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Sociologia
versão impressa ISSN 0872-3419
Sociologia vol.36 Porto dez. 2018
ARTIGOS
Ciência à medida: conflitos de interesse e interferência na investigação científica financiada
Custom tailored science: conflicts of interest and interference in commissioned scientific research
La science personnalisée sur mesure: conflits d’intérêt et interférence dans la recherche scientifique sponsorisée
Ciencia hecha a la medida: conflictos de interés e interferencia en la investigación científica financiada
Rita Faria
Universidade do Porto, Faculdade de Direito, Centro de Investigação Interdisciplinar da Escola de Criminologia
Endereço de correspondência
RESUMO
Exige-se à ciência atual que estreite relações com stakeholders económicos e políticos. No entanto, esta proximidade pode conduzir a formas não publicitadas de conflitos de interesse ou à interferência da entidade financiadora no processo de investigação. O presente artigo dá conta das perceções dos académicos sobre tais situações e sublinha a respetiva ausência de regulação. Identificam-se os danos sociais daí decorrentes e argumenta-se pela necessidade de conduzir estudos sistemáticos sobre o tópico. Mais se alerta para o facto das atuais características da ciência potenciarem as mencionadas situações de conflitos de interesse ou de interferência, podendo as mesmas ser eventualmente enquadradas como atividades fraudulentas no âmbito da investigação científica.
Palavras-chave : ciência; conflitos de interesse; fraude científica
ABSTRACT
Science is being asked to connect with social stakeholders. However, such connection may give rise to undisclosed conflicts of interest, or interference from commissioners of research into the research process. The paper presents the perceptions of researchers concerning such issues, and further shows a general lack of its regulation. Social harms stemming from these situations will be described, and the paper will argue for the need for further empirical studies. Also, current features of science will be presented as facilitating the commitment of such situations of conflicts of interest or interference, which may be labeled as research fraud.
Keywords : science; conflicts of interest; research misconduct.
RÉSUMÉE
On demande de la science se relier aux stakholders sociaux. Mais ça peut originer des conflits d’intérêt non dévoilés et l’interférence des entités de financement dans les processus de recherche scientifique. Cet article présent les perceptions des chercheurs à propos ces situations, aussi bien que l’absence de régulation. Les dommages sociaux qui-y découlent seront présentées et on argumente la nécessité de mieux étudier les conflits d’intérêt et l’interférence. Simultanément, certes fonctionnalités de la science seront présentés en tant que potentielles causes de tels comportements tricheurs de conflits d’intérêt et d’interférence des entités de financement.
Mots-Clés : science; conflits d’intérêt; fraude scientifique.
RESUMEN
Resulta necesario que la ciencia construya relaciones con actores sociales clave. Sin embargo, tales relaciones suelen generar conflictos de interés o situaciones de interferencia de la entidad financiadora en los procesos y resultados científicos. Este trabajo presentará percepciones de académicos acerca de esas situaciones y respecto a la ausencia de regulación, así como los daños sociales que generan dichas situaciones. Se discutirá la necesidad de profundizar en estudios acerca de los conflictos de interés y de interferencia, y se presentarán dimensiones de la ciencia que quizás permiten estos comportamientos y situaciones.
Palabras-clave : ciencia; conflictos de interés; fraude cientifico.
Introdução
O caso Cambridge Analytica abalou, recentemente, o mundo político, empresarial e científico. Veio iluminar aquilo que era até ao momento uma enorme caixa negra onde se urdiam relações entre a investigação científica, os objetivos lucrativos de empresas dedicadas ao uso de Big Data, e a alegada manipulação de processos e resultados de algumas das mais importantes eleições do século XXI.
No entanto, a situação revelada sobre a Cambridge Analytica não é a única onde surgem indícios sobre a existência de situações que são comummente designadas como conflitos de interesse (CdI) entre a investigação científica e as entidades diretamente interessadas na obtenção de concretos resultados científicos. Situação idêntica foi já identificada, como se verá adiante, nas relações existentes entre investigadores na área da economia, seus interesses, intervenção em políticas públicas e trabalho junto de entidades económicas e financeiras. Estas terão tido um massivo impacto naquilo que se veio revelar como a mais grave crise financeira de sempre.
Posto isto, o presente artigo pretende debruçar-se sobre as relações de interferência e de ambivalência, ou seja CdI não divulgados entre a investigação científica e as entidades públicas ou privadas que a financiam. Ainda que se trate apenas de uma das dimensões da referida caixa negra, torna-se essencial pugnar por uma análise mais sistemática deste fenómeno por razões que serão melhor desenvolvidas abaixo e que, no geral, podem produzir graves danos sociais.
O argumento central deste artigo é o de que a atual configuração da ciência nos países ocidentais modernos, marcada pela ausência de recursos materiais, precariedade laboral e busca do impacto social, contém em si o risco de um aumento das relações de interferência das entidades públicas ou privadas nos produtos e processos científicos. O financiamento por estas providenciado, numa época de limitados recursos, pode conduzir a uma permeabilidade dos investigadores e consequente submissão das suas práticas a lógicas de resposta ao mercado e às pressões das entidades financiadoras. Simultaneamente, tais entidades podem sentir-se legitimadas a interferir no processo e nos produtos científicos em busca de uma ciência “à medida” dos seus interesses e objetivos.
