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Nascer e Crescer

versão impressa ISSN 0872-0754versão On-line ISSN 2183-9417

Nascer e Crescer vol.26 no.2 Porto jun. 2017

 

ARTIGOS ORIGINAIS | ORIGINAL ARTICLES

 

Adolescência e Abuso de Substâncias

 

Adolescence and Susbstance Abuse Abstract

 

 

Joana CachãoI; Inês OliveiraI; Isabel RaminhosI

I Department of Pediatrics, Hospital de São Bernardo, Centro Hospitalar de Setúbal. 2910-446 Setúbal, Portugal. joanacbc@hotmail.com; inesoliveira1987@hotmail.com; coiasferreira@hotmail.com

Correspondence to

 

 


RESUMO

Introdução: A adolescência é um período de diversas transformações, que proporciona novas sensações e experiências, facilitando o uso e abuso de substâncias psicoativas. As intoxicações voluntárias neste grupo são uma das causas de recorrência ao serviço de urgência.

Objetivos: Caracterizar os casos de intoxicações voluntárias ocorridos em adolescentes, após o alargamento da idade de atendimento no serviço de urgência pediátrica, entre julho de 2011 e junho de 2015.

Material e Métodos: Estudo retrospetivo realizado a partir da consulta dos processos informatizados de adolescentes que recorreram ao serviço de urgência pediátrica por intoxicação voluntária. Análise de variáveis demográficas, tipos e fatores precipitantes das intoxicações, antecedentes pessoais relevantes, terapêutica e orientação na alta.

Resultados: O estudo incluiu 246 adolescentes, 0,64% do total de adolescentes admitidos no serviço de urgência pediátrica. A maioria (77,2%) apresentava idade compreendida entre os 15 e os 17 anos. As intoxicações alcoólicas (40,2%) e as medicamentosas (39,8%) apresentaram uma frequência semelhante. As intoxicações medicamentosas foram significativamente mais frequentes no género feminino (p = 0,000). Do total de adolescentes observados, 28,5% eram seguidos em uma ou mais consultas, nomeadamente de Adolescentes, Psicologia e/ ou Pedopsiquiatria/ Psiquiatria. Dos restantes, 27,2% foram referenciados para uma primeira consulta no momento da alta e 44,3% não foram referenciados a qualquer consulta.

Conclusões: O alargamento da idade de atendimento no serviço de urgência pediátrica permitiu um maior contacto com os comportamentos de risco. A prevenção é fundamental, pelo que urge implementar estratégias de intervenção que incluam responsabilizar a família e a sociedade em geral.

Palavras-chave: Adolescente; intoxicação alcoólica; medicina de urgência


ABSTRACT

Background: Adolescence is a time of great changes for

young people when new sensations and experiences are sought and thus opening the door for psychoactive substance use and abuse. Self-induced intoxication is a recurrent cause of admission in emergency department units amongst adolescents. Objective: This study aims to characterize the sample of adolescents who presented to a pediatric emergency department with self-induced poisoning from July 2011 to June 2015, after the widening of attendance age in the pediatric care units.

Methods: A descriptive retrospective study was conducted and data was collected from medical computerized records of adolescents admitted to the pediatric emergency department with self-induced intoxication. Analysis were performed to describe demographic variables, substance profile, precipitant/ motivation, relevant medical history, treatment received in the emergency department and follow-up.

Results: Participants comprised 246 adolescents representing 0,64% of the overall adolescent admissions in the pediatric emergency department during that period. The majority of patients aged 15 to 17 years (77,2%). Alcohol and drug intoxication had similar frequencies (40,2% and 39,8% respectively). Drug intoxication was significantly more frequent in females (p = 0,000). Of the total number of adolescents, 28,5% were already attending a specialist outpatient clinic (Adolescent Medicine, Psychology and/or Child Psychiatry or Psychiatry), 27,2% were referred to ambulatory care and 44,3% were not referred to any other  physician.

Conclusions: The enlargement of pediatric age care generated a greater contact with risky behaviors. Prevention is very important and it is urgent to design intervention strategies committing the family and society in general.

Keywords: Adolescent; alcoholic intoxication; emergency medicine


 

 

INTRODUÇÃO

A adolescência carateriza-se por transformações a diversos níveis que proporcionam novas sensações e experiências facilitando o uso e abuso de substâncias psicoactivas.1,2 Os adolescentes encontram-se numa fase de crescimento e desenvolvimento, sendo mais vulneráveis aos efeitos colaterais destes consumos, com implicações no seu desenvolvimento psicossocial harmonioso.

