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Nascer e Crescer
versão impressa ISSN 0872-0754
Nascer e Crescer vol.25 no.2 Porto jun. 2016
ARTIGOS ORIGINAIS / ORIGINAL ARTICLES
Hemoculturas positivas num serviço de pediatria: 2003-2012
Positive blood cultures from a pediatric department: 2003-2012
Carla GarcezI; Vera BaptistaI; Liliana AbreuI; Ariana AfonsoI; Alexandra EstradaII; Manuela Costa AlvesI
I S. de Pediatria, Hospital de Braga. 4710-243 Braga, Portugal. carla.garcez@live.com.pt; verabaptista1@sapo.pt; liliana.abreu@gmail.com;ariana.afonso@gmail.com; manuelacostaalves@gmail.com
II S. de Patologia Clínica, Hospital de Braga. 4710-243 Braga, Portugal. alexandra.estrada@hospitaldebraga.pt
RESUMO
Introdução: Em situações clínicas selecionadas é aconselhada investigação complementar da criança com febre, nomeadamente realização de hemocultura.
Objetivos: Analisar as hemoculturas positivas por bactérias patogénicas num serviço de pediatria, nomeadamente agentes mais frequentes, sua evolução, respetivos antibiogramas e correlação com dados clínicos.
Material e Métodos: Estudo retrospetivo de dados microbiológicos das bactérias patogénicas isoladas em hemoculturas e dados clínicos de crianças com idade entre um mês e 17 anos, admitidas num serviço de pediatria, entre 2003 e 2012.
Resultados: No período estudado, a percentagem anual de hemoculturas positivas por bactérias potencialmente patogénicas variou entre 0,8% e 2,9%. No total isolaram-se 158 bactérias patogénicas, sendo mais frequentes: Staphylococcus aureus (29,1%), Streptococcus pneumoniae (27,8%), Escherichia coli (10,1%), Enterococcus faecalis (8,2%), Neisseria meningitidis (5,7%) e Streptococcus pyogenes (5,7%). Nenhuma Neisseria meningitidis foi resistente à resistente à ampicilina, 9% dos Streptococcus pneumoniae tiveram resistência intermédia à penicilina, 8,7% dos Staphylococcus aureus tiveram resistência à meticilina e 6,3% das Escherichia coli tinham resistência à amoxicilina/ácido clavulânico. Sessenta e sete porcento das hemoculturas positivas por bactérias patogénicas correspondiam a crianças com idade inferior a 36 meses. Os diagnósticos mais relevantes foram: bacterié- mia oculta, pneumonia, sépsis, meningite e pielonefrite. Ocorreu um óbito devido a choque sético (Streptococcus pneumoniae).
Conclusão: Nos 10 anos analisados, as bactérias mais frequentes foram: Staphylococcus aureus, Streptococcus pneumoniae e Escherichia coli. Verificou-se diminuição da incidência da Neisseria meningitidis após 2005 e do Streptococcus pneumoniae após 2007. As suscetibilidades das diferentes bactérias patogénicas aos antimicrobianos mantiveram-se estáveis. Enfatiza-se a importância epidemiológica e clínica da monitorização de dados microbiológicos.
Palavras-chave: bactéria patogénica; hemocultura; idade pediátrica; suscetibilidade antibiótica.
ABSTRACT
Introduction: In selected clinical situations is recommended to investigate the child with fever, including performing blood culture. Aim: To analyze positive blood cultures for pathogenic bacteria in a pediatric department, including the most common agents, its evolution, respective antibiotic susceptibility and correlation with some clinical data.
Methods: Retrospective analysis of microbiological data of pathogens isolated in blood cultures and clinical data from children aged one month to 17 years, admitted in a pediatric department between 2003 and 2012.
