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Nascer e Crescer
versão impressa ISSN 0872-0754
Nascer e Crescer vol.23 no.2 Porto jun. 2014
ARTIGO ORIGINAL / ORIGINAL ARTICLE
Abordagem multidisciplinar e qualidade de vida em doentes com espinha bífida
Multidisciplinary approach and quality of life in patients with spina bifida
Sandra MagalhãesI; Teresa CostaII; Antónia PiresIII; Lurdes PalhauI; Rosa AmorimI
IS. Medicina Física e de Reabilitação, CH Porto. 4099-001 Porto, Portugal. E-mail: mag.sandra@gmail.com; lurdespalhau@hotmail.com; rosaamorim61@gmail.com
IIS. Nefrologia Pediátrica, CH Porto. 4099-001 Porto, Portugal. E-mail: teresa.v.c.tavares@gmail.com
IIIS. Pediatria, CH Porto. 4099-001 Porto, Portugal. E-mail: mariaantoniapires@gmail.com
RESUMO
Introdução: A Espinha Bífida é o defeito mais comum do tubo neural. A abordagem multidisciplinar é a mais adequada para prestar cuidados a estes doentes.
Objetivo: Caracterizar a população de crianças seguida na consulta multidisciplinar de Espinha Bífida de um Hospital Terciário. Avaliar a perceção da qualidade de vida das crianças, adolescentes e pais/cuidadores. Correlacionar a qualidade de vida com algumas variáveis estudadas.
Métodos: Estudo retrospetivo que incluiu as crianças em seguimento na consulta multidisciplinar de Espinha Bífida. As variáveis analisadas foram: tipo de defeito do tubo neural, regime vesico-esfincteriano e nível funcional. A avaliação da qualidade de vida foi feita através da aplicação do questionário Child Health Questionnaire Parental Form (CHQ PF50). O tratamento estatístico foi realizado no programa SPSS, versão 17.
Resultados: Foram incluídas no estudo 69 crianças. Os doentes apresentavam uma idade média de 13 anos, sendo 52,2% do sexo masculino. Oitenta e seis por cento tinham diagnóstico de mielomeningocelo, 56,5% efetuavam marcha de forma autónoma e 30,4% eram incontinentes necessitando do uso de fralda.
O questionário de qualidade de vida foi respondido pelos pais de 31 doentes. Todos os scores apresentaram valores superiores a 50, sendo que os que revelaram valores menores foram o relativo à função física nas crianças e o referente ao impacto emocional nos pais.
Foi encontrada uma correlação estatisticamente significativa entre a capacidade funcional e o componente da escala de qualidade de vida relativo ao funcionamento físico (r = 0,456; p =0,01). Conclusão: As várias manifestações clínicas e complicações associadas a esta condição podem interferir de forma significativa nos vários componentes da qualidade de vida dos doentes e seu núcleo familiar.
Este trabalho sublinha a importância da avaliação e intervenção das necessidades das crianças com incapacidade de forma a promover o seu bem-estar físico, psicológico e social.
Palavras-chave: Abordagem multidisciplinar, espinha bífida, qualidade de vida.
ABSTRACT
Introduction: Spina Bifida is the most common neural tube defect. Multidisciplinary approach has long been advocated as the optimal way to provide care for these patients.
Aim: To characterize the population of children followed in Spina Bifida clinic. To measure health-related quality of the life of children, adolescents and care givers. To correlate quality of life with some studied variables.
Methods: Retrospective study that included children followed in Spina Bifida clinic. The variables analyzed were: regarding the type of neural tube defect, bladder-sphincter system and functional level. The quality of life was assessed through the application of the questionnaire Child Health Questionnaire Parental Form (CHQ – PF50). The statistical analysis was made with SPSS, version 17.
Results: The study included 69 children. Patients had a mean age of 13 years, 52.2% male, 86% had a diagnosis of myelomeningocele, 56.5% had independent gait and 30.4% were incontinent and used a diaper.
The quality of life questionnaire was completed by 31 parents. All scores were greater than 50, the lowest value in patients was physical function and in parents was emotional impact.
We found a statistically significant correlation between functional capacity and physical functioning score on quality of life scale (r = 0.456, p = 0.01).
Conclusion: Clinical manifestations and complications of this condition can interfere significantly in the various components of patients’ and families’ quality of life.
This study emphasizes the importance of assessment and measurement of needs in children with disabilities in order to promote their physical, psychological and social well-being.
Keywords: Multidisciplinary approach, quality of life, spina bifida.
