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Sociologia

versão impressa ISSN 0872-3419

Sociologia vol.26  Porto dez. 2013

 

RECENSÃO

Recensão crítica do livro

Portugal nas Transições – O Calendário Português desde 1950

Miguel Quaresma Brandão1

Universidade do Porto

 

Trata-se do penúltimo livro de Mário Murteira: um ensaio económico e sociológico de 167 páginas, publicado pelo Sítio do Livro, numa edição da CESO CI Portugal, que adicionou mais um título bibliográfico à vasta obra publicada deste conceituado economista, Professor Emérito e Professor Catedrático Jubilado do ISCTE- IUL, recentemente falecido, que foi agraciado, no ano de 2009, com o «Prémio Carreira» da Ordem dos Economistas e condecorado, em agosto de 2010, com a Primeira Classe da Medalha de Mérito, pela Presidência da República de Cabo Verde, para referirmos duas das últimas distinções que foram atribuídas a um dos founding fathers da investigação e do ensino das Ciências Sociais em Portugal, na década de 50 do século XX, com Adérito Sedas Nunes, e que se podem considerar o corolário do reconhecimento contínuo do seu longo percurso académico e científico, realizado quer em Portugal, quer no estrangeiro.
Com uma pequena introdução, denominada «Notas Prévias» (MURTEIRA, 2011: 7-9), de Américo Ramos dos Santos (ISEG-UTL e Presidente do Grupo CESO CI) e com um prefácio poetizado (idem: 17-18) de José Manuel Rolo (ICS-UL), este livro de Mário Murteira pretende fazer “uma leitura aprofundada, embora sintética, do trajecto da economia e sociedade portuguesas desde 1950” (idem: 13), ao aplicar, em termos estruturais, o conceito económico e sociológico de ‘transição’ para dar inteligibilidade científica aos processos socioeconómicos de mudança, dando conta, neste caso específico, do fluir espontâneo e endógeno da trajetória do Estado-nação português durante as últimas seis décadas, enquadrado nos processos substanciais de transição que costumam ocorrer à escala mundial. O autor defende que esses processos correspondem, na realidade, a modos diferentes de olhar, ou interpretar, o fluir genérico de “um único processo de transição, que é afinal a própria corrente da História” (idem:19), pelo que a procura interpretar retrospetivamente, pondo em prática o princípio metodológico, enunciado na «Apresentação» (idem: 13-15), que consiste em comparar “o ‘presente’ com múltiplos ‘passados’” (idem: 13), tentando conhecer “com a objectividade possível, o ‘donde vimos’ e ‘onde estamos’” (idem: 14), de tal modo que, na sua opinião, embora não se possa conhecer o sentido da corrente histórica, o olhar pela História é entendido como “um dos melhores fundamentos para descortinar os possíveis futuros que nos aguardam” (idem: 20), nesta época caracterizada por “transições, indeterminações e, afinal, perplexidades, sobre os caminhos do Homem do século XXI” (idem: 19-20).
O livro é organizado em quatro capítulos que se complementam com um «Post- Scriptum: 2011, Em Plena Crise» (idem: 153-157) e com um «Anexo Estatístico» (idem:158-167), composto por nove gráficos e seis quadros estatísticos, agrupados em cinco grandes temas e com comentários de elucidação científica, que ilustram, com dados económicos e demográficos, provenientes de várias fontes, a essência daquilo que é descrito e defendido ao longo do corpo do texto.
O capítulo 1, «Transições em Contexto de Crise», começa por descrever os três processos substanciais de transição que costumam ocorrer nas sociedades contemporâneas e que se inter-relacionam: ‘a transição para o mercado global’ (a denominada ‘globalização económica’) (idem: 20-22), ‘a transição para a economia de mercado’ (idem: 22-23) e ‘a transição para a economia baseada no conhecimento’ (idem: 23-24), com a referência consequente a algumas das tendências a eles associadas (idem: 24-31). Segue-se uma abordagem detalhada da recente crise económica e financeira (idem: 31-34), realçando a sua especificidade em relação às do passado, visto que é gerada por um novo tipo de capitalismo, “ávido de dinheiro e desregulado, que contamina a chamada economia real de fragilidade e incerteza (...) fortemente condicionado por movimentos especulativos do capital”, alegando que “surge um aparente consenso sobre a necessidade de encontrar novas formas de regulação do capitalismo” (idem: 33-34). Considera, no entanto, que a fase crítica destes processos substanciais de transição tem um lado positivo e prenuncia uma descontinuidade, com a constituição concomitante do denominado “terceiro setor” ou “economia solidária”, no âmbito da economia de mercado (idem: 35-38).
