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Nascer e Crescer
versão impressa ISSN 0872-0754
Nascer e Crescer vol.21 no.3 Porto set. 2012
Diagnóstico
Fernando Pereira1
1 S. Gastroenterologia Pediátrica, CH Porto
Se nos interrogamos sobre quando devemos pensar na Doença Inflamatória Intestinal (DII) a resposta genérica deverá ser, cada vez mais e cada vez mais cedo. De facto a sua frequência tem vindo a aumentar nas últimas décadas, em especial a Doença de Crohn e ocorre ou é diagnosticada em idades cada vez mais jovens. Como é regra na actividade médica a abordagem de um doente começa com uma história clínica bem conduzida e um exame físico cuidado que induzem ou orientam os exames auxiliares de diagnóstico que permitirão confirmar ou não a nossa suspeita. Uma criança com dor abdominal persistente e recorrente, alterações do trânsito intestinal, especialmente diarreia, com ou sem sangue nas fezes, palidez, perda de peso ou anorexia e em que o exame objectivo evidencia, palidez das mucosas, aftose oral, dor ou tumefacção na fossa ilíaca direita e eritema nodoso e com fistula/s anais, a hipótese de ter uma DII é muito provável e deve ser investigada. Se esta criança tem antecedentes familiares de DII a probabilidade aumenta. É claro que nem sempre o quadro é tão completo e por vezes observamos uma criança que tem apenas ligeiras e pouco valorizadas dores abdominais e anemia ferropénica e que quando devidamente estudada se demonstra ter DII; em outros casos somos confrontados com criança que apresenta uma fístula anal frequentemente recidivante após correcção cirúrgica e em que a hipótese de DII deve ser sempre colocada; outros doentes apresentam-se com quadro de anorexia acentuada, por vezes com o diagnóstico de anorexia nervosa e de facto a sua doença responsável pelo quadro é de facto uma DII. É assim muito claro que a doença inflamatória intestinal e muito especialmente a D. Crohn, pode apresentar-se clinicamente de formas muito diferentes (fenótipos), rica ou pobre em sintomas, o que está em grande parte dependente da sua base genética, do grau de actividade da doença e da sua localização no tubo digestivo. Raras vezes, são as manifestações articulares que levam o doente à consulta de Pediatria ou Reumatologia e depois de excluída patologia articular primária somos conduzidos ao diagnóstico de DII. Nos doentes com colite ulcerosa o quadro clínico inclui persistentemente aumento do número de dejecções, quase sempre diarreicas, diurnas e nocturnas e muito frequentemente associadas à presença de sangue e muco. É muito importante referir a necessidade de fazer um exame proctológico a todos os doentes em que a suspeita de DII é colocada.
Perante a suspeita de DII deveremos começar por efectuar estudo analítico que deverá procurar sinais de actividade inflamatória (VSG, PCR, calprotectina fecal) anemia (hemograma), ferropenia, hipoproteinemia, alterações da função hepática e renal (estudo bioquímico) e ainda a presença de alterações imunológicas (ANCA, ASCA e imunoglobulinas). Os resultados obtidos, se confirmam a existência de actividade inflamatória e sobretudo se se associa anemia, trombocitose, ferropenia e hipergamaglobulinemia, obrigam à observação endoscópica do tubo digestivo na sua totalidade. Devemos portanto submeter o doente à realização de endoscopia digestiva alta e baixa, sobre sedação profunda ou anestesia, com as quais iremos observar o esófago, estômago, duodeno, colon e íleum terminal e efectuar biópsias para estudo histológico da mucosa. Quando nenhum destes exames revela alterações deveremos então proceder ao estudo do intestino delgado, que poderá ser efectuado por radiologia (enteróclise ou RMN) ou recorrendo à cápsula endoscópica, uma vez que a doença pode estar limitada àquele segmento digestivo.
É altura de afirmarmos que o diagnóstico de DII dever ser sempre efectuado com base em dados clínicos, endoscópicos e/ou radiológicos e histológicos. Só desta forma será possível fazer um diagnóstico de Doença de Crohn ou Colite ulcerosa e da extensão e tipo de lesões do tubo digestivo, bem como da sua gravidade. Por vezes quando existem apenas lesões do colon, mesmo com todos aqueles elementos presentes, não é possível fazer um diagnóstico definitivo e consideramos tratar-se de colite indeterminada que a evolução posterior acabará por permitir classificar definitivamente.
A Doença de Crohn tem como sinais endoscópicos o quadro inflamatório da parede do tubo digestivo, com úlceras aftosas, lineares ou estreladas, em regra separadas por mucosa de aspecto sensivelmente normal, estenoses inflamatórias e poupando frequentemente o recto. O envolvimento esofágico apresenta-se com sinais inflamatórios e úlceras e ao nível gástrico, gastropatia congestiva erosiva ou ulcerativa a que pode associar-se estenose pilórica. A Colite ulcerosa envolve apenas a mucosa e submucosa do colon de forma total ou parcialmente; nas crianças a tendência é para envolvimento mais extenso, constituído por congestão, edema ulceração, friabilidade, perda do padrão vascular, hemorragia fácil, alterações que envolvem de forma difusa o segmento atingido e não poupando o recto. Histologicamente a Doença de Crohn caracteriza-se infiltrado inflamatório crónico com actividade, ulceração, granulomas não caseificados, distorção das criptas e distribuição focal e a colite ulcerosa por infiltrado inflamatório do mesmo tipo mais superficial, com abcessos crípticos, depleção das células de Goblet e distribuição contínua.
Diagnóstico diferencial com infecções bacterianas ou víricas (CMV), incluindo de forma muito particular a tuberculose e a colite por Clostridium difficile é obrigatório. Devemos proceder à pesquisa de toxina nas fezes, ao exame microbiológico das fezes e das biópsias intestinais.
