SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
vol.25Para uma gramática museológica do (re)conhecimento: ideias e conceitos em torno do inventário participadoRecensão crítica do livro índice de autoresíndice de assuntosPesquisa de artigos
Home Pagelista alfabética de periódicos  

Serviços Personalizados

Journal

Artigo

Indicadores

Links relacionados

  • Não possue artigos similaresSimilares em SciELO

Compartilhar


Sociologia

versão impressa ISSN 0872-3419

Sociologia vol.25  Porto jun. 2013

 

Incerteza e redefinições do trabalho médico: um estudo de caso sobre o aconselhamento genético no cancro hereditário

Uncertainty and redefinitions of the medical work: a case study on the hereditary genetic cancer counseling

L'incertitude et les redéfinitions du travail médical : étude de cas sur le conseil génétique du cancer héréditaire

Incertidumbre y redefiniciones del trabajo médico: un estudio de caso sobre el asesoramiento genético en el cáncer hereditario

Hélder Raposo1

Escola Superior de Tecnologia da Saúde de Lisboa


 

RESUMO
O presente artigo resulta de um trabalho de investigação sociológica sobre a incerteza médica no contexto do aconselhamento genético na área do cancro hereditário. Tendo como base um estudo de caso que foi desenvolvido no âmbito de uma consulta de risco familiar numa unidade hospitalar especializada em oncologia, procuram-se identificar e analisar as novas dimensões de incerteza que emergem neste contexto clínico específico e evidenciar o modo como as mesmas enquadram e redefinem as práticas de trabalho e as formas de julgamento clínico. A perspetiva de análise que organiza a abordagem sociológica sobre estas novas formas de incerteza desenvolve-se a partir da exploração de dois eixos privilegiados relativos à especificidade do perfil científico desta área de inovação biomédica. A reconfiguração da conceção de doença e de medicina e os paradoxos da sua lógica preditiva.

Palavras-chave: Incerteza; Medicina; Aconselhamento genético; Cancro.


ABSTRACT
The present article is the result of a sociological investigation project on the medical uncertainties in the context of the genetic counseling in the area of the hereditary cancer. Having as groundwork a case study developed in the scope of a family risk assessment in an oncologic hospital unit, the aim is to identify and analyze the new uncertainty dimensions emerging from this specific clinical context and highlight the way how these redefine the work practices as well as the clinical judgments. The analytical framework which organizes the sociological approaches about these new uncertainties is developed from the examination of two favoured axes related to the scientific profile of this biomedical area. The reconfiguration of the illness and medicine conception and the paradoxes of its predictive logic.

Keywords: Uncertainty; Medicine; Genetic counseling; Cancer.


RESUMÉ
Le présent article est le résultat d'une recherche sociologique sur l'incertitude médicale dans le cadre du conseil génétique dans le domaine du cancer héréditaire. Ayant comme support une étude de cas élaborée dans le contexte d'une consultation de risque familier dans une unité hospitalière spécialisée en oncologie, on a cherché à identifier et analyser les nouvelles dimensions d’incertitude qui émergent dans ce contexte clinique spécifique et faire ressortir comment celles-ci encadrent et redéfinissent les pratiques de travail et les formes de jugement clinique. La perspective d’analyse qui organise l'approche sociologique sur ces nouvelles formes d'incertitude se développe a partir de l´exploration de deux axes privilégiés concernant la spécificité du profil scientifique de ce domaine d’innovation biomédicale. La reconfiguration de la conception de la maladie et de la médecine et les paradoxes de sa logique prédictive.

Mots-clés: Incertitude; Médecine; Conseil génétique; Cancer.


RESUMEN
El presente artículo es resultado de un trabajo de investigación sociológica sobre la incertidumbre médica en el contexto del asesoramiento genético en el área del cáncer hereditario. Teniendo como base un estudio de caso desarrollado en el ámbito de una consulta de riesgo familiar en una unidad hospitalaria especializada en oncología, se busca identificar y analizar las nuevas dimensiones de incertidumbre que surgen en este contexto clínico específico y evidenciar el modo mediante el cual las mismas encuadran y redefinen las prácticas de trabajo y las formas de juicio clínico. La perspectiva de análisis que organiza el abordaje sociológico sobre estas nuevas formas de incertidumbre se desarrollan a partir de la exploración de dos ejes privilegiados relativos a la especificidad del perfil científico de esta área de innovación biomédica. La reconfiguración de la concepción de enfermedad y de medicina así como las paradojas de su lógica predictiva.

Palabras-clave: Incertidumbre; Medicina; Asesoramiento genético; Cáncer.


 

