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Nascer e Crescer
versão impressa ISSN 0872-0754
Nascer e Crescer vol.25 no.4 Porto dez. 2016
CASOS CLÍNICOS | CASE REPORTS
Corpo estranho na via aérea: como um avião passou despercebido
Foreign body in the airway: how a plane was unnoticed
Ana Gomes da SilvaI; Carolina PrelhazI, Inês MarquesI
I S. de Pediatria do Centro Hospitalar Barreiro Montijo. 2830-003 Barreiro. anabelle85@gmail.com; carolinaprelhaz@gmail.com; anainesdominguesmarques@gmail.com
Endereço para correspondência
RESUMO
A aspiração acidental de um corpo estranho é uma causa frequente de procura de cuidados médicos em pediatria. Os sinais e sintomas de aspiração/deglutição de corpo estranho inespecíficos o que, na criança pequena, dificulta o diagnóstico quando o incidente não é presenciado. Embora seja raro, um corpo estranho deglutido ou aspirado pode impactar no tronco comum da via aérea superior. Nestes casos, à inespecificidade clínica associa-se o silêncio radiológico, condicionando o atraso terapêutico e inerentes complicações.
Apresenta-se o caso clínico de um lactente do sexo masculino de dez meses de idade, exemplificativo da dificuldade diagnóstica quando a aspiração não é presenciada e o corpo estranho não é radiopaco, bem como de todo o risco inerente ao atraso diagnóstico.
Palavras-chave: corpo estranho; via aérea; aspiração
ABSTRACT
Accidental ingestion of a foreign body is a frequent cause of recurrence to medical care in pediatrics. Signs and symptoms of a foreign body aspiration/swallowing are nonspecific which, in an infant or toddler, makes the diagnosis very difficult when the incident is not seen. Although rare, a foreign body swallowed or inhaled can impact the common part of the upper airway. In these cases, the clinical specificity is associated with the radiological silence, conditioning the delaying of the therapeutic and inherent complications.
We present the case of a ten month old male infant, to show the diagnostic difficulty when the aspirated foreign body is not radiopaque and the event was not witnessed, and all the inherent risk of delayed diagnosis.
Keywords: foreign body; airway; aspiration
INTRODUÇÃO
Os acidentes em idade pediátrica constituem uma importante causa de morbimortalidade a nível mundial.1 Entre estes, destaca-se a aspiração de corpo estranho, definida como a inalação ou ingestão inadvertida de qualquer objeto ou substância.1,2 A gravidade do evento depende do grau de obstrução da via aérea, podendo ser fatal em até um terço dos casos.3 A aspiração de corpo estranho ocorre maioritariamente em crianças do sexo masculino (2:1), entre o primeiro e o terceiro ano de vida.2,3 A maior incidência nestas idades relaciona-se com uma falha do reflexo laríngeo, controlo inadequado da deglutição e hábito de levar objetos à boca, associado ao descuido dos cuidadores.2,3 Os objetos mais frequentemente aspirados são sementes, frutos secos, fragmentos de brinquedos, tampas de caneta, brincos e balões vazios (estes últimos associados a mortalidade elevada).3 É essencial o diagnóstico precoce, dado que o atraso se associa a uma maior taxa de sequelas e mortalidade.2 Após um episódio de aspiração do corpo estranho ocorre, habitualmente, acesso de tosse e engasgamento, nem sempre valorizado pelos pais.2 A apresentação clínica depende do tipo, tamanho e localização do corpo estranho e inclui: tosse persistente, dificuldade respiratória, diminuição localizada dos sons respiratórios e sibilos (localizados ou difusos).2 Aproximadamente 40% dos doentes podem ser assintomáticos e não apresentar alterações no exame físico.2 O diagnóstico de aspiração de corpo estranho deve ser considerado nas situações clínicas de primeiro episódio de sibilância (sobretudo se sibilos localizados), tosse persistente, na diminuição segmentar dos sons respiratórios, estridor ou dificuldade respiratória refratária à terapêutica.3 A radiografia simples de tórax é o exame diagnóstico de primeira linha, uma vez que se encontra facilmente disponível em todos os serviços hospitalares.2
CASO CLÍNICO
É apresentado o caso de um lactente do sexo masculino, com dez meses de idade, portador de um síndrome polimalformativo em estudo e caracterizado por malformações cardíacas corrigidas cirurgicamente no primeiro dia de vida (retorno venoso pulmonar anómalo total infracardíaco, veia cava superior esquerda ao seio coronário e persistência do canal arterial) e malformações musculosqueléticas múltiplas com grave limitação funcional (artogripose das articulações tibio-femural, umero-radial e umero-cubital, malformações das costelas, desvio cubital marcado dos primeiro e segundo dedos das mãos, pés dismórficos, hipotrofia muscular generalizada, associada a hipotonia, e dismorfia craniana). Referência a episódios prévios de sibilância no contexto de infeções respiratórias de etiologia vírica.
Foi observado no Serviço de Urgência Pediátrico por febre elevada associada a dificuldade respiratória, tosse seca e recusa alimentar com dois dias de evolução, de agravamento progressivo. À admissão apresentava-se subfebril, com saturação periférica de O2 de 94% em ar ambiente, tiragem global e taquipneia. À auscultação, para além de um sopro sistólico de grau III/VI audível em todo o tórax, objetivou-se murmúrio vesicular rude com fervores subcrepitantes dispersos simetricamente.