O capítulo 2, «Anomalias do Calendário Português», caracteriza, em sete fases, qualificadas com um título identitário que revela os acontecimentos essenciais que ocorreram em cada uma delas, a trajetória socioeconómica de Portugal, desde a década de 50 do século XX até à contemporaneidade, reportando-a aos processos de transição descritos no capítulo anterior. Mário Murteira, ao debruçar-se sobre o assunto principal do livro, defende a ideia de que a ditadura corporativa, personificada por António de Oliveira Salazar, devido ao seu forte fechamento em relação a influências exógenas, funcionou “como armadura protectora do contágio da dinâmica histórica desse tempo”, tendo provocado um “penoso e tardio ‘acerto de calendário’ no tempo global” ( idem, p.40), marcado “por uma resistência obstinada ao que o regime de Salazar apelidava de ‘ventos da História’, acompanhada da preservação dum sistema colonial obsoleto” (idem, p.41), até àquela que, na sua opinião, foi a grande rutura de 1974/75, que originou a transição para a democracia parlamentar, o fim do império colonial português e, passado pouco mais de uma década, o começo da integração de Portugal no projeto europeu. Essas fases ( idem: 41-60) são perspetivadas a partir de vários indicadores, desde o tempo da sociedade pré-moderna do Estado Novo até à fase atual em que Portugal está integrado no espaço político e económico da União Europeia.
Sucede-se o capítulo 3, que é o mais longo deste ensaio, «Portugal no Sistema Mundial», constituído por duas grandes partes homónimas, separadas, que começa por caracterizar a configuração do sistema económico português, descrevendo as características e a evolução do capitalismo português durante o Estado Novo e durante o tempo da democracia parlamentar (idem: 61-75), entrecortados pelo período curto de transição para uma suposta “economia socialista” (idem: 62-64), apesar do autor constatar que “nem antes nem depois de 1974, esse sistema esteve explícita ou implicitamente fundado num modelo de economia de mercado de pura inspiração liberal” (idem: 61), ainda que se verifique, atualmente, uma tendência geral para a liberalização do sistema económico, com a redução da participação direta do Estado na atividade económica, tendo-se acelerado “a integração no mercado global e também a integração para a economia de mercado no quadro europeu, mas em contrapartida tem sido lento o processo de construção duma economia ‘baseada no conhecimento’” (idem:75).
Para ajudar a compreender o atraso da trajetória portuguesa, faz a caracterização das grandes tendências demográficas, dos movimentos migratórios e da estrutura do emprego desde 1950 (idem: 75-78), que são entendidos como “fundo contextual com óbvias implicações no ‘atraso’ português” (idem: 75) e que o condicionam. Por essa razão, esses elementos são descritos com algum pormenor, seguindo-se a apresentação de propostas, em vários domínios ( idem: 79-82), para “retomar e acelerar a convergência real da economia no contexto da integração europeia, assegurando, ao mesmo tempo, maior coesão social” (idem: 79), referindo as atuações que são necessárias realizar, através de “uma engenharia de reformas”, procedente do poder político (idem: 82). Segundo Mário Murteira, o atraso de Portugal deve-se a fundamentos culturais e surge daquilo que designa por ‘ideologia portuguesa’ ( idem:83-88), uma noção de cunho schumpeteriano que se refere à “visão do mundo” (incluindo, nessa visão, o próprio sujeito do conhecimento, condicionado pela sua ideologia, com consciência ou não do facto) que “os portugueses têm de si mesmo e do seu posicionamento no mundo em que vivem” ( idem: 83) e que é causa e efeito do atraso português, consistindo num complexo nacional de inferioridade que os conduz a hipervalorizar e a imitar o que se faz “lá fora” e a desprezar o que se faz “cá dentro”. Este fenómeno costuma estar associado àquilo que o autor denomina de ‘indecisão’, que é a incapacidade frequente dos portugueses, quer a nível individual, quer ao nível das organizações, de tomar decisões em tempo útil, ignorando a sua base empírica e o tempo histórico.
Um exemplo extremo da ‘indecisão’ dos portugueses é a sua experiência tardia da descolonização. Devido a esse facto, é feita a descrição daquilo que mudou na ideologia e na visão do desenvolvimento das antigas colónias portuguesas, desde a primeira vaga de independências em África até ao presente (idem : 88-104). Também é realçada a circunstância de que a descolonização alterou o posicionamento da economia portuguesa no sistema da economia mundial, com o declínio das relações económicas entre Portugal e as ex-colónias e a consequente integração do Estado-nação português no espaço europeu, subordinado à dominância e às orientações políticas e económicas dos países centrais da Europa, defendendo a necessidade, no início deste século XXI, de haver uma estratégia para a reposicionar, apresentando dois cenários alternativos possíveis, que serão expostos no capítulo seguinte (idem: 104-109).