Introdução

O desenvolvimento científico e tecnológico em medicina tem sido marcado, e frequentemente celebrado, pelo aumento das capacidades de avaliação e intervenção em áreas como o diagnóstico e a terapêutica e pela resolução eficaz de vários problemas. Paradoxalmente, no entanto, não têm deixado de surgir novas áreas de incerteza através da sua ação, devido ou às limitações do conhecimento médico, ou a problemas que resultam da incapacidade de dominar completamente o conhecimento disponível, nomeadamente quanto aos benefícios, perigos e limitações de novas abordagens, técnicas ou medicamentos.
Considerando que a incerteza é constitutiva da medicina (Fox, 1959, 2003), esta questão adquire uma acuidade redobrada numa altura em que vai sendo cada vez mais notória a amplitude e a natureza das reorganizações suscitadas pela importância e pelo impacto das inovações tecnológicas no quadro da atual biomedicina (Clarke et al., 2003). Trata-se, com efeito, de um novo perfil que é, em si mesmo, revelador de uma dinâmica de crescente interpenetração das práticas médicas com as ciências da vida, em particular ao nível dos seus conhecimentos, práticas, instrumentos e formas de regulação. Daqui resulta, portanto, que as inovações contemporâneas não estão simplesmente a estender o repertório médico, mas estão a transformar a própria medicina. Estas inovações estão a mudar a nossa compreensão da doença e da saúde, redefinindo os conceitos de doença, de medicina e de corpo.
Com efeito, muitas das atuais tecnologias médicas, sobretudo as que se encontram ligadas aos desenvolvimentos da genética e da biologia molecular, têm estado na base de novos entendimentos sobre a imensa variedade e complexidade das múltiplas interrelações que interferem na organização dos fenómenos biológicos. De resto, as próprias promessas inauguradas pela medicina genómica, que durante algum tempo alimentaram fortes esperanças e expetativas em torno das possibilidades de conhecimento e controlo das doenças, deram, efetivamente, lugar à conceção de que, ao contrário do que preconizava a abordagem reducionista do “programa genético” (a premissa one gene, one protein), não há, afinal, um genoma normal, no sentido em que a variação é a norma; todos temos múltiplas variações moleculares que, em diferentes circunstâncias, podem conduzir à expressão de doenças ou condições patológicas. A constatação de que não existe o ser humano geneticamente “normal”, dado que todos somos portadores de genes “imperfeitos”, conduz ao esvaziamento da noção de normalidade, na medida em que todos estamos em risco de alguma condição (Rose, 2010).
Neste sentido, portanto, têm emergido novas categorias e quadros explicativos que se ancoram em noções como desordens ou síndromas, o que significa que as tradicionais classificações biomédicas de doença – baseadas em modelos de cariz cartesiano – são substituídas por síndromas de etiologia incerta. Estas doenças “pós- modernas”, como as designa Clayton (2002), desafiam as categorias médicas ao mostrarem que dificilmente se confinam a lógicas dicotómicas e a enfoques redutores e organicistas. O quadro de referência organicista entra, assim, em falência, dado que a visão mecânica da saúde e da doença se torna insuficiente face à crescente indistinção entre o normal e o patológico (Rose, 2010).
Neste quadro de novos paradoxos e incertezas torna-se, então, relevante avaliar e compreender que reconfigurações ocorrem no âmbito do conhecimento médico e das suas práticas profissionais, desde logo porque passam a estar efetivamente em causa diferentes quadros explicativos sobre a doença e um novo perfil preditivo e de gestão do risco em função do conhecimento de predisposições genéticas providenciado por novas tecnologias, como, nomeadamente, os testes de diagnóstico genético.
Assim, e tendo como ponto de partida uma investigação qualitativa-intensiva centrada no estudo de uma consulta de risco familiar (CRF) numa unidade hospitalar especializada em oncologia, pretende-se neste artigo analisar as dimensões de incerteza que decorrem do perfil de um novo tipo de contexto clínico, em que as formas de conhecimento e o tipo de intervenção profissional se inscrevem em abordagens que assentam em lógicas explicativas tributárias da genética e da biologia molecular. Através do estudo de uma consulta que desenvolve um trabalho de aconselhamento genético na área do cancro gástrico para indivíduos com história familiar desta patologia, procura-se mapear e discutir a natureza das várias redefinições ao nível das práticas de trabalho e das formas de julgamento clínico, sobretudo quando os médicos se confrontam, em muitas circunstâncias, com doenças que são poligénicas e multifatoriais. Ou seja, doenças cuja extrema complexidade biológica inviabiliza perspetivas simplificadas e deterministas, donde resulta que a escala da incerteza médica se amplia substancialmente.
No âmbito do estudo de caso que aqui se desenvolve, são, portanto, as expressões dessa incerteza que constituem o enfoque principal da discussão, na medida em que permitem caraterizar e compreender melhor a lógica preditva desta realidade médica. Através de técnicas de investigação como a observação direta e as entrevistas semiestruturadas e aprofundadas, que foram aplicadas aos responsáveis desta consulta2, exploram-se duas dimensões de análise principais: as redefinições das práticas e lógicas de trabalho profissional decorrentes de um perfil preditivo acerca do risco genético dos indivíduos (e suas respetivas famílias) que são acompanhados na CRF, e as reconfigurações da conceção de doença e de medicina; aquilo que aqui se designa como molecularização da doença e genetização da medicina.

