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Nascer e Crescer
versão impressa ISSN 0872-0754
Nascer e Crescer vol.21 no.3 Porto set. 2012
Recorrência do refluxo gastro-esofágico após fundoplicatura em crianças
João Moreira-Pinto1,2, Angélica Osório1, José Ferreira de Sousa1, Carlos Enes1, Fernando Pereira3, José Cidade-Rodrigues1
1 S. Cirurgia Pediátrica, CH Porto
2 Instituto de Investigação em Ciências da Saúde e da Vida, Escola de Ciências da Saúde, U Minho
3 S. Gastroenterologia Pediátrica, CH Porto
RESUMO
Introdução e Objectivos: A fundoplicatura de Nissen é o tratamento padrão da hérnia do hiato e da doença do refluxo gastro-esofágico resistente à terapêutica médica. A recorrência da doença (rRGE) é um problema comum. O objectivo deste estudo foi perceber em que doentes a rRGE será mais provável e porquê?
Material e métodos: Análise retrospectiva dos processos dos doentes submetidos a fundoplicatura de Nissen entre Fevereiro de 2000 e Março de 2009, na nossa Instituição. Dividiram-se os doentes em: grupo rRGE e grupo controlo (sem sinais clínicos ou imagiológicos de rRGE). Compararam-se os dois grupos quanto ao sexo, idade e percentil de peso à data da cirurgia, presença de hérnia do hiato, outras comorbilidades, presença de compromisso neurológico, história de convulsões, de medicação pulmonar crónica, de necessidade de O2 e/ou antibióticos cronicamente no período pré-operatório, técnica usada (aberta ou laparoscópica), colocação de gastrostomia, usando o teste exacto de Fischer.
Resultados: 65 doentes foram submetidos a fundoplicatura de Nissen. Foram incluídos no grupo rRGE 10 doentes (15,4%). Dos parâmetros em análise, apenas foi encontrada diferença significativa em relação à colocação de gastrostomia prévia ou simultaneamente (50% no grupo rGE versus 13%, p=0,015).
Conclusões: No nosso estudo, a rRGE foi maior nos doentes a quem foi colocada gastrostomia prévia ou simultaneamente. Este pode ser um sinal indirecto de um compromisso neurológico mais grave, embora não fosse encontrado significado estatístico para os restantes parâmetros comparados. Serão necessários mais estudos e com um maior número de casos para conclusões mais seguras.
Palavras-chave: Adolescente, criança, compromisso neurológico, gastrostomia, hérnia do hiato, recorrência, refluxo gastroesofágico.
Recurrence of gastroesophageal reflux after fundoplication in a paediatric population
ABSTRACT
Introduction and aim: Nissen fundoplication is the standard treatment of hiatal hernia repair and treatment of gastroesophageal reflux resistant to medical therapy. Recurrence of the disease (rGER) is a common problem. The aim of this study was to understand in which patients rGER will most probably appear and why.
Material and methods: Retrospective analysis of the charts of patients submitted to Nissen fundoplication between February 2000 and March 2009 in our Hospital. Patients were divided in: rGER group and control group (without rGER). We compared both groups, concerning gender, age, and weight at the time of surgery, diagnosis of hiatal hernia, other comorbidities, presence of severe neurological failure, frequent seizures, chronic pulmonary medication, O2 supplementation, and/or chronic antibiotherapy pre-operatively, surgical technique (open or laparoscopic), gastrostomy tube placement, using exact Fischers test.
Results: 65 patients were submitted to Nissen fundiplication. Ten patients were included in the rGER group (15,4%). After analyzing the above parameters, we found only find statistical significance for gastrostomy tube placement previous or simultaneously to the fundoplication (50% in rGER group versus 13% in control group, p=0,015).
Conclusions: In our study, rGER was higher in patients in whom a gastrostomy tube was placed previous or simultaneously. This could be an indirect sign of a worse neurological impair, although no statically difference was found in the other parameters. Further studies with more cases will be necessary for more reliable conclusions.
Keywords: Adolescent, child, gastroesophageal reflux, gastrostomy, hiatal hernia, mentally disabled persons, recurrence.