No capítulo 4, «Os Futuros no Século XXI», o último capítulo, faz-se uma explicação estrutural do atual atraso português, adotando os fenómenos de ‘ideologia portuguesa’ e de ‘indecisão’ como pontos de partida, que originam um sentimento de desconfiança recíproca entre os indivíduos nas organizações e retardam o processo decisório, aos quais se acrescenta um duplo condicionamento: o gap entre as gerações e a repartição desigual de rendimento e de riqueza na sociedade portuguesa, que o sistema de ensino consolida em vez de superar, devido ao facto de existir, na sua opinião, uma “democracia política”, apenas formal, e não uma “democracia económica”. Para obter uma panorâmica das causas do atraso português nas últimas décadas, é apresentado o modelo social do período democrático, bem como é feita a explicitação de algumas hipóteses relativas à evolução do sistema do mercado global, por condicionarem o futuro socioeconómico de Portugal (idem: 111-123). Em consequência, o autor apresenta, agora com muito mais detalhe, os dois cenários genéricos antes referidos, que se alicerçam a partir das dimensões desse modelo social e constituem visões alternativas dos futuros possíveis para o Estado-nação português: o Cenário I, Integração na Deriva Periférica, “que corresponde ao aprofundamento da integração portuguesa no quadro ibérico, sem questionar o aprofundamento da integração europeia. Trata-se de perspectivar uma gradual diluição da identidade portuguesa” nesse quadro, com “acentuada periferização na Europa” (idem: 107 e 123-126), e o Cenário II, Identidade Própria e Valorização da Diferença, entendido como o mais desejável mas também como o mais improvável, no qual são apresentadas medidas concretas e soluções adequadas para a superação desse atraso, e que consiste na “afirmação de identidade própria, ou valorização da nossa diferença, num processo de globalização”, “não apenas no contexto europeu, mas também aberta a outras áreas, designadamente o conjunto dos países de língua portuguesa e países como a China e a Índia, de crescente influência na economia mundial, e com os quais Portugal tem laços históricos e culturais específicos” (idem: 107-109 e 126-143).
É a partir do confronto entre esses dois cenários possíveis para o futuro da economia e da sociedade portuguesas, que este ensaio, muito denso e de âmbito macroeconómico e macrossociológico, constrói a sua conclusão, descrevendo aquilo que é possível e provável acontecer a Portugal, no atual contexto de crise económica e financeira, quase generalizada por todos os países (idem: 145-157). Em face das atuais circunstâncias políticas e económicas, o autor admite que o primeiro cenário ocorrerá com mais probabilidade, apesar de ser indesejável, facto que nos remete para a citação da Ode Marítima de Fernando Pessoa (Álvaro de Campos), que faz a abertura do livro e que parece revelar o verdadeiro sentimento de Mário Murteira, quer enquanto cidadão, quer enquanto cientista social, perante a situação de Portugal no presente e perante a sua evolução no futuro: “Dentro de mim há um só vácuo, um deserto, um mar nocturno.”

 

Referências bibliográficas

MURTEIRA, Mário (2011), Portugal nas Transições – O Calendário Português desde 1950, Lisboa, Sítio do Livro / CESO CI Portugal, com o apoio do INDEG/ ISCTE Business School. Colectânea “Economia e Sociedade”, nº 1.         [ Links ]

 

Notas

1 Investigador Integrado do Instituto de Sociologia da Faculdade de Letras da Fundação Universidade do Porto. Linha de Investigação “Trabalho, Emprego, Profissões e Organizações”. Bolseiro de Investigação Científica da Fundação para a Ciência e Tecnologia, I.P., do Ministério da Educação e Ciência. Doutorando em Sociologia (DS-FLUP) (Porto, Portugal) . Endereço de correspondência: Instituto de Sociologia | Faculdade de Letras da Fundação Universidade do Porto-Torre B, 2º Piso, Gabinete 251-Via Panorâmica, s/n-4150-564 Porto - Portugal. E-mail: mbrandao@letras.up.pt

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