Results: During the study period, the annual rate of positive blood cultures for potentially pathogenic bacteria ranged between 0.8% and 2.9%. In total, were isolated 158 pathogenic bacteria and the most common were: Staphylococcus aureus (29,1%), Streptococcus pneumoniae (27,8%), Escherichia coli (10,1%), Enterococcus faecalis (8,2%), Neisseria meningitidis (5,7%) and Streptococcus pyogenes (5,7%). No Neisseria meningitidis were resistant to ampicillin, 9% of Streptococcus pneumoniae had intermediate resistance to penicillin, 8,7% of Staphylococcus aureus were resistant to methicillin and 6,3% of Escherichia coli were resistant to amoxicillin/clavulanic acid. Sixty-seven percent of positive blood cultures for pathogenic bacteria corresponded to children under the age of 36 months. The most relevant diagnoses were: occult bacteremia, pneumonia, sepsis, meningitis and pyelonephritis. A child died due to septic shock (Streptococcus pneumoniae).
Conclusion: In the 10 years analyzed, the most common bacteria were: Staphylococcus aureus, Streptococcus pneumoniae and Escherichia coli. The incidence of Neisseria meningitidis after 2005 and Streptococcus pneumoniae after 2007 decreased. Susceptibility of different pathogenic bacteria to antimicrobials remained stable. We emphasize the importance of epidemiological and clinical monitoring of microbiological data.
Keywords: antibiotic susceptibility; blood culture; pathogenic bacteria; pediatric.
INTRODUÇÃO
A febre é o sintoma que mais frequentemente motiva a observação nos serviços de urgência e a admissão hospitalar em idade pediátrica. A maioria das crianças com febre apresenta uma intercorrência infeciosa aguda, de etiologia vírica ou bacteriana, benigna e frequentemente auto-limitada.1 No entanto, em algumas poderá ser identificada uma infeção potencialmente mais grave, como a sépsis, meningite, pneumonia, pielonefrite ou osteomielite.1-3
Assim, em situações clínicas selecionadas, seja pela gravidade clínica, pela idade ou pela ausência de foco identificável, é aconselhada investigação complementar da criança com febre, nomeadamente realização de hemocultura.1-4 Através deste exame poder-se-á identificar o microorganismo envolvido, assim como a respetiva suscetibilidade aos antibióticos. A monitorização destes dados permite um conhecimento adicional sobre a evolução epidemiológica e microbiológica dos microorganis- mos em causa, com implicações ao nível clínico.
Os microorganismos identificados nos casos de bacterié- mia têm vindo a modificar-se ao longo dos anos, devido sobretudo à implementação crescente de novas vacinas.2,3,5-7 Em Portugal, a vacina contra o Haemophilus influenzae tipo b foi introduzida no Programa Nacional de Vacinação (PNV) em 2000. A vacina meningocócica C é comercializada em Portugal desde setembro de 2001 e faz parte do PNV desde janeiro de 2006. A vacina pneumocócica heptavalente é comercializada no nosso país desde 2001 e a trezevalente está disponível desde 2010, sendo que esta foi incluída no PNV em julho de 2015. Desde abril de 2014 é comercializada no nosso país a vacina meningocócica B.
Os objetivos deste estudo foram identificar as hemoculturas positivas obtidas no serviço de pediatria de um hospital de nível III, identificar os agentes potencialmente patogénicos mais frequentes, sua evolução e padrão de sensibilidade antibiótica, e correlacionar os resultados com dados clínicos.
É importante conhecer a epidemiologia e padrão de sensibilidade locais dos agentes patogénicos da comunidade em que nos inserimos, já que estes dados vão contribuir para a adequação do tratamento empírico antibiótico e, assim, para a evição do surgimento de novas resistências aos antibióticos.
MATERIAL E MÉTODOS
Realizou-se uma análise retrospetiva de todas as hemoculturas colhidas no serviço de pediatria em crianças com idade superior a 28 dias e inferior a 18 anos, entre janeiro de 2003 e dezembro de 2012. Foram consideradas as hemoculturas colhidas no serviço de urgência e internamento do serviço de pe- diatria, excluindo-se as provenientes da Unidade de Cuidados Especiais Neonatais.
As indicações para colheita de hemocultura estiveram de acordo com os protocolos existentes no serviço.
O número total de hemoculturas colhidas no serviço de pe- diatria, os microorganismos identificados e os respetivos antibiogramas, foram obtidos através dos dados informáticos do serviço de patologia clínica. As hemoculturas foram processadas de acordo com métodos clássicos, padronizados internacionalmente. Foi considerado apenas um agente microbiano por cada criança, em cada período de doença.