INTRODUÇÃO
A doença do refluxo gastro-esofágico (DRGE) é definida como o conjunto de efeitos patológicos da passagem involuntária de conteúdo gástrico para o esófago (1). Na população pediátrica, a DRGE tem uma variedade grande de formas de apresentação, incluindo: vómitos persistentes, atraso no crescimento, dor abdominal ou pirose, hemorragia gastrointestinal, disfagia e broncospasmo (2). Quando à DRGE se associa a presença de hérnia do hiato ou quando a terapêutica médica falha, o tratamento indicado é a cirurgia anti-refluxo (3). A fundoplicatura de Nissen (aberta ou laparoscópica) é uma das cirurgias mais realizadas por cirurgiões pediatras (Figura 1) (4). A primeira fundoplicatura de Nissen laparoscópica foi realizada no adulto em 1991, e 2 anos depois, na criança (5).
Figura 1 Imagem endoscópica de uma fundoplicatura de Nissen, com as típicas pregas do fundo gástrico torcidas à volta do endoscópio em retroversão.
A incidência de recorrência do refluxo gastro-esofágico (rRGE) em doentes submetidos a procedimentos anti-refluxo varia entre 3,2% e 45% (6, 7). Vários factores de risco para rRGE têm sido apontados: compromisso neurológico grave, existência de patologia pulmonar prévia, idade precoce, história de mal-formações esofágicas congénitas, presença de hérnia do hiato, vómito forçado (retching) pós-operatoriamente, a colocação de gastrostomia prévia ou durante a cirurgia anti-refluxo e a necessidade de dilatações no período pós-operatório (8-13). No entanto, os estudos publicados não são concordantes na definição dos factores mais determinantes, nem sobre a estratégia a determinar nesses casos específicos (13).
O objectivo deste estudo foi perceber em que doentes submetidos a cirurgia anti-refluxo será mais provável a recorrência da doença e porquê, de forma a saber se existe alguma sub-população de doentes que mereça uma abordagem alternativa à fundoplicatura de Nissen.
MATERIAL E MÉTODOS
Foi realizada uma análise retrospectiva dos processos dos doentes submetidos a fundoplicatura de Nissen entre Fevereiro de 2000 e Março de 2009, no nosso Hospital Pediátrico. Os doentes foram distribuídos por dois grupos: doentes com recorrência da doença (rRGE) e os doentes sem rRGE (controlo). Os critérios de inclusão no grupo de rRGE foram: re-operação por recorrência do RGE, RGE confirmado por endoscopia alta ou outro exame auxiliar de diagnóstico, reinstituição de terapêutica anti-refluxo por mais de 8 semanas após a cirurgia.
Os dois grupos foram posteriormente comparados quanto ao sexo, idade e percentil de peso à data da cirurgia, à presença de hérnia do hiato ou outras comorbilidades, à presença de compromisso neurológico grave, à história de convulsões, de medicação pulmonar crónica, de necessidade de O2 e/ou antibióticos cronicamente no período pré-operatório, à técnica usada (aberta ou laparoscópica), à colocação de gastrostomia (prévia ou simultaneamente). Para efeitos de comparação estatística foi usado o teste exacto de Fischer, considerando-se significado estatístico quando p<0,05.
RESULTADOS
Durante o período em análise, 65 crianças foram submetidas a fundoplicatura de Nissen na nossa Instituição. Dez doentes foram incluídos no grupo rRGE, o que equivale a uma incidência de recorrência de 15,4%. Destes, dez tinham exames auxiliares de diagnóstico que mostravam a rRGE, dez necessitaram de retomar medicação anti-refluxo e três foram reoperados por rRGE. Todas as revisões de fundoplicatura foram realizadas por via laparotómica.
Os parâmetros comparados estão resumidos no Quadro 1. Nenhum dos doentes em rRGE tinha doença muscular ou doença cardíaca.
Quadro I Comparação entre doentes com recorrência da doença (rRGE) e os doentes sem rRGE (controlo).