De seguida serão apresentadas as definições de CdI usadas na literatura científica, bem como dados sobre a sua frequência, características e relação com outros atos de fraude científica. Serão, depois, oferecidos dados empíricos resultantes de um estudo da autora sobre perceções dos académicos e regulação da fraude científica, na Europa, onde ficará patente qual é, para uma amostra de académicos europeus, a relevância do tópico dos CdI. Os resultados revelam ainda as divergências atualmente existentes entre as perceções dos académicos acerca da gravidade dos CdI e os parcos esforços de regulação ou problematização destas situações.Finalmente, serão identificadas algumas das características referentes ao contexto organizacional e profissional atualmente impostas a investigadores europeus, à limitada disponibilização de recursos financeiros para a investigação científica, sua comercialização e utilidade social procurada. É neste contexto, aparentemente em curso nos países ocidentais modernos que se pretendem constituir como “sociedades do conhecimento”, que têm que ser analisados os casos de CdI e os danos sociais daí decorrentes. Tal poderá permitir uma reflexão fundamentada sobre o modelo de ciência pretendido nas sociedades atuais, bem como sobre os tipos de relações tecidas com a sociedade que, em última análise, deve efetivamente beneficiar do trabalho científico.
Investigação científica, conflitos de interesse e uma torre
A investigação científica pode assumir múltiplas formas, usar variadíssimos métodos e inquirir tópicos tão diversos que vão desde as partículas quânticas ao crime. O fim da investigação científica poderá ainda diferir consoante o posicionamento epistemológico de quem a produz, mas, em termos sociológicos, é sobejamente conhecida a conceção de Merton (1973) segundo a qual o ethos científico é a procura de conhecimento. Este conhecimento seria produzido no cumprimento dos princípios do desinteresse pessoal do cientista, do espírito de comunidade e de partilha do conhecimento entre pares, do ceticismo organizado e do universalismo. Tal implicaria que as bases do empreendimento científico seriam, no fundo, os valores da democracia e da meritocracia.
Ora, esta conceção da busca do conhecimento como fim em si mesmo, de forma aparentemente desligada das preocupações e vivências quotidianas dos cidadãos e de grupos sociais específicos, tem sido amplamente criticada. Não é tão relevante determinar se esta crítica é ou não fundamentada, mas antes cumpre verificar que o mito da “torre de marfim” é ainda amplamente usado como crítica a uma investigação científica desligada do mundo real e considerada irrelevante (Shapin, 2012). Contra- argumenta-se atualmente com a necessidade de a comunidade científica se conectar aos verdadeiros problemas a ser resolvidos: “ We are no longer in our ivory towers; we are a central part of the globalisation and rapid transformation ( ) and we will have to engage with politics and with a predatory private sector if we are to maintain academic values and to contribute to the improvement ( ) of our societies” (Floud, 2004:41).
Tais exigências acabam por plasmar-se, de há uns anos a esta parte, em exigências de criação (e prova dessa criação) de impacto social mensurável. O modelo de avaliação Research Excellence Framework (REF), implementado no Reino Unido em 2014, faz depender a atribuição de financiamento às instituições de investigação da prova dos benefícios do investimento público através do impacto nas práticas sociais. Modelos semelhantes estão igualmente em utilização noutros países, como sucede com o Social Impact Assessement Methods for research and funding isntruments through the study of Productive Interactions between science em Society (SIAMPI), aplicável à Holanda, Espanha, França, Noruega e Reino Unido. Finalmente, de especial relevo para a investigação em Portugal, o 7º Programa Quadro da União Europeia prevê o Evaluating Impact and Outcomes of EU SSH Reserarch (IMPACT-EV) e um dos atuais critérios da Fundação para a Ciência e Tecnologia na avaliação de unidades de I&D é o impacto dos outputs científicos, tecnológicos e culturais.
Já ficou claro que o presente texto não se ocupará com a determinação da justeza da crítica da torre de marfim da ciência e, do mesmo modo não se ocupará da maior ou menor adequação dos modelos propostos para a avaliação do impacto social da investigação científica1. O objetivo é o de chamar a atenção para os perigos potencialmente decorrentes de uma excessiva abertura da investigação científica a determinados atores e problemas sociais, mormente por via de CdI não publicitados entre investigação científica e as entidades públicas ou privadas que a financiam. Não apenas porque a não publicitação de CdI pode conduzir a uma desconfiança generalizada sobre o trabalho dos investigadores, como porque, simultaneamente, tal pode permitir que as entidades que financiam a investigação tentem interferir nos processos e produtos científicos.
Algumas situações sobre os danos de tais situações de CdI e interferência têm já sido analisados ou trazidos a público. Até mesmo a imprensa dita generalista tem chamado a atenção para casos nos E.U.A onde elites económicas, na veste de mecenas, investem na investigação científica decidindo assim quem é financiado e pode, portanto, realizar investigação, bem como que tópicos são estudados. Também o recente escândalo relacionado com a Cambridge Analytica, já referido, revela o uso indevido, pela empresa, de dados de perfis de utilizadores do Facebook obtidos através de uma aplicação móvel criada por Kogan, investigador da Universidade de Cambridge (Weaver, 2018). O objetivo terá sido o de usar tais dados e informações sobre as preferências de potenciais eleitores para alegada manipulação dos comportamentos de voto das últimas eleições nos E.U.A no Reino Unido, as mesmas que vieram dar lugar à eleição de D. Trump e a vitória ao Brexit (Adams, 2018; Cadwalladr e Graham- Harrison, 2018).
Outras notícias revelam que a Google terá pago, secretamente, 5.000 a 400.000 dólares a académicos para estes ajudarem a impedir alterações às regulações de mercado que mantêm o domínio da empresa (Mullins e Nicas, 2017). Casos na indústria alimentar também vieram revelar que a investigação científica financiada pelas marcas que produzem os alimentos cujos efeitos se pretende averiguar, conduzem a resultados científicos que omitem ou mascaram as verdadeiras consequências nocivas para a saúde dos consumidores (Belluz, 2016).
