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Nascer e Crescer
versão impressa ISSN 0872-0754
Nascer e Crescer vol.25 no.3 Porto set. 2016
CASOS CLÍNICOS / CASE REPORTS
Dor abdominal em adolescente
Abdominal pain in an adolescent
Filipa AlmeidaI; Cláudia MeloI; Susana Vilar SantosII; Diogo CunhaIII; Paula FonsecaI
I S. de Pediatria do Centro Hospitalar do Médio Ave. 4780-371 Santo Tirso, Portugal. flipalmeida@hotmail.com; crferraomelo@gmail.com; paulamrfonseca@hotmail.com
II Medicina Geral e Familiar do USF Terras do Ave, ACES Famalicão. 7465-628 Delães, Portugal. susanavilarsantos@gmail.com
III S. de Ginecologia e Obstetrícia do Centro Hospitalar do Médio Ave. 4780-371 Santo Tirso, Portugal. diogo.b.ferreira.cunha@gmail.com
RESUMO
Doente do sexo feminino de 16 anos de idade, recorreu ao serviço de urgência por dor abdominal com duas semanas de evolução localizada à fossa ilíaca esquerda (FIE) associada a obstipação. Negava atividade sexual, referindo último cataménio três semanas antes. Apresentava palpação abdominal dolorosa na FIE, sem defesa ou sinais de irritação peritoneal. Estudo analítico inicial e exame sumário de urina normais. Ecografia abdomino-pélvica revelou quisto complexo na região anexial esquerda e ascite de médio volume. Foi doseada a hormona gonadotrofina coriónica sérica que foi positiva (2608 mUI/mL). A ecografia transvaginal revelou quisto simples com área adjacente de aspeto reticular, não evidenciando qualquer imagem de saco gestacional intrauterino. Foi submetida a laparotomia exploradora, constatando-se hemoperitoneu e gravidez ectópica tubar esquerda e efetuada salpingectomia esquerda.
Os autores pretendem alertar para uma causa rara de dor abdominal na adolescência, que deverá ser considerada de forma a evitar um desfecho potencialmente fatal.
Palavras-Chave: dor abdominal; adolescente; gravidez ectópica
ABSTRACT
A 16-year-old adolescent presented to the Emergency Department with abdominal pain in the left lower quadrant with two weeks of duration and history of constipation. She denied onset of sexual activity and her last menses occurred three weeks before. On physical examination, she had a mild abdominal tenderness on the left lower quadrant. The initial blood workup and urine were normal. Abdominal and pelvic ultrasounds revealed a complex cyst on the left adnexal region and ascites. The serum hormone human chorionic gonadotropin was positive (2608 mUI/mL). Transvaginal ultrasound showed a simple adnexal cyst with a cobweb-like area contiguous to it. An intrauterine gestational sac was not seen. Exploratory laparotomy was performed showing an hemoperitoneum and a left ectopic tubal pregnancy. Salpingectomy was performed.
The authors intend to draw attention to a rare cause of abdominal pain in adolescence that should be considered in order to avoid a potentially fatal outcome.