Considerou-se bactéria potencialmente patogénica os seguintes agentes: Neisseria meningitidis, Streptococcus pneumoniae, Staphylococcus aureus, Escherichia coli, Salmonella spp, Brucella spp, Streptococcus pyogenes, Pseudomonas aeruginosa, Haemophilus influenzae, Klebsiella pneumoniae e Enterococ- cus faecalis.
Considerou-se bactéria não patogénica os seguintes agentes: Acinectobacter lwoffii, Aerococcus viridans, Kocuria kristinae, Kocuria rosea, Staphylococcus hominis, Staphylococcus simulans, Staphylococcus epidermidis, Staphylococcus cohnii, Staphylococcus haemolyticus, Staphylococcus warneri, Stenotrophomonas maltophilia, Streptococcus mitis, Streptococcus salivaris, Streptococcus bovis, Streptococcus sanguis, Micrococcus roseus, Micrococcus varians, Moraxella lacunata, Gemella morbilorum, Pseudomonas stutzeri, Pseudomonas putida, Burkholderia mallei, Burkholderia pickettii, Dermacoccus nishinomiyaensis, Corynebacterium propinquum. Nenhuma das bactérias consideradas não patogénicas foi isolada duas vezes no mesmo doente durante o mesmo episódio de doença, incluindo quando colhidas de locais diferentes, como em portadores de acesso venoso central.
Considerando a frequência dos agentes, foram analisadas as seguintes suscetibilidades microbianas: da Neisseria meningitidis à penicilina/ampicilina; do Streptococcus pneumoniae à penicilina e cefalosporinas; do Staphylococcus aureus à meticilina; da Escherichia coli à amoxicilina/ácido clavulânico e cefalosporinas.
A taxa de contaminação foi calculada da seguinte forma: número de hemoculturas positivas por bactérias contaminantes/ número hemoculturas realizadas.
Foram revistos os processos clínicos informáticos das crianças identificadas com hemocultura positiva por bactéria potencialmente patogénica e registados os seguintes dados: idade, ano de observação no serviço de pediatria, antecedentes patológicos relevantes, situação vacinal, diagnóstico de alta e evo- lução clínica.
Considerou-se o diagnóstico de bacteriémia oculta na situação clínica em que se demonstrou a presença de uma bactéria no sangue através de hemocultura, em criança febril, com bom estado geral e sem foco identificado.1
A base de dados e os gráficos foram contruídos utilizando o programa informático Microsoft Office Excell, versão 2013®. Recorreu-se ao mesmo software para efetuar a análise estatística dos dados. Para a construção das tabelas recorreu-se ao programa informático Microsoft Office Word, versão 2013®.
RESULTADOS
Durante os 10 anos do estudo, a população total de crianças admitidas no serviço de urgência em cada ano variou entre 29315 e 42443 e no internamento entre 1363 e 1927. Durante este período foram efetuadas 7641 hemoculturas, das quais 6859 no serviço de urgência e 784 no internamento.
A percentagem de colheitas por cada ano, em relação ao número de admissões, variou entre 1,4% (2010) e 2,2% (2007) no serviço de urgência, e entre 3,7% (2012) e 6% (2003) no internamento. Do total de hemoculturas, foram positivas 1250 (16,4%), das quais 1146 no serviço de urgência e 104 no internamento. Na figura 1 está representado o número total de hemoculturas colhidas e hemoculturas positivas por ano.
Na figura 2 encontra-se representada a percentagem de bactérias potencialmente patogénicas e a percentagem de bactérias contaminantes, em relação ao total de hemoculturas colhidas para cada ano estudado. A percentagem global de bactérias potencialmente patogénicas em relação ao total das hemoculturas foi de 2,1%, tendo variado entre 0,8% e 2,9%. A percentagem global de bactérias contaminantes em relação ao total das hemoculturas foi de 14,3%, tendo variado entre 10,9% e 16,4%. A maioria (47%) destes microorganismos era Staphylococcus coagulase negativo (Staphylococcus epidermidis). No período de dez anos isolaram-se 158 bactérias potencialmente patogénicas, conforme está representado na Tabela 1. Os agentes mais frequentemente isolados foram: Staphylococcus aureus (29,1%), Streptococcus pneumoniae (27,8%) e Escherichia coli (10,1%).