Estão descritos diversos fatores de vulnerabilidade relacionados com o uso e abuso de substâncias tais como determinados padrões de interação familiar, maus tratos, consumo parental de substâncias, bem como adolescentes com baixa autoestima, fraco rendimento escolar, amigos com consumos ilícitos e comorbilidades como por exemplo a depressão.2,3 Entre os principais fatores protetores encontram-se o ambiente familiar estável e afetivo, a boa comunicação entre pais e filhos, elevadas aspirações académicas e a fraca influência dos pares para a experimentação de substâncias ilícitas.2

Na lei vigente o consumo de bebidas alcoólicas não é permitido a menores de 18 anos.4 Relativamente às drogas ilícitas, nas quais se inclui a cannabis, não é permitido o seu consumo em Portugal.5,6

Estudos recentes mencionam uma tendência para o início do consumo de bebidas alcoólicas e drogas ilícitas cada vez mais precoce, constituindo um fator de risco para a dependência de substâncias na idade adulta e desenvolvimento de problemas de psicopatologia, particularmente em indivíduos predispostos, com importante impacto na vida futura.7-9

Pretendeu-se caracterizar a população de adolescentes que recorreu ao serviço de urgência pediátrica (SUP) por intoxicação voluntária, após o alargamento da idade de atendimento dos 14 anos e 364 dias para 17 anos e 364 dias, entre julho de 2011 e junho de 2015.

 

MATERIAL E MÉTODOS

Estudo retrospetivo realizado a partir da consulta dos processos clínicos informatizados dos adolescentes que recorreram ao SUP por intoxicação voluntária segundo a Classificação Internacional de Doenças (CID-10), após o alargamento da idade pediátrica, entre 1 de julho de 2011 e 30 de junho de 2015.

Consideraram-se adolescentes, indivíduos com idades compreendidas entre 10 anos e 17 anos e 364 dias, idade limite de atendimento no SUP.10

Analisaram-se diversas variáveis, designadamente, género, idade, antecedentes pessoais relevantes, tipos e fatores precipitantes das intoxicações, manifestações clínicas, terapêutica instituída, exames complementares de diagnóstico e orientação na alta. O horário de admissão no SUP foi dividido em três períodos de 8 horas: 0h00-7h59; 8h00-15h59 e 16h00-23h59.

A análise estatística foi realizada recorrendo ao programa Statistical Package for Social Sciences (SPSS) versão 24®. Os valores p < 0,05 foram considerados estatisticamente significativos.

 

RESULTADOS

Foram analisados os processos clínicos de 246 adolescentes (0,64% do total de adolescentes admitidos no SUP no período em estudo) com predomínio do género feminino (61,8%) e a média de idades foi 15,3 anos. A maioria (77,2%) apresentava idade compreendida entre 15 e 17 anos (figura 1), grupo etário abrangido pelo alargamento da idade pediátrica. Durante o período estudado, o número de casos de intoxicações voluntárias foi sempre superior neste grupo etário, não aparentando ter decrescido ao longo do tempo (figura 2).

 

 

Do total de adolescentes observados, 28,5% eram seguidos em uma ou mais consultas, nomeadamente de Pedopsiquiatria/ Psiquiatria (81,4%), Psicologia (38,6%) e Adolescentes (21,4%) e apurou-se que 15,9% já tinham recorrido ao SUP previamente por intoxicações voluntárias (um deles em cinco episódios). Em 10,6% dos casos existia diagnóstico de patologia psiquiátrica, nomeadamente depressão.

O pico de afluência semanal (12,6%) foi observado na madrugada de Domingo (0h00-7h59) (figura 3), relacionado com a admissão da maioria das intoxicações alcoólicas, enquanto as intoxicações medicamentosas se distribuíram pelos vários dias da semana durante a tarde e início da noite (16h00-23h59).

As intoxicações alcoólicas (40,2%) e as medicamentosas (39,8%) apresentaram uma frequência semelhante, seguidas das drogas ilícitas (10,7%) e das intoxicações mistas (9,3%), estas últimas referentes a misturas de bebidas alcoólicas/ fármacos/ drogas ilícitas (figura 4). Verificaram-se diferenças estatisticamente significativas a respeito das intoxicações medicamentosas e por drogas ilícitas, mais frequentes no género feminino (90,8%, p = 0,000) e masculino (80,8%, p = 0,02) respetivamente. O número de casos de intoxicações alcoólicas foi superior no género masculino, mas não estatisticamente significativo (p = 0,269).

