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Sociologia

versão impressa ISSN 0872-3419

Sociologia vol.34  Porto dez. 2017

https://doi.org/10.21747/08723419/soc34a2 

ARTIGOS

Proletários ou profissionais? A condição do jornalista durante o Estado Novo (1934-1958)

Proletarians or professionals? The journalist´s condition during Estado Novo (1934-1958)

Prolétaires ou professionnels? La condition des journalistes au cours de l' Estado Novo (1934-1958)

¿Proletarios o profesionales? La condición del periodista durante el Estado Novo (1934-1958)

 

José Nuno Matos1

Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa (Lisboa, Portugal)

Endereço de correspondência

 


RESUMO

A instauração de um regime autoritário em Portugal a partir de 1926 veio impor restrições ao jornalismo então praticado. Com a institucionalização do Estado Novo, em 1934, a atividade tornou-se sujeita não só à censura, como também às orientações do regime. A partir da pesquisa do Boletim do Sindicato Nacional dos Jornalistas e da Gazeta Literária, editada pela Associação dos Jornalistas e Homens de Letras do Porto, o objetivo do estudo reside na análise de uma série de artigos, intervenções e debates em torno da condição do jornalista. Estes, como pretenderemos demonstrar, traduzem a clivagem entre defensores de um escol de jornalistas e os que viam no jornalismo uma atividade eminentemente laboral.

Palavras-chave: Estado Novo; jornalistas; trabalho.

 


ABSTRACT

The establishment of an authoritarian regime in Portugal, from 1926, imposed restrictions on the journalism then practiced. With the institutionalization of the Estado Novo in 1934, journalism became subject not only to censorship, but also to the guidelines produced by the regime. From the research of the Bulletin of the National Union of Journalists and Literary Gazette, published by the Association of Journalists and Men of Letters of Oporto, the aim of the study lies in the analysis of a series of articles, speeches and debates on the journalist's condition. These, as we shall demonstrate, reflect the split between advocates of an elite journalism, more affiliated to the regime, and those who regarded journalism as an eminently labour activity.

Keywords: Estado Novo; journalists; work.

 


RÉSUMÉ

La mise en place d ‘un régime autoritaire au Portugal en 1926 a imposé des restrictions sur le journalisme alors pratiqué. Avec l'institutionnalisation de l' Estado Novo en 1934, le journalisme est devenu non seu- lement soumis à la censure, ainsi comme a les lignes directrices du régime. De la recherche du Bulletin de l'Union nationale des Journalistes et de la Gazette Littéraire, publié par l'Association des Journalistes et des Hommes de Lettres de Porto, le but de l´étude réside dans l'analyse d'une série d'articles, de discours et des débats sur la condition du journaliste. Ceux-ci, comme on le verra, reflètent la clivaje entre les partisans de un journalisme d'élite, plus proches du régime, et ceux qui identifiait en le journalisme une forme de travail.

Mots clés: Estado Novo; journalists; travail

 


Resumen

El establecimiento de un régimen autoritario en Portugal desde 1926 ha impuesto restricciones al perio- dismo practicado. Con la institucionalización del Estado Novo en 1934, el periodismo se convirtió sujeto no sólo a la censura, así como a las directrices del régimen. De la investigación del Boletín de la Unión Nacional de Periodistas y de la Gaceta Literaria, publicada por la Asociación de Periodistas y Hombres de Letras de Porto, el objetivo del estudio radica en el análisis de una serie de artículos, discursos y debates sobre la condición del periodista. Estos, como pretenderemos demostrar, reflejan la clivación entre los defensores de un periodismo de élite, más afecto al régimen, y los que veían en el periodismo una actividad eminentemente laboral.

Palabras clave: Estado Novo; periodistas; trabajo.

 