INTRODUÇÃO
A Espinha Bífida (EB) resulta de um encerramento incompleto do tubo neuronal embrionário e é o segundo defeito congénito mais frequente e o mais grave compatível com a vida em todo o Mundo.(1,2)
A prevalência desta patologia varia de acordo com a localização geográfica dependendo de fatores genéticos e ambientais, sendo este distúrbio claramente mais frequente em países em desenvolvimento.(3)
Apesar da adoção de medidas de prevenção primária como a suplementação com ácido fólico e o diagnóstico pré-natal ecográfico, o número de crianças que nasce com EB permanece significativo.(3)
A EB afeta vários órgãos e sistemas resultando numa panóplia de alterações da função. O seu tratamento é complexo e multifacetado, focado na prevenção de complicações.(4)
O tratamento cirúrgico precoce da EB tem aumentado a taxa de sobrevida nos doentes com formas mais graves da doença e mais recentemente o desenvolvimento da cirurgia pré-natal, por volta da 20ª semana de gestação tem contribuído de forma ainda mais significativa para este aumento.(4) Assim, este incremento na esperança média de vida torna essencial a realização de estudos de qualidade de vida.
A EB é uma doença congénita com múltiplas manifestações clínicas e complicações associadas implicando um impacto significativo no funcionamento físico, psicológico e social dos indivíduos afetados.(5) É também bem reconhecido o impacto que esta doença tem nos componentes físicos, psicológicos e sociais de todo o núcleo familiar.(5)
A complexidade inerente a esta patologia, a necessidade de intervenção de várias especialidades médicas e o reconhecimento do desafio em promover cuidados de saúde a estas crianças conduziu à criação de equipas multidisciplinares e multiprofissionais por volta de 1960 com o objetivo principal de melhorar a coordenação e integração das necessidades de serviços médicos.(6)
A importância deste tipo de abordagem é amplamente reconhecida no tratamento contemporâneo da EB. A literatura tem apresentado esta abordagem como a ideal para estes doentes.(7,8) Nestas crianças é cada vez mais frequentemente reconhecida a importância da abordagem de questões de saúde mental, recreação académica e promoção das necessidades em saúde de forma a melhorar quer a funcionalidade quer a sua participação social e dos seus familiares.(7,8) Concentrar na mesma consulta várias especialidades médicas pode poupar estas crianças e seus familiares da exaustão de várias consultas em diferentes serviços hospitalares.(6)
A literatura carece ainda de estudos que relacionem a abordagem multidisciplinar com os índices de qualidade de vida destas crianças e seus familiares. Existem alguns estudos, noutras patologias, tais como, doença renal crónica e fibrose quística que associam a abordagem multidisciplinar a uma melhoria na qualidade de vida.(9) Na EB há apenas um estudo que documenta os efeitos negativos na saúde destas crianças do abandono deste tipo de abordagem.(10)
Apesar de reconhecida a sua importância, permanece por esclarecer a informação detalhada de como esta deve decorrer. A literatura carece de estudos específicos relativos à estrutura destas equipas e quais as especialidades médicas e outros pro- fissionais que deverão ser envolvidos.(6-8)
A consulta multidisciplinar de EB existe na nossa instituição desde 1995 e inclui presencialmente as especialidades de Medi- cina Física e de Reabilitação e Nefrologia e conta também com a colaboração das especialidades de Neurocirurgia, Ortopedia e Urologia.
Os principais objetivos da nossa consulta são: promover um adequado desenvolvimento psicomotor destas crianças, prevenir deformidades musculosqueléticas, adquirir continência de esfíncteres, prevenir insuficiência renal, promover a indepen- dência funcional, facilitar a integração sócio-educacional, melhorar a autoestima, estabelecer uma uniformização de critérios de avaliação e tratamento e promover um enriquecimento mútuo entre as várias especialidades intervenientes.
O objetivo deste estudo pretende também avaliar a qualidade de vida destes doentes procurando correlacionar os seus scores com algumas das variáveis estudadas de forma a otimizar a intervenção efetuada.
MÉTODOS
Foi realizado um estudo retrospetivo que incluiu as crianças em seguimento na consulta multidisciplinar de EB durante o período de Janeiro de 2000 a Dezembro de 2011.
Os doentes foram descritos relativamente ao subtipo de defeito do tubo neural, regime vesico-esfincteriano e nível funcional. Procedeu-se à avaliação da qualidade de vida dos doentes recorrendo à versão portuguesa do Child Health Questionnaire Parental Form (CHQ PF50), questionário mais frequentemente utilizado para avaliação da qualidade de vida na idade pediátrica.(11) A aplicação deste questionário está validada apenas para crianças com idades compreendidas entre os cinco e 17 anos e deve ser respondido pelos pais. Tem duas componentes principais, uma que pretende avaliar a qualidade de vida das crianças e outra que está relacionada com a implicação que a doença tem na qualidade de vida dos pais. O score deste questionário varia de 0 a 100, sendo que 100 corresponde ao máximo de qualidade de vida.(12)
O tratamento estatístico foi realizado no programa SPSS (Statistical Package for the Social Sciences 17th version). Para a correlação de variáveis com os vários scores da escala de qualidade de vida (escala ordinal) utilizou-se o teste não paramétrico, coeficiente de correlação de Spearman. Valores de p inferiores a 0,05 foram considerados estatisticamente significativos.