Algumas análises foram realizadas ao conflito de interesses entre economistas de reconhecidas universidades norte-americanas e o apoio dado pelos mesmos a uma série de iniciativas públicas de desregulação do sistema financeiro nos EUA que se suspeita tenham, em última análise, conduzido à que terá sido a mais grave e perigosa crise financeira internacional desde sempre, a de 2008 (Wilson e Grant, 2012). Estudos realizados mostram que as relações próximas entre, de um lado, um conjunto de economistas e, do outro, entidades de supervisão financeira, decisores políticos, fundos de investimento ou entidades bancárias, envolveram CdI não divulgados. Carrick-Hagenbarth e Epstein (2012) revelam que, numa amostra de 19 desses economistas, 15 trabalhavam simultaneamente em universidades e em instituições financeiras privadas, e, destes, a grande maioria não revelou essas mesmas ligações em publicações científicas, artigos de jornal ou entrevistas mantendo, portanto, oculto o seu duplo papel de académicos e de peritos contratados. Simultaneamente, os académicos que defendiam teorias opostas à desregulação dos mercados científicos, eram menos valorizados como especialistas a ser consultados em matéria de regulação financeira (Ferguson, 2012).
Conflitos de interesse: práticas questionáveis na investigação, ou corrupção?
Para o International Committee of Medical Journal Editors2, existe um CdI quando o juízo profissional acerca de um interesse primordial, como seja o bem- estar de pacientes, pode ser influenciado por um interesse secundário, por exemplo o ganho financeiro. Segundo o mesmo Comité e outros autores, ainda que tais conflitos possam ser frequentemente motivados por razões financeiras, existem outras fontes de conflito, sejam elas pessoais ou organizacionais (relações pessoais, interesses comerciais, rivalidades, ideologias) e desenvolvem-se no contacto com entidades públicas e privadas, com ou sem fins lucrativos (Carrick-Hagenbarth e Epstein, 2011; Claxton, 2007; McHenry e Jureidini, 2008). Os CdI podem, portanto, predispor “( ) an individual or organization to exploit a professional or an oficial capacity in some way for personal or organizational benefit ” (Claxton, 2007:558) e, desse modo, atuar de modo enviusado acerca dos interesses que deve defender e lhe são funcionalmente atribuídos.
Tal viés pode ter consequências no tipo, qualidade ou risco decorrente do consumo de produtos comercializados e promovidos; na orientação, objetivos e prioridade de políticas públicas; nos tópicos de investigação considerados prioritários; ou nas populações ou grupos sociais a serem protegidas, intervencionadas ou alcançadas. Tanto mais quando tal viés não é publicamente conhecido, como sucede nos casos de CdI não declarados, e os utilizadores da ciência não conseguem, por falta de transparência e de informação, fazer escolhas esclarecidas sobre o que consomem, as consequências das políticas públicas que pretendem eleger, os riscos adscritos a determinadas atividades, entre outras.
A promoção do interesse privado sobre o interesse adscrito à função publicamente reconhecida (por exemplo, a de académico) e aquela ausência de transparência, transporta os CdI não declarados para dentro do campo de comportamentos potencialmente considerados fraude científica (por exemplo, Barr, 2007) ou, de forma mais ampla, para o âmbito de comportamentos corruptivos. Por isso, não será de espantar que a Transparency International, uma das ONGs mais conhecidas na mensuração das perceções sobre a corrupção, se refira aos CdI. Nem tampouco será de espantar que alguns académicos coloquem a situação de CdI numa lista ampla de comportamentos fraudulentos na ciência, a par do nepotismo, favoritismo ou corrupção (Thompson, 2002).
Concretamente (e visto que as causas pessoais são mais difíceis de discernir) podem existir situações não divulgadas de CdI entre o investigador, ou a instituição de investigação, e a entidade que financia essa investigação, seja ela pública ou privada, um ministério ou uma empresa. Estas situações podem acabar por enviesar os juízos dos investigadores sobre o seu trabalho de investigação, eventualmente conduzindo a que alterem procedimentos metodológicos, adulterem dados ou mascarem resultados da investigação, em troca da obtenção ou manutenção de financiamento. Subordinam, deste modo, o seu interesse primeiro, a sua obrigação de condução de uma investigação norteada pelas melhores práticas científicas e de acordo com o estado do desenvolvimento metodológico e teórico, a um interesse privado ou organizacional de obtenção de recursos financeiros. Sacrificam, portanto, as boas práticas éticas e metodológicas, bem como valores tradicionalmente adscritos à atividade científica liberdade, desinteresse e autonomia à obtenção de recursos materiais, para si ou para a instituição.
Vários têm sido os autores que se vêm debruçado sobre CdI (Campbell et al., 2004; Claxton, 2007; Edmond, 2008; Elliott, 2008; Lipton, Boyd e Bero, 2004; Resnik e Shamoo, 2002; Tereskerz, 2003). No entanto, no melhor do conhecimento da autora, existem ainda poucos estudos empíricos sobre o fenómeno. Dos estudos existentes, um terço da amostra de investigadores em Fanelli (2009) e 15,5% da amostra em Martinson, Anderson e de Vries (2005, cit. in Duval e Heilbron, 2006) admitiu ter realizado um conjunto de práticas questionáveis, incluindo a alteração do desenho, metodologia ou resultados da investigação em função da pressão exercida pela entidade financiadora do estudo. Há ainda quem entenda que os CdI podem estar ligado a outras práticas problemáticas na investigação científica, como seja a autoria- fantasma (McHenry e Jureidini, 2008).
O âmbito dos CdI que mais tem merecido atenção ocorre no âmbito da investigação médica na relação com a indústria farmacêutica. Os potenciais danos e riscos na saúde e na vida de pacientes, bem como o lucro das empresas farmacêuticas, têm permitido que estas relações sejam escrutinadas com algum grau de pormenor. As ligações comerciais da investigação clínica e médica sucede porque, precisamente, são as empresas farmacêuticas que financiam ensaios clínicos sobre novos medicamentos e tratamentos, mas também patrocinam conferências e encontros médicos, interessadas como estão em aumentar vendas ou eliminar a concorrência (Abraham, 1994; Dinan et al., 2006; Laskai, 2016; McHenry e Jureidini, 2008; para nomear apenas alguns).
