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Nascer e Crescer
versão impressa ISSN 0872-0754
Nascer e Crescer vol.24 no.3 Porto set. 2015
ARTIGOS ORIGINAIS | ORIGINAL ARTICLES
Anafilaxia e alergia alimentar: O resultado de uma intervenção na comunidade
Anaphylaxis and food allergy: the result of an intervention in the community
Helena FerreiraI; Carla FerreiraI; Armandina SilvaI; Alberto CostaI; Cláudia PedrosaII
I Serviço de Pediatria, Centro Hospitalar do Alto Ave – Unidade de Guimarães. 4835-044 Guimarães, Portugal. E-mail: helena-of@hotmail.com; carlamf85@hotmail.com; armandinapf@gmail.com; agcosta40@hotmail.com
II Serviço de Pediatria, Centro Hospitalar de Vila Nova de Gaia/Espinho. 4434-502 Vila Nova Gaia, Portugal. E-mail: claudiampedrosa@yahoo.com
RESUMO
Introdução e Objectivos: A anafilaxia é uma emergên cia médica potencialmente fatal quando não tratada, sendo importante a disseminação do conhecimento desta entidade na comunidade. O objectivo deste trabalho foi avaliar os resultados da implementação de uma acção de formação sobre conceitos básicos de alergia alimentar e anafilaxia, dirigida a funcionários de escolas e infantários, pretendendo-se desenvolver a sua capacidade em reconhecer a situação clínica e intervir correcta e precocemente.
Métodos: Entre Dezembro de 2013 e Março de 2014 foram visitadas seis instituições frequentadas por crianças seguidas na Consulta de Pediatria por anafilaxia alimentar. Foram recrutados funcionários das instituições e aplicado um questionário antes e depois da sessão teórico-prática sobre alergia alimentar e anafilaxia. Este questionário foi aprovado para ser usado neste projeto pela Sociedade Portuguesa de Alergologia Pediátrica. Para avaliação da pontuação global dos conhecimentos cada resposta correta foi cotada com um ponto, sendo que a pon tuação máxima era de oito pontos. O estudo estatístico incluiu análise descritiva, cálculo de frequências e estudo comparativo através do teste t de Student. O tratamento estatístico foi efetuado com recurso a software estatístico (SPSS Statistics versão 20).
Resultados: Participaram na formação 77 funcionários, dos quais 51 foram avaliados antes e depois da sessão teórica. Relativamente aos resultados antes da sessão, verificou-se que 98% dos inquiridos sabiam que a anafilaxia é uma emergência médica potencialmente fatal e que mesmo quantidades muito pequenas do alergénio podem provocar uma reação anafilática. Apenas 55% sabia reconhecer os sintomas de uma reação anafilática e o uso adequado do auto injetor da adrenalina, sendo que 24% nunca tinham ouvido falar deste. A pontuação média antes e depois das sessões foi de 6.3/8 e 7.5/8 respetivamente (p<0.001). O reconhecimento dos sintomas e tratamento da anafilaxia foram os tópicos responsáveis pelo maior aumento do score após formação. Todos os participantes se disponibiliza ram para receber formações periódicas.
Conclusão: Este trabalho demonstrou que metade das pes soas que lidam com crianças com antecedentes de anafilaxia não sabem reconhecer nem atuar perante esta. A formação dos funcionários parece ter tido um impacto positivo na aquisição de noções básicas de alergia alimentar e anafilaxia, uma vez que se verificou um aumento significativo no conhecimento deste tema. Apesar das limitações do estudo dado o tamanho da amostra, a implementação desta formação mostrou ser um instrumento eficaz na capacitação desta população para a abordagem de uma situação, potencialmente fatal. Salienta-se ainda a necessidade deste tipo de intervenção de um modo regular na comunidade.
Palavras-chave: adrenalina, alergia alimentar, anafilaxia
ABSTRACT
Introduction and Objective: Since anaphylaxis is a lifethreatening medical emergency if not treated, community awareness is important. The objective of this study was to assess the effectiveness of a workshop about basic concepts on food allergy and anaphylaxis in schools and nurseries, aimed to develop in the staff adequate knowledge and timely management of this clinical conditions.
Methods: Between December of 2013 and March of 2014 we visited six schools attended by children who suffered food anaphylaxis followed in the Pediatric Clinic of Allergic Diseases. A questionnaire, approved by the Portuguese Society of Allergology, was applied before and after the workshop on food allergy and anaphylaxis. A score was calculated according to the number of correct answers. Each correct answer corresponded to one point, maximal score: eight. Descriptive and frequency study and Student t test were used to analyze data, using SPSS Statistics version 20.
