspeitar de hematoma subdural. A hemorragia retiniana pode estar presente em crianças vítimas de maus tratos, nomeadamente na criança abanada ("shaken baby").(4)

A punção lombar está contra-indicada e a tomografia axial computorizada cranioencefálica (TC-CE) confirma o diagnóstico revelando a típica imagem bicôncava, que pode estar associada a herniação, dependendo do tamanho do hematoma. O trata­mento depende do estado clínico e dos achados radiológicos; a vigilância clínica, as medidas antiedema (restrição hídrica, normo/hiperventilação, manitol, cloreto de sódio hipertónico) ou craniotomia descompressiva podem ser as atitudes.(5) Quando a cirurgia está indicada, esta deve ocorrer com a máxima urgên­cia. Se a atitude a tomar privilegiar o tratamento médico, e, se a criança tem um "score" inferior a oito na Escala de Coma de Glasgow - ECG, é obrigatória a monitorização da pressão intra­craniana (PIC), além da vigilância clínica e monitorização dos sinais vitais. TC-CE seriadas podem ser necessárias para monitorizar a evolução ou decidir da necessidade de tratamento mais agressivo. O seguimento posterior destas crianças justifica-se pela possibilidade de poder surgir hematoma subdural crónico e/ou higroma subdural.

 

CASO CLÍNICO

Criança do sexo masculino, sete anos de idade, com defeito completo do septo auriculo-ventricular, sujeito a correcção cirúr­gica três anos antes, tendo ficado com insuficiência mitral mode­rada. Cerca de dois meses antes do internamento, foi colocada prótese mitralmecânica. Medicada habitualmente com enalapril (5 mg, duas vezes/dia) e varfarina (5 mg/dia - três dias,alternando com 3,75 mg/dia - três dias) após colocação da prótese referida.

Recorreu a um serviço de urgência hospitalar, 48 horas an­tes do internamento, com febre (38ºC), otalgia, cefaleias inten­sas e episódio autolimitado de epistáxis. No exame objectivo, não apresentava alteração dos parâmetros vitais, estava quei­xosa, sem sinais de irritação meníngea, e com infecção das vias aéreas superiores.

Analiticamente revelava: hemoglobina (Hb) 9,8 g/dl; he­matócrito (Hct) 30%; volume globular médio 73 fl; plaquetas 523000/µl; leucócitos 14730/µl com 84,5% de neutrófilos; prote­ína C reactiva (PCR) 7 mg/dl; tempo de protrombina (TP) 49,4s; INR 4,2; tempo de tromboplastina parcial activado (APTT) 76,4s. A telerradiografia do tórax era normal. Foi programada a redução da dose de varfarina para 2,5 mg/dia (três dias), alternando com 3,75 mg/dia (três dias), terapêutica antibiótica com amoxicilina 90 mg/kg/dia e reavaliação três dias depois ou antes se se verifi­casse agravamento clínico.

Cerca de 24h depois, é novamente observada por agrava­mento da intensidade da cefaleia e da prostração. Ao exame ob­jectivo, encontrava-se febril, pouco reactiva, com rigidez da nuca e sem sinais focais. Analiticamente, observava-se: Hb 10,8 g/dl; Hct 29,7%, leucócitos 11770/µl com 84,5% de neutrófilos; plaquetas 495000/µl; PCR10 mg/dl, TP 94,7s; INR 8,25; APTT 73,6s. Iniciou terapêutica antibiótica com gentamicina (5 mg/kg/dia), cefotaxima(200 mg/kg/dia) e vancomicina (60 mg/kg/dia), assim como plas­ma fresco congelado, vitamina K e concentrado eritrocitário.

Foi transferida para UCIP do Hospital Dona Estefânia (HDE), no período pós-ictal de convulsão tonico-clónica gene­ralizada, controlada com diazepam e fenobarbital, e, ainda, sem recuperação do estado de consciência ("score" de 5 na ECG), pupilas midriáticas, assimétricas, pouco reactivas, com posterior evolução para anisocória marcada (midríaseà esquerda). A fun­doscopia era normal; os reflexos osteotendinosos eram difíceis de despertar. Não era visível hematoma no couro cabeludo. A restante observação não apresentava alterações. Por suspeita de hipertensão intracraniana devida a hemorragia secundária a alteração da coagulação, iniciou de imediato ventilação mecâni­ca, medidas anti-edema cerebral e concentrado protrombínico(Octaplex® em dose adequada ao valor de INR) com vista a rápi­da normalização da coagulação para eventual cirurgia.