Em mais de metade das intoxicações alcoólicas a bebida alcoólica não foi especificada (50,5%). Em 32,3% verificou-se consumo de bebidas espirituosas e 10,1% admitiram ingestão de misturas diferentes tipos de bebidas alcoólicas. No que respeita às intoxicações medicamentosas, em 31% os fármacos utilizados faziam parte da medicação habitual dos adolescentes. As benzodiazepinas (45,5%), seguidas dos antipiréticos/ anti-inflamatórios não esteróides (16,4%) e antipsicóticos (10,9%) foram os fármacos mais frequentemente envolvidos. Em 43,9% dos casos ocorreu ingestão de misturas de fármacos de várias classes. Relativamente à intoxicação por drogas ilícitas, a substância consumida por 92,3% dos adolescentes foi a cannabis.

Os principais fatores precipitantes das intoxicações identificados foram as discussões com familiares/ namorado(a) (22,8%), o convívio entre pares (20,7%) e ideação suicida (12,2%). Em 37,8% dos casos o motivo foi considerado desconhecido, por não se encontrar registado. As intoxicações alcoólicas e por drogas ilícitas ocorreram sobretudo em situações de convívio entre pares e as intoxicações medicamentosas no contexto de conflitos com familiares/ namorado(a) e de doença psiquiátrica/ ideação suicida. Todos os casos em que foi referida ideação suicida relacionaram-se com intoxicações medicamentosas e foram observados por Pedopsiquiatria ou Psiquiatria dependendo da idade.

Cerca de metade (48,8%) dos adolescentes chegaram ao SUP em transporte próprio, tendo os restantes sido transporta- dos de ambulância. Mais de metade dos adolescentes estavam com acompanhante (65,4%), na maioria dos casos com familiares nomeadamente a mãe e/ou o pai.

As alterações ao exame objetivo mais frequentemente descritas foram as neurológicas (alterações motoras/ discurso/ estado de consciência), seguidas das gastrointestinais (náuseas e vómitos) e 39% apresentavam sintomatologia de dois ou mais sistemas de órgãos.

Em 61% do total dos adolescentes foi realizada pesquisa de substâncias ilícitas e fármacos, que foi positiva em 47,3%. Apesar de a determinação da alcoolémia estar preconizada nas intoxicações alcoólicas agudas moderadas a graves de acordo com a norma da Direção Geral de Saúde sobre a Abordagem da Intoxicação Alcoólica Aguda em Adolescentes e Jovens, não foi apurada.10 Esta análise não se realiza neste serviço de urgência, podendo apenas ser solicitada para laboratório exterior no âmbito de investigação criminal ou fiscalização de trânsito, mediante pedido efetuado pelas autoridades policiais.

A terapêutica mais frequentemente utilizada foi a fluido-terapia endovenosa (94,4%), lavagem gástrica e/ ou carvão ativado (32,6%) e a tiamina (7,4%), esta última administrada apenas em casos de intoxicações com bebidas alcoólicas, em que foi observada alteração do estado de consciência e do exame neurológico.

Foram internados 42,7% adolescentes na Unidade de Internamento de Curta Duração (UICD), com uma duração média de internamento de 21 horas e 7,3% foram transferidos para outro hospital por necessidade de observação urgente por

Pedopsiquiatria, com internamento subsequente. Apenas 4,5% adolescentes foram transferidos para a enfermaria do serviço de Pediatria para continuação de cuidados e investigação social.

Foram referenciados 27,2% adolescentes para consultas hospitalares (primeira consulta): consulta de Adolescentes (35 casos), Psicologia (17 casos), Pedopsiquiatria (13 casos) e Psiquiatria no caso de adolescentes com idade igual ou superior a 16 anos (18 casos). Existe apenas um Pedopsiquiatra neste centro hospitalar, pelo que o serviço de Psiquiatria realiza o acompanhamento em consulta a partir dos 16 anos inclusive. O tempo médio de espera pela primeira consulta após o episódio de intoxicação foi superior nas consultas de Psiquiatria e Pedopsiquiatria (figura 5). Relativamente às consultas subsequentes, verificou-se que 14,6% tiveram alta, 12,5% mantêm acompanhamento, 52,1% abandonaram as consultas e 20,8% não foram remarcados por opção médica, ficando em aberto a possibilidade de solicitarem nova consulta se necessário.