1. Redefinição das práticas e formas de julgamento clínico

Relativamente aos vários tipos de redefinições suscitadas pelo reforço do perfil marcadamente biomédico da medicina genética, bem como pelo novo quadro de paradoxos e incertezas que caracterizam este novo tipo de contextos clínicos, justifica- se salientar algumas das vertentes onde essas mudanças assumem uma expressão mais notória.
Uma das redefinições que importa sinalizar é de natureza concetual e refere-se à emergência de um novo quadro explicativo da doença, no sentido em que a abordagem médica tende a surgir como que colonizada pela perspetiva genética, em particular no que diz respeito ao entendimento molecular da doença. Trata-se, na realidade, de um processo que é um reflexo da reconfiguração da própria investigação oncológica em geral. Essa mudança começou a desenhar-se de forma mais consistente e consequente a partir da década de 1970, sobretudo nos EUA, numa altura em que a globalização da investigação sobre o cancro no âmbito da biologia molecular o redefiniu como doença genética, em detrimento da investigação do cancro ligadas às agressões ambientais (cf. Kevles, 1993:21; Nunes, 1996: 13).
De facto, este processo de molecularização do cancro – cientificamente alicerçado no conceito de oncogene3 – permite compreender as razões que estão na origem da gradual emergência de novos conceitos e abordagens que conduzem a um entendimento específico desta patologia e, por consequência, a teorias que têm imposto de forma hegemónica a ideia de que o cancro é uma doença que resulta dos genes humanos. O advento e a consolidação da investigação oncológica baseada na teoria dos proto-oncogenes, e respetivas tecnologias genéticas e moleculares, têm vindo a moldar de forma determinante os principais eixos de orientação das atuais agendas científicas consagradas ao estudo do cancro, designadamente através da deslocação de vastos investimentos financeiros para a área da biologia molecular (Fujimura, 1996).
Efetivamente, este conceito tem-se revelado central no âmbito da investigação oncológica e tem dado origem a novas formas de representação do cancro que estão na base de linhas de investigação ancoradas nas tecnologias genéticas e moleculares que consolidam a já referida reconceptualização da doença e oferecem esquemas gerais e unitários sobre a compreensão da vida e dos seus estados patológicos.
Uma outra redefinição importante é a que diz respeito às mudanças das formas de avaliação e julgamento clínico, sobretudo em contextos clínicos de aconselhamento genético, pois o que nestas novas realidades médicas se torna notório é, precisamente, a transformação das formas de avaliação médica face a um conjunto de categorias paradoxais, nomeadamente a passagem da doença ao risco da doença e o alargamento desse risco não só a um novo tipo de doente (“pré-doente”), mas também a um novo locus dessa doença (do doente individual para a sua família).
A este propósito é de grande utilidade fazer referência ao estudo de Mendes (2003, 2006) sobre o quotidiano de risco genético de cancro hereditário, em particular como o mesmo é percecionado e experienciado pelos indivíduos. Na sua investigação, a autora faz notar que o universo da “medicina preditiva” pauta-se pela ausência das duas categorias que definem e delimitam o quotidiano da medicina curativa ou paliativa – a doença e os doentes. De facto, o “estar em risco” torna-se numa condição de fronteira resultante da indefinição da “ainda não doença”, uma vez que se torna uma tarefa de grande ambiguidade determinar se serão doentes os indivíduos que se encontram “pré- sintomáticos”, ou seja, os que estão probabilisticamente em risco de desenvolver diferentes formas de patologia.
De facto, em contextos deste tipo, o risco impõe-se como uma das categorias principais da investigação clínica e acaba, muitas das vezes, por se confundir com a própria patologia, como se “o estar em risco” se convertesse numa condição clínica. Tal é, sem dúvida, revelador de uma transmutação ontológica da noção de doente e da própria doença enquanto entidade clínica passível de ser interpretada e configurada pela semiologia e sintomatologia médica (Mendes, 2003). Por isso, e embora a perspetiva de previsão possa sugerir, de um certo ponto de vista, um ganho importante de eficácia da medicina em atuar precocemente na manifestação de determinada doença, a verdade é que, em rigor, nos referimos a uma perspetiva virtual fundada num cálculo de probabilidades que pode não se concretizar pela ocorrência de uma multiplicidade infinita de fatores contingenciais não probabilificáveis4.
Por fim, mas não menos importante, é de salientar o facto de que estes contextos clínicos propiciam novas práticas e lógicas de organização do trabalho. O aspeto mais expressivo desta realidade reside no facto de a clínica genética se apoiar, cada vez mais, no desenvolvimento de formas de trabalho colaborativo (Bourret, 2005) que conduzem à transformação do conteúdo e organização das atividades médicas e formas de julgamento clínico. Tal pressupõe um maior desenvolvimento do trabalho multidisciplinar, dado que os médicos não só se articulam com profissionais de outras áreas de especialização (médica e técnica), mas também porque mobilizam vários saberes e técnicas, o que pressupõe que se encontrem em estreita articulação com outras perícias, nomeadamente com os biólogos dos laboratórios de biologia molecular. Assiste-se, portanto, não só a uma nova lógica de divisão do trabalho, através de uma importante redefinição de fronteiras profissionais que acentuam as interdependências funcionais, mas também a um alargamento e a uma diversificação dos espaços de atuação dos médicos relativamente ao trabalho de aconselhamento genético. E isto porque as características do trabalho médico passam a extravasar o espaço do consultório. Ou seja, os resultados dos testes de diagnóstico genético tornam-se de tal modo importantes na (re)definição das avaliações clínicas e na elaboração das estratégias preventivas e preditivas, que o trabalho de aconselhamento genético, em si mesmo, passa a incluir o laboratório como um espaço indispensável para a viabilidade e a eficácia das práticas profissionais subjacentes à clínica genética. Trata-se, portanto, de um aspeto que confirma e, sobretudo, sublinha o facto de que a decisão médica não constitui um ato isolado, mas antes um processo inserido e enquadrado pelos seus contextos profissionais e organizacionais (Serra, 2008).