DISCUSSÃO
Os factores de risco para recorrência de DRGE têm sido alvo de um intenso debate. Tem sido genericamente aceite que crianças com compromisso neurológico grave, que representam 24-54% dos doentes pediátricos submetidos a fundoplicatura, têm um risco maior de rRGE (2). No entanto, alguns estudos recentes apontam para o facto de o compromisso neurológico grave não ser um factor de risco independente para rRGE, sendo-o apenas quando associado a convulsões (12, 14). Em 2007, Ngerncham et al. levaram a cabo um estudo retrospectivo de 116 casos e 209 controlos emparelhados para o cirurgião, para o tipo de procedimento (aberto/laparoscópico), técnica (parcial/completa), e data aproximada da intervenção (13). Este estudo concluiu que são factores de risco independente para rRGE a idade menor que 6 anos, a presença de hérnia do hiato, o vómito forçado pós-operatório e a dilatação esofágica. Mais, o estudo afirma que o compromisso neurológico não é só por si um factor de risco para rRGE.
O objectivo principal do nosso estudo foi perceber se, na nossa população, alguns dos factores descritos representam risco para rRGE. Não foi incluído nos parâmetros avaliados o vómito forçado pós-operatório. Este conceito traduzido do Inglês retching é um comportamento mal definido, que parece ter origem neurológica central e é comum nos doentes neurológicos graves, quer pré- quer pós-operatoriamente (15). Na maioria das vezes ele é confundido com engasgamento ou expressões faciais de dor e é desvalorizado pelos pais e pelos clínicos. Daí que, não poderíamos afirmar com certeza que eles não existissem só pelo facto de não os vermos registados no processo clínico.
A taxa de incidência de rRGE encontrada no nosso estudo (15,4%) é baixa. Se tivermos em conta apenas os doentes neurologicamente comprometidos operados (n=48), a taxa de incidência de rRGE é de apenas 12,5%. Por outro lado, a taxa de incidência naqueles que necessitaram gastrostomia (n=12) sobe para 41,7%. Estes valores não surpreendem, pois não diferem do que é referenciado na literatura (6, 7, 15).
No nosso estudo, foi apenas possível estabelecer uma relação com significado estatístico (p<0,05) entre rRGE e a colocação de gastrostomia prévia ou simultaneamente à fundoplicatura (Figura 2). Jolly et al. relacionam a colocação de tubo de gastrostomia com alterações nas pressões do esfíncter esofágico inferior e que estas poderiam ser a causa do aumento de RGE (11). Noutro estudo, os autores sugerem mesmo a confecção de uma fundoplicatura profiláctica nos doentes com gastrostomia (16). Este procedimento está longe de ser consensual, havendo vários autores que defendem que o procedimento aumenta a morbilidade cirúrgica, devendo ser reservado aos doentes que mantêm RGE após a colocação do tubo de gastrostomia (17).
Figura 2 Imagem endoscópica de uma hérnia do hiato vista através de um endoscópio introduzido através da gastrostomia.
Por outro lado, a necessidade de gastrostomia pode ser vista como um sinal indirecto da gravidade do compromisso neurológico. Analisando os dados recolhidos não foi possível graduar o compromisso neurológico, mas a necessidade de gastrostomia reflecte uma incapacidade na deglutição que geralmente está presente nos casos mais graves. Para estes doentes, Morabito et al. recomendam a dissociação esofago-gástrica total (DEGT) (18). Esta técnica, que consiste na secção da junção esofago-gástrica com posterior anastomose do esófago distal a uma ansa de jejuno em Y de Roux, tem uma pequena percentagem de complicações e uma incidência de rRGE de 0%. No entanto, trata-se de uma cirurgia mais longa e agressiva do ponto de vista cirúrgico, exigindo três a cinco dias de internamento até a alimentação ser restabelecida pela sonda de gastrostomia. Recentemente, Boubnova et al. conseguiram fazer este procedimento, também chamado de procedimento de Bianchi, por via laparoscópica em duas crianças (20). Esta poderá ser uma boa opção em crianças neurologicamente comprometidas com RGE dependentes de sonda de gastrostomia para alimentação.
CONCLUSÕES
A fundoplicatura de Nissen tem uma pequena incidência de rRGE. Esta é maior nos doentes a quem foi colocada gastrostomia prévia ou simultaneamente. Esta pode ser interpretada como um sinal indirecto de um compromisso neurológico mais grave, embora não fosse encontrado significado estatístico para os restantes parâmetros comparados. Serão necessários mais estudos e com um maior número de casos para conclusões mais seguras.
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João Moreira-Pinto
E-mail: moreirapinto@gmail.com