Results: Seventy-seven school employers participated in the sessions, of whom 51 were evaluated before and after the theoretical session. Regarding the results before the meeting, it was found that 98% of the participants knew that anaphylaxis is a life-threatening emergency and that even very small amounts of the allergen can trigger an anaphylactic reaction. Only 55% recognized the symptoms of anaphylaxis or knew how to properly use an epinephrine autoinjector, and 24% had never heard of epinephrine autoinjector. The average score before and after the sessions was 6.3/8 and 7.5/8 respectively (p<0.001). Recognition of symptoms and treatment of anaphylaxis were the topics that had a higher increase in the calculated score. All the participants were motivated to receive regular training.
Conclusion: This study demonstrates that half of the staff caring for children with anaphylaxis could not properly recognize or treat an anaphylactic reaction. The educational workshop was apparently effective in the awareness of this condition. In spite of the study limitations (the size of the sample), our results point out the effectiveness of this kind of intervention to disseminate knowledge on a potentially fatal condition, as well as the need of a regular educational program in the community.
Keywords: anaphylaxis, epinephrine, food allergy
INTRODUÇÃO
A alergia alimentar é uma realidade crescente em Pediatria.1,2 Estima-se que cerca de dois por cento da população geral e seis a oito por cento da população em idade pediátrica tem antecedentes de alergia alimentar, sendo a sua prevalência maior nos primeiros anos de vida.1-4 No entanto, pensa-se que a prevalência esteja subestimada, uma vez que esta reação nem sempre é diagnosticada e/ou reportada pelos profissionais de saúde.5,6
A alergia alimentar ocorre devido a uma reação imunológica após contacto (ingestão, cutâneo, inalação) com um alimento/ aditivo alimentar que contenha o alergénio.2 Esta reação imunológica pode ser classificada em IgE mediada (sintomas ocorrem minutos a duas horas após o contacto com o alergénio) e não IgE mediada.2,4,7 Clinicamente pode manifestar-se de diversas formas e graus de gravidade, sendo os sistemas orgânicos mais frequentemente envolvidos o mucocutâneo (urticária, angioede ma, prurido, eritema), respiratório (esternutos, rinorreia, tosse, dispneia, pieira, dor torácica), gastrointestinal (náuseas, vómitos, diarreia, dor abdominal) e cardiovascular (tonturas, hipotensão, síncope).1,2,4,5
A anafilaxia representa a forma mais grave de alergia ali mentar.1 Clinicamente a anafilaxia pode manifestar-se de for mas diversas, sendo que o seu diagnóstico nem sempre é fácil e evidente.8 Para o diagnóstico de anafilaxia é necessário que haja envolvimento de pelo menos dois sistemas orgânicos (Tabela 1).1,5,6,9 Na maioria das vezes (80-90%) caracteriza-se por sintomas mucocutâneos, associados a um ou mais sintomas de outros sistemas (respiratório, gastrointestinal, cardiovascular).5,6,9-,11 O diagnóstico tardio associa-se a uma maior taxa de mortalidade.8,10 A melhor forma de prevenção da anafilaxia é a evicção do alergénio, no entanto, tal nem sempre é possível, acontecendo reações acidentais. Deste modo, sempre que ocorre um contacto com o alergénio é fundamental reconhecer os sintomas iniciais da reação alérgica e atuar de imediato. A adrenalina intramuscular constitui o fármaco de primeira linha para os casos de anafilaxia.2,5,8,9,11,12 Uma vez que a anafilaxia é uma patologia potencialmente fatal se não for reconhecida e ra pidamente tratada, torna-se fundamental o ensino dos doentes e das pessoas que contactam com estes, de modo a aprende rem a reconhecer precocemente os sinais/sintomas da anafila xia e a usar corretamente a caneta de adrenalina.13
A partir do projeto denominado Programa de formação e prevenção da anafilaxia alimentar nas escolas, que é um pro jeto inter-hospitalar que envolve alguns hospitais nacionais e que tem o apoio da Sociedade Portuguesa de Alergologia Pediátrica (SPAP), realizamos formações nas escolas e infantários. É finalidade do programa formar os funcionários, que contactam com crianças com risco de anafilaxia, quanto a procedimentos corretos e intervenção precoce. O objectivo do estudo foi ava liar os resultados da implementação desta acção de formação no desenvolvimento da capacidade dos funcionários relativa ao reconhecimento desta situação clinica e actuação adequada.