Campbell et al. (2004), através de um conjunto de entrevistas, revelam que a forma mais comum de CdI entre a academia e a indústria acontece quando os académicos ocupam, simultaneamente, lugares de consultores, peritos, associados ou de membros de direção em empresas. Tal, por seu turno, permite a obtenção de mais financiamento ou melhores recursos materiais para a organização de investigação, bem como formas de promoção profissional do académico. Mas os maiores perigos decorreriam, segundo os entrevistados, das situações em que os investigadores acumulam salários como consultores em empresas, ou das situações em que os investigadores preferem realizar estudos sobre um tipo de fármaco (e não outro) porque recebem financiamento da empresa farmacêutica que o promove.
São ainda mais raros os estudos referentes à deteção e censura, ou reação social negativa, aos CdI. Dinan et al. (2006) revelam que, nas organizações de investigação, os responsáveis pela deteção de potenciais CdI e aplicação das respetivas sanções ou medidas não fazem coincidir a prática com as políticas institucionais formais, antes discordando das mesmas e pondo em funcionamento prática informais alternativas. Esta aparente apatia, ou expressa discordância das regras, no que toca à reação social negativa, pode prender-se com o facto de os CdI apenas muito raramente figurarem na lista de comportamentos considerados efetivamente fraudulentos na ciência e serem, por isso, considerados menos gravosos do que o plágio, por exemplo.
Efetivamente, a leitura dominante durante muitos anos foi (e continua a ser, até certo ponto) a de que a fraude científica, a research misconduct, ou scientific misconduct, é composta pela tríade FFP: fabricação (invenção) de dados, falsificação (alteração) de dados e plágio. No entanto, cada vez mais autores remetem para a necessidade de abrir aquele âmbito para incluir como fraude científica um amplo leque de práticas de investigação questionáveis, ou questionable research practices (Faria, 2015). Aqui se incluiriam situações como a autoria honorária, a exploração de subordinados, a seleção de dados e os CdI, entre outros. A falta de consenso na literatura, a fragmentação e multiplicidade de comportamentos que podem, ou não, ser considerados fraudulentos ou questionáveis exige, tal como defendido acima, que o tópico acerca dos CdI entre a investigação científica e as entidades que a financiam seja autonomizado e alvo de análise empírica sustentada e continuada.
Conflito de interesses: entre ambivalência e interferência
No âmbito de um estudo mais amplo que pretendeu averiguar das perceções dos académicos europeus sobre a fraude científica, bem como dos modos de regulação dessa mesma fraude por parte de instâncias supranacionais, foram analisadas as situações de CdI (Faria, 2018). Vinte e sete académicos, provenientes de diferentes áreas científicas e países europeus, foram entrevistados e questionados acerca das suas perceções sobre frequência, gravidade e deteção das situações de CdI. Simultaneamente, foi realizada uma análise documental a 13 documentos de regulação da fraude científica, publicados pela OCDE, Comissão Europeia (CE) e da European Science Foundation (ESF)3, onde se pretendeu analisar os modelos de controlo social que, desde 2000, têm sido negociados e propostos para evitar, detetar ou sancionar aquelas situações. De seguida serão apresentados os resultados considerados mais relevantes para a compreensão do que são os CdI, seus mecanismos, bem como os processos de regulação ou controlo social postos em funcionamento.
No estudo mencionado, e após a análise das entrevistas, foi possível identificar um forte padrão de interações entre os investigadores, as organizações onde a investigação se realiza e outras entidades externas. Estas podem ser de cariz público ou privado, ou, no fundo, quaisquer entidades que estabelecem contactos com cientistas em vista da resolução de um problema, estudo de um fenómeno ou avaliação de práticas. Usualmente, estas mesmas entidades oferecem financiamento, ou recursos, para que tal estudo ou avaliação venha a suceder. Tal como já indicado acima, esta interconexão entre ciência e sociedade tem sido, crescentemente, um objetivo e, em si mesmo, nada tem de problemático.
No entanto, as perceções dos académicos remetem para situações em que a prática científica e a liberdade e autonomia do cientista podem ficar maculadas, ou em que, ao menos, suspeitas dessa mácula podem ocorrer. Tal pode tomar duas formas: ambivalência, quando não é claro qual o papel funcional em que o investigador está investido; e interferência, quando a entidade que financia o estudo exerce pressão para que se alterem procedimentos e metodologias científicas, podendo mesmo censurar ou desacreditar os resultados científicos.
Do total das entrevistas, 11 sujeitos expressaram ter tido conhecimento de situações de ambivalência, nas quais colegas exerceriam, cumulativamente, tarefas de académicos e funções em entidades públicas (6) ou privadas (5): “and they change their hats boths sides” (entrevistado)4. Estas parecem ser situações usualmente consideradas na literatura como CdI, em que um académico desenvolve simultaneamente atividades de investigação e de consultor numa entidade externa. Em consonância com a literatura que foi apresentada acima, também neste trabalho empírico se regista o facto de os entrevistados, quando questionados sobre estas situações, terem atitudes de censura quando não é claro para a comunidade científica, ou para o público, em que papel está o indivíduo em cada uma das suas atividades.
