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Nascer e Crescer
versão impressa ISSN 0872-0754
Nascer e Crescer vol.21 no.3 Porto set. 2012
Hemoglobinúria paroxística ao frio: quando suspeitar?
Catarina Matos1, Sandra Teixeira1, Susana Lira1, Emília Costa 2, José Barbot 2
1 S. Pediatria, U Padre Américo, CH Tâmega e Sousa
2 U. Hematologia Pediátrica, H Maria Pia, CH Porto
RESUMO
Introdução: A hemoglobinúria paroxística ao frio é uma forma rara de apresentação de anemia hemolítica auto-imune.
Caso Clínico: Descreve-se o caso de uma criança, de 23 meses de idade, com icterícia e urina escura de início súbito. Havia referência a infecção das vias respiratórias superiores uma semana antes. Apresentava anemia grave com hemoglobinúria. A DHL era elevada e a prova de Coombs directa era positiva com especificidade anti-C3d. A positividade da prova de Donath-Landsteiner, ao demonstrar o carácter bifásico do autoanticorpo, confirmou o diagnóstico de hemoglobinúria paroxística ao frio.
Conclusão: Com este caso os autores pretendem realçar a importância do reconhecimento desta patologia e do seu carácter de hemólise intra-vascular, de forma a contribuir para um diagnóstico e tratamento mais rápidos.
Palavras-chave: Exposição ao frio, hemoglobinúria paroxística ao frio, hemólise intra-vascular, idade pediátrica.
Paroxismal cold hemoglobinuria: when to suspect?
ABSTRACT
Introduction: The paroxysmal cold hemoglobinuria is a rare form of presentation of autoimmune hemolytic anemia.
Case report: We describe the case of a 23 months-old child with jaundice and dark urine of sudden onset. There was reference to upper respiratory infection a week earlier. He presented severe anemia with hemoglobinuria. DHL was rised and the direct Coombs test was positive with specific anti-C3d. The positive of Donath-Landsteiner proof, to demonstrate the biphasic nature of the autoantibody, confirmed the diagnosis of paroxysmal cold hemoglobinuria.
Conclusion: With this case report the authors aim to highlight the importance of recognizing this condition and the character of intravascular hemolysis, so that quicker diagnosis and treatment can be made.
Keywords: Cold exposure, paroxysmal cold hemoglobinuria, intravascular hemolysis, pediatric age.
INTRODUÇÃO
A hemoglobinúria paroxística ao frio (HPF), apesar de rara, é uma das causas mais comuns de anemia hemolítica auto-imune, representando 30% dos episódios em idade pediátrica(1-3).
Descrita pela primeira vez em 1872, em associação com a sífilis, é em 1902, com Donath e Landsteiner, que é compreendida a sua fisiopatologia com a descoberta da hemolisina de Donath-Landsteiner, um autoanticorpo IgG com especificidade anti-P. Actualmente, a associação com a sífilis congénita ou adquirida é rara, em grande parte devido à diminuição da incidência desta patologia (1,2).
Em termos clínicos, caracteriza-se por hemólise intravascular de início súbito, com anemia e hemoglobinúria, minutos ou horas após exposição ao frio. A maioria dos episódios são auto-limitados e precedidos de infecções víricas inespecíficas (1,2).
Em termos fisiopatológicos, a hemólise intravascular ocorre pela formação de um autoanticorpo policlonal IgG dirigido, na grande maioria dos casos, contra o antigénio P presente na membrana dos eritrócitos- hemolisina de Donath-Landsteiner.
Esta hemolisina surge sete a dez dias após a infecção vírica e persiste seis a doze semanas. Caracteriza-se por um comportamento térmico bifásico. A baixas temperaturas liga-se ao antigénio eritrocitário e fixa grandes quantidades de complemento. A temperaturas mais elevadas o complemento fixado provoca hemólise dos eritrócitos. Este diferencial térmico ocorre quando perifericamente existe uma exposição ao frio com posterior retorno do sangue à circulação central (1,2,4).
Apresenta-se um caso de uma criança que desenvolveu uma HPF e fazem-se algumas considerações quanto à melhor orientação diagnóstica e tratamento.
CASO CLÍNICO
Criança, sexo masculino, 23 meses de idade, previamente saudável, que recorre ao serviço de urgência do hospital da área da residência, no mês de Dezembro, com quadro de icterícia, anorexia e irritabilidade com 24 horas de evolução a que posteriormente se associou urina muito escura. Referência a infecção das vias respiratórias superiores uma semana antes. Sem história aparente de exposição ao frio. Os exames complementares iniciais revelaram: hemoglobina - 6,9g/dL, reticulócitos - 125 000/ uL, leucócitos - 11 700/uL (59,7% neutrófilos; 31,7% linfócitos), plaquetas - 291 000/uL. Na bioquímica destaca-se: bilirrubina total - 2,7mg/dL (directa-0,6mg/dL), ureia - 55mg/dL, creatinina - 0,5mg/dL, aspartato aminotransferase (AST) - 64UI/L, alanina aminotransferase (ALT) - 18UI/L, desidrogenase láctica (DHL) - 2 290UI/L. O esfregaço de sangue periférico não apresentava alterações significativas. A tira teste urinária apresentava-se reactiva para hemoglobinúria/hematúria. O sedimento urinário não apresentava eritrocitúria. O estudo da coagulação era normal. O teste anti-globulina directo era positivo, selectivamente para anticorpos monoespecífi cos anti-C3d. As serologias para citomegalovírus, vírus Epstain-Barr, vírus herpes, hepatite A, B e C eram negativas.