2. Avaliação clínica em contexto de aconselhamento genético: análise do estudo de caso

A Consulta de Risco Familiar (CRF) que foi objeto de estudo da investigação que está na base deste artigo caracteriza-se por ter como principal meta estratégica seguir famílias com risco aumentado de desenvolvimento de Cancro do Cólon e Reto (CCR), onde se incluem as famílias com síndromas hereditários de CCR, e o seu principal objetivo é reduzir a morbilidade e mortalidade por este tipo de cancro através da identificação de famílias de risco e subsequente aplicação de programas de rastreio e vigilância.
Relativamente à sua composição, destaca-se o facto de ser constituída por uma equipa multidisciplinar composta por médicos, enfermeira e secretária clínica. Conta com a colaboração de especialistas em Biologia Molecular e Anatomia Patológica, de outros Serviços da Instituição (Serviço de Cirurgia e Bloco Operatório) e ainda de algumas Organizações do País (alguns Hospitais centrais e distritais) e do estrangeiro (Centros de Genética de Leidden, Londres e Newcastel). Quanto ao tipo de trabalho que desenvolve, nomeadamente no que diz respeito ao estudo das famílias5 às quais é diagnosticado o cancro do cólon a um dos seus membros, quer numa fase ativa da doença, quer através do acesso a uma amostra de material biológico do tumor, há uma série de etapas fundamentais que passam, desde logo, pelo contacto com os diferentes membros da família, no sentido de os confrontar com a possibilidade de existir cancro hereditário e, consequentemente, com a necessidade de realizarem os testes genéticos com o objetivo de saberem se são, ou não, portadores dos genes causadores da doença. Assim, do ponto de vista médico, a importância de se confirmar a informação de que os indivíduos são portadores dos genes causadores da doença, tem como objetivo acionar medidas de prevenção para impedir que o cancro se manifeste. Se um membro da família for portador da mutação genética que origina a doença, isto é, se apresentar um teste positivo, é-lhe proposto, a partir desse momento, que cumpra um protocolo de vigilância específico para os indivíduos em risco de cancro hereditário do cólon. Deste modo, após a realização da primeira consulta segue-se um trabalho laborioso, e por vezes longo, de confirmações dos dados obtidos, nomeadamente através do recurso a certidões de óbito e a pedidos de informação clínica, bem como a exames histológicos, que são solicitados ao Registo Oncológico Regional ou a outras Instituições de Saúde.
Numa fase posterior, são marcadas novas consultas não só ao proband6, mas também a outros membros da família, com o objetivo principal de atualizar a história familiar e, dessa forma, voltar a aferir o risco familiar. Nessas consultas também se procede ao esclarecimento dos outros membros da família acerca do risco de CCR e quais os respetivos programas de rastreio/vigilância. No caso das famílias com critérios clínicos que possibilitem a sua classificação como sendo um síndroma hereditário, a indicação é a de que se proceda ao diagnóstico genético, pelo que, numa dessas consultas, se explica ao doente em que é que consiste a análise genética e qual a importância que esta pode ter para a família. Após a assinatura do consentimento informado pelo doente, procede- se à colheita de sangue que é enviado para o Laboratório de Patologia Molecular.
É também importante referir – na sequência do que já foi atrás assinalado – que na CRF, o processo clínico não se reporta a um sujeito, mas sim a uma família. Nele encontra-se reunida a informação sobre todos os membros da família, qual o seu estatuto de risco e se aderiram, ou não, ao programa de vigilância proposto nesta consulta. Cada processo, para além dos registos clínicos de cada um dos elementos da família, tem, também, uma folha de representação gráfica da história familiar (genograma), feita através de um programa informático próprio para esse efeito. Pela leitura da história familiar obtem-se informação sobre as mortes ocorridas na família por CCR (ou por outros tumores), sobre os elementos que apresentam a doença e sobre os que estão, ou não, em risco de vir a desenvolvê-la. Através do contacto com esta informação fica-se, também, a conhecer a componente hereditária da doença, ou seja, a forma como se manifestou ao longo das diferentes gerações.
Com efeito, e como se compreende pela descrição das etapas e dos procedimentos que caracterizam o tipo de abordagem médica desenvolvida no âmbito da CRF, resulta claro que a estratificação do risco é feita em função dos elementos da história familiar dos indivíduos – nomeadamente o grau de parentesco, o número de casos de cancro numa família, os tipos de tumores confirmados, a sua idade de aparecimento e a própria história clínica –, o que implica um cálculo probabilístico que estima o risco de um determinado indivíduo desenvolver CCR. Este trabalho de estratificação do risco em diferentes categorias acaba por condicionar diretamente a própria definição da abordagem preventiva que se consubstancia nos programas de rastreio e vigilância.
Todavia, e tendo em conta as incertezas que surgem associadas à complexidade biológica de algumas síndromas hereditárias de CCR, e às respetivas limitações do próprio diagnóstico genético, o próprio processo de aferição da predisposição genética de um indivíduo para determinada doença torna-se bastante difícil e problemático, dado que nestes procedimentos técnicos aquilo a que efetivamente se procede é à quantificação dos riscos que enunciam probabilidades. Tendo em conta a complexidade constitutiva das doenças poligénicas e multifatoriais, isto significa penetrar num domínio de significativa imprecisão, uma vez que o risco da doença não se esgota no facto de um indivíduo ter uma dada alteração num determinado gene, até porque muitas das predisposições apontadas pelas probabilidades somente se manifestam – ou não – por via da inter-relação complexa de diversos fatores, muitos deles de natureza exógena, como, por exemplo, os fatores ambientais.
Com efeito, alguns dos aspetos mais salientes que importa enfatizar a propósito das voláteis e imprecisas fronteiras que acabam por se constituir entre risco e incerteza em biomedicina, prendem-se com situações complexas que tendem a gerar erros e incertezas na prática médica, dado que não obstante o tema do risco assumir uma grande centralidade, refletindo, assim, o próprio esforço de cientifização que tem vindo a caracterizar estas áreas específicas, o facto é que emergem de forma cada vez mais nítida problemas e limitações que têm origem na complexidade dos sistemas biológicos e que se traduzem na grande dificuldade em lidar com o conceito de incerteza. Dito de modo mais simples, e tendo como ilustração específica o caso concreto do cancro, tal significa que questões como a avaliação das lesões pré-cancerosas (lesões percursoras do cancro), que se supõe terem um potencial de transformação maligna que justifica o desenvolvimento de estratégias diagnósticas e terapêuticas preventivas; os erros no diagnóstico e na avaliação prognóstica em áreas como a patologia, com o caso dos falsos positivos e dos falsos negativos; as dificuldades em avaliar clinicamente a complexidade dos casos singulares e específicos que são menos claros e lineares à luz da informação epidemiológica; os chamados casos “borderline” que revelam situações de grande incerteza, ou, tal como designados em patologia tumoral, “casos de malignidade incerta” (com características tanto de benignidade, como de malignidade), (cf. Nunes, 2002: 292-302); a existência de vários tipos de mutações (cf. Lage e Chaves, 1999: 28); as neomutações (cf. Lage et al., 1998: 14); mutações em genes ainda não identificados (idem: 17); entre outros, mostram com grande acuidade as múltiplas dificuldades em lidar com o conceito de incerteza. E isto não só porque as indefinidas relações entre risco e incerteza tornam dúbias as fronteiras entre estratégias de natureza mais precaucionária ou preventiva, mas também porque as formas de aferição e categorização do risco têm implicações na redefinição das abordagens médicas, sobretudo nas de caráter preventivo, dado que os protocolos de vigilância médica – que, não raras vezes, podem ir até formas radicais e agressivas de tratamento, como as cirurgias profiláticas – se baseiam em avaliações probabilísticas e em instrumentos de diagnóstico que determinam as decisões relativamente aos tratamentos, embora tal não seja isento de dificuldades e consequências, pois, tal como mostra Nunes, “quanto mais precoce for a deteção de uma patologia, mais incerta será a avaliação prognóstica, e mais problemática se tornará a decisão sobre o tratamento. (…) Este paradoxo aparece com mais força ainda quando as actividades de diagnóstico e de prognóstico tentam incorporar abordagens que, a partir de um certo momento, prometeram instrumentos de diagnóstico mais precisos, como a biologia molecular” (Nunes, 2002: 302).
No caso concreto dos cancros hereditários do cólon e reto, principalmente o Síndroma de Lynch7, o recurso aos testes moleculares pode, de facto, remeter para alguma indeterminação, pois nem sempre os resultados são elucidativos e/ou conclusivos, o que evidencia as limitações das avaliações clínicas ancoradas em instrumentos de diagnóstico provenientes da genética e da biologia molecular em contexto da incerteza associada à complexidade biológica destas patologias.