Surge, por isso, uma desconfiança face a quem persegue interesses que podem ser, eventualmente, conflituantes, sem que a necessária publicidade ou divulgação da situação seja feita. Os entrevistados manifestaram, portanto, a sua dúvida acerca da capacidade dos colegas nesta situação conseguirem manter a sua liberdade e autonomia académica. O que é mais, em virtude destas relações de proximidade com entidades externas, foi referido nas entrevistas que os indivíduos poderiam, deste modo, beneficiar de um acesso diferencial a recursos, oportunidades e recompensas simbólicas. Seriam disso exemplo um acesso privilegiado aos media, convites para conferências, ou mesmo acesso facilitado a fontes de financiamento. No fundo, uma sobrevalorização face aos colegas que não beneficiam de tais relações e onde, portanto, o valor e relevância do trabalho de investigação poderá provir mais destes contactos com o exterior, do que propriamente do mérito científico e excelência dos seus projetos de investigação.
Ainda que os sujeitos entrevistados considerassem importante o contacto entre a ciência e a sociedade, cientes do prestígio e relevância de tais situações de interconexão com entidades externas, não deixaram, no entanto de que referir que tal importância só pode acontecer “as long those are not promiscuous relationships” (entrevistado) e que, portanto, estas situações devem ser devidamente divulgadas. Tal permitiria evitar o surgimento de suspeitas de interesses conflituantes, ou CdI, na mesma pessoa.
13 entrevistados referiram também situações de interferência por entidades públicas e privadas (8 e 5, respetivamente), num total de 16 situações experienciadas ou percecionadas. Destas, a análise das entrevistas permitiu perceber que a interferência pode acontecer em vários passos do processo de investigação. Na fase inicial, no momento da proposta acerca dos tópicos que vão ou não ser financiados, ou qual será exatamente a questão de investigação. Esta situação é recebida sem questionamento por alguns académicos mas para outros, pelo contrário, pode ser já uma intromissão numa das suas tarefas profissionais: “some of them find it is the responsability of the government body to formulate the research question whereas this, for [other] academics, this is exacly what an academic should do” (entrevistado).
As situações de interferência por parte das entidades que financiam a investigação podem ainda verificar-se noutros momentos do processo. Podem suceder durante o desenho da investigação, nomeadamente porque a entidade que financia o estudo pretende que se usem específicos métodos, ou que sejam incluídas ou excluídas determinadas amostras. A reação dos académicos pode, também aqui, ser de aceitação do que é “encomendado” por quem fornece o financiamento, ou pode centrar-se na busca de lacunas que lhes permitam manter o controlo do processo científico ou a sua autonomia.
Foram referidas, nas entrevistas, experiências de interferência da entidade financiadora durante a fase de análise de dados, situações que levantam questões sobre integridade científica, já que os entrevistados mencionaram episódios em que lhes foi pedido, ou a colegas, que alterassem dados que pareciam não satisfazer as pretensões da entidade financiadora: “they wanted us to manipulate figures” (entrevistado). Noutros casos, a ingerência no processo de investigação manifestou-se durante a fase de publicação ou de publicitação dos resultados. Pode acontecer, segundo os relatos obtidos, que as entidades financiadoras considerem que os resultados obtidos são prejudiciais para as suas políticas públicas, seus propósitos comerciais ou para a sua imagem pública e procurem, por isso, evitar a sua disseminação de modo a impedir publicidade negativa: “they are so afraid that the results will be turned against them” (entrevistado). Neste ponto, como será fácil de entender, as entidades que financiam os projetos podem acabar por tentar impedir, limitar ou censurar aquele que é um dos principais objetivos para os académicos: publicar e disseminar resultados.
A análise realizada às entrevistas permitiu ainda identificar situações de interferência durante a redação de relatórios, pedindo-se ao investigador a alteração de frases ou a eliminação de dados fazendo perigar, deste modo, o processo de interpretação dos mesmos. Os casos recontados parecem ser bastante claros em termos das exigências feitas aos entrevistados: “They plainly wrote me a letter with four pages with in this image we don’t like this sentence, and we would like that sentence out’” (entrevistado). Alternativamente, as entidades que financiam a investigação podem pressionar no sentido da obtenção rápida e superficial de resultados, ou a sobrevalorização de resultados preliminares. O sentido destas pressões parece ser o da maior rapidez na comercialização de resultados ou na adesão a políticas públicas, mas pode estar a impedir a análise maturada e crítica dos produtos da investigação.
Face às situações de interferência, os investigadores podem, como já vimos, aceitar alguns dos pré-requisitos da entidade financiadora, como seja o tópico de investigação, a questão de investigação ou eventualmente o desenho ou facetas da mesma. Podem ainda tentar negociar o que é pretendido pela entidade financiadora, por exemplo, alertando para o perigo de eliminar resultados de investigação, discutindo passo a passo os resultados obtidos, permitindo alteração de redação nalguns pontos do relatório.
No entanto, as experiências mais marcantes, pelo menos no conjunto das entrevistas realizadas no estudo mencionado, advêm de tentativas de resistência às invetivas exteriores. As consequências à resistência da interferência imposta pelas entidades financiadoras podem revelar-se bastante graves para as vidas profissionais e pessoais dos académicos que tentam assegurar uma margem de autonomia científica. Foram mencionados casos de tentativas de descrédito da investigação e do investigador (e, consequentemente, da equipa de investigação), e de cancelamento dos contratos com ameaça de fim ou não renovação do financiamento. Nestes casos mais graves, as consequências na carreira dos indivíduos e departamentos de investigação alocados ao projeto serão relativamente fáceis de antever, especialmente quando a situação de dependência é vincada e inexistem fontes alternativas relevantes de financiamento: dissolução de grupos de investigação, despedimentos ou suspensão das tarefas por falta de recursos, fim de publicações e consequências nas hipóteses de progressão profissional.