Foi transferida para a Unidade de Hematologia Pediátrica para estudo de anemia hemolítica auto-imune. A suspeita do diagnóstico de HPF foi confirmado pela positividade do teste de Donath-Landsteiner.
Foi adoptada uma atitude expectante com manutenção em ambiente aquecido, reforço hídrico e registo da diurese (1).
Durante o internamento observou-se uma normalização progressiva da hemoglobina e dos marcadores de hemólise. Como única intercorrência registou-se, em D6 de internamento, a subida ligeira dos valores de creatinina (máximo de 0,65mg/dL), que resolveu rapidamente após reforço da hidratação. Teve alta após 14 dias de internamento, clinicamente bem, com indicação de evicção de frio. Não foram registadas recidivas ou qualquer outra complicação.
DISCUSSÃO
No caso clínico exposto, existiu, desde o início, uma forte presunção do carácter hemolítico e auto-imune da anemia grave que apresentava. A tríade clássica de anemia hemolítica - anemia, reticulocitose e hiperbilirrubinemia estava presente. Por outro lado, a positividade do teste de Coombs sugeria uma etiologia auto-imune. O seu quadro hematológico revelava indicadores adicionais que permitiam um raciocínio mais abrangente. O aspecto fortemente colúrico da urina - urina cor coca-cola-, a significativa elevação de DHL, em contraste com o carácter ligeiro da hiperbilirrubinemia e a elevação da TGO, com uma normalidade da TGP, sugeriam um mecanismo de hemólise intra-vascular. O sedimento urinário reforçava este raciocínio, na medida em que demonstrava que a coloração da fita teste urinária na zona da hematúria/hemoglobinúria se devia a esta última, dada a ausência de eritrocitúria. A documentação do carácter intra-vascular de uma hemólise é muito importante, na medida em que reduz o leque de diagnósticos diferenciais. No caso presente, a positividade do teste de Coombs, selectivamente com soro monoespecífico anti-C3d, sugeria fortemente o diagnóstico de HPF. O teste de Donath-Landsteiner, ao demonstrar o carácter bifásico do anticorpo em causa, veio a confirmá-lo (1,2,4,5,7).
O teste consiste na visualização de hemólise de eritrócitos, normais e do doente, suspensos em plasma do doente em vários tubos submetidos a perfis térmicos diferentes. A hemólise é observável nos tubos previamente incubados a 4ºC com posterior aquecimento a 37ºC.
Como eventual factor desencadeante da produção do anticorpo regista-se uma intercorrência infeciosa vírica das vias respiratórias superiores uma semana antes. Apesar de não haver referência a um episódio particular de exposição ao frio é de referir que a situação ocorreu no mês de Dezembro (8).
O tratamento consiste na evicção do frio, fluidoterapia e vigilância da normalização dos valores analíticos. Pode haver a necessidade de transfusões quando anemia grave ou de agravamento rápido (1).
Apesar de apresentar uma anemia grave (Hb-6,9g/dL) foi decidido não proceder a transfusão de concentrado eritrocitário. Esta decisão baseou-se na convicção do carácter auto-limitado da hemólise, reforçada pelo facto de o doseamento da DHL ter diminuído em cerca de 60% no espaço de 24h e da curva decrescente do valor da hemoglobina ter sido interrompida. Por outro lado, verificou-se que, no dia seguinte ao internamento, a reticulocitose já era marcada. No entanto, caso a transfusão fosse considerada mandatória, por certo que não existiriam problemas transfusionais relevantes mesmo face à transfusão de sangue P positivo desde que fosse salvaguardada a não exposição do sangue a temperaturas baixas.
O aumento ligeiro dos valores de creatinina, rapidamente corrigido pelo reforço hídrico, reflecte a deposição do pigmento da hemoglobina nos tubúlos renais e a sua toxicidade. Se não tivesse sido rapidamente revertida, esta situação poderia ter levado a insuficiência renal aguda, complicação rara mas possível num processo de hemólise intravascular grave. Esta situação alerta-nos para a importância da monitorização da diurese e função renal. O reforço hídrico assim como a alcalinização da urina constituem medidas a ponderar.
Concluindo, a HPF é uma patologia cujo quadro agudo pode ser de extrema gravidade e até mesmo potencialmente fatal. No entanto, uma vez ultrapassada a fase aguda, tem um prognóstico excelente. Na maioria dos casos, o episódio de hemólise intravascular é de curta duração, resolvendo geralmente em menos de um mês, com normalização dos valores de hemoglobina e marcadores de hemólise. É neste contexto que, a evicção do frio e a monitorização clínica e analítica durante o episódio agudo, são da maior importância. Para isso, é importante promover a sua acuidade diagnóstica, já que o seu carácter auto-limitado a torna uma patologia susceptível de ser sub-diagnosticada. As recidivas são raras (2, 6).
BIBLIOGRAFIA
1. Rosse W. Paroxysmal cold hemoglobinuria. Disponível em: http://www.uptodate.com, Janeiro 2010. [ Links ]
2. Vergara LH, Mota MC, Sarmento AG, Duarte CA, Barbot JM. Insuficiencia renal aguda secundaria a hemoglobinuria paroxistica al frio. An Pediatr (Barc) 2006; 64:267-9. [ Links ]
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8. Gehrs BC, Friedberg RC. Autoimmune hemolytic anemia. Am J Hematol. 2002; 69: 258-71. [ Links ]
Catarina Matos
E-mail: catarinamatos82@gmail.com