Introdução

A criação do Estado Novo veio introduzir profundas mudanças na regulação da imprensa, então impostas pelo Secretariado de Propaganda Nacional (SPN), instituído em 1933. O objetivo, segundo a expressão de José Tengarrinha, foi a da construção de um bloco de opinião nacional (Tengarrinha, 2006: 180) a partir quer dos serviços de censura, quer da orientação sistemática da produção noticiosa. Nesta senda, seria posteriormente instaurado, em 1940, o Gabinete da Coordenação dos Serviços de Propaganda e Informação, com vista a assegurar uma maior articulação entre os vários organismos do Estado. Mais tarde, em 1944, o SPN adotaria a designação de Secretariado Nacional da Informação, Cultura Popular e Turismo (SNI). A mudança, segundo Tengarrinha, não seria meramente nominal, verificando-se o reforço da direção de Salazar e, paralelamente, uma ação concentrada na reprodução de práticas culturais, doravante representadas como os laços indissolúveis entre Estado Novo e Nação (idem: 181). Ao longo deste processo, o jornalismo seria transformado num instrumento de propaganda ao serviço do Estado, com óbvias implicações sobre quem a ele se consagrava.
A partir da observação quer das várias políticas estabelecidas pelo regime, resultantes da ação corporativa operada pelo Sindicato Nacional dos Jornalistas (SNJ) e pelo Grémio Nacional da Imprensa Diária, quer dos debates em torno das medidas adotadas, este artigo propõe-se analisar os debates em torno da condição social do jornalista durante o período compreendido entre 1934 e 1958. Este corresponde à vigência de uma imprensa pouco profissionalizada, composta por um corpo de jornalistas com formação apenas ao nível da «tarimba», com a devida exceção de algumas figuras notórias.
A presente investigação baseia-se nos conteúdos de diversas publicações, especificamente ou parcialmente dedicadas à atividade jornalística, nomeadamente o Boletim do Sindicato Nacional dos Jornalistas (1941-1945) e a Gazeta Literária, da responsabilidade da Associação dos Jornalistas e Homens de Letras do Porto (AJHLP). Se a primeira, publicada durante o período de consolidação do Estado Novo, espelha por inteiro a linha política do regime, a segunda tende a dar lugar a uma maior diferença de opiniões e posições. Apesar de não constituir um fórum da oposição política ao regime, a sua natureza associativa, fora da alçada corporativa, permitiu-lhe, ainda que de forma limitada, um discurso mais aberto, diversificado e crítico. O corpus de análise incluirá igualmente os importantes contributos teóricos produzidos sobre o tema (Sousa, 2011; Garcia, 2009; Correia, Baptista 2007; Cabrera, 2006; Sobreira, 2003; Veríssimo, 2003).
A definição da condição de jornalista constitui, desde sempre, um enorme desafio. O jornalismo apresenta certamente um ethos específico, em que valores como independência, autonomia, credibilidade ou objetividade compõem o quadro normativo e ideológico a partir do qual os jornalistas interpretam o seu ofício e o distinguem dos outros (Schudson, 1978; Tuchman, 2009 (1978); Golding, Elliot, 1979; Schiller, 1981; Deuze, 2005; Camponez, 2011). Porém, é importante realçar que estes valores não se encontram estritamente ligados a uma conceção profissional do jornalismo, podendo constituir a base conceptual de uma comunidade interpretativa, isto é, a partilha de um sentido comum em torno da atividade derivada das interpretações coletivas sobre estórias passadas (Zelizer, 2000; Traquina, 2004)2. Ao mesmo tempo, fatores como a insegurança no emprego ou a reduzida carga salarial vêm condicionar a sua independência e autonomia. Assim, e analisando-o à luz da sociologia das profissões, o jornalismo poderá ser encarado como uma semi-profissão ou uma profissão inacabada, não preenchendo os critérios mínimos de qualificação3 (Fidalgo, 2008:67). A sua definição, como realça Rémy Rieffel, acaba por redundar numa tautologia: é jornalista quem exerce o jornalismo (Rieffel,2004: 126).
Apesar dos efeitos da censura, é possível identificar nestas publicações um conjunto de reflexões que, a nosso ver, importa revisitar. Os termos do debate permanecem atuais, uma vez que a tensão entre a falta de privilégios materiais e a natureza simbólica da atividade, outrora específica do jornalismo, alargou-se a uma série de profissões intelectuais, fenómeno que Oppenheimer designou de proletarização dos profissionais (Oppenheimer, 1979). O jornalismo é, neste sentido, paradigmático.
Na abordagem a desenvolver, os conceitos de profissional e de proletário não serão considerados a partir de uma perspetiva restrita. A definição do jornalismo como profissão não obedece a um raciocínio funcionalista, assente em tipos-ideais, mas sim a um entendimento menos rígido e ciente, segundo Denis Ruellan, das “maneiras de fazer, de usos, de mediações entre o indivíduo e a sua prática” (Ruellan, 2007: 28). Por sua vez, a associação do jornalismo a uma forma de trabalho não será indiferente ao teor particular deste ofício, inserido numa esfera simbólica e comunicacional. O jornalismo, sob este prisma, é profissão e trabalho, ou seja, uma atividade eminentemente reflexiva enquadrada numa teia de relações dirigidas a partir de cima (Garcia, 2009: 71). O objetivo deste estudo reside assim na análise da tensão entre a expressão e vocação jornalísticas e a engrenagem autoritária e burocrática gerida pelo Estado Novo.

O Estado Novo e a formação de um escol de jornalistas

A obra de refundação do jornalismo operada pelo Estado Novo deveu-se, entre outras figuras, a António Ferro. O diretor do SPN (1933-1949) terá sido responsável, juntamente com outros jornalistas, por um abaixo-assinado a defender a criação de um sindicato de jornalistas (Veríssimo, 2003: 44). O argumento é o da inexistência de tal associação em Portugal, dado que o Sindicato dos Profissionais da Imprensa de Lisboa congregava diversas condições: redatores, repórteres, informadores, fotógrafos, desenhadores ou revisores, desde que com mais dois anos de experiência (Valente, 1998: 40). De facto, como salientará mais tarde o ex-diretor do Diário de Notícias Alfredo da Cunha, a Associação dos Trabalhadores de Imprensa de Lisboa (base a partir da qual seria mais tarde criado, em 1924, o Sindicato dos Profissionais da Imprensa de Lisboa) havia aberto “as suas portas ainda mais amplamente do que qualquer das três precedentes, aos que quisessem nela agremiar. Porque o único requisito exigido era exercer a actividade profissional na imprensa periódica de Lisboa, sendo apenas excluídos os que não recebessem ordenado mensal das empresas em que trabalhassem (Cunha, 1941: 69).
A composição multiforme do Sindicato dos Profissionais da Imprensa de Lisboa serviu, no entanto, e mais do que tudo, como um falso argumento, utilizado para ultrapassar a sua intransigência em relação às novas regras estabelecidas pelo regime. Na primeira assembleia dedicada à análise das suas implicações, a direção do sindicato apresentaria um parecer crítico dos planos delineados pelas autoridades, acusando-as de pretender suprimir as liberdades e de proibir todas as atividades políticas, com a exceção das organizadas pelo grupo partidário afeto ao governo (Patriarca, 1991: 42; Valente, 1998: 76). O documento, apresentado pelo jornalista e dirigente sindical Belo Redondo, não viria, contudo, a ser aprovado, tendo as autoridades policiais presentes encerrado a sessão. Uma segunda assembleia confirmaria a orientação em vigor, rejeitando uma proposta mais conciliadora de revisão e revogação de alguns pontos do Decreto-Lei n.º 23 050 (Patriarca, 1991: 50; Valente, 1998: 78). Como resultado, o sindicato viria a ser dissolvido.
Criado em 26 de fevereiro de 1934, por alvará governamental, o SNJ acabaria por se assumir como a exclusiva entidade representativa dos jornalistas portugueses. António Ferro chegará mesmo a acumular as funções de diretor do SPN com as de presidente do SNJ, facto elucidativo do grau de autonomia que o sindicato passaria a usufruir. No mesmo ano, o governo regularia a atribuição do título de categoria profissional de jornalista por via do decreto n.º 24 006. O regimento, face a alegadas ambiguidades na interpretação, seria alterado por mais duas vezes. Aliada aos novos estatutos do SNJ, aprovados em 1941, a carteira profissional seria emitida pelo sindicato e, posteriormente, visada pelo Instituto Nacional do Trabalho e da Previdência (INTP). O novo regime vem restringir o conjunto de condições integradas na categoria de jornalismo, limitando-a aos chefes e subchefes de redação, redatores, repórteres e fotógrafos de jornais diários; e aos correspondentes e redatores de agências noticiosas nacionais ou estrangeiras.