No geral, os académicos entrevistados não criticam explicitamente a possibilidade de negociação das situações de interferência, especialmente devido ao facto de não existirem regras claras, escritas ou implícitas nas práticas quotidianas, sobre como proceder em casos semelhantes. Se é certo que os investigadores abraçam uma obrigação de meios, como seja empregar as melhores práticas científicas e regras éticas, submissão ao processo de peer review, cumprimento estrito de questões metodológicas e outras, já as entidades financiadoras podem associar à atividade científica uma obrigação de fins. Tal fará com que considerem as tarefas de investigação de modo utilitário, por exemplo, para obtenção de um dado resultado pré-pretendido desde início, em vez de as verem como um modo de produzir conhecimento pelo valor do próprio conhecimento. Ou, como explica um dos entrevistados, “companies [are] interested in having some support to complete their activities, because they can prove there was research. Politics, I think the same, to legitimate politics and also on the streets to have more support” (entrevistado).
Ora, as organizações científicas parecem ser mudas no que toca às responsabilidades destas entidades externas no contacto com a atividade científica. E se alguns académicos sentem que não querem abdicar de determinadas margens de autonomia profissional e liberdade científica, admitem simultaneamente um desconhecimento, inexistência ou ineficácia de regras ou limites que os protejam destas formas de pressão externa, ou que exijam modos de publicitação de potenciais CdI. No caso em que os investigadores procuram resistir ou afastar-se dessas pretensões, as consequências negativas podem ser muito reais nos seus planos profissionais de curto ou longo prazo. Os resultados da análise realizada às entrevistas sugerem que, pelo contrário, a cultura organizacional da ciência atual promove a busca de financiamentos autónomos, o diálogo com stakeholders e consumidores da ciência, e a abertura de mercados para os produtos científicos. O que pode conduzir ao sacrifício de parcelas de autonomia científica e, eventualmente, promover CdI e ambiguidade nos académicos acerca de quais são os seus princípios norteadores: o conhecimento ou o financiamento?
Deste modo, nos casos em que a ambivalência ou a interferência acontecem, poucas ou nenhumas consequências negativas nos foram reveladas pelos entrevistados, exceto nos casos em que o investigador procura resistir a situações de interferência. Neste caso, como já mencionado, podem sofrer retaliações pessoais, profissionais e científicas por parte da entidade financiadora. O que significa, em bom rigor, que se os ónus da integridade, rigor e ética são usualmente impostos sobre o investigador, já as responsabilidades da organização da investigação são diminutas ou mesmo inexistentes, no caso das entidades externas que interferem no processo de investigação ou beneficiam de CdI não publicitadas.
Efetivamente, os resultados do estudo realizado sobre a fraude científica e cujos resultados parcialmente aqui se apresentam, permitiu ainda analisar de que modo e em que medida instituições supranacionais que chamam a si a regulação da atividade científica e a promoção da integridade e ética na investigação, constroem as situações descritas pelos investigadores. Estas, como vimos, podem ter consequências não despiciendas na integridade do processo e dos resultados científicos, bem como na confiabilidade alocada aos pares, ou ainda ter efeitos nefastos nas vidas e percursos profissionais dos investigadores e grupos de investigação.
A OCDE, a Comissão Europeia e European Science Foundation-ESF produziram, a partir de 2000, uma série de documentos, códigos e orientações que tentam promover a integridade científica, regulando comportamentos considerados fraudulentos ou problemáticos. No tocante ao CdI e situações de interferência, o conjunto de 13 documentos analisados é amplamente omisso. As grandes preocupações prendem-se com a regulação dos comportamentos FFP (fabricação e falsificação de dados, e plágio) e raramente com outras práticas questionáveis, mas sempre de modo bastante incoerente. Esta incoerência encontra-se quer entre as instituições que produzem esses documentos, quer no seio da mesma instituição ao longo do tempo (Faria, 2018).
Do total de 13 documentos sob análise no estudo aqui sintetizado, apenas 3 referem expressamente a necessidade de prevenir o conflito de interesses, mencionando-se, num dos documentos produzido pela OCDE, a representação enviusada ou ocultação de resultados de investigação, bem como outras situações desde que causadas por pressões externas sobre os cientistas e as organizações de investigação, especialmente na interface entre interesses de investigação e interesses políticos, económicos ou militares. Enquanto os documentos produzidos pela ESF registam as duas restantes referências a estas situações, as orientações da Comissão Europeia são perfeitamente omissas quanto às mesmas.Significa isto que as situações que têm sido descritas até aqui parecem ser de menor relevância, por comparação com outras formas de comportamento fraudulento ou questionável na investigação científica, nomeadamente a fabricação, falsificação e manipulação de dados, ou infrações aos direitos de autor onde se incluem várias formas de plágio. O que não é irrelevante, já que o movimento de regulação da atividade cientifica e promoção de integridade na investigação tem ganho dimensão e impulso nos últimos anos, nos E.U.A (Steneck, 2006) e na Europa (Godecharle, Nemery e Dierickx, 2014).
Um dos grandes objetivos deste processo de regulação é o de garantir aos utilizadores da ciência, incluindo cidadãos, empresários, decisores políticos, que a atividade científica é apoio seguro e confiável na tomada de decisões políticas ou económicas. Servem também aqueles documentos para suportar a abertura da European Research Area (ERA), um mercado único europeu para a circulação de investigadores, dados e resultados da atividade científica. O mercado único europeu exige que, no espaço europeu, existam standards sobre o que é ou não fraude científica e como deve ser evitada. Os resultados sugerem que a pressão por entidades financiadoras e o conflito de interesses não entram necessariamente nesse entendimento comum do que deve ser censurável e evitável no atual projeto de exponenciação do desenvolvimento económico e social através do conhecimento científico.