 

 

 

DISCUSSÃO

O número de casos de intoxicações voluntárias foi superior no grupo de adolescentes com idade compreendida entre os 15 e 17 anos, o que corrobora dados da literatura que referem uma maior prevalência deste tipo de comportamento nessas idades.2,11 Apesar do aumento global do consumo de substâncias nos adolescentes ao longo dos últimos anos, neste estudo verificou-se que o alargamento da idade pediátrica incrementou o contacto com comportamentos de risco em adolescentes, não implicando necessariamente um crescimento do número de casos de intoxicações voluntárias.11-13 Estes casos aumentaram ligeiramente a par do aumento do número total de adolescentes que recorreram ao SUP (figura 2). A literatura descreve ainda tendências de consumo cada vez mais precoces, tendo-se igualmente verificado neste trabalho casos de intoxicações voluntárias em adolescentes mais novos (10-14 anos).7,8

Confirmou-se uma maior frequência das intoxicações alcoólicas em adolescentes do género masculino, assim como uma maior incidência destes consumos ao fim-de-semana, especialmente durante a madrugada de domingo.2,7,8,14-17 O álcool é encarado como uma substância desinibidora e facilitadora da aceitação no grupo de pares, justificando-se a sua ingestão no contexto do convívio com amigos, especialmente nas saídas à noite.1,18

As intoxicações medicamentosas foram significativamente mais frequentes no género feminino, o que está de acordo com outros estudos e constatou-se que os psicofármacos e os antipiréticos/ anti-inflamatórios não esteróides são os fármacos mais utilizados nas intoxicações medicamentosas voluntárias.17,19-21 Destaca-se o facto de em cerca de um terço dos casos os fármacos utilizados pertencerem à medicação habitual dos adolescentes, resultados que são merecedores de uma reflexão, apontando para a necessidade da co-responsabilização da família/ conviventes na disponibilização destes fármacos aos adolescentes. Dados da literatura descrevem que nem sempre as intoxicações medicamentosas voluntárias são motivadas por ideação suicida, mas quando esta existe, a ingestão de fármacos em uso é o meio habitualmente utilizado, sobretudo no género feminino, o que se verificou neste trabalho.19,21-23

Relativamente às intoxicações voluntárias por drogas ilícitas, neste estudo confirmou-se que a cannabis é a mais consumida, sendo mais utilizada por rapazes, habitualmente no contexto do convívio entre pares.1,2,7,12,13,24 A maior facilidade com que pode ser obtida é a principal razão para o seu maior consumo em detrimento de outras drogas ilícitas.15

Constatou-se à semelhança de outros estudos, que a maioria dos internamentos foi de curta duração, assim como não foi necessária a instituição de terapêutica específica na maior parte dos casos, salientando-se o baixo risco de sequelas graves ou perigo para a vida.16,17

Na maioria dos casos em que foi administrada tiamina não se verificaram critérios para esta terapêutica, nomeadamente doente em coma e/ou história de alcoolismo crónico registada, por provável desconhecimento da norma da Direção Geral de Saúde sobre a Abordagem da Intoxicação Alcoólica Aguda em Adolescentes e Jovens.10

No momento da alta, 27,2% dos adolescentes foram encaminhados para uma ou mais consultas hospitalares (primeira consulta), como observado noutros SUP.14,17 O tempo médio de espera pela primeira consulta após o episódio de intoxicação foi superior nas consultas de Psiquiatria e Pedopsiquiatria, ultrapassando os três e dois meses, respetivamente. No que respeita às consultas de Psicologia e Adolescentes foi superior a um mês. Estes resultados apontam para uma necessidade de aumentar o número de profissionais de saúde na área da psicopatologia a fim de reduzir o tempo de espera pela primeira consulta e prevenir possíveis recorrências, assim como encontrar estratégias para reduzir o abandono que se verificou em mais de metade dos casos.

 

CONCLUSÕES

O alargamento da idade pediátrica incrementou o contacto com comportamentos de risco, uma vez que apesar de as intoxicações voluntárias serem transversais a todas as fases da adolescência, observa-se uma maior incidência no período compreendido entre os 15 e os 17 anos.

Todos os profissionais de saúde, no âmbito das suas competências, devem estar preparados para receber e tratar os adolescentes que se deslocam ao SUP, vítimas de intoxicações voluntárias. Paralelamente os serviços de pediatria e /ou saúde mental que acompanham estas situações devem procurar dar respostas precoces e proporcionais, a fim de evitar recorrências potencialmente graves. Urge assim, trabalhar no campo da prevenção, implementando estratégias conjuntas ao nível da saúde e da educação, responsabilizando a família e sociedade em geral.

 

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CORRESPONDENCE TO
Joana Cachão
Department of Pediatrics
Hospital São Bernardo
Centro Hospitalar de Setúbal
Rua Camilo Castelo Branco, 2910-446 Setúbal
Email: joanacbc@hotmail.com

Received for publication: 29.06.2016 Accepted in revised form: 05.12.2016

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