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Nascer e Crescer
versão impressa ISSN 0872-0754
Nascer e Crescer vol.20 no.4 Porto 2011
Hipotermia terapêutica na encefalopatia hipóxico-isquémica
Susana Sousa1, Ana Vilan1
1 S. Neonatologia, Hospital de São João
RESUMO
A encefalopatia hipóxico-isquémica é uma patologia prevalente e com uma morbi-mortalidade associada muito elevada, acarretando custos pessoais, sociais e financeiros consideráveis. Além do tratamento intensivo de suporte, há evidência crescente de que a hipotermia, iniciada poucas horas após o evento hipóxico-isquémico e mantida durante 72 horas, pode reduzir a perda neuronal e melhorar o prognóstico neurológico. O sucesso terapêutico depende do reconhecimento precoce dos recém-nascidos em risco, da sua estabilização apropriada, do controlo da temperatura corporal, permitindo o arrefecimento passivo, da comunicação atempada com os centros de tratamento e transporte adequado. O objectivo desta revisão é difundir o conhecimento actual sobre o uso da hipotermia terapêutica na encefalopatia hipóxico-isquémica junto da comunidade pediátrica, dado o potencial envolvimento de todos os pediatras no reconhecimento e referenciação atempada destes recém-nascidos.
Palavras-chave: Hipotermia, hipoxia-isquemia, encefalopatia, asfixia perinatal.
Therapeutic hypothermia in hypoxic-ischemic encephalopathy
ABSTRACT
Hypoxic-ischemic encephalopathy is a prevalent pathology with high morbid-mortality, and resulting in high personal, social and financial costs. Besides the intensive support care, there is now compelling clinical evidence that hypothermia initiated within a few hours after severe hypoxia-ischemia and maintained for 72 hours, can reduce neuronal loss and improve neurological outcome. Timely recognition of infants at risk, proper stabilization and control of body temperature, allowing passive cooling, communication with referral centers with resources to provide this therapy and proper care on transport will contribute to the benefits of this intervention. The aim of this review is to spread information about the use of therapeutic hypothermia in hypoxic-ischemic encephalopathy to the paediatric community, since pediatricians have an important role in recognition and rapid referral of these babies.
Keywords: Hypothermia, hypoxia-ischemia, encephalopathy, perinatal asphyxia.
INTRODUÇÃO
A encefalopatia hipóxico-isquémica (EHI) é uma causa importante de morte e incapacidade nos recém-nascidos (RN) de termo. Apesar dos avanços na monitorização fetal e cuidados neonatais, a sua incidência tem-se mantido relativamente constante nas últimas décadas, estimando-se em 1 a 3/1000 nados vivos nos países desenvolvidos.(1)Na EHI moderada a severa o risco de morte ou incapacidade grave é de cerca de 60% e mesmo nos sobreviventes sem comprometimento motor, são frequentemente detectados índices cognitivos mais baixos, mau rendimento escolar e necessidade de apoio educativo especial, acarretando custos pessoais, sociais e financeiros consideráveis.(2-5)
Até há pouco tempo não havia tratamento específico para a asfixia perinatal, sendo a abordagem limitada aos cuidados intensivos de suporte. O conhecimento crescente dos processos fisiopatológicos envolvidos na lesão neuronal pós-asfixia permitiram estudar novas modalidades terapêuticas neuroprotectoras.
Actualmente, a hipotermia representa a única intervenção terapêutica que se demonstrou capaz de alterar o prognóstico dos RN com EHI(6-8), sendo recomendada como terapêutica standard na EHI moderada a grave desde 2008.(9) No nosso país a sua implementação prática teve início no final de 2009. Actualmente é realizada em quatro Centros de Referência (Hospital de Santa Maria, Maternidade Alfredo da Costa, Hospital Pediátrico de Coimbra e Hospital de São João). Dado que uma grande parte dos RN que irão realizar hipotermia nascem fora de Centros com hipotermia, são os médicos responsáveis pela assistência ao parto (neonatologistas/pediatras gerais) os principais determinantes do acesso à terapêutica. O sucesso da hipotermia vai depender do reconhecimento precoce dos RN em risco, da sua estabilização apropriada, do controlo da temperatura corporal, permitindo o arrefecimento passivo, da comunicação atempada com os Centros de Referencia e transporte adequado.