Em suma, os CdI são, na perceção dos académicos europeus entrevistados, situações complexas onde deixa de ser claro o objetivo principal do investigador (situações de ambivalência), ou onde as entidades financiadoras exercem pressão ou interferem diretamente para que os resultados da investigação secundem ou legitimem posicionamentos ou objetivos políticos ou comerciais (situações de interferência). Os académicos entrevistados referem ainda que estas situações podem trazer consequências ou danos graves para os investigadores e para a própria integridade cientifica, como sejam a retaliação em caso de não aceitação da interferência, ou o cometimento de comportamentos de fraude científica como, por exemplo, a manipulação de resultados. De acordo com as suas perceções e experiências, os entrevistados referem ainda que estas relações de proximidade são ativamente premiadas pelas organizações de investigação científica ou, ao menos, não problematizadas ou interpretadas como nocivas.
Esta ausência de consenso na interpretação de tais situações é ainda visível na análise realizada aos 13 códigos supranacionais de regulação da fraude científica e de promoção de práticas de integridade. Nestes, as situações de CdI não são unanimemente construídas como práticas problemáticas, danosas ou não íntegras e a regulação é praticamente inexistente. Simultaneamente, o ónus da integridade científica repousa especialmente sobre o investigador individual e só muito raramente sobre o ambiente organizacional onde a investigação acontece. Em falta estão quaisquer regulações que incidam sobre entidades externas à atividade científica, como sejam precisamente as entidades financiadoras.
A secção seguinte pretende ajudar a esclarecer e fornecer hipóteses para compreender este fechar de olhos a situações que são percecionadas pelos investigadores, afinal, como danosas mas às quais, aparentemente, estão dispostos a ceder em troco de financiamento e manutenção de possibilidades de carreira. É o contexto científico atual que deve ser auscultado.
Ciência “à medida” ou ciência “para todos”?
Em 2000, precisamente no período que marca o aparecimento das acicatadas preocupações na Europa em torno da fraude científica, o discurso oficial da Comissão Europeia inclui a promoção de uma “sociedade e economia do conhecimento” e a criação de um espaço europeu de aprendizagem ao longo da vida. Esta “sociedade do conhecimento” vinha sendo desenhada já antes da declaração de Lisboa, revelando, segundo alguns stakeholders privilegiados como o Banco Mundial e a OCDE, o conhecimento como motor central do crescimento económico (Conceição e Heitor, 1999). Após estas declarações da estratégia de Lisboa, procurar-se-á, ainda abrir a já mencionada ERA, com objetivos de facilitar o intercâmbio de investigadores, processos e produtos da investigação5.
Naquela data, a Comissão Europeia passa a interconectar explicitamente o ensino superior e a investigação científica com a atividade económica privada e com o mercado de trabalho (Croché, 2009). Deste modo, quer as instituições de ensino superior quer, para o que aqui releva, as organizações onde se desenvolve a investigação científica tornam-se também instituições responsáveis pelo desenvolvimento económico europeu e pelo reforço da competitividade da Europa no mundo.
Ora, em termos científicos europeus, a entrada no século XX está marcada por incerteza, mudanças socioeconómicas abruptas, altos níveis de competição económica, recursos escassos e mais custos associados às tradicionais tarefas de investigação (Becher e Trowler, 2001), aprofundadas pela globalização. Esta globalização tem vindo a conduzir a uma ciência transgressiva e é, ao menos em parte, justificação para as exigências atuais em torno da integridade científica e a preocupação em torno da criação de regras e procedimentos estandardizados que tornam a ciência confiável, num período em que o conhecimento pessoal, a revisão dos pares e a comunidade científica se devem adaptar a novas formas de viver o tempo e o espaço da investigação (Faria, 2018).
A ciência transgressiva remete para o facto de, desde a passagem para o século presente, ter vindo a aumentar a frequência com que se transgridem fronteiras nacionais e institucionais na circulação de investigadores e produtos das suas investigações, se transgridem áreas disciplinares e tradições científicas na construção de redes internacionais e projetos pluridisciplinares, se transgridem as fronteiras entre os setores público e privado no tocante ao ensino superior e investigação; se transgridem os objetivos, com as metas empresariais da eficácia, eficiência, accountability a serem migrados também para as instituições produtoras da ciência (Becher e Trowler, 2001; Faria, 2018).
Ainda que se reconheça o surgimento de oportunidades providenciadas pelas alterações descritas, surge, no entanto, um conjunto de novos constrangimentos nas características da ocupação profissional de investigador. Daqui, têm sido destacadas situações tais como: multiplicação de postos de trabalho científicos com contratos limitados e precários, salários baixos, progressiva diminuição de perspetivas de integração em carreiras profissionais estáveis, degradação das condições de trabalho, com consequente transferência de muitos das suas tradicionais áreas de atuação para gestores e administradores (Becher e Trowler, 2001; Belluz, Plumer e Resnick, 2016).
Simultaneamente, a mercantilização ou privatização da investigação científica passa a ser mais visível e as organizações vêem-se obrigadas a procurar novos “clientes”, lançando mão de atitudes low-cost e estratégias de marketing cada vez mais pronunciadas, numa forma de “capitalismo académico” e de menor dependência dos decrescentes financiamentos públicos para a investigação e inovação científica (Becher e Trowler, 2001; Lamborelle e Alvarez, 2016). As organizações de investigação mimetizam o comportamento de gestão estratégica de outras instituições ao mesmo tempo que impõem pressões sobre os investigadores no sentido de produzir mais intensamente, mais rapidamente, com menor risco (Conceição e Heitor, 1999; Faria, 2018)
Daqui resulta, de forma resumida, uma crescente pressão sobre os investigadores no sentido de manterem os seus postos de trabalho, obterem financiamento e publicarem, produzirem mais e mais celeremente (Anderson, Ronning, De Vries e Martinson, 2007). Acresce, ainda, um ambiente científico onde os recursos financeiros e materiais proporcionados pelos Estados são, no geral, limitados e onde, paralelamente, inexiste um amplo leque de alternativas para obtenção desses mesmos recursos. O que significa, no fundo, que os caminhos possíveis para publicação, produção científica, obtenção de dinheiro para equipamentos, livros ou colaboradores, são limitados e pouco generosos. Os dados atuais revelam que, em 2015, a taxa de sucesso das candidaturas a financiamento ao Horizonte 2020 se ficou pelos 14% o que comprova os altos níveis de competição por recursos (Lamborelle e Alvarez, 2016).