Keywords: abdominal pain; adolescent; ectopic pregnancy
INTRODUÇÃO
A gravidez ectópica ocorre quando a implantação e o desenvolvimento do embrião ocorrem fora da cavidade uterina.1 A maioria dos casos (93-98%) ocorre na trompa de Falópio (gravidez tubar), mais frequentemente na sua porção ampular. 2-4,5
Segundo dados nacionais, a gravidez na adolescência tem vindo a diminuir gradualmente, refletindo-se no número de nados vivos em mães adolescentes (tabela 1) e no número de interrupções de gravidez realizadas nesta faixa etária (tabela 2). 6,7 No entanto, a prevalência exata da gravidez em adolescentes assim como a da gravidez ectópica, não são conhecidas. Estima-se que entre 1 a 2% de todas as gestações na Europa e Estados Unidos são gravidezes ectópicas, sendo a hemorragia da gravidez ectópica a principal causa de morte no primeiro trimestre de gravidez, representando 4 a 10% de todas as mortes relacionadas com a gravidez, relacionadas diretamente com o atraso do diagnóstico.3-5
A etiologia da gravidez ectópica não está esclarecida, mas vários fatores de risco para o seu desenvolvimento têm sido descritos, tais como: lesão tubar por cirurgia prévia; gravidez ectópica prévia; infertilidade, per se, e técnicas de procriação medicamente assistidas; infeção genital (especialmente por Chlamydia trachomatis); hábitos tabágicos; múltiplos parceiros sexuais e idade de início de atividade sexual inferior a 18 anos, sendo estes últimos fatores frequentemente encontrados na adolescência.2,4,5 No entanto, por vezes não existe qualquer fator de risco associado e pelo contrário, em alguns casos, raparigas com múltiplos fatores de risco não desenvolvem gravidez ectópica.2 O risco absoluto de gravidez ectópica está globalmente reduzido com a utilização de qualquer método de contraceção, na medida em que diminuem o número de conceções. Contudo, na ocorrência de falha do método contracetivo, a proporção de implantações ectópicas está aumentada em alguns casos, nomeadamente, na laqueação tubar, uso de dispositivo intrauterino, pílula progestativa e contraceção de emergência com altas doses de estrogénio.8
A apresentação clínica da gravidez ectópica normalmente ocorre no primeiro trimestre de gestação sendo a amenorreia (atraso menstrual), dor abdominal e hemorragia vaginal a tríade clássica, mas nem sempre presente.2
Cerca de 10% das gravidezes ectópicas podem ser assintomáticas e quando a sintomatologia está presente, é inespecífica e frequentemente subtil, dificultando o diagnóstico diferencial com outras patologias ginecológicas, gastrointestinais e genitourinárias, incluindo a apendicite aguda, salpingite, rutura de quisto do corpo lúteo, torção anexial ou infeção do trato urinário e atrasando o diagnóstico de gravidez ectópica.2 Sintomas menos comuns incluem náuseas, vómitos e diarreia. Uma gravidez ectópica com rutura, pode apresentar-se ainda como abdómen agudo (hemoperitoneu) e/ou evoluir para um choque hipovolémico, com necessidade cirúrgica emergente.2
É essencial o Pediatra estar familiarizado com a gravidez ectópica e incluí-la no diagnóstico diferencial de qualquer adolescente do sexo feminino sexualmente ativa que se apresente com dor abdominal. Os autores apresentam um caso de dor abdominal numa adolescente, cujo diagnóstico tardio implicou tratamento cirúrgico e risco de vida.
DESCRIÇÃO
Adolescente do sexo feminino de 16 anos de idade, sem antecedentes patológicos ou ginecológicos de relevo, recorreu ao serviço de urgência por dor abdominal na fossa ilíaca esquerda (FIE), intermitente com duas semanas de evolução associada a obstipação. Observada no dia anterior à admissão, foi medicada com enema retal (microlax®) e brometo de butilescopalamina (buscopan®), sem melhoria da dor. Negava febre, queixas urinárias, náuseas, vómitos ou diarreia. Sem sintomas respiratórios ou infeções prévias. Referia data do último cataménio três semanas antes da admissão, sendo mais abundante que o habitual e interlúnios regulares. Negava medicação habitual incluindo contracetivo oral. Numa primeira abordagem negou início de atividade sexual (IAS). Ao exame físico, apresentava-se apirética e hemodinamicamente estável. Objetivada palidez cutânea e palpação abdominal dolorosa à palpação profunda na FIE, sem defesa ou sinais de irritação peritoneal. O restante exame era normal. Realizou exame sumário de urina que não revelou alterações e efetuou estudo analítico incluindo hemograma sem alterações (hemoglobina 12,8g/dL) e proteína C reativa negativa. Por agravamento significativo da dor, efetuou ecografia abdominal e pélvica que revelou na área anexial esquerda, uma imagem quística complexa com cerca de 51mm de maior eixo e associadamente ascite de médio volume em todos os quadrantes (figura 1).
Após nova abordagem acabou por referir IAS cerca de três meses antes, admitindo apenas uso de método barreira (preservativo) e ainda ter tido relação sexual desprotegida um mês antes da admissão com utilização de contraceção hormonal de emergência 12 horas após a relação sexual.