Assim, é fundamental difundir o conhecimento actual sobre o uso da hipotermia terapêutica na EHI, sobretudo no âmbito da Comunidade Pediátrica Geral, dado o potencial envolvimento de todos os pediatras que prestam assistência ao parto no reconhecimento e referenciação atempada destes RN.
FISIOPATOLOGIA DA LESÃO HIPÓXICO-ISQUÉMICA
A principal descoberta que levou à exploração da hipotermia como terapêutica neuroprotectora foi a de que a lesão na EHI não decorre de um evento isolado mas é um processo evolutivo. Sabe-se hoje que após um insulto hipóxico-isquémico, apesar de poder haver morte neuronal numa primeira fase, muitos neurónios conseguem recuperar, pelo menos parcialmente, numa fase de latência, para morrerem horas ou dias mais tarde(10) (Figura 1). A constatação da ocorrência de recuperação neuronal sugeriu que pudesse haver um período de tempo (janela terapêutica) no qual fosse possível intervir de forma a prevenir ou atenuar a progressão para a lesão cerebral definitiva.
Figura 1 Esquema das fases fisiopatológicas da lesão hipóxico-isquémica
Durante a fase primária da lesão hipóxico-isquémica há uma redução marcada do oxigénio e do metabolismo, com depleção de metabolitos altamente energéticos. Consequentemente ocorre despolarização celular progressiva, que leva à acumulação extracelular de aminoácidos excitatórios e perda da homeostasia iónica através da membrana celular, com entrada de água e sais para a célula (edema citotóxico), acumulação intracelular de cálcio e saída de potássio. Terminado o insulto, na fase de reperfusão, durante cerca de 30 a 60 minutos é restabelecido o fluxosanguíneo e o metabolismo energético cerebral, seguindo-se uma fase de latência em que há novamente hipoperfusão secundária. Nesta fase verifica-se uma redução no consumo de oxigénio(11), mas sem alteração no metabolismo oxidativo cerebral.(12) Apesar de ser uma fase clinicamente silenciosa, é nela que se iniciam os principais mecanismos que acabam por levar posteriormente à morte celular definitiva: cascata apoptótica, inflamação pós-isquémica e hiperactividade dos receptores excitatórios. A fase de latência tem uma duração de 6 a 15 horas, dando lugar a uma fase de deterioração que conduz invariavelmente à lesão cerebral definitiva. Esta fase secundária pode durar dias e caracteriza-se pelo aparecimento de convulsões, edema citotóxico secundário, acumulação de citotoxinas excitatórias, falência mitocondrial e morte celular.(10,11,13,14)
A fase de latência, antes do inicio da deterioração secundária irreversível, constitui o período de janela terapêutica no qual é possível a aplicação da hipotermia terapêutica. Apesar de os efeitos neuroprotectores da hipotermia não estarem ainda completamente estabelecidos, sabe-se que intervém essencialmente sobre os mecanismos de lesão que se iniciam na fase latente e que levam à lesão definitiva (apoptose, inflamação e hiperactividade dos receptores excitatórios). Outros efeitos conhecidos da hipotermia, ainda que sem valor protector independente, são a redução do metabolismo cerebral, supressão do edema citotóxico, inibição da produção de radicais livres e da libertação de toxinas excitatórias, com modulação do potencial convulsivo.(15)
EVOLUÇÃO DA HIPOTERMIA TERAPÊUTICA