A importância da imprensa na edificação e estabilização do Estado Novo implicaria a constituição de um escol de jornalistas, à altura da obra em questão. O jornalista e intelectual Homem Christo (Filho), próximo do regime, chegaria mesmo a afirmar, num artigo publicado no Boletim do SNJ, que “em Portugal, o verdadeiro jornalismo nem se iniciou” (Christo, 1941: 104), dada a ausência de educação moral e de caráter entre a comunidade jornalística. Para o grande papel que lhe cabe, o jornalismo, na sua visão, “tem de ser culto, muito culto, e orientar-se pelos interesses coletivos e não pelo interesse abjeto dos homens políticos e das facções” (Christo: 106, 107).
A defesa de formação dos jornalistas assumirá um particular destaque entre os objetivos consignados pelo SNJ. Em carta endereçada ao Ministro da Educação Nacional, Luiz Teixeira, à altura presidente do sindicato, requisitará o patrocínio e apoio na organização de um Curso de Formação de Jornalismo, capaz de contrariar a tendência dominante ao nível do recrutamento, em geral realizado

“por tentativas de experiência, incertas e pouco seguras dos seus resultados. A carreira profissional do jornalista começa com base em indícios nítidos de vocação e tendência natural e desenvolve-se sempre ao sabor da revelação de espontâneas qualidades pessoais. Reconhecemos que falta o encaminhamento necessário que oriente e aproveite para uma finalidade justa o esforço do autodidacta que faz do jornalismo o seu modo de vida e põe ao seu serviço as melhores energias intelectuais, quási sempre com apaixonante dedicação. Em muitas capitais estrangeiras preencheu-se essa falta com as Escolas de Jornalismo” (Teixeira, 1941: 6).
Porém, quer a recomendação produzida por Homem Christo (Filho), quer a presença de figuras que acumulavam a condição de jornalista com a de escritor, remetem para um perfil de jornalista que não se limita à mera acumulação de competências técnicas. Num artigo publicado no Diário de Lisboa (e, posteriormente, no Boletim), Pedro Mayer Garção, vencedor do prémio do SNJ (1942), enumera as qualidades exigidas pela função – “cultura geral, talento de improvisação, qualidades literárias invulgares, agilidade mental, probidade de espírito” (Garção, 1945: 9), as quais não se adquirem necessariamente por via de um ensino especializado. Hugo Rocha, numa peça publicada na mesma edição, explicita as razões que levam a que todo o jornalista seja, por imperativo, um homem de letras: “Reajamos, porém, já que nos cumpre conduzir a «opinião pública» e não ser conduzido por ela, contra os vícios a que nos habituamos e habituamos os leitores dos «nossos» jornais. E contra tanto veneno de factos e opiniões, preparemos ou diligenciemos preparar o antídoto rigorosamente literário que, longe de amedrontar o leitor, o convença de que a vida e o mundo não estão condicionados apenas aos «comunicados oficiais do Grande Quartel General...» e de que há ainda sol bastante para nos aquecer a alma enregelada por tantas dores colectivas” (Rocha 1941-45, 37).

Aparentemente ousada, a crítica aos comunicados oficiais não parece visar os valores emanados desse Quartel-general, prometendo, contra o veneno de factos e opiniões, destacar esse sol que, num mundo em plena guerra mundial, nos aquece a alma. Não se trata assim, como sublinha o historiador Luís Trindade, da subversão dos “valores tradicionalistas, mas na imposição massificada, generalista e uniformizadora, destes valores em forma de nacionalismo moderno” (Trindade, 2008: 196).
Uma das propostas mais debatidas no seio do SNJ seria a de constituição de uma Ordem de Jornalistas. A inspiração, conforme patente numa grande parte dos artigos a defender essa via, advém de uma resposta proferida por Salazar a uma questão colocada por António Ferro. Perguntava-lhe este se não teria “chegado o momento, por exemplo, de acabar com a censura?” (Ferro, 1978 (1932): 93). Reconhecendo a irritação provocada por tal dispositivo, Salazar propõe o seguinte:

“Ora o jornal é o alimento espiritual do povo e deve ser fiscalizado como todos os alimentos. Compreendo que essa fiscalização irrite os jornalistas, porque não é feita por eles, porque se entrega a esse policiamento à censura que também pode ser apaixonada, por ser humana, e que significará, sempre, para quem escreve, opressão e despotismo. Mas vou oferecer-lhe uma solução para esse problema, para esse aspecto da questão: porque não se cria uma Ordem de Jornalistas como se criou uma Ordem dos Advogados? Dessa forma, o papel moralizador da censura passaria a ser de- sempenhado pelos próprios jornalistas e dentro da sua classe. Não lhe parece uma boa sugestão?” (Ferro, 1978 (1932): 95).