A otoscopia, rinoscopia e inspeção da orofaringe não revelaram alterações. Foi realizada radiografia simples do tórax em incidência póstero-anterior que revelou um reforço intersticial bilateral e hipotransparência heterogénea no terço superior de ambos os campos pulmonares. Analiticamente apresentava elevação dos parâmetros de fase aguda. O lactente foi internado no serviço de Pediatria com os diagnósticos de agudização de sibilância recorrente e sobreinfeção bacteriana, tendo iniciado terapêutica broncodilatadora e antibioterapia com amoxicilina e ácido clavulânico. Verificou-se melhoria progressiva dos sinais de dificuldade respiratória, mantendo no entanto rinorreia anterior e posterior seromucosa profusa, associada a dificuldade alimentar, com recusa para sólidos. No terceiro dia de internamento, na sequência de um episódio de engasgamento durante a sessão de cinesiterapia respiratória, acompanhado de cianose perioral, procedeu-se à manobra de Heimlich com reversão da cianose e foi exteriorizado um corpo estranho de plástico de forma grosseiramente triangular e bordos aguçados, com cerca de 2,5cm de aresta, posteriormente identificado pelo cuidador como sendo parte da asa de um avião de plástico. Após este incidente, foi observado pela otorrinolaringologia que excluiu sinais de traumatismo na orofaringe ou laringe superior bem como perdas hemáticas. Após exteriorização do corpo estranho verificou-se rápida melhoria da ingesta, com recuperação paulatina da tolerância alimentar e resolução da rinorreia.
DISCUSSÃO
A aspiração de um corpo estranho em idade pediátrica pode ser fatal, principalmente se existir obstrução total ou subtotal da laringe ou traqueia. Um menor grau de obstrução ou migração do corpo estranho para regiões mais distais da árvore brônquica provocam sintomas menos exuberantes mas, ainda assim, associados a elevadas taxas de morbilidade, principalmente em crianças com idade inferior a três anos.2,3 O diagnóstico de aspiração de corpo estranho nem sempre é evidente , principalmente quando o incidente não é presenciado, sendo necessário um elevado grau de suspeição clínica.2 O caso clínico apresentado mostra de forma evidente como este diagnóstico pode passar despercebido. Neste lactente, para além da reduzida mobilidade associada ao síndrome polimalformativo, que não tornaria provável a manipulação de objectos fora de alcance, não foi presenciado qualquer episódio, nem foram detetados os sinais típicos de engasgamento ou tosse. Paralelamente, o quadro infecioso subjacente tornou ainda mais remota a hipótese de aspiração de corpo estranho.
Apesar de o exame radiológico simples de tórax ser o exame de primeira linha na suspeita de aspiração de corpo estranho, quando o objeto aspirado é radiotransparente os sinais radiográficos são apenas indiretos, nomeadamente zonas de atelectasia ou airtrapping, dificultando o diagnóstico. Da mesma forma, quando a impactação ocorre na via aérea superior é necessário que o objeto seja suficientemente volumoso para criar um efeito de massa visível radiograficamente, ou então passará despercebido. Neste caso, o objeto aspirado, apesar de ter dimensões consideráveis, era radiotransparente e não causava efeito de massa, tendo passado despercebido não só clinicamente.
Concluímos que o atraso no diagnóstico de aspiração de corpo estranho se deveu a um baixo nível de suspeição, tanto por não haver história de episódio de engasgamento presenciado como pela ausência de sinais e sintomas típicos. De fato, em crianças com menos de três anos de idade é típica a ausência tanto de história clínica como de sintomas sugestivos e é o nosso grau de suspeição que irá determinar o sucesso diagnóstico. A utilização da radiografia simples de tórax para exclusão da aspiração de corpo estranho associa-se a inúmeros falsos negativos, pois a maioria dos corpos estranhos aspirados não são radiopacos e aproximadamente 20% das radiografias de tórax em doentes com aspirações de corpo estranho comprovadas são normais.3 Sabendo-se que a probabilidade de complicações é tanto maior quanto mais longa a permanência do corpo estranho na via aérea e que o diagnóstico depende essencialmente da suspeição clínica, a aspiração de corpo estranho deve ser obrigatoriamente um diagnóstico diferencial nos quadros respiratórios agudos, independentemente da escassez de dados clínicos.
Importa reforçar que a aspiração de corpo estranho é uma situação prevenível, requerendo medidas educacionais dos cuidadores, tanto na orientação dos hábitos que predispõem ao acidente nas faixas etárias de risco, como no ensino das noções básicas das técnicas de desobstrução de via aérea alta.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
1. Sobrinho FPG, Jardim AMB, de SantAna IC, Lessa HA. Corpo estranho na nasofaringe: a propósito de um caso. Rev. Bras. Otorrinolaringol. 2004; 70: 120-3. [ Links ]
2. Fraga AMA, dos Reis MC, Zambon MP, Toro IC, Ribeiro JD, Baracat ECE. Aspiração de corpo estranho em crianças: aspectos clínicos, radiológicos e tratamento broncoscópico. J Bras Pneumol. 2008; 34:74-82. [ Links ]
3. Gonçalves EPM, Cardoso RS, Rodrigues AJ. Aspiração de corpos estranhos. Pulmão Rio de Janeiro. 2011; 20:54-8. [ Links ]
ENDEREÇO PARA CORRESPONDÊNCIA
Ana Gomes da Silva
Serviço de Pediatria
Centro Hospitalar do Barreiro Montijo
Av. Movimento das Forças Armadas, 2830-003 Barreiro
Email: anabelle85@gmail.com
Recebido a 24.07.2015 | Aceite a 13.07.2016