I. Roteiro de uma Antropologia Fundamental da Eutanásia
Um ex-procurador geral da República em Portugal lembrou o seguinte: “é errado falar deste suposto direito à morte porque ele não existe”. Não se lembrou ele, todavia, de explicar por que é que “ele [o direito à morte] não existe”. Menos ainda viu interesse em discutir uma outra questão: não já se é absoluto o “direito à vida” mas se é absoluto o “dever de viver”.
Eis porque se propõe, aqui, algumas notas básicas para um roteiro de uma antropologia fundamental acerca da eutanásia - sem medo da palavra - numa sociedade tecnologicamente avançada e política e culturalmente positivamente secular.
1. A eutanásia - etimologicamente, “a boa morta” ou “bem-morrer” - voltou ao debate público como questão central da política e da cultura.
2. De forma canhestra, porém: a meu ver, ao sobrepor-se como objeto de regulação externa acima do que verdadeiramente -ou, pelo menos, superiormente - interessa ao ser humano.
3. É que, com efeito, o que superiormente interessa ao homem é reconhecidamente
“viver”, é “bem-viver”.
4. Como todo o ser vivo, o homem “vive” porque outros humanos lhe deram a vida
e o puseram a viver. A dependência foi, então, total: quem entrou na vida não foi - nem podia ser - consultado nem ouvido.
5. Ora “viver-à-homem” cifra-se num jogo inverso: aqui, a autonomia e a escolha entre “o que vale a pena” e “o que não vale a pena” são a medida do “viver-à-homem”. “Viver-à- homem” é, assim, o jogo inverso ao nascer, ao modo de entrar na vida, a tal ponto decisivo que é extensivo a todo o seu “tempo-de-viver”.
6. A partir daqui, “bem-morrer” é, apenas, a fronteira do “bem-viver” ou, melhor, o “bem-viver” na fronteira do “não-viver-à-homem”: tal fronteira, ninguém a define na história do viver-humano senão o sujeito que teve a grandeza de “bem-viver”; só por infração da regra do humano “bem-viver” alguém pode sobrepor-se à decisão pessoal sobre quando e como “bem- morrer”.
7. Por tudo isto se pode pensar que a filósofa Hannah Arendt estava profundamente inspirada quando escreveu: “a morte não é a coisa mais terrível, o mais terrível é ser obrigado a viver sem dignidade”.
8. Tal como o teólogo Jacques Pohier (1998) - dominicano entre 1949 e 1989 - defendeu num volumoso ensaio: “(…) a eutanásia voluntária não é uma escolha entre a vida e a morte nem uma escolha da morte contra a vida, ela é uma escolha entre dois modos de morrer”.
9. Tal como o teólogo católico Hans Küng, já com Parkinson avançado, defendeu
não há muito: “Se e quando chegar o momento, eu desejaria ter o direito, se puder ainda fazê-lo, de decidir com a minha responsabilidade sobre o momento e o modo da minha morte (…). É consequência do princípio da dignidade humana o princípio do direito à auto-determinação, mesmo para a última etapa, a morte. Do direito à vida não deriva de modo nenhum o dever da vida ou o dever de continuar a viver em qualquer circunstância. A ajuda a morrer deve entender- se como a derradeira ajuda a viver. Também neste tema não deveria reinar qualquer heteronomia, mas antes autonomia da pessoa, que para os crentes tem o seu fundamento na Teonomia.” (2016)
II. Viver na velhice: de Cícero a B. Brecht fazendo orelhas moucas a cânticos dogmáticos de cultura pseudo-religiosa
Como ponto prévio diria que Cícero (1998) foi perspicaz quando disse que “não tem a
velhice um fim determinado” (Cícero, 1998: 49).
A seguir, para mostrar como a velhice “é mais espirituosa e mais forte do que a juventude”, registe-se o ponto de onde partiu Cícero para a sua análise: “Enquanto desempenharmos e honrarmos os nossos próprios deveres, assim como desprezarmos a morte, viver-se-á razoavelmente na velhice” (Cícero, 1998: 49).
O raciocínio, porventura menos confinado às aparências lógicas e mais solicitador de deambulações metafísicas, é o que se segue: “Mas, o melhor fim para a vida é quando a natureza põe ela mesmo termo à sua própria obra, encontrando-se ainda intactas as faculdades mentais” (Cícero, 1998: 49).
Exatamente: a “natureza” na imanência das suas forças físicas e imateriais, racionais e emocionais.