MATERIAL E MÉTODOS
Estudo populacional, observacional e transversal que decorreu entre Dezembro de 2013 e Março de 2014.
Na Consulta de Pediatria Doenças Alérgicas do Centro Hospitalar do Alto Ave Unidade de Guimarães, foram selecionadas todas as crianças (total de 6 crianças) com antecedentes de anafilaxia por alergia alimentar (ovo, proteínas do leite de vaca, Kiwi, amendoim). A visita aos infantários/escolas destas crianças foi realizada após consentimento parental e após os estabele cimentos de ensino disponibilizarem os funcionários (professores, auxiliares, cozinheiros e outros funcionários escolares que contactam com as crianças) para se proceder à formação. Foi realizada uma sessão teórico-prática sobre conceitos básicos de alergia alimentar e anafilaxia. Antes e após a sessão foi entregue um questionário de avaliação de conhecimentos. Este questio nário não está validado mas foi aprovado para ser usado nes te projeto pela SPAP. Para avaliação da pontuação global dos conhecimentos cada resposta correta foi cotada com um ponto, sendo que a pontuação máxima era de oito pontos. Sempre que as respostas dadas eram incompreensíveis, foram excluídas da base de dados. A população do estudo corresponde a todos os funcionários que aceitaram receber formação e ser submetidos a avaliação dos conhecimentos pré-concebidos e adquiridos após a formação. Foram excluídos do estudo os funcionários que não demonstraram interesse em receber formação.
As variáveis quantitativas recolhidas neste estudo foram submetidas a uma análise descritiva, através do cálculo de mé dias e desvio-padrão. Relativamente às variáveis qualitativas foram analisadas através do cálculo de frequências.
Para o estudo comparativo dos resultados globais antes e após a sessão teórico-prática recorreu-se ao teste t-student. O tratamento estatístico foi efetuado com recurso a software estatístico (SPSS Statistics versão 20), sendo que um valor de p igual ou inferior a 0.05 foi considerado estatisticamente significativo.
RESULTADOS
No total dos seis infantários e escolas visitadas receberam formação sobre alergia alimentar e anafilaxia 77 funcionários, dos quais 51 preencheram um questionário de avaliação de conhecimento antes e imediatamente após a sessão teórico-prática exposta.
O questionário entregue era constituído por dez questões, das quais oito eram de avaliação de conhecimento (questões 1,2,3,4,5,6,8,9) e duas (questões 7 e 10) eram de opinião pessoal acerca da qualidade e pertinência da sessão apresentada (Figura 1).
No gráfico 1 encontra-se discriminada a taxa de respostas certas e erradas, para cada uma das questões, antes de apresentada a sessão teórica. Pela análise do gráfico 1 verifica-se que 98% dos inquiridos acertaram nas questões 1 e 6, reconhecendo a anafilaxia como uma emergência médica poten cialmente fatal (questão 1) e que mesmo quantidades mínimas do alergénio podem despoletar uma reação anafilática (questão 6). Constatou-se também que 92% dos formandos sabiam que após uma reação anafilática era imprescindível contactar o 112 (questão 3) e reconheciam que a adrenalina era o tratamento de eleição (questão 8). Setenta e um por cento sabiam que a reação anafilática pode ocorrer após qualquer tipo de contacto com o alergénio (questão 5) e 65% sabiam identificar possíveis acontecimentos desencadeantes de anafilaxia (questão 4). A identificação dos sintomas inerentes a uma reação anafilática foi conseguida por 56% dos formandos (questão 2) e 55% reconheciam o modo correto de administração da adrenalina (questão 9).
Relativamente às respostas dadas após a sessão teórica (gráfico 2), verificou-se uma melhoria global dos resultados, sendo que a taxa de respostas certas variaram entre 75% (questão 9) e 100% (questões 1 e 3).
Quando comparadas a taxa de respostas certas antes e depois da formação teórica (gráfico 3), verificou-se que a maior taxa de aprendizagem diz respeito às questões que abordavam os sintomas (questão 2) e causas possíveis da anafilaxia (questões 4 e 5) e o uso adequado da caneta de adrenalina (questão 9).
Vinte e cinco por cento das pessoas presentes na formação nunca tinham ouvido falar no auto-injetor de adrenalina (questão7).