Relativamente ao estudo das suscetibilidades aos antimicrobianos para Neisseria meningitidis, Streptococcus pneumoniae, Staphylococcus aureus e Escherichia coli verificou-se que quatro (8,7%) estirpes de Staphylococcus aureus apresentavam resistência à meticilina e quatro (9%) estirpes de Streptococcus pneumoniae tinham suscetibilidade intermédia à penicilina. Eram suscetí- veis à cefotaxima e/ou ao ceftriaxone 97,7% dos Streptococcus pneumoniae (não foi testada a sensibilidade de uma (2,3%) estir- pe de Streptococcus pneumoniae às cefalosporinas). Não foram isoladas estirpes de Neisseria meningitidis resistentes à ampicilina.
Relativamente à suscetibilidade aos antimicrobianos da Escherichia coli, duas (12,5%) estirpes apresentavam suscetibilidade intermédia à amoxicilina/ácido clavulânico, uma (6,3%) estirpe apresentava resistência à amoxicilina/ácido clavulânico e todas eram suscetíveis ao cefuroxime-axetil e/ou à cefotaxima.
Após análise dos processos clínicos referentes às crianças com hemocultura positiva por bactérias potencialmente pato- génicas, os diagnósticos de alta mais relevantes foram: bacteriémia oculta, pneumonia, sépsis, meningite e pielonefrite. Na Tabela 2 estão representados os diagnósticos de alta associados às infeções provocadas pelas seis bactérias potencialmente patogénicas mais frequentemente isoladas em hemocultura.
Relativamente à identificação dos agentes isolados em hemocultura em culturas de outros produtos biológicos verificou-se que foi colhido líquido cefalorraquidiano em 15 casos de meningite, com isolamento microbiológico do mesmo agente em dez casos (66,7%); em oito casos de pneumonia com derrame pleural foi colhido líquido pleural, com exame microbiológico positivo apenas num caso (12,5%); nos 17 casos de pielonefrite a mesma bactéria foi isolada em amostra de urina. Em nenhum caso de artrite foi realizado exame microbiológico do líquido articular.
Relativamente à distribuição por idade dos doentes com iso- lamento em hemocultura de bactérias patogénicas, verificou-se que 32 (20%) tinham entre um e três meses; 88 (56%) tinham entre três e 36 meses; e 38 (24%) tinham mais de 36 meses.
Para os lactentes entre um e três meses as bactérias isoladas em hemocultura e respetivos diagnósticos de alta foram: Staphylococcus aureus em 13 casos (sete bacteriémias, duas pneumonias, uma celulite, uma sépsis, uma varicela e uma meningite); Escherichia coli em cinco casos (duas pielonefrites, duas sépsis, com e sem meningite, uma bacteriémia); Streptococcus agalactiae em cinco casos de sépsis; Enterococcus faecalis em quatro casos de bacteriémia; Streptococcus pneumoniae em dois casos (uma sépsis com meningite e uma meningite com choque sético); Haemophilus influenza num caso de pneumonia num lactente com um mês de vida e Moxarella catarrhalis num caso de pneumonia.
Relativamente à situação vacinal para a vacina antipneumocócica das crianças com infeção por Streptococcus pneumoniae, esta era conhecida em 12 casos (12/44): nove tinham o esquema completo com a vacina heptavalente (oito pneumonias em crianças entre três e oito anos e uma sépsis com meningite numa criança de 4 anos, sem antecedentes patológicos de relevo); as restantes correspondiam a lactentes com esquema atualizado para a idade (quatro meses, sépsis com meningite; oito meses, bacteriémia; nove meses, pneumonia). Não foi possível ter acesso aos serotipos referentes aos Streptococcus pneumoniae isolados em hemocultura.