3. Paradoxos e incertezas da clínica genética

“Sem a tecnologia genética não é possível fazer uma classificação rigorosa das doenças, nem é possível determinar o risco de cada indivíduo face à predisposição genética que ele possui. Nesse sentido a translação da genética para a clínica é uma translação óbvia, e não pode deixar de ser assim porque a genética permite arrumar em gavetas relativamente rigorosas, estritas, as doenças e o seu prognóstico, e por outro lado, o laboratório ao classificar o indivíduo geneticamente, está também a dar aos médicos a expectativa, ou a perspetiva, da explicação e compreensão da doença, visto que quando ela está dependente de um defeito genético, nós passamos a perceber melhor o mecanismo intrínseco da doença e as formas de intervir nele. Neste aspecto, não acho que a genética seja fundamentalmente diferente de outras tecnologias….Nesse sentido, a genética não é muito diferente do que fazer um hemograma ou fazer uma análise bioquímica. São instrumentos que vão para além dos sentidos dos médicos”. (M1)8

De acordo com estas afirmações, é possível referir que os testes de diagnóstico genético têm vindo a ser integrados de forma efetiva nas práticas da medicina moderna, o que é indicativo da consolidação de uma tendência que se traduz na reorganização do campo médico, no sentido de este se encontrar integrado numa rede cada vez mais densa e interdependente de perícias. No caso específico da CRF aqui em estudo, as abordagens e os recursos da biologia molecular são reconhecidas como estando profundamente integradas na prática clínica, ao ponto de serem entendidas como um recurso indispensável não só para melhor compreender os mecanismos de agregação familiar das doenças, mas também para organizar e estruturar a abordagem clínica que se julga mais coerente com as avaliações probabilísticas dirigidas aos indivíduos em função da sua história familiar. É isso que, em grande medida, nos indica a resposta de um dos entrevistados em relação à importância e ao impacto da biologia molecular neste campo específico da medicina, quando a este propósito refere:

“O conceito de risco familiar surgiu muito antes da biologia molecular, ou seja, pouco a pouco, sob o ponto de vista clínico, foi-se reconhecendo que a expressão de certas doenças era maior em determinadas famílias e foi nascendo o conceito da importância da história familiar, não só para a doença oncológica, mas também para outras situações (…). Portanto, a biologia molecular vem no fundo explicar uma coisa que já se conhecia bem, mas não se conhecia a base que explicava o porque é que em certas famílias, certas doenças tinham uma expressão tão marcada. (…) Nós tínhamos uma probabilidade que era global e passámos a poder definir para cada um dos membros da família qual é a sua probabilidade de ter a doença. Este risco é modulado por aspectos genéticos e conhecendo os genes que estão envolvidos no desenvolvimento da doença, podemos separar e codificar melhor o risco de cada uma das pessoas”. (MD)9

Estas considerações reforçam o sentido do que foi argumentado a propósito dos novos contornos da medicina moderna, porque, efetivamente, o conhecimento proporcionado pela biologia molecular tem permitido fundar as decisões médicas na prova experimental, dado que confere uma perspetiva de objetividade e certeza que parece esvaziar de indeterminação e complexidade o julgamento clínico sobre os fenómenos da doença. Nesta aceção, os critérios estritamente clínicos, mais ancorados em faculdades de julgamento próprias de um saber cada vez mais visto como impreciso, tendem a ser desvalorizados:

“Eu defendo que, embora haja critérios clínicos, os critérios clínicos têm limitações. Nós sabemos que através dos critérios que existem, classificamos uma família com SL. A probabilidade de, efectivamente, aquela família ter SL é muito elevada, mas não é certo que tenha. Nós vamos manejá-la como tal, mas o Gold Standard é nós identificarmos uma mutação, porque aí temos a certeza absoluta que é um SL em base genética. O diagnóstico genético permite-nos abordar a situação de uma forma diferente. Não há incertezas. Não há incertezas no sentido em que se fizermos o diagnóstico genético para determinada mutação e o indivíduo não a herdou, ele sabe que não tem um risco aumentado de vir ter um cancro do intestino, e se não a herdou não há o risco de a ter transmitido à sua descendência. (…) Eu acho que o diagnóstico genético é um complemento para a clínica extremamente importante e vantajoso, devido a todas estas implicações, porque nos permite ter uma abordagem mais adequada e com um grau de certeza maior em relação aquilo que nós estamos a preconizar e a defender”. (M2)

Claro que, vistos sob uma perspetiva mais pragmática, os testes de diagnóstico genético, como de resto qualquer tecnologia médica, são um meio útil e importante para o desenvolvimento do trabalho clínico, sobretudo em contexto de aconselhamento genético. Porém, tal não invalida que se procure reconhecer como pertinente o facto de os clínicos tenderem a privilegiar e a investir fortemente em abordagens de natureza experimental e objetivista, relegando para um plano mais secundário formas de avaliação e julgamento clínico vinculadas a abordagens qualitativas e contingentes. Este facto torna-se ainda mais relevante quando se considera que, não obstante o recurso a todas as técnicas de caráter experimental e quantitativo, as avaliações probabilísticas acerca do risco de um determinado indivíduo poder vir a desenvolver CCR não se traduzem, efetivamente, em cenários de certeza e objetividade, dado que a circunstância de se estar a lidar com doenças poligénicas e multifatoriais que são intrinsecamente complexas, por um lado, e o facto de se estar a lidar com probabilidades em que estão ausentes as categorias de doença e doente tal como são conhecidas, por outro, coloca em evidência o caráter algo paradoxal da lógica preditiva que está subjacente a este tipo de medicina:

“Nós temos que ter a noção que na maior parte dos casos não estamos a lidar com pessoas com doença efetiva; são pessoas saudáveis. Temos que perceber que estamos a trabalhar com pessoas saudáveis, que estamos a trabalhar com probabilidades, porque mesmo que haja uma doença hereditária, mesmo que a pessoa tenha uma mutação no gene, que tenha um risco aumentado, nunca é de 100%. No entanto as pessoas devem ser vigiadas, porque no caso das síndromas hereditárias em que a penetrância não é completa, não podemos ficar à espera que a pessoa tenha os 20% de probabilidade de não ter cancro. O facto de ter uma alteração genética não é igual a ter cancro, mas é igual a ter um risco aumentado. Isto tem que ser muito bem explicado ás pessoas. Temos que ter muita preocupação em explicar e em esclarecer as dúvidas, às vezes mais do que numa consulta”. (Enf)10

Relativamente às incertezas que marcam o trabalho desenvolvido pelos clínicos da CRF, verifica-se que apesar de estes profissionais valorizarem os guidelines e os contributos provenientes da biologia molecular, os mesmos não deixam de reconhecer que a complexidade biológica do CCR os confronta com problemas que limitam, efetivamente, a sua capacidade de conhecer e intervir de forma eficaz na doença. O facto de se tratar de patologias complexas, multifatoriais e poligénicas, faz com que haja alguma dificuldade em lidar com todas as situações, sendo que a maioria desses casos é abordado no âmbito de estudos investigacionais levados a cabo por estes clínicos, com o apoio e o envolvimento científico do Laboratório de Patologia Molecular, o que significa que, não raras vezes, as pessoas que são seguidas na CRF e que pertencem a famílias atípicas, relativamente ao conhecimento médico existente e às recomendações protocoladas, são convidadas a participar nesses estudos, contribuindo, assim, para o avanço do conhecimento médico:

“A biologia molecular é um complemento muito importante na abordagem destas famílias mas não substitui a clínica. Eu considero que a área do CCR, é a área onde mais avanços se registaram nos últimos anos em termos do conhecimento dos mecanismos biológicos inerentes ao desenvolvimento do cancro. Mas por vezes, mesmo naqueles genes que nós estudamos, há determinadas alterações que nós não sabemos qual é o seu significado. Por outro lado, há determinados genes que nós ainda não conhecemos e que, seguramente, serão responsáveis por formas hereditárias de CCR. Já para não falar dos polimorfismos e qual o seu impacto, não tanto nos síndromas hereditárias, mas nos casos de agregação familiar de CCR (…). Tal como no caso do conhecimento das síndromas hereditários, que tem aplicação à clínica, mas que inicialmente também foi uma área de investigação, podemos fazemos a translação para a parte clínica. Só assim é que a medicina evolui, só assim é que a medicina progride. No CIPM11 nós temos a parte genética de rotina (diagnóstico genético nas famílias com síndroma hereditário), e por outro lado, temos os nossos trabalhos de investigação que estão a decorrer e que, neste momento, não podem ter aplicação na clínica, porque estamos a estudar outros genes, determinadas alterações em genes já conhecidos como estando envolvidos em determinada doença, mas que não sabemos o significado das alterações que encontramos. Nessas situações, as pessoas que estão na nossa consulta são informadas e dão o seu consentimento informado para participarem nestes estudos de investigação”. (M2)

De facto, não deixa de ser relevante fazer notar que a ênfase na abordagem médica recai, em grande medida, no desenvolvimento dos estudos laboratoriais, como forma de aprofundar o conhecimento biológico da doença. Deste modo, a circunstância desses estudos procurarem lidar com a base genética destas doenças complexas, alimentando a expetativa de que possam ter uma eventual aplicação na clínica, justifica que, em termos do trabalho de aconselhamento genético, se valorizem estas formas de abordagem que visam dar resposta aos problemas relativos à compreensão dos mecanismos biológicos subjacentes à doença, em detrimento de abordagens mais diretamente orientadas para os indivíduos. Tal não significa que não fiquem salvaguardadas formas de vigilância médica baseadas em avaliações de natureza clínica acerca do estatuto de risco familiar dos indivíduos seguidos na CRF. Assim sendo, e como sugere a resposta de um outro entrevistado, podemos considerar que a valorização e a insistência na realização de estudos genéticos mais vastos e aprofundados, se baseia no pressuposto de que os resultados que vão sendo gradualmente apurados removerão as dificuldades e as incertezas inerentes à doença:

“Nós temos que ser muito restritivos na quantificação das incertezas. Ao dizer que alguém tem a probabilidade x de ter uma doença, também estou a dizer a probabilidade de não ter, portanto estamos sempre a quantificar margens de incerteza. A estatística é a quantificação da incerteza. (….) As coisas são complexas até nós as percebermos. Logo que nós as percebemos e a compreensão se generaliza à sociedade, as coisas tornam-se mais simples. Uma doença como a PAF, que depende de uma mutação no gene APC, até perceber que era só isso foi uma grande complicação, era um mistério com várias hipóteses. Portanto, toda a narrativa intelectual sobre a doença sofre um colapso a partir do momento em que se compreende que afinal aquilo é um evento simples e bem identificável pela genética”. (M1)

Relativamente aos modos de lidar com a incerteza, Fox (2003) considera que uma das principais estratégias ocorre numa fase precoce da formação médica, quando os estudantes são “treinados para a incerteza”. Essas estratégias para lidar com a incerteza passam, principalmente, pela intelectualização dos problemas sob um ponto de vista científico; pela conversão das incertezas do julgamento clínico em probabilidades; pelo desprendimento em relação à incerteza, nomeadamente através de estratégias incorporadas durante a socialização profissional; pela deslocação da atenção ou por camuflar o problema com o silêncio; e, por fim, pela ironia face à incerteza, enquanto atitude que permite ocultar a tensão e a dificuldade de lidar com os problemas dela decorrentes (Cf. idem: 410-411).
Trata-se de uma leitura que sendo importante, não é, todavia, consensual, na medida em que, para autores como Atkinson (1984), a incerteza é uma componente importante no conhecimento e no trabalho médico mas ela coexiste, no entanto, com a certeza, o que significa que estas são dialeticamente interdependentes e não apenas dimensões mutuamente exclusivas. Acima de tudo, são dois modos de relação face ao conhecimento e à ação, o que significa que os saberes rotineiros e a experiência clínica podem conferir uma orientação prática face ao conhecimento mais estreitamente articulada com um certo pragmatismo ou até mesmo com alguma forma de dogmatismo assente em pressupostos de maior certeza e previsibilidade.
Mas retornando ao caso concreto da CRF aqui em estudo, podemos verificar que a incerteza é manifestamente assumida pelos clínicos, o que mostra que o desenvolvimento do seu trabalho contempla esta dimensão e, portanto, não implica nenhuma estratégia de camuflagem relativamente a este assunto. Aliás, das várias estratégias referidas por Fox, aquela que, efetivamente, parece prevalecer é a conversão das incertezas do julgamento clínico em probabilidades, não deixando os clínicos, todavia, de dar relevância às formas de abordagem e de comunicação com os indivíduos que frequentam a consulta, dado que, conforme já foi referido, o trabalho de aconselhamento genético que é desenvolvido insere-se numa lógica preditiva, o que, neste caso em particular, significa que a grande maioria dos indivíduos são saudáveis e apenas estão vinculados à CRF em virtude do seu estatuto de risco. Esta circunstância é bastante importante e explica, em larga medida, a razão pela qual a incerteza é comunicada e gerida entre o clínico e as pessoas que são seguidas na Consulta. A questão da confiança que marca este tipo de relação médica acaba, em suma, por ter um grande destaque e mostra de que forma subsistem, embora matizados e relativamente secundarizados, certos princípios que foram tradicionalmente estruturantes no julgamento clínico, nomeadamente a avaliação qualitativa da singularidade e da contingência das situações e dos indivíduos concretos:

“Os médicos que estão envolvidos nesta consulta estão cientes que no contacto com as pessoas saudáveis, mais do que com as pessoas doentes, têm de falar e explicar as coisas de forma muito clara, muito concisa e muito objetiva e dizer mesmo ‘nós não temos segurança nenhuma sobre o seu risco. Se é muito, se é pouco. Na dúvida, e porque podemos pensar que é elevado, deve fazer uma vigilância apertada’ (…). Fazemos sobretudo vigilância, e não fazemos atuações profilácticas, porque essas atuações em situações de incerteza não são adequadas. Temos que dizer isto claramente às pessoas, porque só assim ganhamos a sua confiança. O conhecimento que nós temos é limitado e, portanto, têm que partilhar connosco esta incerteza”. (MD)

Conclusão

Olhando panoramicamente para as principais reconfigurações que estão subjacentes à emergência de novas áreas de incerteza no seio da biomedicina, verificamos que há alguns desenvolvimentos importantes que merecem uma reflexão atenta, na medida em que eles são reveladores da heterogeneidade de desafios que figuram no horizonte da medicina moderna. Um desses novos desenvolvimentos está relacionado com os exponenciais avanços no campo da genética e o seu profundo impacto nos quadros conceptuais e cognitivos da medicina, designadamente através da incorporação de uma visão “molecular” da vida. Esta tende a ser geradora de novas incertezas, dado que não obstante se ter vindo a consolidar uma convicção generalizada quanto às imensas potencialidades que este novo tipo de conhecimento tem para oferecer, nomeadamente em termos de um melhor entendimento da etiologia e mecanismos das doenças humanas, têm vindo a multiplicar-se expetativas demasiado elevadas quanto à eficácia clínica das terapias génicas, o que denuncia uma visão reducionista e simplificada da complexidade que são os organismos vivos, não redutíveis apenas aos seus genes (cf. Fox, 2003: 412-414).
Através da problematização da questão da incerteza, foi possível verificar que o tipo de trabalho que é desenvolvido pela CRF está fortemente ancorado nos contributos de outras perícias, em particular da biologia molecular, o que mostra que as conceções de doença, as abordagens privilegiadas e o tipo de recursos técnicos a que sistematicamente se recorre estão estreitamente ligadas a uma visão molecular, que é tida como importante e indispensável para se conhecer os mecanismos básicos das doenças de base genética. Assim, e apesar de não haver uma entronização absoluta em torno da importância destes recursos técnicos para a clínica, não deixa de ser evidente que os critérios e os julgamentos clínicos acabam por ter um papel relativamente secundário, ao ponto de só emergirem nas situações em que os contributos destas áreas disciplinares são limitados ou inexistentes. Esta situação é especialmente visível no caso das síndromas hereditárias, dado que se procuram conhecer através dos testes genéticos as mutações que estão na base das patologias.
Também a questão da avaliação clínica em contextos de incerteza, sobretudo a que decorre das próprias insuficiências e limitações da abordagem e dos recursos técnicos da genética e da biologia molecular face a patologias que encerram grande complexidade biológica, revela alguma ambivalência. Como assinalado, a circunstância de, nesta área da oncologia gástrica, haver patologias que são multifatoriais e poligénicas, o facto de se desconhecer a ação dos polimorfismos nas formas de agregação familiar do CCR e nas síndromas familiares, o facto de não se conhecerem todos os genes envolvidos nalgumas formas de doença, o facto de, em alguns destes síndromas, a penetrância dos genes não ser completa (em particular no SL), de ocorrerem neomutações, etc., faz com que a prudência dos clínicos seja mais acentuada e que reconheçam as limitações do seu trabalho face a estas situações complexas e de grande incerteza. Todavia, é importante notar que subsiste sempre uma forte convicção de que essas lacunas do conhecimento médico possam ser mitigadas no âmbito de estudos investigacionais nos quais os indivíduos são convidados a participar. Enquanto essas investigações de índole laboratorial não produzem conhecimento efetivo, a incerteza vai sendo gradualmente gerida com os indivíduos e só nestas circunstâncias é que os critérios clínicos tendem a prevalecer, o que parece ser claramente denotativo do modo como a experiência clínica acaba por ter um efeito defensivo de redução da incerteza (Serra, 2008).
Em suma, face à constatação de tanta complexidade biológica, o “retorno” da incerteza, por via da emergência de novas dimensões, relembra-nos que esta não só é constitutiva da própria Medicina, como reatualiza a necessidade de valorizar o facto de que, na área do cancro genético, o desafio da gestão da incerteza é permanente, tendo em conta não só o estatuto híbrido e liminar da doença e do doente, os imperativos de uma nova lógica de trabalho colaborativo e multidisciplinar, e a própria complexidade biológica das mutações genéticas associadas às patologias em causa. Estes aspetos implicam, assim, uma permanente reinterpretação das próprias recomendações e guidelines, o que significa que o julgamento clínico não se limita a ficar subsumido nas lógicas normalizadoras das recomendações regulatórias dos guidelines e das provas epidemiológicas que os sustentam (Bourret, 2005). Há, pelo contrário, um trabalho de constante gestão da incerteza através da reinterpretação e da discussão entre os profissionais, o que significa que estes vão reflexivamente produzindo e adaptando localmente as recomendações que, conjunturalmente, melhor parecem responder às incertezas concretas do seu domínio específico.

 

Referências bibliográficas

ATKINSON, Paul (1984), “Training for certainty”, in Social Science and Medicine, vol. 19, nº 9, 949-956.         [ Links ]

BOURRET, Pascale (2005), “BRCA Patients and Clinical Collectives: New configurations of action in cancer genetic practices”, in Social Studies of Science, 35/1, 41-68.         [ Links ]

CLARKE, Adele (et al.) (2003), Biomedicalization: Technoscientific transformations of health, illness, and U.S. Biomedicine”, in American Sociological Review, vol. 68, 161-194.         [ Links ]

CLAYTON, Belinda (2002), “Rethinking postmodern maladies”, in Current Sociology, vol. 50 (6), 839-851.         [ Links ]

FOX, Renée C. (1959), Experiment Perilous. Physicians and Patients facing the unknown, New Brunswick, Transaction Publishers.         [ Links ]