No que diz respeito à pontuação global (0-8 pontos) antes da sessão obteve-se uma pontuação média de 6,3±1,3 pontos (mínimo 2 e máximo 8). Após a sessão teórica a pontuação média subiu para 7,5±0.8 pontos (mínimo 5 e máximo 8). Esta diferença foi estatisticamente significativa (p<0.001).
Todos os participantes consideraram que a sessão foi útil e mostraram disponibilidade para receber mais formações sobre este e outros temas relacionados (questão 10).
DISCUSSÃO
Em Pediatria, a alergia alimentar constitui a principal causa de anafilaxia no ambulatório.5,10,11 Dentro dos vários alergénios alimentares, alguns tendem a desenvolver tolerância na primeira década de vida (alergia ao leite, ovo, soja, trigo) enquanto outros alergénios tendem a perdurar toda a vida (amendoim, noz, ma risco, peixe).2,14,15 Nos casos em que a alergia persiste, é fundamental a evicção do alergénio de modo a prevenir reações sistémicas potencialmente fatais.13 Uma vez que a anafilaxia é uma emergência médica potencialmente fatal se não reconhecida e não tratada adequadamente, é fundamental o ensino regular dos doentes, dos seus familiares e contactos mais próximos para que se tornem capazes de reconhecer os sintomas da anafilaxia e saibam utilizar corretamente o auto-injetor de adrenalina.13
Com este trabalho verificou-se que a grande maioria dos funcionários das escolas/infantários sabiam que a anafilaxia era uma emergência médica, que podia ser despoletada mesmo com pequenas quantidades de alergénio, reconheciam a necessidade de contactar o 112 após a anafilaxia e sabiam que o fármaco de eleição é a adrenalina. No entanto, apenas metade das pessoas sabiam reconhecer os sintomas inerentes a uma rea ção anafilática apesar de contactarem diariamente com crianças e/ou adolescentes com antecedentes de anafilaxia e somente 25% tinham ouvido falar do auto-injetor de adrenalina apesar desta ser transportada diariamente pelas mesmas. Através da comparação das pontuações totais antes e depois da sessão teórica, verificou-se que a formação teve um impacto positivo no conhecimento geral sobre a alergia alimentar e abordagem de uma reação anafilática. Todos os participantes do estudo reconheceram a importância deste tipo de formação e demonstraram vontade em receber formações periódicas.
O presente estudo apresenta algumas limitações que importa realçar. Trata-se de um estudo de pequenas dimensões o que limita o significado estatístico e a extrapolação dos resultados para a população geral. Uma vez que a amostra estudada era constituída por funcionários que lidavam diariamente com crianças com antecedentes de anafilaxia por alergia alimentar, o seu conhecimento geral acerca de alergia alimentar e anafilaxia provavelmente será superior ao da população que não contacta com estas crianças. Por outro lado, o fato da avaliação ter sido feita imediatamente após a exposição teórica pode estar associado aos bons resultados da formação.
Não foram encontrados estudos semelhantes que permitissem comparar os resultados obtidos na nossa amostra com outra população.
CONCLUSÃO
Com este trabalho demonstrou-se que metade das pessoas que contactam diariamente com crianças com antecedentes de anafilaxia não sabe reconhecer nem atuar perante esta. Sabendo que a anafilaxia pode ser fatal e que é potencialmente reversível através do uso da adrenalina, torna-se fundamental o ensino da comunidade para esta problemática.13 Este tipo de formação na comunidade é muito importante podendo ter um impacto benéfico na ajuda de crianças com alergia alimentar. Apesar das limitações estatísticas desde estudo, a formação dos funcionários parece ter tido um impacto positivo na aquisição de noções básicas de alergia alimentar e anafilaxia, uma vez que se verificou um aumento significativo no conhecimento deste tema.
Salienta-se a necessidade de continuar e propagar este tipo de ação comunitária, pois só deste modo será possível reduzir a prevalência da anafilaxia e diminuir a sua taxa de mortalidade. São necessários mais estudos e de maiores dimensões que avaliem o conhecimento geral da comunidade acerca desta temática e que averiguem a vantagens a longo prazo deste tipo de intervenção comunitária.
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Endereço para correspondência
Helena Ferreira
Rua dos Cutileiros, Creixomil.
4835-044 Guimarães.
E-mail: helena-of@hotmail.com
Telefone: 253 540 330
Recebido a 14.07.2014 | Aceite a 10.04.2015