Não existiam dados suficientes nos processos clínicos sobre a situação vacinal extra PNV para as crianças com infeção por Neisseria meningitidis, no entanto todas tinham o PNV atualizado. Em relação à Neisseria meningitidis, das nove estirpes isoladas, sete eram do serogrupo B e duas do serogrupo C.
Em relação à evolução clínica das crianças com hemocultura positiva por bactérias potencialmente patogénicas no período de tempo estudado, um lactente de 3 meses, sem antecedentes patológicos de relevo, faleceu por choque sético com meningite por Streptococcus pneumoniae sensível à penicilina e cefalosporinas de 3ª geração (realizou terapêutica com ceftriaxone, no entanto faleceu nas primeiras horas após admissão hospitalar). Cinco crianças com bacteriémia oculta por Staphylococcus aureaus (um) e Enterococcus faecalis (quatro), e uma com gastroenterite aguda por Salmonella enteritidis tiveram boa evolução clínica, sem terapêutica antibiótica.
DISCUSSÃO
Vários estudos internacionais abordam a análises das hemoculturas em idade pediátrica, sobretudo no grupo etário entre os três e 36 meses e relativamente a crianças com febre sem foco identificável,2,5,7-9 o que não permite a comparação com os nossos dados.
Dois estudos europeus, um realizado na Escócia em 2003 (crianças ≤15 anos),10 e outro em Barcelona em 2008-2009 (crianças ≤18 anos),11 analisaram as hemoculturas colhidas nos respetivos serviços de urgência pediátricos. No plano nacional a referir dois estudos: um no serviço de urgência do Hospital Pediátrico de Coimbra (crianças ≤12 anos)12 e outro no serviço de urgência pediátrico do Hospital de São Teotónio em Viseu (crianças ≤15 anos).13 O presente trabalho analisou as hemocul- turas colhidas no serviço de urgência e internamento pediátricos (crianças ≤17 anos), pelo que a comparação com os resultados dos trabalhos anteriores deve considerar estas diferenças.
No período de tempo estudado, foram admitidas, em média, 37088 crianças por ano no serviço de urgência, e 1615 crianças por ano no internamento. Em relação ao número total de ad- missões, a média anual de hemoculturas efetuadas foi de 1,9% das crianças que recorreram ao serviço de urgência, e 4,9% das que necessitaram de internamento. Globalmente, foram efetuadas em média 764 hemoculturas por ano, tendo sido positivas, em média, 125 hemoculturas anuais. O número de hemoculturas colhidas, hemoculturas positivas e a taxa de contaminação manteve-se relativamente constante ao longo dos anos. A percentagem global de hemoculturas positivas foi 16,4%, e considerando apenas as hemoculturas efetuadas no serviço de urgência este valor foi de 15,9%, substancialmente acima do descrito nos estudos de Barcelona, Escócia e Coimbra, que variou entre 4,9-9,6%.10-12 Situa-se, no entanto, perto do valor obtido em Viseu (14.4%).13 A disparidade observada justifica-se pelo número elevado de hemoculturas positivas por bactérias consideradas não patogénicas. No nosso estudo, a taxa de contaminação global foi elevada (14,3% de todas as hemoculturas efetuadas, e 14,1% tendo em conta apenas as hemoculturas colhidas no serviço de urgência), próxima da registada em Viseu (11,7%).13 Todavia, encontra-se muito acima do registado noutros estudos (3,4-7,3%).10-12 Nos trabalhos que incluem crianças entre os três e os 36 meses de vida, a percentagem é ainda mais pequena, variando de 1,2% a 2,1%.6 Os Staphylococcus coagulase negativo constituíram, como para a maioria dos autores, os agentes contaminantes mais frequentes.10-13 No entanto, deve ter-se em consideração que o Staphylococcus epidermidis e outros Staphylococcus coagulase negativo podem apresentar patogenicidade, particularmente em doentes imunodeprimidos, portadores de cateter venoso central e após a realização de procedimentos invasivos.14 A taxa de contaminação não deve exceder os 3%, e estudos apontam para que intervenções informativas relativamente simples acerca das práticas de desinfeção e flebotomia junto de enfermeiros e médicos possam ter efeitos significativos sobre a taxa de contaminação.15 Outros autores afirmam que, na tentativa de evitar o desconforto das crianças, a maioria dos centros pediátricos usa os cateteres endovenosos já existentes para a colheita da hemocultura, em alternativa a nova punção venosa periférica, assim como a co- lheita de uma única hemocultura, o que tem contribuído para as elevadas taxas de contaminação na idade pediátrica.16 No nosso centro é efetuada habitualmente uma única hemocultura, e a colheita é realizada frequentemente no momento da punção venosa periférica, no entanto, perante a existência de cateter venoso periférico, não existem indicações específicas para a realização de nova punção venosa. O procedimento de colheita define a lavagem das mãos, uso de luvas e desinfeção local da pele com solução de base alcoólica no local da punção. Não foi realizada uma análise dos métodos de colheita de hemocultura no nosso hospital; no entanto será de extrema importância a realização futura de ações informativas para as equipas médicas e de enfermagem, no sentido de otimizar a execução deste procedimento e, assim, contribuir para uma redução das taxas de contaminação das culturas.