A sugestão é aceite por Ferro, o qual admite não ser “a primeira vez que ela nos ocorre”, acreditando que os seus “camaradas jornalistas a estudariam com prazer, até com alegria, se essa Ordem de Jornalistas trouxesse o fim da censura” (idem: 95). Independentemente de a proposta poder traduzir mais uma manobra retórica do que propriamente uma intenção política, o seu objetivo seria garantir um jornalista que apenas se reconhecesse junto de colegas e não de outro tipo de pessoal, de menor estatuto. Porém, e como veio a ser denunciado por correntes internas ao próprio regime e pelo próprio SNJ, esse poder simbólico depreendia uma base material minimamente segura, à altura inexistente.
O fosso social que separava a maioria dos jornalistas do pequeno grupo de protegidos à volta de António Ferro (Correia, Baptista, 2007: 54), não seria, contudo, apresentado como intransponível4. Não só o exercício da profissão é, conforme se pode ler no Boletim do SNJ, apresentado como motivo de orgulho por si só, como ao jornalista se impõe o dever de esforço e perseverança:

“devemos, realmente, ter e manter esse orgulho, mas não com o orgulho conformado e passivo de fidalgo que contempla os seus domínios hereditários, que ele recebeu e que ele desfruta sem mais preocupações, antes com o orgulho consciente, não dos direitos, que isso pouco vale, mas das responsabilidades que cabem inalienavelmente ao exercício desses direitos (...). Dir-se-á: é exigir muito em troca de muito pouco. Exactamente. A objeção colhe – mas é preciso que não colha. O nobilimento da profissão é tarefa que incumbe ao próprio profissional. As honras construí-las-e-mos nós: os profeitos devidos a essas honras serão consequência necessária, cairão como fruto maduro” (Santos 1941, 141).

O jornalista vê-se assim categorizado como alguém que, auferindo de condições de trabalho precárias, deve renunciar à tentação de se deixar guiar por estas, considerando o bem da nação acima de tudo.

O Contrato Coletivo de Trabalho e os dilemas da condição jornalística

As primeiras tentativas de negociação de um Contrato Coletivo de Trabalho (CCT) com o Grémio Nacional de Imprensa Diária revelar-se-iam infrutíferas. Luiz Teixeira chegaria mesma a classificar o contraprojeto da associação empresarial como “indigno de apreciação por humilhante” (Teixeira, 1942-1945: 27). A conjuntura internacional havia originado o aumento de preços das matérias-primas, em particular do papel, obrigando a imprensa a concentrar a redução de custos noutras áreas, entre as quais a do pessoal. O contencioso obrigaria à criação de uma comissão conciliadora, liderada por António Ferro, destinada a estudar as condições dos jornalistas e a adotar as respostas tidas como apropriadas. Em 1943, o Diário de Governo publicaria um despacho do Subsecretário de Estado das Corporações e Previdência Social a definir os salários, as normas de trabalhos e a instituir a caixa de reformas para os profissionais da Imprensa Diária. Perante a falta de dinamismo da organização corporativa, tendência igualmente verificada noutros setores, o Estado Novo acabaria por assumir a iniciativa (Patriarca, 1991: 31).
Além da divisão já existente entre as diversas categorias na redação, a regulamentação viria a introduzir um fenómeno de dupla segmentação. Em primeiro lugar, e acompanhando o estabelecido nos estatutos do sindicato, a legislação abrange apenas os chefes, subchefes, redatores, repórteres e fotógrafos da imprensa diária e os correspondentes e redatores das agências noticiosas, excluindo assim todos os que não se inseriam nestas categorias (a integração dos jornalistas desportivos, por exemplo, apenas viria a acontecer em 1962). Em segundo lugar, a definição dos montantes salariais é realizada com base na distinção entre os jornais de expansão geral de classe A (Diário de Lisboa, Diário de Notícias, Diário Popular e O Século), todos eles de Lisboa; de classe B (Jornal de Notícias, Comércio do Porto, O Primeiro de Janeiro), todos eles do Porto; de classe C (Diário da Manhã, Jornal do Comércio; Novidades, República, A Voz) e, por fim, jornais de expansão local. Numa comunicação à classe publicada no SNJ, o seu presidente Luiz Teixeira criticaria a medida, identificado na mesma dois tipos de inconvenientes: para os jornais, contabilizando-se os efeitos da “diminuição evidente do prestígio do jornal” junto quer do leitor, quer das empresas de publicidade; e para os jornalistas

“a sua equiparação a jornalistas ocupados em diários de categoria inferior é, verdadeiramente, inadmissível. Se acrescentarmos que os jornalistas dos quadros indicados têm exigências materiais de vida e de representação iguais às daqueles que pertencem a diários de categoria superior; que são claramente insuficientes os seus ordenados; e que existem entre eles numerosos profissionais intelectualmente categorizados e com largos anos de bons serviços prestados ao jornalismo e ao jornal em que trabalham, verificaremos a agudeza dos efeitos materiais e morais que suportariam no caso de os seus diários não serem justamente classificados” (Teixeira 1945: 39 e 40).