RESULTADOS
Foram observadas na consulta multidisciplinar de EB 108 crianças e adolescentes durante o período de Janeiro de 2000 a Dezembro de 2011. Foram excluídas 39 crianças: 29 foram transferidas para a consulta de adultos, sete abandonaram a consulta e três morreram. Foram então incluídos um total de 69 doentes.
Os doentes observados apresentavam uma idade média de 13 anos, sendo 36 doentes pertencentes ao sexo masculino (52,2%) e 33 ao sexo feminino (47,8%). Dos doentes observados 86% apresentavam diagnóstico de mielomeningocelo, 8% lipomielomeningocelo e 6% tinham outros diagnósticos.
Relativamente ao nível funcional, 39 (56,5%) efetuava marcha de forma autónoma sem necessidade de ortóteses ou produtos de apoio, 21 (30,4%) deambulava em cadeira de rodas e nove (13,1%) efetuava marcha com ortóteses e ou produtos de apoio (Figura 1).
No que se refere ao regime vesical, 43 (62,3%) encontrava-se em regime de algaliações intermitentes e destes 16 (37,2%) efetuava auto-algaliações. Vinte e uma (30,4%) era incontinente necessitando do uso de fralda (Quadro I).
O questionário de qualidade de vida foi respondido pelos pais de 31 crianças. Dentro deste subgrupo de crianças, 18 eram do sexo masculino e 13 do sexo feminino, com uma média de idades de 12,5 anos.
No Quadro II estão representados os resultados para cada um dos scores da CHP-PF50.
Relativamente aos scores relacionados diretamente com a qualidade de vida dos doentes todos apresentaram um valor superior a 50, sendo que os relacionados com a saúde em geral e funcionamento físico foram os que apresentaram valores menores.
Os scores relativos à qualidade de vida dos pais revelaram-se globalmente superiores aos encontrados para as crianças e os scores com valores mais baixos foram os relacionados com o impacto emocional.
Foi estudada a correlação existente entre os scores de qualidade de vida destas crianças e o seu nível funcional; encontramos uma correlação estatisticamente significativa apenas com o score relativo ao funcionamento físico (r = 0,456; p =0,01).
Não foi encontrada uma correlação estatisticamente significativa entre os scores de qualidade de vida e a continência vesico-esfincteriana.
DISCUSSÃO
Dos doentes seguidos na Consulta Multidisciplinar de EB a maioria apresenta o diagnóstico de mielomeningocelo, achado que está de acordo com a literatura que o aponta também como o subtipo mais frequente.(13) De salientar que a maioria dos doentes apresentava marcha autónoma (56,5%) mas uma percentagem considerável, 30,4% deambulava em cadeira de rodas, salientando a importância desta patologia como indutora de incapacidade motora em muitos doentes.
Relativamente à avaliação da qualidade de vida, os resultados revelam que estas crianças apresentam globalmente uma boa qualidade de vida, uma vez que todos os scores apresentaram valores superiores a 50 (score médio para esta escala).
Os scores com valores inferiores foram os relativos à saúde em geral e funcionamento físico. Os que revelaram resultados superiores foram os relacionados com os componentes emocional, comportamental e social. Desta forma, na nossa amostra os domínios que têm mais impacto na qualidade de vida dos doentes são a diminuição da sua funcionalidade física e da saúde em termos globais. Não foi atribuída tanta importância aos compo- nentes emocional, comportamental e de integração social.
No entanto, estes resultados devem ser interpretados com cuidado, na medida em que o questionário foi preenchido pelos pais que reportaram a sua perspetiva relativamente à qualidade de vida dos seus filhos. Alguns estudos têm alertado para este facto, nomeadamente no que concerne aos aspetos sociais, apontando que os pais esperam à partida que estas crianças não tenham uma vida social tão ativa como os seus pares saudáveis.(4) A literatura tem revelado que, apesar da maioria dos doentes com EB apresentarem uma boa funcionalidade ao longo da vida (achados concordantes com o nosso estudo 56,5% dos doentes apresentam marcha autónoma), esta doença tem um importante impacto ao nível psicossocial.(14) Relativamente aos aspetos psicológicos, tem sido relatado que estes doentes estão em maior risco de desenvolver sintomas de ansiedade e depressão e que têm níveis inferiores de autoestima comparativamente aos seus pares saudáveis.(14) Os doentes com hidrocefalia estão em particular risco de desenvolverem défices cognitivos, de atenção e concentração.(15) Os indivíduos com EB tendem a ser socialmente mais imaturos e passivos, a estabelecer menos contactos sociais e amizades, e estes efeitos têm demostrado perpetuar-se ao longo da vida.(14)
Relativamente aos scores de qualidade de vida dos pais, o componente emocional foi o que apresentou um valor inferior, por sua vez a limitação da atividade e coesão familiar apresentaram scores superiores.