A primeira aplicação da hipotermia em estudos animais ocorreu há mais de 60 anos, tendo sido possível anos mais tarde demonstrar que a hipotermia iniciada após um episódio de asfixia em animais RN melhorava a sobrevida comparativamente aos animais com temperatura normotérmica.(16,17) Na década de 60 foi feito um ensaio clínico humano, não controlado, com aplicação de hipotermia em RN de termo que não respondiam às manobras de ressuscitação ao nascimento. A hipotermia foi induzida pela imersão corporal (à excepção da boca e nariz) num banho de água com temperaturas entre os 10 e os 15ºC. A avaliação feita à idade média de 42 meses (intervalo 18,5-105 meses) revelou uma sobrevida de 94% e sequelas neurológicas em apenas 3%.(18) Apesar destes resultados animadores, na década seguinte a investigação nesta área foi praticamente extinta, devido à melhoria da sobrevida dos RN pré-termo e ao reconhecimento da importância da manutenção de um ambiente térmico neutro nesta população, que foi depois extrapolada para os RN de termo, bem como ao relato de efeitos adversos específicos relacionados com a exposição ao frio.(19-20)
Os estudos animais sobre os efeitos neuroprotectores da hipotermia foram retomados anos mais tarde(11), impulsionados pelo conhecimento crescente dos mecanismos de lesão hipóxico-isquémica, desta vez com recurso a reduções mais modestas da temperatura (2-6ºC), sendo os resultados de tal maneira promissores que rapidamente constituíram a base da investigação clínica humana. Foram feitos estudos piloto(21,22), que estabeleceram a aplicabilidade e segurança da hipotermia, permitindo a realização de estudos clínicos controlados randomizados para determinar a sua eficácia.(6-8)
Nos três principais estudos realizados (CoolCap(6), NICHD(7)National Institute of Child Health and Human Development e TOBY(8) Total Body Hypothermia for Neonatal Encephalopathy Trial) a metodologia é muito semelhante, nomeadamente no que diz respeito à população seleccionada: RN com idade gestacional igual ou superior a 36 semanas, com documentação de asfixia (baixo índice de Apgar ou necessidade de ressuscitação prolongada ou ventilação) ou acidose metabólica grave na 1ª hora de vida e clínica de encefalopatia moderada ou grave; no CoolCap(6) e no TOBY(8) era também necessária a documentação neurofisiológica da encefalopatia usando electroencefalograma de amplitude integrada (aEEG). Todos os RN foram recrutados até às seis horas de vida, de acordo com o estabelecido pelos estudos experimentais(11,23,24) e a terapêutica foi mantida durante 72 horas. O método de arrefecimento, a temperatura alvo e o local de monitorização da temperatura foi diferente nos três estudos, tendo o re-aquecimento ocorrido de forma semelhante, a um ritmo de 0,5ºC por hora.
Os três estudos tiveram como objectivo primário avaliar o resultado combinado de morte e alterações moderadas a graves do neurodesenvolvimento aos 18 meses. Em todos eles foi possível documentar a sua redução no grupo sujeito a hipotermia, apesar de apenas no estudo NICHD(7) essa redução ter significado estatístico (Quadro 1). Uma preocupação global antes destes ensaios estarem concluídos era a possibilidade de a hipotermia permitir a sobrevida de RN que sem terapêutica estariam destinados a morrer, aumentando a incidência de sequelas graves nos sobreviventes; constatou-se, no entanto, que a redução da mortalidade foi também acompanhada de uma redução das sequelas nos sobreviventes.
Quadro 1 Morte e sequelas nos estudos CoolCap, NICHD e TOBY
Além dos estudos clínicos, a eficácia e segurança da hipotermia foi também demonstrada através de várias meta-análises sistemáticas independentes.(25-29) Por esse motivo, e também por não haver outra possibilidade terapêutica numa patologia com elevada morbi-mortalidade asssociada, muitos dos Centros envolvidos nos estudos clínicos continuaram a usar a hipotermia enquanto aguardavam os resultados dos ensaios em que tinham participado.(30) Por outro lado, alguns ensaios ainda em curso foram interrompidos, por não considerarem ético continuar a randomizar RN asfixiados para normotermia, dada a evidência crescente dos benefícios neuroprotectores da hipotermia.