Posta de parte a garantia de condições que possibilitassem a elevação do estatuto do jornalista ao do médico ou do advogado, e face a um tecido empresarial pouco dinâmico e essencialmente detido por famílias (Correia, Baptista, 2007: 51), ao Estado Novo restava a prevenção de um espírito de corpo.
O fim da divisão entre jornais A e B imposto pelo CCT, mais tarde assinado entre o SNJ e o Grémio Nacional da Imprensa Diária em 1951, não veio originar alterações de revelo nas condições de trabalho dos jornalistas5. A Gazeta Literária, publicação editada pela Associação dos Jornalistas e Homens de Letras do Porto (AJHLP), seria um dos principais fóruns de denúncia dos problemas enfrentados pela classe jornalística. As críticas apontadas, contudo, não traduzem necessariamente a oposição ao regime. A publicação atribuiria, a título de exemplo, um especial relevo à intervenção do deputado João Amaral na Assembleia Nacional. No requerimento apresentado, o ex-jornalista considera “não ser impossível, nem inoportuno, rever e melhorar as condições mínimas estabelecidas pelo contrato colectivo”, dado ter tido “conhecimento de que uma empresa editora de um diário da capital (Diário Popular) tomara a iniciativa de compensar com uma melhoria substancial de vencimentos alguns dos seus redatores” (Amaral, 1953: 127). A proposta apresentada, segundo o então presidente do SNJ Luís Teixeira, “permite-me supor que, se quisermos, poderemos conseguir salvar-nos dos estragos que essa proletarização ocasionaria no conceito justo da nossa ética naturalmente diferenciada” (Teixeira, 1953: 129). No almoço de homenagem a João Amaral, Artur Maciel, jornalista e escritor próximo de Ferro, mencionaria o desvirtuamento operado nas últimas décadas, enquadrado por categorias que pouco têm a ver com a atividade jornalística:

“O jornalista em Portugal diminuiu-se impensadamente quando deu em preferir a designação de profissional da Imprensa. De elemento formativo de uma profissão livre, dotada de uma deontologia própria e com qualificação técnica diferenciada por categoria de valores intelectuais, reduziu- se como que a uma mera classe de empregados por conta de outrem. (...). Dentro da empresa (...) o jornalista uma vez classificado profissional de Imprensa, passou a ser considerado como factor de trabalho, idêntico e confundível com todos os outros profissionais que a engrenagem da Imprensa utiliza para a edição do jornal” (Maciel 1953, 130).

Os comentários visam o associativismo praticado ao longo do período da República, o qual orientou a sua estratégia não só pelo alargamento das suas bases de associação, como pela coligação com outras condições, como a dos tipógrafos (Valente, 1998; Trindade, 2016). Não se trata, segundo Maciel, de reanimar a “chama romântica” ou a “boémia de espírito”, valores com pouco significado quando confrontados “nos nossos dias com um vulcão de realidades imperativas” (Maciel, 1953: 130). As questões de política internacional são apresentadas como o exemplo da necessidade, perante os interesses de Portugal no mundo, de “jornalistas especializados, com tempo e dinheiro que lhes permitam uma leitura geral com que se apetrechem devidamente!” (Maciel, 1953: 130).
Os meios ao serviço desta causa não eram, contudo, objeto de consenso entre os jornalistas. Face à diferença de condições existente entre os jornalistas de Lisboa e os do Porto, com os primeiros a auferir de uma remuneração superior, a denúncia do CCT por parte do SNJ, com vista a garantir o alargamento universal dos aumentos realizados por vários jornais de Lisboa, viria a ser alvo de críticas na Gazeta Literária. Segundo o diretor da revista e jornalista Mário Amaral, o acordo firmado entre sindicato e grémio havia tido o mérito de “justificar a razão de ser dos organismos contratantes, bem como o de melhorar sensivelmente a situação material de mais de duzentos jornalistas” (Amaral, 1953: 161). Se, por um lado, a figura do CCT vinha confirmar o cariz laboral da condição jornalística, por outro, “a despeito da natureza intelectual do labor jornalístico, a profissão já de há muito se encontrava proletarizada, deixando de revestir o carácter liberal que se lhe atribui durante largos anos, mais por convenção, diga-se de passagem, do que por direito próprio” (Amaral, 1953: 161).
A persecução das medidas incluídas no acordo deveria, na sua opinião, merecer um maior dinamismo por parte da direção do SNJ, cuja ação denotava “uma atitude de soleta e imperturbável imobilidade” (Amaral, 1953: 161). O autor refere-se, especificamente, ao atraso da nomeação de comissões nomeadas pelo sindicato (em Lisboa e no Porto), com funções ao nível da fiscalização do cumprimento do CCT nas redações. Meses depois, uma moção de desconfiança da direção do SNJ seria aprovada por jornalistas do Porto, reunidos em assembleia na sede da AJHLP. O texto identifica na denúncia do CCT a crença no voluntarismo das administrações dos jornais. Tal empreendimento

“pode ser cómodo, porque não impõe o mínimo esforço, mas não é práctico – nem sindical. Se o «Popular», o «Diário de Notícias», o próprio «Século», fizeram aumentos apreciáveis e louváveis, a experiência demonstra que, na maioria dos outros jornais, tais melhorias não são possíveis por decisão voluntária das empresas (...). Os mentores sindicais, porém, que diga-se de passagem, pertencem, quase por completo, aos quadros redactoriais do «Popular» e do «Diário de Notícias», não estão directamente interessados no progresso geral da classe, e dir-se-ia mesmo não compreenderem, ou não quererem compreender, que aquilo a que chamam, pomposamente, o prestígio dos jornalistas, é inseparável da situação económica que eles desfrutarem” (GL, 1953: 226).

A resposta da direção do SNJ parece confirmar as suspeitas expressas na moção. O seu presidente Augusto Pinto justificaria a decisão a partir dos resultados de um inquérito à classe favoráveis à denúncia do CCT. Para a maioria dos jornalistas, de acordo com a sua análise, tratava-se de “um instrumento que lhes fora imposto e ao qual deviam, como lei, acatamento, mas nenhuma espécie de simpatia” (Pinto, 1954: 11).

Proletários ou artesãos?