Na TC-CE, realizada duas horas após admissão na UCIP, apresentava hematoma subdural agudo à esquerda com desvio da linha média e sinais de encravamento do uncus (Figura 1).

 

FIGURA 1 - Hematoma subdural agudo, hemisfério esquerdo, com desvio da linha médica, em TC-CE, corte axial

 

A craniotomia descompressiva ocorreu cerca de 45 minutos após a realização de TC-CE e da reversão da anticoagulação (56 horas após o início da sintomatologia). Realizada drenagem de todo o hematoma, sem visualização do ponto sangrante, com consequente expansão cerebral, constatando-se edema cerebral generalizado. No pós-operatório manteve as medidas anti-edema cerebral e ventilação mecânica durante quatro dias. Clinicamente, houve regressão da anisocoria e melhoria progres­siva, apesar de às 48h de pós-operatório ter havido diminuição do nível de consciência. Fez TC-CE (Figura 2) que não apresen­tava alterações. Às 32h de pós-operatório, reiniciou anticoagula­ção com enoxaparina subcutânea (1 mg/kg/dose).

 

FIGURA 2 - Secção de TC-CE sobreponível à anterior, realizada 24 horas após a cirurgia, mostrando sequelas da intervenção e resolução do hematoma

 

A monitorização do nível de consciência foi também feita com Bispectral Index™ apresentando valores médios de 40, posteriormente mais elevados à medida que se tornava mais acordada.

Foi transferida, ao sétimo dia pós-operatório, para uma en­fermaria de Pediatria, clinicamente bem, apenas com ptose pal­pebral esquerda da qual veio a recuperar, estando actualmente sem sequelas.

 

DISCUSSÃO

O caso ilustra:

1) A importância da suspeição clínica em doentes antico­agulados; a mais temível complicação do uso de anticoagulan­tes é a hemorragia intracraniana, sendo a intensidade da anti­-coagulação o maior predictor de hemorragia cerebral. Valores de INR superiores a 3,5 aumentam a sua probabilidade de ocorrência(6), especialmente se associados a outros factores de risco (quedas, hipertensão arterial, mal formação vascular, entre outras). O elevado grau de suspeição, pela clínica altamente su­gestiva de hipertensão intracraniana, justificam o início de medi­das anti-edema cerebral antes da realização da TC CE.

2) A relevância da rápida optimização das condições cirúrgi­cas, para não protelar este procedimento quando está indicado; a descontinuação da terapêutica anticoagulante uns dias antes de uma cirurgia electiva é suficiente para normalizar a coagula­ção, no entanto, uma reversão rápida pode ser necessária em situações de emergência. É frequente o uso de plasma fresco congelado, vitamina K ou factor VII activado, mas a normaliza­ção do INR obtém-se mais rapidamente com o uso do complexo protrombínico. O tempo médio para reverter o INR é 30 minutos a uma hora. O complexo protrombínico é constituído por factor II, VII, IX e X.(7) Énecessário ter em conta o potencial risco trombó­tico que advém da administração destes fármacos.

3) A utilização de técnicas não invasivas de monitorização do nível de consciência; o BispectralIndex™, largamente usado em bloco operatório, avalia os efeitos dos anestésicos sobre a actividade do cérebro mediante análise da frequência de onda do electroencefalograma, ajudando a adequar a dose de anes­tésico. O seu valor varia de zero a 100, correspondendo zero a ausência de actividade cerebral e 100 a totalmente acordado. Recentemente, tem-se assistido ao seu uso em unidades de cui­dados intensivos pediátricos sendo um complemento muito útil, quando disponível.(8,9)

4) A imprevisibilidade da evolução das patologias pediátricas; o hematoma subdural agudo tem uma taxa de mortalidadede 10 a 20%, sendo as sequelas muito frequentes. São factores de mauprognóstico a existência de coma, alterações pupilares, hiperten­são intracraniana, alterações significativas na TC e o período até à cirurgia descompressiva. No caso clínico aqui apresentado, o tempo decorrido entre a apresentação dos sintomas e a cirurgia foi demasiado longo o que, ab initio, faria prever um desfecho des­favorável, ou até mesmo fatal, e que não aconteceu.

 

BIBLIOGRAFIA

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9. Hsia SH, Wu CT, Wang HS, Yan DC, Chen SC. The use of bispectral index to monitor unconscious children. Pediatr Neurol 2004; 31:20-3.         [ Links ]

 

CORRESPONDÊNCIA

Marisa Carvalho

miacarvalho@yahoo.com

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