No período de 10 anos, os agentes mais frequentemente isolados foram Staphylococcus aureus, Streptococcus pneumoniae e Escherichia coli. O número de isolamentos das diversas bactérias manteve-se relativamente constante ao longo dos anos, com exceção do Streptococcus pneumoniae e da Neisseria meningitidis. Algumas séries descrevem aumento da importância relativa do Staphylococcus aureus, Escherichia coli e Salmonella spp. após introdução da vacina pneumocócica heptavalente,6 o que não se verificou neste trabalho. Alguns estudos reportam o Streptococcus pneumoniae e a Escherichia coli como os agen- tes mais frequentemente isolados em hemoculturas.10,11,13
Verificou-se diminuição dos isolamentos da Neisseria meningitidis após 2005 e do Streptococcus pneumoniae após 2007. Após 2006, ano da introdução da vacina meningocócica C no PNV, todas as estirpes de Neisseria meningitidis isoladas foram do serogrupo B. No nosso hospital não se faz por rotina a determinação do serotipo do Streptococcus pneumoniae. No entanto, dado o reduzido número de casos devidos a Neisse- ria meningitidis e a Streptococcus pneumoniae, não é possível estabelecer relação com a introdução no mercado das vacinas pneumocócica heptavalente e meningocócica C.
Um trabalho dos grupos de estudo da Infeção Estrepto- cócica e da Doença Invasiva Pneumocócica da Sociedade de Infeciologia Pediátrica da Sociedade Portuguesa de Pediatria que analisou dados nacionais do período entre 2008 e 2012 demonstrou que, em Portugal, a incidência de doença invasiva pneumocócica na idade pediátrica diminuiu em 2011 e 2012, o que resultou de reduções significativas no número de casos devido aos serotipos adicionais incluídos na vacina pneumocócica dez e trezevalente (nomeadamente, os serotipos 1, 5 e 7F, uma redução de 37,6% para 20,6%), assim como aos serotipos adicionais incluídos na vacina pneumocócica trezevalente (nomeadamente, os serotipos 3, 6A e 19A, com diminuição de 31,6% para 16,2%). No período estudado os serotipos mais fre- quentemente isolados foram o 1, 7F, 14 e 19A. Embora se tenha observado uma redução na incidência de serotipos da vacina trezevalente, estes mantiveram-se os principais responsáveis pela doença invasiva pneumocócica (63,2% em 2011 e 2012). Esta diminuição foi parcialmente compensada por um aumento na incidência de serotipos não vacinais; no entanto o resultado global observado foi uma redução substancial na incidência de doença invasiva pneumocócica pediátrica.17,18
Foi isolado um Haemophilus influenzae numa hemocultura em 2008, num lactente de um mês, sem antecedentes patológicos de relevo. No estudo de Viseu foi isolado Haemophilus influenzae em 3 crianças, ao contrário do estudo do Hospital Pediátrico de Coimbra, em que a partir do ano 2000 não se veri- ficaram isolamentos deste microrganismo.12,13
No presente trabalho, não foram encontradas estirpes de Neisseria meningitidis resistentes à penicilina. Apenas 9% dos Streptococcus pneumoniae apresentavam susceptibilidade intermédia à penicilina, e 97,7% eram suscetíveis às cefalospo- rinas de 3ª geração. Das estirpes de Escherichia coli isoladas, 6,3% apresentavam resistência à associação amoxicilina e ácido clavulânico, mas 100% eram suscetíveis às cefalosporinas de 2ª e/ou 3ª geração. Estes dados estão de acordo com o en- contrado noutros estudos nacionais.12,13 De referir que o trabalho dos grupos de estudo da Infeção Estreptocócica e da Doença Invasiva Pneumocócica da Sociedade de Infeciologia Pediátrica verificou que das estirpes de Streptococcus pneumoniae identificadas entre 2008 e 2012, 28,1% não eram suscetíveis à penicilina: 20,9% apresentavam resistência de baixo nível à penicilina e 7,1% tinham resistência de alto nível à penicilina.17
Relativamente à correlação clínica e microbiológica, verificou-se que em 76% dos casos a idade era igual ou inferior a 36 meses.