Ao longo deste contencioso, a Gazeta Literária dedicaria várias peças à reflexão em torno da atividade jornalística, algumas delas da autoria de figuras da oposição ao regime. Em resposta a uma História da Imprensa Operária, assinada por César Nogueira, o anarquista e jornalista Jaime Brasil viria a incluir considerações sobre a condição socioprofissional dos redatores d´A Batalha, o diário de informação editado pela Confederação Geral do Trabalho (CGT), organização sindicalista revolucionária:

“Se alguns dos meus camaradas têm ilusões a esse respeito e pretendem exercer uma profissão liberal, esquecem estar sujeitos ao mesmo regime dos demais trabalhadores e empregados por conta doutrem. Os contratos de trabalho com as suas prescrições de horários, folgas, licenças e sanções, devem ter dissipado a última ilusão de quantos acreditavam num jornalismo de boémia intelectual que parece ter vicejado lá para o século findo” (Brasil, 1953: 167).

Esta equiparação é recusada por César Nogueira, em nome da liberdade de pensamento e de escrita. O autor reforça o facto de nunca ter sido pago pelas décadas de colaboração com vários jornais e revistas, escrevendo “onde quero, e me acolhem. Não tenho a pena alugada e direi ainda mais que, pelo facto de eu ter militado no partido socialista, nunca fui súbdito de chefes ou de mentores” (Nogueira, 1953: 206). Na réplica, Jaime Brasil classifica tal postura como próxima da praticada por operários amarelos, dadas as consequências da oferta de trabalho gratuito às administrações da imprensa, “numa profissão que não é sua e na qual há trabalhadores desempregados”. Enquanto jornalista, declara ser um assalariado, encontrando-se a sua “pena alugada ao serviço dos leitores, pois são eles que me pagam por intermédio dum patrão qualquer. Em mais de trinta anos de ofício, nunca entrei, contudo, numa padaria a oferecer-me para fazer pão de graça, com o intuito de tirar o pão aos operários padeiros. Isso considerá-lo-ia uma abjecção” (Brasil, 1953a: 220).
A sua objeção decorre igualmente da natureza seletiva deste tipo de colaboração voluntária, concentrada nos artigos de fundo e não tanto “nas obscuras tarefas do expediente ou das províncias, da reportagem ou do estrangeiro, em primeiro lugar porque não sabem e, se soubessem, isso não daria lustre aos seus nomes” (idem: 220). O cenário de desigualdade produzido assemelha-se, conclui, a uma “feira onde todos os exibicionistas agitam as suas penas de pavão, acusando-nos ainda por cima – como se dum crime se tratasse do anonimato que nos é cruelmente imposto e de que eles se aproveitam para só os seus nomes aparecerem” (idem: 220).
A referência final à questão do anonimato poderá constituir uma resposta não só a César Nogueira, mas também ao artigo O Anonimato Jornalístico, de Óscar Lopes, publicado no número anterior da Gazeta Literária. Neste, o linguista, crítico literário e opositor ao regime define a escrita sem assinatura como a de “um caso de proletarização integral”, pois, e ao contrário do operário, a atividade do repórter ou jornalista “não pode confundir-se com o trabalho de que resulta de obras reprodutíveis, em série, como nas empresas industriais. (...) O cronista, o articulista reage dentro de circunstâncias que tendem a criar uma psicologia de artesanato intelectual, e não de proletariado intelectual” (Lopes, 1953: 192). Não encontrando outra justificação para o fenómeno senão “uma certa compressão indirecta na valorização monetária do trabalho do jornalista” (idem: 192), a qual seria eventualmente compensada pelo aumento do interesse dos leitores, Lopes atribui ao anonimato a perda do “estímulo pessoal num género de tarefas que, contraditoriamente, são por essência, irreprodutíveis como as obras de arte, logo pessoais” (idem: 192).
O dissenso em torno da condição jornalística – se proletária, se artesanal e intelectual – parece assim ultrapassar a esfera limitada do SNJ e das suas fraturas económicas e regionais. Entre os próprios jornalistas e homens de letras do Porto é possível identificar posições díspares relativas à associação. Desde a sua criação em finais do século XIX, conforme o estudo desenvolvido por Joaquim Salgado, a AJHLP assumiu “uma acção positiva quando as liberdades de imprensa sofriam insólitas amputações, defendendo os direitos morais e materiais dos jornalistas de profissão” (Salgado, 1952: 3), sem adotar uma feição sindical. A partir da década de 20, foram várias as tentativas da sua transformação numa associação de classe de jornalistas do Porto, a quais, porém, não obteriam sucesso. O esforço teorizador do jornalismo perfilhado por alguns autores tendia a contrastar com diversos artigos críticos da imprensa e da sua lógica de produção mercantil (Sousa, 2011). A par de uma distinção de classe, manifesta na desigualdade de rendimentos, este conflito resulta igualmente de uma oposição, entre os intelectuais do Porto, de um polo jornalístico em relação a um polo erudito. A demarcação, de acordo com os sociólogos Bruno Monteiro e Borges Pereira, ocorre entre um tipo de consumo socialmente mais lato (e menos sofisticado) garantido pela imprensa generalista e um segmento cultural mais restrito, dirigido a um público menor e mais culto (Monteiro, Pereira, 2014: 251).