– (2003), “Medical Uncertainty Revisited”, in Gary Albrecht (et al.) (Eds.), The handbook of social studies in Health & Medicine, London, Sage Publications, pp. 409-425.         [ Links ]

FUJIMURA, Joan H. (1996), Crafting Science: A Sociohistory of the Quest for the Genetics of Cancer, Cambridge, MA, Harvard University Press.         [ Links ]

KEVLES, Daniel J. (1993), “Out of Eugenics: The Historical Politics of the Human Genome”, in Daniel Kevles & Leroy Hood (Eds.), Scientific and social issues in the Human Genome Project, Harvard, Harvard University Press, pp. 3-36.         [ Links ]

LAGE, Pedro (et al.) (1998), “Instabilidade de Microssatélites em Carcinomas do Cólon e Recto Esporádicos: Valor na detecção de novos casos de Síndromes hereditários”, in GE – Jornal Português de Gastrenterologia, Nº 5 (Janeiro/Fevereiro/Março), 13-19.         [ Links ]

LAGE, Pedro; CHAVES, Paula (1999), “A hereditariedade no cancro do cólon e recto”, in GE – Jornal Português de Gastrenterologia, Nº 2 (Junho), 24-28.         [ Links ]

MARQUES, Manuel Silvério (2002), A Medicina enquanto Ciência do Indivíduo, Dissertação de Doutoramento em Medicina, Lisboa, Faculdade de Medicina da Universidade de Lisboa.         [ Links ]

MENDES, Felismina (2003), A herança dos mal nascidos, Dissertação de Doutoramento em Sociologia, Lisboa, Instituto Superior de Ciências do Trabalho e da Empresa.         [ Links ]

– (2006), “Risco genético: da ilusão de certeza à disseminação da (ir)racionalidade”, in Graça Carapinheiro (Org.), Sociologia da Saúde. Estudos e Perspectivas, Coimbra, Pé de Página, pp. 17-45.         [ Links ]

NUNES, João Arriscado (1996), “Escala, heterogeneidade e representação: Para uma cartografia da investigação sobre o cancro”, in Revista Crítica de Ciências Sociais, nº 46, 9-46.         [ Links ]

– (2002), “Risco, incerteza e regimes de verdade. A patologia tumoral e a biologia do cancro”, in Revista de História das Ideias, Vol. 23, 285-315.         [ Links ]

PRIOR, Lindsay (2000), “Mathematics, Risk and Genetics”, in Barbara Adam (et al.) (Eds.), The Risk Society and Beyond. Critical Issues for Social Theory, London, Sage Publications, pp. 106-109.         [ Links ]

RAPOSO, Hélder (2006), Dominar o aleatório? Risco e Incerteza no Pensamento Biomédico: o caso do risco genético no cancro do cólon e recto, Dissertação de Mestrado, Lisboa, Instituto Superior de Ciências do Trabalho e da Empresa.         [ Links ]

ROSE, Nikolas (2010), “Normality and pathology in a biomedical age”, in Sociological Review, 57, 66-83.         [ Links ]

SERRA, Helena (2008), “Maus fígados. A construção social da tomada de decisão médica”, in Sociologia Problemas e Práticas, nº 58, 47-70.         [ Links ]

VASEN (et al.) (1991), “The International Collaborative Group on Hereditary Non-polyposis Colorectal Cancer (ICG-HNPCC)”, in Dis Colon Rectum, Nº 34, 424-425.         [ Links ]

 

Notas

1Professor Adjunto da Área Científica de Sociologia na Escola Superior de Tecnologia da Saúde de Lisboa (ESTeSL) (Lisboa, Portugal); investigador do Centro de Investigação e Estudos de Sociologia (CIES-IUL), Instituto Universitário de Lisboa (ISCTE-IUL) (Lisboa, Portugal); Doutorando no Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa (ICS-UL) (Lisboa, Portugal). E-mail: helder.raposo@estesl.ipl.pt

2A observação direta e a realização das entrevistas semiestruturadas e aprofundadas concentraram-se, sobretudo, no primeiro semestre de 2006. Para as entrevistas foram privilegiados os principais intervenientes do contexto de observação: três médicos (um deles Diretor de Serviço) e uma enfermeira. Os dados que estão na base deste artigo resultam de uma tese de mestrado desenvolvida pelo autor (cf. Raposo, 2006).

3De acordo com as perspetivas decorrentes destas linhas de investigação sobre as origens genéticas do cancro, um oncogene é um gene expresso em células cancerosas que estão na origem da desregulação da atividade celular.

4A interpretação das incertezas como riscos coloca questões importantes nas formas de julgamento clínico, porque as probabilidades reportam-se a séries (apenas podem ser derivadas de estudos de coletividades) e não a eventos individuais, donde se torna problemática e questionável a ideia do indivíduo singular como fonte de risco genético (Prior, 2000; Marques, 2002). Esta conversão das incertezas em probabilidades corresponde, assim, a uma tentativa de produzir entendimentos que permitam domesticar o aleatório e tornar cognoscíveis as incertezas (Raposo, 2006).

5Uma atualização feita em fevereiro de 2012 relativamente à recolha do número de famílias registadas na CRF aquando da realização das entrevistas em junho/julho de 2006, dá conta de um total de 3367 famílias, das quais 324 são famílias com Síndroma de Lynch (SL) e 98 com Polipose Adenomatosa Familiar do Cólon (PAFC). Os restantes casos referem-se a famílias com outros síndromas familiares, com formas de agregação familiar de cancro gástrico ou situações pendentes, ou seja, famílias ainda não confirmadas como pertencentes a síndromas hereditários, mas com um risco acrescido de virem a desenvolver um carcinoma do cólon ou reto.

6Proband neste contexto significa a pessoa de referência, ou seja, quem deu início ao estudo da história familiar no âmbito da CRF.

7O Síndroma de Lynch, ou Cancro do Cólon e Reto Hereditário não Associado à Polipose (CCHNP), é uma doença de transmissão hereditária autossómica dominante, responsável por cerca de 3% de todos os casos de CCR, condicionando nos indivíduos afetados um risco elevado (cerca de 80% aos 70 anos de idade) de desenvolver carcinoma do cólon ou reto (Vasen et al., 1991).

8 M – Médico

9 MD – Médico Diretor.

10 Enf – Enfermeira.

11 Laboratório de Patologia Molecular.

Creative Commons License Todo o conteúdo deste periódico, exceto onde está identificado, está licenciado sob uma Licença Creative Commons