Estes resultados estão de acordo com a literatura que aponta para a existência, na maioria dos casos, de uma dinâmica familiar funcional, revelando também um maior atingimento dos componentes psicológico e emocional da qualidade de vida.(5) Uma metanálise recente revelou efeitos moderados a severos do impacto da EB no ajustamento psicológico e emocional dos pais destas crianças. Foi encontrada uma maior prevalência de stress, ansiedade e depressão e estes pais sentem-se menos satisfeitos e competentes no cumprimento do seu papel e socialmente mais isolados.(14)
Foi encontrada, de forma expectável, uma correlação estatisticamente significativa entre a capacidade funcional dos doentes e o score físico da escala qualidade de vida. Não foi demonstrada nenhuma outra correlação com os restantes scores. A literatura tem igualmente demonstrado que o nível de autonomia destes doentes é importante apenas para o componente físico da sua qualidade de vida.(16) Os doentes com limitação funcional minor, como por exemplo aqueles que têm marcha autónoma, têm revelado mais problemas emocionais que os que apresentam maior incapacidade funcional.(13) Outros componentes da qualidade de vida tais como o apoio e suporte familiar tem revelado ter um papel mais importante.(16,17)
Em contraste com a literatura(16,17) não foi encontrada uma correlação estatisticamente significativa entre incontinência de esfíncteres e os vários componentes de qualidade de vida. Os estudos têm demonstrado uma correlação estatisticamente significativa entre os aspetos vesico-esfincterianos e os componentes mental e emocional da qualidade de vida principalmente em grupos de adolescentes.(16-18) Uma possível explicação será que nesta faixa etária os investigadores utilizam frequentemente questionários respondidos pelos próprios doentes.
O número de cateterizações diárias tem sido constantemen- te descrito como um importante fator de deterioração do componente emocional dos pais dos doentes com EB(17,18); desta forma, a realização de cateterizações intermitentes poderá ser desgastante para estes pais exigindo deles uma disponibilidade constante. Assim os pais, quer pela sua própria exaustão quer dos seus filhos, poderão não incluir a continência esfincteriana nos componentes fundamentais para a qualidade de vida dos seus filhos.
A inexistência de uma escala funcional para objetivação dos défices e número reduzido da amostra no grupo de doentes que tinham critérios para preenchimento do questionário de qualidade de vida constituem as principais limitações deste estudo.
CONCLUSÃO
Os doentes com EB têm algumas particularidades cujo conhecimento é essencial de forma a promover uma abordagem e intervenção mais apropriadas.
O seguimento e tratamento por uma equipa multidisciplinar tem demonstrado ser ideal para este tipo de doentes, permitindo uma abordagem mais compreensiva numa doença que é multifocal, promovendo a uniformização de critérios e um mútuo enriquecimento entre as várias especialidades.
O aumento da esperança de vida verificado nas últimas décadas obriga a uma maior preocupação com a realização de estudos de qualidade de vida nesta população. Na pesquisa efetuada não encontramos no nosso país estudos de qualidade de vida na EB.
A qualidade de vida quer dos doentes quer do seu núcleo familiar poderá ser afetada nos seus vários componentes sendo essencial incluir na sua abordagem o apoio psicossocial de ambos.
Os pais deverão ser alertados para o papel fundamental que a continência vesico-esfincteriana terá no futuro dos seus filhos, quer por questões de saúde renal quer por questões emocionais e de integração na sociedade.
De um modo geral, é essencial o esclarecimento quer do doente quer da sua família relativamente aos vários aspetos que a doença engloba e nesse contexto será importante a disponibilização de material informativo e inclusão em associações relacionadas com a própria doença.
Assim este trabalho sublinha a importância da avaliação e medicação das necessidades das crianças com incapacidade de forma a promover o seu bem-estar físico, psicológico e social.
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Endereço para correspondência
Sandra Marisa Pereira Magalhães
Rua Ribeira-Brava nº 84
4505-285 Fiães Santa Maria Feira, Portugal
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Recebido a 29.10.2013 | Aceite a 14.01.2014