Em 2008 o grupo ILCOR (International Liaison Committee on Resuscitation) fez uma revisão dos consensos publicados menos de dois anos antes, considerando existir evidência suficiente para recomendar a introdução da hipotermia induzida na prática clínica, passando a ser considerada terapêutica standard na EHI moderada a grave.(9)
HIPOTERMIA TERAPÊUTICA
Selecção de pacientes
Como já foi referido, os principais ensaios clínicos efectuados(6-8) utilizaram uma combinação de dados clínicos, bioquímicos e electrofisiológicos para seleccionar RN com EHI e elevado risco de morte ou incapacidade, ou seja, um grupo de RN em que seria lícito experimentar uma terapêutica nova e com potenciais efeitos adversos graves. Com base nos protocolos de selecção desses ensaios, validados e testados, consideram-se elegíveis para inclusão os RN com idade gestacional igual ou superior a 36 semanas, com menos de 6 horas de vida e sem anomalias cromossómicas ou físicas.
Os RN prematuros não foram incluídos nos grandes ensaios clínicos efectuados, devido ao reconhecimento da importância da regulação térmica neste grupo de RN(19) e à possibilidade de ocorrência de efeitos deletérios associados à hipotermia. No entanto, recentemente foi publicado um ensaio piloto no qual RN com idade gestacional média de 27 semanas foram submetidos a hipotermia induzida de 34ºC durante 48 horas, no âmbito de uma intervenção cirúrgica a perfuração intestinal por enterocolite necrosante (ocorrida a uma idade pós-natal média de 31 dias), não se tendo verificado efeitos adversos relativamente ao grupo controlo.(31)
Em relação ao timing de início da hipotermia, os estudos experimentais associam o início precoce a um melhor prognóstico.(11,23,24) Em todos os ensaios clinicos efectuados os RN foram recrutados até às 5,5-6 horas de vida, mas as TOBY register guidelines, fora do contexto do ensaio clínico, contemplam a inclusão dos RN até às 12 horas de vida, dependendo a decisão do neonatologista responsável.(30)
Os RN com anomalias cromossómicas ou físicas não foram incluídos nos ensaios clínicos, já que essas anomalias poderiam afectar adversamente o resultado e confundir o efeito da hipotermia. Contudo, com a experiência acumulada dos vários Centros de tratamento, foi-se permitindo a inclusão de RN com anomalias congénitas sem indicação para suspensão de cuidados intensivos e com patologia cirúrgica, desde que o tratamento com hipotermia não impeça as intervenções necessárias.(32)
A avaliação dos RN a incluir para hipotermia terapêutica é feita de forma sequencial (Quadro 2). Se existir pelo menos um dos seguintes critérios: Índice de Apgar ≤ 5 aos 10 minutos de vida; necessidade continuada de reanimação (incluindo entubação endotraqueal ou ventilação com máscara) aos 10 minutos de vida; acidose metabólica grave na 1º hora de vida (pH < 7,00 ou défice de bases ≥ 16 mmol/L), documentada no sangue do cordão umbilical ou em outra amostra de sangue, capilar, venoso ou arterial, deve ser feita uma avaliação do estado neurológico do RN. A existência de alteração do estado de consciência (letargia, estupor ou coma), associada a pelo menos um dos seguintes sinais: hipotonia, reflexos anormais incluindo oculomotores e pupilares, sucção fraca ou ausente ou convulsões, permite fazer o diagnóstico de encefalopatia moderada a grave com indicação para hipotermia terapêutica. Para evitar subjectividade na avaliação neurológica alguns Centros de tratamento utilizam a escala de Thompson(33), sendo a encefalopatia moderada a grave definida por um índice >7 (Quadro 3).