Ao exame ginecológico, de referir vestígios de sangue na vagina, com colo inteiro e fechado. Realizou ecografia transvaginal que não evidenciou qualquer imagem de saco gestacional intrauterino, revelando um quisto simples na região anexial esquerda, com 58x44mm, com área adjacente de aspeto reticular e presença de líquido livre no fundo de saco de Douglas em quantidade moderada. Por suspeita de gravidez ectópica foi doseada a fração beta da hormona gonadotrofina coriónica sérica (beta-HCG) que foi positiva (2608 mUI/mL) e repetiu hemograma que revelou anemia normocítica normocrómica (hemoglobina 11,1g/dL e hematócrito de 33%). A adolescente foi submetida a uma laparotomia exploradora, constatando-se intra-operatoriamente hemoperitoneu de médio volume e gravidez ectópica tubar rota à esquerda, com rutura concomitante do corpo lúteo da gravidez, pelo que foi realizada salpingectomia esquerda. A cirurgia e a recuperação pós-operatória decorreram sem intercorrências. O resultado histológico da peça cirúrgica confirmou a diagnóstico de gravidez tubar com rutura (figura 2). O hemograma pós-operatório revelou uma hemoglobina de 9,0g/dL, tendo iniciado suplementação com ferro oral. Foi ainda efetuada a profilaxia da doença hemolítica perinatal em gravidez futura com administração de imunoglobulina anti-D após conhecimento do grupo sanguíneo materno (Rhesus negativo). Teve alta ao terceiro dia pós-operatório e foi orientada para consulta de Pediatria-Adolescentes. Na consulta, cerca de um mês depois, constatou-se normalização da hemoglobina e efetuou rastreio de infeções sexualmente transmissíveis incluindo HIV, vírus da hepatite B e C e sífilis e doseamento por reação em cadeia da polimerase (PCR) do DNA de Chlamydia trachomatis e Neisseria gonorrhoeae na urina, que foi negativo. Foi prestada informação sobre métodos contracetivos e aconselhada a dupla proteção (iniciou contracetivo oral, mantendo método de barreira).
DISCUSSÃO
Os autores alertam para a importância de uma anamnese pormenorizada na adolescência sobretudo quando relacionada com aspetos sensíveis como, neste caso, a sua sexualidade. Alertam também para o facto de na adolescência as frequentes irregularidades menstruais poderem atrasar a consideração desta entidade nosológica como diagnóstico provável. No entanto, a ausência de amenorreia numa adolescente não deve afastar a hipótese de uma gravidez ectópica. No caso descrito, havia inicialmente a negação de IAS e referência a cataménios regulares, o que levou ao atraso no estabelecimento do diagnóstico.
Estudos recentes defendem que qualquer adolescente que se apresente com dor abdominal, amenorreia ou hemorragia vaginal deve ser avaliada para a possibilidade de uma gravidez ectópica.1,9 As adolescentes apresentam mais frequentemente associação de dor abdominal e infeção genital por Chlamydia trachomatis e Neisseria gonorrhoeae, em relação às mulheres adultas com gravidez ectópica, sendo um dos motivos pelos quais autores defendem um rastreio oportunístico destas infeções nas adolescentes sexualmente ativas.9,10 No presente caso, o seu rastreio foi negativo, tendo sido detetado apenas um fator de risco associado a gravidez ectópica a idade precoce no início da atividade sexual. No entanto, é de referir que a adolescente utilizou um método contracetivo com maior proporção de gravidezes ectópicas, quando ocorre falha desse método, nomeadamente a contraceção hormonal de emergência com altas doses de estrogénio, atualmente em desuso, sendo as recomendações atuais para contraceção de emergência o uso de pílulas de progestativo (levonorgestrel) ou de acetato de ulipristal.8,11
O diagnóstico de gravidez ectópica baseia-se na combinação do doseamento sérico quantitativo da beta-HCG e da ecografia transvaginal (TV), associados à eventual presença de sintomatologia (amenorreia, dor abdominal, hemorragia vaginal/spotting).12 No entanto o diagnóstico pré-operatório de uma gravidez ectópica permanece um desafio, sendo que em até 30% dos casos a ecografia TV não é esclarecedora. Se uma gravidez intrauterina ou ectópica não é claramente visualizada, a correlação com o doseamento sérico de beta-HCG deve ser realizada.9,12 Se o nível de beta-HCG se encontrar acima do valor discriminatório (geralmente 1500 mUI/mL13) e a ecografia não mostrar uma gravidez intra-uterina, então a hipótese de gravidez ectópica deve ser colocada.9 Acima deste valor, se nenhuma gravidez intrauterina é observada, o diagnóstico reduz-se a uma gravidez ectópica ou a um aborto retido (gravidez desvitalizada).13 No presente caso, a comprovação ecográfica de um quisto complexo anexial, sem referência a rutura ou complicações hemorrágicas, com ascite levantou a suspeita diagnóstica, pois estes achados não se encontram habitualmente num aborto retido nem se justificam pela presença de um quisto anexial simples.