Neste contexto, a elaboração de investigação a troco de financiamento, protocolada com entidades externas, públicas e privadas, pode ajudar a ultrapassar o suposto fosso existente entre a investigação e os “verdadeiros” problemas da sociedade.
Se a isto se adicionar um desconhecimento geral sobre as regras metodológicas e de integridade científica por parte de quem financia a investigação, podendo-a perspetivar como mais uma forma de fornecimento de serviços ou produtos, o CdI e a interferência poderão, afinal, fazer sentido como forma de “normalização do desvio” (Vaughan, 2007).
O que significa também que quando os objetivos de financiamento e de manutenção (ou melhoria) da carreira se tornam mais prementes do que os objetivos de integridade, não será surpreendente a existência de uma eventual permeabilidade dos investigadores e das organizações de investigação a situações de CdI e de interferência. O que não pode, no entanto, dar azo a tentativas de demonização do investigador individual, mas, pelo contrário, conduzir a uma reflexão sobre e eventual reforma do atual contexto cultural e organizacional científico. Deve ainda permitir que o diálogo com outros stakeholders se faça na base do respeito pelos princípios orientadores do rigor metodológico e teórico, da liberdade e da autonomia científica, em vez de se pensar que é possível uma “ciência feita à medida” de quem detém o financiamento.
Consentir numa permeabilização ou não censura da invenção ou da manipulação de dados, permitir-se a seleção dos resultados que interessa ou não divulgar, é, no fundo, potenciar práticas de fraude científica que têm sido amplamente criticadas. Implica impedir a reprodutibilidade de resultados, contaminar os registos científicos com publicações contendo dados ou resultados falsos ou pouco fiáveis, é influenciar práticas com base em investigação fraudulenta. Exemplo cabal e atual é o da famosa investigação de 1998, publicada por Wakefield e colegas na famosa The Lancet, apresentando resultados que indicavam a vacinação de crianças conduziria ao desenvolvimento de formas de autismo. E, apesar de o artigo ter sido retratado em 2004, tal não impediu o crescimento de um movimento geral de progenitores que se recusaram a vacinar as suas crianças com base nesta crença de que traria mais danos do que benefícios (Knoff, 2017).
E se, por hipótese, se considerar que os princípios do rigor metodológico ou os valores da liberdade e da autonomia científica são sacrificáveis, pense-se nas reais e potenciais consequências que advêm da subserviência (em vez de diálogo e co- construção) da ciência a entidades externas. No início deste artigo foram já alguns dados exemplos de impactos na saúde e qualidade de vida de comunidades em todo o mundo. Outros impactos decorrem dos desperdícios de recursos em investigação que não é fiável porque sofre de enviesamentos, ou porque é censurada e mantida secreta, sem o necessário escrutínio público. A exclusão da produção de conhecimento em torno de problemas de comunidades que não são consideradas económica ou politicamente relevantes, como as comunidades socialmente marginalizadas, minorias étnicas, sem poder de compra ou em países em vias de desenvolvimento. As suspeitas em torno de uma ciência “comprada” por quem tem poder económico e político e que pode conduzir à perda ou enfraquecimento dos níveis de confiança na perícia científica por parte de eleitores, consumidores, trabalhadores, pacientes, que passam a realizar as suas escolhas com base em notícias falsas ou fontes de conhecimento não validadas e pouco confiáveis.
Os valores tradicionais da autonomia e a liberdade científica podem, na prática quotidiana e nos processos materiais de produção do conhecimento, levar a críticas, mais ou menos fundadas, como aquelas referentes à torre de marfim onde habitam os académicos. Mas podem também conduzir a resultados de investigação com impacto direto na vida (e no ambiente) de todos e de todas. Exemplo disso é a investigação realizada por uma pequena e parcamente financiada equipa da West Virginia University, nos EUA, que desmascarou as práticas fraudulentas e de poluição ambiental da Volkswagen sobre os seus carros a diesel (Oehmke, 2017).
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Endereço de correspondência Rita Faria. Docente da Faculdade de Direito da Universidade do Porto (Porto-Portugal). Investigadora do Centro de Investigação Interdisciplinar da Escola de Criminologia - Crime, Justiça e Segurança (CJS) - Escola de Criminologia (Porto-Portugal). Endereço de correspondência: Rua dos Bragas, 223, 4050-123 Porto Portugal. Email: rfaria@direito.up.pt
Artigo recebido em 23 de janeiro de 2018. Publicação aprovada em 14 de agosto de 2018.
Notas
1 Para uma visão geral dos modelos de avaliação da excelência e do impacto social especificamente nas ciências sociais e humanidades, vejam-se alguns dos resultados da iniciativa European Network for Research Evaluation in the Social Sciences and Humanities (ENRESSH): http://enressh.eu/
2 Disponível em http://www.icmje.org/recommendations/browse/roles-and-responsibilities/authorresponsibilities--conflicts-of-interest.html consultado a 24.5.2018.
3 Atualmente, as tarefas realizadas pela European Science Foundation, nomeadamente em termos de integridade na investigação, são realizadas pela designada Science Europe: https://www.scienceeurope.org/
4 Nesta secção são apresentadas algumas transcrições relevantes das entrevistas conduzidas.
5 Veja-se a este propósito o atual movimento de Open Science que pretende alterar o modo como o conhecimento é partilhado.