Quadro 2 Critérios de inclusão para tratamento com hipotermia
Quadro 3 Escala de Thompson, in Thompson et al, Acta Pediatr 1997
Alguns estudos (CoolCap(6) e TOBY(8)) incluíram nos critérios de selecção a realização de aEEG para confirmação da encefalopatia. Existe evidência de que a combinação da avaliação electroencefalográfica com a avaliação clinica do estado neurológico melhora a especificidade predictiva de encefalopatia persistente.(34) No CoolCap(6) a análise de sub-grupos sugeriu um maior efeito da hipotermia nos RN com alterações moderadas no aEEG em relação aos que tinham alterações graves (traçado de supressão grave) e convulsões na altura do recrutamento.(6)
A monitorização por aEEG deve ser iniciada, sempre que possível, no Centro de tratamento, após ser considerado o diagnóstico de EHI, não devendo, no entanto, atrasar a implementação da hipotermia induzida. A presença de uma das seguintes alterações sugere encefalopatia moderada a grave: actividade epiléptica sobre um traçado normal, traçado de base moderadamente anormal, traçado de supressão ou actividade epiléptica contínua. A monitorização com aEEG deve ser mantida durante todo o tratamento pois permite não só avaliar a gravidade da encefalopatia, como diagnosticar crises convulsivas sub-clínicas e resposta ao tratamento.
Técnicas de hipotermia terapêutica
Existem diferentes métodos para indução da hipotermia, com resultados sobreponíveis.(6-8) A hipotermia pode ser sistémica, com arrefecimento corporal total até uma temperatura alvo de 33-34ºC(7,8) ou cerebral selectiva, através de um capacete de arrefecimento até uma temperatura de 34-35ºC.(6) A temperatura deve ser monitorizada continuamente através de uma sonda de determinação de temperatura central (rectal ou esofágica), indicadora fiável da temperatura cerebral. As sondas devem ser mantidas na sua posição, evitando deslocações.(35)
Actualmente há também vários aparelhos de hipotermia disponíveis no mercado. O aparelho ideal deve permitir uma rápida indução do arrefecimento até à temperatura desejada, a manutenção da temperatura central sem flutuações durante o tempo necessário e o re-aquecimento de forma lenta e controlada. Além disso, a temperatura ambiente deve ter pouca influência na eficácia da hipotermia e o aparelho deve ter alarmes sonoros que avisem caso haja deslocação acidental da sonda de temperatura.(35)
Os estudos experimentais indicam que quanto mais cedo se iniciar a hipotermia melhor o prognóstico(23), sabendo-se também que a janela de oportunidade é inversamente proporcional à gravidade da lesão hipóxico-isquémica.(36) De maneira a iniciar a hipotermia o mais precocemente possível e maximizar o seu efeito neuroprotector, nos RN de hospitais geograficamente distantes dos Centros de tratamento o arrefecimento deve ser iniciado no hospital de origem e mantido durante o transporte. Assim, se ao fim de 10 minutos de vida o RN preenche os critérios de selecção, deve-se contactar o Centro de referência e iniciar medidas de hipotermia passiva. A hipotermia passiva consiste na remoção das fontes externas de calor (calor radiante, incubadora), mantendo o RN apenas com fralda, de maneira a permitir o seu arrefecimento natural até 34ºC. A temperatura deve ser monitorizada através de um termómetro rectal introduzido 2 cm e registada de 15 em 15 minutos. Deve-se manter o RN adequadamente sedado com morfina, já que o stress da exposição ao frio pode inibir o efeito protector da hipotermia terapêutica.(37)
Efeitos sistémicos e complicações
A hipotermia induz alterações fisiológicas que levam a uma diminuição do metabolismo em geral, pelo que é de esperar nos RN em tratamento uma diminuição do ritmo cardíaco, tendência para hipoglicemia, alteração dos tempos de coagulação e trombocitopenia, sendo todas estas alterações reversíveis e passíveis de tratamento. Além disso a própria asfixia, como disfunção multiorgânica que é, acaba por ter um envolvimento multisistémico, com afectação renal, cardiovascular, pulmonar, hepática, digestiva, entre outras.(38)
A hipotermia lentifica o nó sinusal auricular e a condução intracardíaca, originando uma bradicardia sinusal fisiológica benigna; o intervalo QT pode ser prolongado e pode ocorrer hipotensão durante o tratamento.(39) Em relação às alterações hematológicas induzidas pela hipotermia contam-se a disfunção plaquetária, o aumento da actividade fibrinolítica, inibição das reações enzimáticas da cascata da coagulação, originando um aumento do tempo de protrombina e tromboplastina parcial, e trombocitopenia.(39)
De acordo com as várias meta-análises efectuadas aos principais ensaios clínicos, a bradicardia sinusal e a trombocitopenia são os efeitos sistémicos que ocorrem mais frequentemente nos doentes hipotérmicos em relação aos normotérmicos, não se tendo no entanto documentado qualquer impacto clinicamente significativo.(26-29) A ocorrência desses efeitos foi semelhante nos estudos que utilizaram hipotermia sistémica e hipotermia cerebral selectiva.(6-8)
O arrefecimento corporal influencia os resultados de algumas análises laboratoriais, como os gases do sangue, os electrólitos séricos, a glicose e o lactato.