Os próprios setores intelectuais oposicionistas encontravam-se inseridos nesta dicotomia, não concedendo grande relevância à reflexão e estudo sobre o jornalismo. Percorrendo revistas culturais, como a Seara Nova ou a Vértice, é possível constatar o diminuto número de ensaios dedicados à atividade jornalística, considerando o intervalo temporal do nosso estudo. Uma das raras exceções é o apelo à participação dos intelectuais na imprensa de província, publicado na revista Vértice e assinado por Rodrigo Soares, pseudónimo do economista Fernando Pinto Loureiro. O artigo defende o recurso a um meio de comunicação que, não obstante constituir o “reflexo do atraso económico e cultural de um povo, índice e símbolo de uma decadência”, apresenta várias potencialidades: a “quase nula ligação aos grandes interesses lucrativistas de reduzidas minorias” (Soares, 1947: 377), a hipótese de “comunhão com o nosso povo” (Soares, 1947: 377) ou o contacto com “questões concretas, a admitir no círculo das suas preocupações intelectuais problemas prácticos muito comuns e nada transcendentes” (Soares, 1947: 368). O estilo recomendado pouco se deve assemelhar ao praticado nas revistas culturais. Face ao público em causa, composto de “indivíduos que lêem soletrando, ou por analfabetos que apenas ouvem ler”, mas que por isso não deixa de se encontrar “atento e ávido de notícias e ensinamentos concretos”, a linguagem aconselhada deveria ser “clara e acessível, coisa bem mais difícil de praticar do que resolver fazer” (Soares, 1947: 368).
Esta aparente indiferença em relação à imprensa reflete um cenário pouco propício à participação destes setores. Aliada ao cerceamento imposto pelo SNI, a própria estrutura empresarial da imprensa e, associado, as reduzidas compensações materiais tornavam o jornalismo pouco atrativo, sem grandes exigências técnicas e, frequentemente, complementado por outro tipo de trabalho (Correia e Baptista, 2007: 51).
A partir de finais da década de 1950, e acompanhando o processo de modernização económica do país – visível no arranque do I Plano de Fomento Industrial em 1953 – a imprensa em Portugal sofreria uma série de mudanças estruturais. Inicialmente, estas seriam protagonizadas por jornais como o Diário Ilustrado ou o Diário Popular, responsáveis pela introdução de uma série de técnicas de gestão: da separação entre investidores e direção do jornal e exercícios de novos géneros (reportagem e entrevista), no primeiro caso, ao aumento de salários com vista a prevenir o duplo emprego ou a reuniões diárias dos responsáveis editoriais, aplicados por Francisco Pinto Balsemão no Diário Popular (Correia e Baptista: 147 e 148). A emergência de novos empresários e gestores, bem como a afirmação da publicidade na esfera da imprensa e a aplicação de novas tecnologias (impressão, gravador portátil, telex) conduziriam a uma maior procura de trabalhadores devidamente qualificados e, por consequência, a uma nova composição social das redações, mais jovem e (ainda que timidamente) mais feminizada.
Assiste-se então, segundo Miguel Urbano Rodrigues, ao fim do “reinado da tesoura e da cola e do jornalista manga-de-alpaca” (Rodrigues, 1957: 72). Em sua substituição, “uma nova geração de jornalistas (...) animada de uma devoção e de um fervor capazes de resistir aos escolhos levantados por todos os condicionamentos, por todos os tabus, por todas as misérias dos bastidores apodrecidos de uma profissão humilhada pela sua condição de tutelada” (Rodrigues, 1957: 72). A intervenção do à altura chefe de redação do Diário Ilustrado no Congresso da Federation Internationale des Redacteurs en Chef, que ocorria em Portugal nesse ano, viria a adquirir notoriedade pela sua conclusão. O comodismo do jornalista manga-de-alpaca devia-se, a seu ver, ao regime da censura prévia, o qual colocava no Estado o ónus da responsabilidade relativamente ao que era publicado na imprensa. Assumindo os anseios desta nova geração, o jornalista defende, pelo contrário,

