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Nascer e Crescer
versão impressa ISSN 0872-0754
Nascer e Crescer vol.24 no.2 Porto jun. 2015
CASOS CLÍNICOS | CASE REPORTS
Diagnóstico Prénatal de Hemocromatose Neonatal: Será possível?
Prenatal diagnosis of neonatal hemochromatosis: Is it possible?
Helena Isabel LopesI; Ana Luísa MontesII; Mariana Veiga NovaisII; Otília BrandãoIII; Francisco ValenteII
IDepartamento de Obstetrícia/Ginecologia do Centro Materno-infantil do Norte, Centro Hospitalar do Porto, 4099-001Porto, Portugal. E-mail: helena.iclopes@gmail.com
IIUnidade de Diagnóstico Prénatal, Serviço de Obstetrícia, Centro Hospitalar Vila Nova de Gaia/Espinho, 4400-129 Vila Nova de Gaia, Portugal. E-mail: luisampmontes@gmail.com; mariana.veiga.novais@hotmail.com; lena_hicl@hotmail.com
IIIUnidade de Patologia do Desenvolvimento do Serviço de Anatomia Patológica, Centro Hospitalar de S. João, 4200-319 Porto, Portugal. E-mail: otilia.brandao2@gmail.com
RESUMO
Introdução: A Hemocromatose Neonatal é uma doença hepática rara de início intrauterino, definida por insuficiência hepática neonatal associada a siderose extra-hepática. A doença hepática gestacional aloimune foi estabelecida como causa da lesão hepática fetal. Atualmente, não existe uma abordagem eficaz para o diagnóstico prénatal.
Caso Clínico: Grávida de 23 anos apresentou às 32 sema- nas de gestação oligohidrâmnios e focos hepáticos hiperecogénicos. O recém-nascido prematuro desenvolveu falência orgânica multissistémica e faleceu ao segundo dia de vida, apesar de cuidados de suporte intensivos. A autópsia permitiu o diagnóstico de Hemocromatose Neonatal.
Conclusão: A identificação ecográfica de focos nodulares hiperecogénicos no fígado fetal pode ser sugestiva de Hemocromatose Neonatal. Investigações adicionais são necessárias para identificar o complexo aloimunitário específico no sangue materno. O estabelecimento do diagnóstico num feto ou recém-nascido afetado pode ter um grande impacto no prognóstico da doença e no desfecho de futuras gravidezes.
Palavras-chave: diagnóstico prénatal, ecografia fetal, hemocromatose neonatal
ABSTRACT
Introduction: Neonatal Hemochromatosis is a rare liver disease of intrauterine onset, defined by neonatal liver failure associated with extrahepatic siderosis. Gestational alloimmune liver disease has been established as the cause of fetal liver injury. At present, there is no effective approach to prenatal diagnosis.
Case Report: A 23-year-old pregnant woman presented at 32 weeks of gestation with oligohydramnios and hyperechogenic liver focus on ultrasound. The premature newborn developed multisystem organ failure and died at the second day of life despite aggressive support care. The autopsy allowed the diagnosis of Neonatal Hemochromatosis.
Conclusion: The ultrasound identification of hyperechogenic nodular focus on fetal liver may be suggestive of Neonatal Hemochromatosis. Further investigations are needed to identify the specific alloimmune complex in maternal blood. Establishment of the diagnosis in an affected fetus or newborn may have a major impact for the prognosis of disease and for the outcome of future pregnancies.
Keywords: fetal ultrasonography, prenatal diagnosis, neonatal hemochromatosis
INTRODUÇÃO
A Hemocromatose Neonatal (HN) é uma doença rara que se inicia durante a gravidez e que resulta em lesão hepática grave e siderose extra-hepática.1 É a causa mais comum de insuficiência hepática neonatal, ocorrendo morte por falência multiorgânica geralmente nos primeiros dias ou semanas de vida. Deve ser suspeitada em casos de morte fetal intrauterina tardia, na ausência de outras causas.1,2
Atualmente, não existe uma abordagem eficaz para diagnóstico prénatal. No entanto, podem surgir sinais de doença in útero.2 A ecografia obstétrica pode evidenciar alterações indiretas de lesão hepática, particularmente edema placentar ou fetal. Em alguns casos, observa-se oligohidrâmnios e restrição de cresci- mento intra-uterino.2-4
O diagnóstico depende da demonstração de siderose extra-hepática, especialmente no pâncreas e nas glândulas salivares, através de biópsia da mucosa bucal ou ressonância magnética. Frequentemente, o diagnóstico definitivo apenas é possível através de autópsia.2,3
Relatamos o caso de uma gravidez de 32 semanas que apresentou alterações ecográficas fetais sugestivas de lesão hepática detetadas no terceiro trimestre. O recém-nascido desenvolveu um quadro de falência multiorgânica e faleceu ao segundo dia de vida. O diagnóstico de Hemocromatose Neonatal foi confirmado por autópsia. Neste artigo pretende-se realçar a importância da ecografia obstétrica no diagnóstico diferencial da lesão hepática fetal.