Por cada grau Celsius de diminuição da temperatura ocorre uma redução de 5 a 8% na taxa de metabolismo, o que leva à diminuição da taxa de produção de CO.(40) A diminuição da temperatura altera também a solubilidade dos gases, condicionando por cada grau Celsius de redução da temperatura um aumento de 0,015 no pH e uma diminuição de 4% e 7% na PaO2 e PaCO2, respectivamente.(41) Assim, ao analisar a gasimetria é necessário fazer correção para a temperatura central (33,5ºC), o que pode ser feito de forma automática pelo aparelho.
A homeostasia dos electrólitos e da glicose é também afectada pela hipotermia. A diminuição da temperatura corporal causa um desvio do potássio para dentro da célula, com tendência a hipocaliemia, podendo a sua correção agressiva dar origem a uma hipercaliemia rebound na fase de aquecimento. Outras alterações laboratoriais frequentemente encontradas são a hipocalcemia, hipomagnesemia e hipoglicemia.(39)
As complicações do arrefecimento exagerado em RN foram descritas pela primeira vez há mais de 50 anos atrás.(20) Os efeitos do chamado cold-injury syndrome incluem: escleroma, eritema cutâneo e acrocianose; hemorragia pulmonar; insuficiência renal; aumento da viscosidade sanguínea e coagulação intravascular disseminada; hipoglicemia; distúrbios ácido-base e electrolíticos; risco aumentado de infecções e distúrbios cardiovasculares significativos.(42-44) A ocorrência dessas complicações é proporcional ao grau de arrefecimento, ocorrendo geralmente em situações de controlo inadequado da temperatura.(39)
A necrose gorda subcutânea é também uma complicação descrita em alguns RN, após o tratamento com hipotermia terapêutica.(39) A substância gorda do RN é composta de ácidos gordos saturados (ácidos esteárico e palmítico), com um ponto de fusão relativamente elevado, pelo que a exposição a uma superfície fria pode induzir a sua cristalização e dar origem a áreas de necrose. A necrose gorda subcutânea tem habitualmente um curso auto-limitado, mas pode complicar-se de hipercalcemia ou outras alterações metabólicas.
OUTRAS TERAPÊUTICAS NEUROPROTECTORAS
Apesar do benefício terapêutico inequívoco, a hipotermia não protege completamente o cérebro lesado e há evidência de que os RN com as formas mais graves de EHI poderão manter um prognóstico reservado apesar da terapêutica.(6-8) São então necessárias outrasterapêuticas neuroprotectoras, utilizadas concomitantemente com a hipotermia ou até em alternativa. Há vários tratamentos potenciais em estudo, incluindo mediadores biológicos como a eritropoietina(45)e a melatonina(46), N-acetilcisteína(47) e o gás Xenon(48). É necessário continuar a investigação nesta área, de maneira a desenvolver novos tratamentos que em sinergismo com a hipotermia permitam aumentar o seu efeito neuroprotector.
CONCLUSÃO
Os resultados dos vários trabalhos publicados até à data são consistentes e demonstram os efeitos benéficos da hipotermia na redução da morte e défices do neurodesenvolvimento nos RN com EHI moderada a grave.
Os pediatras são os principais determinantes do acesso à terapêutica: além do reconhecimento dos RN de risco, têm um papel fundamental na estabilização apropriada e início de hipotermia passiva, contribuindo para o sucesso da intervenção terapêutica.
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Susana Sousa
E-mail: susanasous@hotmail.com