Desta forma conseguimos fazer o diagnóstico de DII ou excluí-lo e estabelecer um padrão de gravidade que permitirá iniciar o tratamento mais adequado.
Tendo por objectivo tornar mais prática a nossa intervenção, apresentamos seguidamente, alguns casos clínicos, exemplificativos da forma diversa como a DII pode apresentar-se.
O primeiro caso refere-se a um rapaz de 12 anos com história de dor abdominal recorrente, mais intensa na fossa ilíaca direita e sobretudo após as refeições e com duração de cerca de seis meses. Recorreu ao serviço de urgência por apresentar episódio de dor aguda intensa na fossa ilíaca direita. A palpação abdominal revelava defesa na fossa ilíaca direita e leucocitose com neutrofilia, elevação acentuada da PCR e moderada da VSG. Foi efectuado o diagnóstico de apendicite aguda e o doente submetido a laparotomia. Durante a exploração da cavidade abdominal foi diagnosticada ileíte terminal extensa com áreas de estenose, colocando-se como hipótese de diagnóstico a D. Crohn. O estudo endoscópico e radiológico seguidamente efectuado e as biópsias do colon e ileum terminal, permitiram confirmar o diagnóstico de D Crohn atingindo o colon direito e o ileum terminal, em forma grave estenosante e penetrante.
O segundo dos nossos doentes era uma menina de 14 anos com dor abdominal recorrente periumbilical, pouco intensa e quase diária e com astenia progressiva com perda de peso significativa mas não quantificada. Referia igualmente período de amenorreia de três meses. O seu exame objectivo não revelava alterações significativas. No estudo analítico efectuado salientava-se a presença de anemia hipocrómica e microcítica com ferro e ferritina baixos, trombocitose e VSG 47mm/iªh. A pesquisa de sangue oculto nas fezes foi negativa. Efectuou endoscopia digestiva alta e colonoscopia que foram normais e seguidamente enteroscopia por videocápsula que permitiu observar edema, congestão e ulceração no ileum sendo colocado o diagnóstico de D Crohn ileal, forma inflamatória ligeira a moderada.
O nosso terceiro doente era uma menina com 10 anos que nos procurou por ter há seis semanas, seis a oito dejecções diárias, diurnas e nocturnas por vezes com pequenas quantidades de muco e sangue nas fezes associadas a mal estar abdominal difuso, astenia e anorexia. A palpação abdominal era globalmente desconfortável mas sem organomegalias ou tumefacções. O exame proctológico era normal. O estudo laboratorial mostrou anemia hipocrómica microcítica, PCR elevada, VSG 52/1ªh, hipoalbuminemia e hipergamaglobulinemia. O exame microbiológico das fezes era negativo. A endoscopia digestiva alta era normal e a colonoscopia com ileoscopia terminal e o trânsito do intestino delgado permitiram o diagnóstico de extensa D Crohn ileocólica com significativa estenose ileal terminal. As biópsias cólicas mostraram diversos granulomas. Concluímos por D Crohn ileocólica com componente estenosante.
O doente seguinte, de 15 anos, queixava-se de diarreia com sangue e muco com cerca de oito dejecções nas 24 horas. Não apresentava antecedentes patológicos relevantes e o seu exame objectivo evidenciava palidez da pele e mucosas e o toque rectal era indolor mas aparecia sangue na luva. O estudo laboratorial apresentava anemia, trombocitose, elevação dos parâmetros inflamatórios e hipoproteinemia. Tinha ANCA positivo e ASCA negativo e exame microbiológico e parasitológico de fezes negativos. A endoscopia digestiva alta era normal bem como o trânsito do intestino delgado. A colonoscopia esquerda mostrou quadro inflamatório intenso e difuso dos segmentos observados e envolvendo o recto, a histologia confirmou tratar-se de quadro de colite ulcerosa e o clister opaco posteriormente realizado (tubolização cólica) permitiu diagnosticar uma doença com envolvimento quase total do colon
O nosso último doente era um rapaz de oito anos com abcesso perianal seguido do desenvolvimento de um trajecto fistuloso persistente. Dois meses depois aparecimento de novo orifício fistuloso a meio do trajecto entre o ânus e o escroto. Observado por cirurgia foi submetido a tratamento conservador sem êxito. O seu irmão gémeo tinha também duas fistulas anais em evolução há cerca de três meses. O seu exame objectivo não revelava qualquer alteração nomeadamente a palpação abdominal ou o toque rectal. O estudo analítico revelou hemograma normal, trombocitose, VSG 55mm 1ªh, TGP 2xN, ferro baixo, albumina diminuída, IgG elevada e ASCA positivo. O exame endoscópico não evidenciou alterações esófago-gastro-duodenais e a presença de múltiplas ulcerações aftóides do colon esquerdo e ulcerações profundas do colon direito e transverso. O estudo radiológico do intestino delgado por enteróclise foi compatível com ileíte terminal ligeira.
A idade do doente, a localização das lesões, o seu tipo e a repercussão sobre o crescimento, na D. Crohn, bem como a extensão no cólon e severidade das lesões, na Colite Ulcerosa, permitem classificar a doença (Classificação de Montreal e Paris) e dessa forma permitir uma orientação terapêutica mais correcta desde o início. Os índices de actividade da D. Crohn (PCDAI) e da Colite Ulcerosa (PUCAI) determinados de forma seriada são úteis sobretudo na avaliação da resposta ao tratamento.
O diagnóstico da DII é como se pode ver um desafio, que todavia se consegue ultrapassar se tivermos presente a sua natureza cada vez mais frequente e ocorrendo em idades mais jovens como afirmamos inicialmente.