A hemocultura teve bastante relevância também no diagnóstico de infeções em que foi realizado exame microbiológico de outros produtos biológicos, nomeadamente em 33% dos casos de meningite e 87,5% dos casos de pneumonia com derrame pleural, nos quais o líquido cefalorraquidiano e o líquido pleural foram estéreis. O agente associado a todas as infeções osteoarticulares foi identificado em hemocultura.
O Staphylococcus aureus foi frequentemente isolado em associação a infeções osteoarticulares, conforme descrito noutras séries,12,13 mas também de forma apreciável em situações de bacteriémia oculta e sépsis, com ou sem meningite, todas com evolução favorável.
Relativamente ao Streptococcus pneumoniae, predominaram situações relativamente benignas de pneumonia e bacteriémia oculta, embora tenha ocorrido um óbito por choque sético. Tinham vacina pneumocócica 27% das crianças com isolamento deste agente; no entanto o desconhecimento dos serotipos de Streptococcus pneumoniae envolvidos impossibilita chegar a conclusões relativamente à vacina pneumocócica. Os casos com identificação de Streptococcus pneumoniae com suscetibilidade intermédia à penicilina corresponderam a dois casos de bacteriémia oculta, uma pneumonia e uma meningite, todas com evolução favorável, não se verificando neste estudo correlação linear entre a presença de suscetibilidade intermédia à penicilina e a doença invasiva pneumocócica mais grave, como se poderia esperar.
Dos casos com isolamento de Escherichia coli, 75% corresponderam a pielonefrites. Os casos de sépsis com e sem meningite com isolamento desta bactéria ocorreram em lactentes até aos 3 meses de idade.
Para a Neisseria meningitidis predominaram as formas de infeção grave, nomeadamente a meningite ou sépsis associada a meningite, embora sem nenhum óbito.
Os dados clínicos relativamente aos diagnósticos associados ao Streptococcus pneumoniae, Escherichia coli e Neisseria meningitidis estão de acordo com o descrito a nível nacional.12,13 Obtivemos um número importante de isolamentos de Enterococcus faecalis que não foi observada noutros trabalhos, no entanto todos associados a infeções relativamente benignas e com evolução favorável, sendo que em quatro casos de bac- teriémia oculta com isolamento deste agente não foi instituída terapêutica antibiótica. Dos restantes casos de hemocultura positiva com isolamento de Enterococcus faecalis, cinco corresponderam a pielonefrites em lactentes e crianças entre os 4 e os 15 meses e quatro a casos de bacteriémia oculta em lactentes e crianças que realizaram tratamento antibiótico (lactente de 7 meses com antecedentes de cardiopatia congénita; criança de um ano com antecedentes de doença de Hirshprung e portadora de cateter venoso central; crianças de 4 e 7 anos, sem antecedentes patológicos de relevo). Na população pediátrica, os recém-nascidos e lactentes apresentam maior suscetibilidade a infeções, incluindo aquelas provocados por Enterococcus. Além disso, são fatores de risco para a colonização e infeção por estes agentes a presença de comorbilidades, imunossupressão, realização de procedimentos invasivos, presença de acesso venoso central, tratamento prévio com antibiótico e internamento hospitalar prévio, principalmente em unidades de cuidados intensivos.19,20 No nosso trabalho, nove casos com isolamento deste agente em hemocultura ocorreram até aos 15 meses de idade, e, destes, quatro casos até aos três meses de idade. Dos restantes, três apresentavam algum fator de risco para infeção por Enterococcus.