CASO CLÍNICO
Reportamos uma grávida de 23 anos, primigesta, saudável e sem antecedentes médicos de relevo. A gravidez foi espontânea e decorreu sem intercorrências até às 32 semanas, altura em se verificaram anomalias na ecografia de rotina do terceiro trimestre. Na avaliação ecográfica detalhada destacavam-se focos hepáticos hiperecogénicos dispersos, predominantemente localizados no parênquima periférico, de dimensões idênticas entre si (1-2mm de diâmetro), semelhante ao padrão em largada de balões (Figura 1). A placenta encontrava-se espessada e hiperecogénica e notava-se hiperecogenicidade nas áreas renais e pulmonar. A bexiga e o estômago não eram visíveis, associado a oligohidrâmnios grave. Constatou-se restrição de crescimento intrauterino. O estudo infecioso materno foi negativo.
Foi realizada cesariana às 32 semanas após ciclo de corticoterapia (betametasona) para aceleração da maturação pulmonar. O recém-nascido, do sexo masculino, pesava 1520g e o Índice de Apgar foi de 8 ao primeiro e quinto minutos. Na Unidade de Cuidados Intensivos da Neonatologia apresentou sinais de falência hepática, nomeadamente hipoalbuminemia e coagulopatia grave, refratária à vitamina K e transfusões de plasma. Desenvolveu simultaneamente acidose metabólica com hipoxemia, anemia e insuficiência renal com anúria. Foi transferido para uma unidade de diálise peritoneal onde faleceu às 39 horas de vida. A autópsia revelou sinais de falência multiorgânica no contexto de hepatopatia grave e sinais típicos de HN: deposição de ferro no fígado (Figura 2), pâncreas, miocárdio, glândula tiroideia e glândulas mucosas da nasofaringe e laringe. No estudo anatomo-patológico da placenta detetou-se edema das vilosidades coriais a condicionar um peso superior ao esperado (620g; Percentil 90).
DISCUSSÃO
A Hemocromatose Neonatal é uma doença gestacional com prognóstico reservado.1 A fisiopatologia, bem como o mecanismo da lesão hepática fetal, não estão definitivamente esclarecidos. Evidências clínicas apoiam a hipótese de uma doença gestacional aloimune, mediada por uma imunoglobulina materna da classe IgG.2,5 Recentemente, este mecanismo foi sustentado pela demonstração da ativação da cascata do complemento e formação de um complexo de ataque de membrana (MAC) em hepatócitos.6 A lesão celular hepática leva à produção deficiente da hepcidina e transferrina e à desregulação do fluxo de ferro placentar, originando sobrecarga de ferro e siderose tecidual.5,7 Após a primeira gravidez de um feto com HN, a taxa de recorrência em gravidezes futuras é de 60 a 80%.8 Com base no conceito de doença aloimune e risco elevado de recorrência, a administração de imunoglobulina intravenosa em grávidas de risco tem sido praticada como terapia profilática, com resultados favoráveis na redução da recorrência e gravidade da doença nos recém-nascidos.9,10
As alterações hepáticas secundárias à hemocromatose podem ser reconhecidas ecografi como nódulos hiperecogénicos. É aceite que a hiperecogenicidade hepática fetal pode corresponder a fibrose e calcificações sendo as causas mais comuns a infeção transplacentar, acidentes vasculares hepáticos ou tumores.11 No entanto, no contexto da HN, este padrão relaciona-se com a nodularidade resultante da deposição de ferro e cirrose.12 No caso apresentado, descrevemos focos hepáticos hiperecogénicos, predominantemente periféricos e que tiveram correlação histológica. Achados sobreponíveis foram apenas descritos por Tyler Skaife et al. no ano 2000.12 A Ressonância Magnética Nuclear (RMN) tem sido utilizada, mas ainda é discutível a sua utilidade diagnóstica in útero.13 A deposição de ferro nos tecidos afetados (particularmente fígado e pâncreas) pode evidenciar-se pelo sinal hipointenso na sequência T2. Infelizmente, não foi realizada RMN neste caso.
A disgenesia tubular renal tem sido reportada em casos isolados de HN. Alguns autores acreditam que a insuficiência hepática na síntese de angiotensinogénio interfere com o normal desenvolvimento dos túbulos proximais renais.14 Admitimos esta teoria para explicar o oligohidrâmnios no terceiro trimestre e a insuficiência renal pós-natal; contudo a autópsia não confirmou a existência de disgenesia tubular.
Para desenvolver um método de diagnóstico prénatal será necessário conhecer o antigénio fetal que desencadeia a resposta imunitária materna e identificar o complexo aloimunitário específico no sangue materno. Outros parâmetros encontram-se em estudo, tais como a determinação da transferrina, ferritina e saturação da transferrina fetais por cordocentese.1,3 A identificação precoce dos fetos afetados é essencial para planear a abordagem terapêutica neonatal. O diagnóstico de HN pode influenciar o decorrer de gravidezes futuras, cuja recorrência poderá ser prevenida pela administração profilática de imunoglobulina.
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Endereço para correspondência
Helena Isabel Cavaco Lopes
Departamento de Obstetrícia/Ginecologia do Centro Materno-infantil do Norte,
Centro Hospitalar do Porto
Largo da Maternidade Júlio Dinis
4050-371 Porto, Portugal.
Telefone: +351 918 830 342
e-mail: helena.iclopes@gmail.com
Recebido a 06.02.2015 | Aceite a 05.03.2015