O tratamento da gravidez ectópica depende da apresentação clínica, dos achados ecográficos e dos níveis de BHCG, podendo ser expectante, médico ou cirúrgico. O tratamento expectante está indicado em casos selecionados e implica uma vigilância apertada com doseamentos seriados de BHCG.9,14 Adolescentes saudáveis com gravidez ectópica sem rotura, hemodinamicamente estáveis, com massas gestacionais, com ou sem embrião mas sem batimentos cardíacos fetais e com valores médios de BHCG (geralmente inferiores a 5000 mUI/ml) podem ser tratadas com metrotexato. 9,14 O tratamento cirúrgico é reservado para os casos de rotura tubar, instabilidade hemodinâmica, massas gestacionais com batimentos cardíacos fetais, ou valores elevados de BHCG (geralmente superiores a 5000 mUI/mL). Note-se que os valores de BHCG sérica e do tamanho da massa gestacional utilizados como cut-off para decisão terapêutica, variam entre as diferentes unidades hospitalares consoante a adoção de protocolos específicos. 14,15
A abordagem conservadora nesta doente não foi possível devido ao atraso no recurso aos cuidados de saúde, com presença de rutura da gravidez ectópica no momento do diagnóstico e com possibilidade de instabilidade hemodinâmica iminente, tendo sido submetida a salpingectomia com possíveis implicações futuras na fertilidade.
Após uma gravidez ectópica estão descritas taxas mais baixas de uma gravidez espontânea e maior risco de nova gravidez ectópica em relação à população em geral.1 A investigação do grupo sanguíneo materno é indispensável, para a eventual necessidade de administração de imunoglobulina anti-D que deve ser oferecida logo que possível, para profilaxia de doença hemolítica perinatal em gestações futuras. Neste caso descrito, foi efetuada no período pós-operatório imediato.15
No caso descrito, constatou-se a utilização inadequada do método de barreira, pelo que foi informada sobre os diferentes métodos contracetivos e sua correta utilização, incluindo a contraceção hormonal de emergência. De acordo com as recomendações nacionais foi aconselhada a dupla proteção.11 Nesta situação e por opção da adolescente associou-se um contracetivo oral ao método de barreira. Caso existissem dúvidas na adesão terapêutica e a adolescente aceitasse a amenorreia e/ ou perdas imprevisíveis eventualmente associadas, o implante contracetivo seria uma opção.
O diagnóstico precoce de uma gravidez ectópica sem rutura aumenta a possibilidade de um tratamento conservador/ expectante, reduz a necessidade de uma laparotomia exploradora, reduzindo a morbilidade e o risco de morte. A chave para o diagnóstico precoce é incluir a gravidez ectópica no diagnóstico diferencial em qualquer adolescente do sexo feminino sexualmente ativa, que apresente hemorragia vaginal anormal ou com dor abdominal.
Os autores pretendem com este caso, alertar para a necessidade de familiarização deste tema na abordagem das adolescentes sexualmente ativas e na necessidade de cuidados antecipatórios nas consultas de rotina, assim como na realização de rastreios oportunísticos de infeções sexualmente transmissíveis, de forma a evitar diagnósticos tardios, com prognósticos reservados e implicações na fertilidade.
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AGRADECIMENTOS
Ao Dr. Fernando Pardal, do Serviço de Anatomia Patológica do Hospital de Braga, pela cedência das imagens da análise histológica da peça operatória.
ENDEREÇO PARA CORRESPONDÊNCIA
Filipa Almeida Serviço de Pediatria
Centro Hospitalar Médio Ave
Rua Cupertino Miranda, s/n, Apartado 31,
4761-917 Vila Nova de Famalicão
Email: flipalmeida@hotmail.com
Recebido a 28.01.2016 | Aceite a 07.03.2016