O Streptococcus pyogenes foi isolado em infeções cutâneas e casos de bacteriémia oculta.
Relativamente aos dois isolamentos de Pseudomonas aeruginosa corresponderam a: lactente de 6 meses, sem antecedentes patológicos de relevo, com varicela complicada por sobreinfeção cutânea e sépsis associada; e sépsis em criança de 4 anos, sem antecedentes patológicos de relevo, internada após traumatismo abdominal com laceração renal.
Este trabalho apresenta algumas limitações, nomeadamente ao nível da metodologia utilizada. Realizou-se um estudo retrospetivo, no qual os dados colhidos foram obtidos a partir de suportes de informação que não foram desenhados especificamente para analisar as variáveis em estudo, pelo que poderão não ser tão fiáveis quanto os de um estudo prospetivo. A inexistência de registos completos quanto a situação vacinal das crianças em estudo, assim como, o desconhecimento dos serotipos de Streptococcus pneumoniae isolados, impossibilitou chegar a conclusões mais interessantes relativamente à relação entre vacinação e a evolução microbiológica dos agentes implicados, nomeadamente do Streptococcus pneumoniae e da Neisseria meningitidis. Ainda, algumas bactérias consideradas não patogénicas poderão ser causa de infeção em determina- dos hospedeiros, como no caso de doentes imunodeprimidos, o que pode ter subestimado o número de hemoculturas positivas por bactérias potencialmente patogénicas no presente trabalho. No entanto, nenhum dos agentes considerados não patogénicos foi isolado duas vezes no mesmo doente, durante o mesmo episódio de doença, como referido.
No presente estudo verificou-se diminuição do isolamento em hemocultura da Neisseria meningitidis após 2005 e do Streptococcus pneumoniae após 2007, e após 2006, todas as estir- pes de Neisseria meningitidis isoladas foram do serogrupo B. As restantes bactérias potencialmente patogénicas isoladas em hemocultura, mantiveram-se estáveis ao longo dos anos do estudo, assim como as suscetibilidades aos antimicrobianos para todos os agentes estudados. Os agentes isolados mais frequentes foram o Staphylococcus aureus, Streptococcus pneumoniae e Escherichia coli.
Assim, tendo em consideração os agentes mais frequente- mente isolados no serviço de pediatria do nosso hospital, e respetivas suscetibilidades microbianas, as penicilinas mantêm-se o antibiótico de escolha no tratamento empírico da suspeita de doença não meníngea de etiologia bacteriana, e as cefalosporinas de 3ª geração na doença meníngea ou de maior gravidade. A associação amoxicilina e ácido clavulânico ou, em alternativa, as cefalosporinas, mantêm-se escolhas indicadas para o trata- mento da pielonefrite.
Enfatiza-se a importância da monitorização dos dados microbiológicos da nossa comunidade, essencial para verificar a adequação dos protocolos de tratamento empírico das infeções mais frequentes, visando a redução do surgimento de resistên- cias aos antimicrobianos.
Finalmente, referir que a introdução recente da vacina pneumocócica trezevalente no PNV, assim com a comercialização em Portugal da vacina meningocócica B, poderão contribuir para alterações na epidemiologia infeciosa, o que provavelmen- te se irá refletir em investigações futuras.
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Endereço para correspondência
Carla Garcez
Serviço de Pediatria Médica
Hospital de Braga,
Sete Fontes
São Victor, 4710-243 Braga
Email: carla.garcez@live.com.pt
Recebido a 08.09.2015 | Aceite a 29.12.2015