“uma lei que, suprimindo a censura prévia, definisse claramente fronteiras, lei que contribuiria de uma forma decisiva para a criação desse sentimento de responsabilidade que é um dos motivos de orgulho da condição de jornalista. Enquanto tal não suceder, enquanto subsistirem outros limites à divulgação da informação que não sejam os do próprio órgão da Imprensa (...) nós, jornalistas, não poderemos libertar-nos dessa indefinível sensação de angústia que nos oprime e vexa na luta febril para servir o público, na batalha heroica e banal do quotidiano, tantas vezes perdida no instante” (Rodrigues, 1957: 72).

As considerações proferidas por Miguel Urbano Rodrigues obteriam algum eco junto da imprensa mais próxima da oposição (Diário de Lisboa e República). O contexto político, marcado pela candidatura do General Humberto Delgado à Presidência da República6, motivaria o aumento das críticas à censura, conduzindo a uma crescente afastamento dos jornalistas em relação ao Estado Novo.

Conclusão

Ao longo do período salazarista, a atividade jornalística foi cerceada pela censura e repressão. Esta limitação ocorreu não só ao nível do próprio debate, frequentemente visado pelas autoridades, mas pelas consequências operadas sobre a profissão, ao ponto de se poder colocar em causa o uso deste conceito. Uma análise menos centrada na obediência a tipos-ideais convida-nos, no entanto, a encarar a profissão, citando Dennis Ruellan, como “uma cultura de produção, uma maneira de ser e de fazer próprio do jornalismo” (Ruellan, 2007: 28). Assim, a condição de proletário e a de profissional não são necessariamente incompatíveis.
O Estado Novo desenvolveu, certamente, esforços no sentido de garantir a separação das águas, ao contrário do que havia sido preconizado pelas associações de classe durante o regime anterior. O SNJ, então instituído, não só se encontrava subjugado à ordem corporativa, como constituía um dispositivo do seu governo. A colaboração com os serviços da censura, como refere Helena Veríssimo, era frequente, sendo o SNJ solicitado a conceder informações relativas a jornalistas correspondentes ou propostos para cargos de direção (Veríssimo, 2003: 39). Peça central do seu aparelho de propaganda do Estado Novo, a composição da imprensa seria então sujeita a uma estrita seleção, limitando-se a um escol de jornalistas à altura das funções exigidas. Estabelece-se assim a distinção, de acordo com Luís Trindade, “entre o jornalista, ou seja, aquele literato menor, proletário de escrita, que chega, num processo de ascensão social, à literatura, e, por outro lado, o escritor que, por ser moderno, por viver a vida moderna, utiliza como meio da sua arte o jornal” (Trindade, 2008: 189, 190). Contudo, as bases a partir das quais o jornalismo se desenvolvia não apresentavam a solidez necessária à generalização desta vida moderna, reduzindo-se este escol ao círculo de jornalistas próximos de António Ferro. O valor dos salários praticados, a elevada idade de reforma, a própria rotina do trabalho e, para agravar, o condicionalismo exercido pelo SNI, faziam da profissão uma atividade pouco estimulante do ponto de vista intelectual.
Não obstante a partilha de um mesmo diagnóstico acerca dos problemas enfrentados, a diferença das garantias auferidas por jornalistas de Lisboa e do Porto, mercê quer da iniciativa dos proprietários dos jornais da capital, quer da segmentação introduzida no CCT (aliada à própria heterogeneidade da classe jornalística), viriam a criar divergências no seio do próprio SNJ. Os efeitos produzidos pela articulação entre interesses materiais e identidades regionais seriam visíveis na discussão do CTT. Para figuras como Joaquim Salgado ou Alfredo Gândara, sócios da AJHLP, a denúncia do CCT por parte do sindicato, então encabeçado por jornalistas lisbonenses, reflete a aversão ao próprio instrumento de regulação. O que parecia estar em causa era o tipo de organismo representativo e a ordem de interesses a ser representada: se uma ordem profissional, fundada no ethos jornalístico de profissionais; se o sindicato, enformado por reivindicações laborais.
Mesmo entre aqueles que se opunham ao regime, a equiparação do jornalista a um qualquer trabalhador era problemática. Recordando os argumentos evocados por Óscar Lopes em prol da assinatura, a atividade do jornalista assemelha-se mais à do artesão do que à do proletário, do esforço do qual resultavam obras reprodutíveis. Se, por um lado, as considerações do crítico literário remetem para a afirmação de um saber-fazer jornalístico, por outro, a emergência da imprensa assinala, precisamente, a reprodutibilidade da obra escrita e o crescente desinteresse dos leitores em relação aos escritores, conforme defendido pelo filósofo Walter Benjamin (2006). A inexistência de assinatura poderá ser assim interpretada como o reconhecimento da condição de autor e produtor e, nessa senda, da sujeição da sua obra a “uma análise social direta e, assim, a uma análise materialista.” (Benjamin 2006a: 275). Algo, portanto, nos antípodas da representação fascista do jornalista enquanto homem de espírito, intérprete privilegiado de uma série de valores acima de todas as pessoas. Na Europa Ocidental, segundo Benjamin, o jornal “não é um instrumento de produção útil nas mãos do escritor”. O filósofo chega mesmo a qualificar de contrarrevolucionária a solidariedade com o escritor “no plano da sua ideologia, e não como produtor” (Benjamin 2006a: 279), à luz da qual o intelectual surge definido pelas suas opiniões e ideias, “não pela sua posição no processo de produção” (Benjamin 2006a: 281). Uma obra deverá ser assim encarada com base na sua técnica literária, isto é, no quadro de relações sociais que a originou. Não isolar o seu conteúdo da forma, reconhecendo a subordinação a que o autor é sujeito, não só não impede a sua transformação, como constitui um pon- to de partida. As condições proporcionadas pela modernização das redações, em particular pela entrada de jovens com uma formação académica e política, contribuiriam para a organização deste ponto de partida (Correia, Baptista, 2007). A partir deste, a denúncia da situação da classe e a crítica ao regime da censura prévia viriam a confluir na oposição e resistência ao Estado Novo.

 

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Endereço de correspondência: Av. Professor Aníbal de Bettencourt, 9, 1600-189 Lisboa, Portugal E-mail: jnmatos@ics.ul.pt

 

Artigo recebido em 20 de agosto de 2016. Publicação aprovada em 15 de abril de 2017.

 

Notas

1 Este artigo resulta da pesquisa levada cabo no âmbito de um projeto de pós-doutoramento financiado pela Fundação para a Ciência e Tecnologia (SFRH/BPD/96064/2103)

2 Estas considerações acompanham, historicamente, o que Carlos Manuel Gonçalves designa de “movimento revisionista da sociologia das profissões”, o qual vem contrapor às teses funcionalistas um conjunto de análises neomarxistas, neoweberianas ou integracionistas (Gonçalves, 2007, 2008: 181).

3 Estes são os seguintes: certificação formal, por diplomas, do conhecimento científico e das competências específicas; autonomia da decisão sobre o tipo e a forma de realização do trabalho, autorregulação e fechamento no acesso ao mercado de trabalho; e orientação da atividade para a resolução de problemas” (Rodrigues, 2012: 9).

4 À época, o número de jornalistas não ultrapassava as três centenas (280 em 1940 e 295 em 1945) (Sobreira, 2003: 27).

5 A distinção entre jornais de pequena e grande expansão seria mantida (Cabrera, 2006: 150).

6 Dois dias após o lançamento da sua candidatura, apoiada pela oposição antifascista (mais tarde também pelo Partido Comunista Português), Humberto Delgado terá declarado que, relativamente a Salazar, o que estava em causa era a sua óbvia demissão. Doravante, a nomeação do presidente passou a ser realizada por um colégio de notáveis. Delgado viria a ser assassinado pela polícia política, a PIDE, em 1965.

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