O conselho dado por Cícero neste contexto de reflexão ética é sucinto, sem deixar, todavia, de ser sofisticado: “Não devem os velhos apegar-se ao último momento de vida nem desistir dele sem qualquer motivo” (Cícero, 1998: 49-50)
A subtileza desta reflexão situa-se no enquadramento das atitudes humanas que podem desenvolver-se diante desta etapa da história da vida humana. Mesmo e, sobretudo, por força do desconhecimento que o homem tem relativamente ao “último momento de vida”, logica e eticamente são de excluir, segundo Cícero, duas posturas: uma, a de “apego”, como se tudo o que é significativo para o ser humano assentasse nesse “momento” e dele dependesse, o que parece insinuar como adequada uma atitude de lúcida relativização; a outra, a de “desistir dele sem qualquer motivo”, quando o valor e significado do “último momento da vida” não podem depender senão da nobreza do motivo por que dele se “desiste”.
Percorrendo as etapas da vida humana, Cícero parece conquistar a percepção de que cada uma tem os seus desejos que com ela fenecem: “os desejos da puerícia”; “os desejos da adolescência”; “os desejos da idade madura”; “os desejos da velhice”.
Sob essa hipótese, o autor avança para uma conclusão desafiadora e de alguma forma surpreendente: “Enfim, existem os interesses [não “desejos”! - AJE] que são próprios da velhice, logo, assim como os das idades precedentes se desvanecem, também os da velhice se apagam e, quando isso acontece, a saciedade de viver cede o lugar ao tempo propício à morte.” (Cícero, 1998: 51).
No termo das suas reflexões que alguém diria relevarem de uma sóbria mas consistente antropologia filosófica, Cícero não escamoteia sua ousadia sobre o que pensar acerca do “momento oportuno” de o homem se extinguir: “Novamente, se não formos imortais, é, porém, ao homem possível extinguir-se no momento oportuno: a natureza como acontece com todas as outras coisas, sabe quanto devemos viver. A velhice, à semelhança de uma história, é o desenlace da vida, cuja fadiga se deve principalmente evitar quando a ela se junta a saturação.” (Cícero, 1998: 56)
Os séculos passaram sobre a morte de Cícero. Nesse pedaço de história nem sempre bem registada e muito menos respeitadora da heterogeneidade da sua leitura interpretativa, muita coisa ocorreu, do mais diverso teor (in)umano.
Porta-voz desta mensagem-advertência é a obra recente de Catherine Nixey (2018). Já na contracapa se anuncia a obra como “um dos melhores livros de 2017 para o The Telegraph”. E, ao mesmo tempo, desdobra-se a problemática de natureza histórica, cultural e religiosa nos seguintes termos: “A chegada das Trevas é a história largamente desconhecida - e profundamente chocante - de como uma religião militante pôs deliberadamente fim aos ensinamentos do mundo clássico, abrindo caminho a séculos de adesão inquestionável à “única e verdadeira fé”.
O Império Romano foi generoso na aceitação e assimilação de novas crenças. Mas com a chegada do Cristianismo tudo mudou. Esta nova fé, apesar de pregar a paz, era violenta e intolerante. Assim que se tornou a religião do império, os zelosos cristãos deram início ao extermínio dos deuses antigos - os altares foram destruídos, os templos demolidos, as estátuas despedaçadas e os sacerdotes assassinados. Os livros, incluindo grandes obras de Filosofia e de Ciências, foram queimados na pira. Foi a aniquilação.
Levando os leitores ao longo do Mediterrâneo - de Roma a Alexandria, da Bitínia, no norte da Turquia, a Alexandria, e pelos desertos da Síria até Atenas - , A chegada das Trevas é um relato vívido e profundamente detalhado de séculos de destruição.
Acrescente-se, por fim, uma citação de Kirkus Reviews, que, mais resumidamente e em termos porventura mais chocantes, expõe a tese fundamental da obra: “Uma bela história, que é sem dúvida controversa na sua visão de como as vítimas se tornam vitimadores e de como profissões de amor se voltaram para o terror”.
Para terminar, registe-se que a história na sua parte de memória em contínua reconstrução por força do sonho e da obra do homem não deixará de confrontar-se e, porventura, acolher a sabedoria humana que B. Brecht (1898-1956) compendiou e nos legou quando escreveu na seguinte exortação: “Temam menos a morte e mais a vida insuficiente”.
Diametralmente oposta e totalmente (in)digna de registo é, por isso, a expressão que o religioso poeta, há pouco atraído à mesa do poder do Vaticano, ousa formular, indiferente ao que sai da boca do humano sofredor nos limites do humano viver: “Diga-se o que se disser, a vida é a coisa mais bela” (Mendonça, 2020: E98).
“Diga-se o que se disser” - ora aí está, “ingenuamente” inscrita, a desvalorização por certos crentes da expressão do humano sofrer. É ela, por isso, uma das muitas razões escandalosamente incivis contra a eutanásia e, involuntariamente, por má fé ou dogmática obediência, fazendo assim justiça à busca de uma lei que devolva simpatia e reconhecimento a quem sobreviver por força dos diversos poderes (in)humanos não basta para ter sentido humano do viver.
Ao arrepio dos que se dispõem continuamente a entronizar as suas posturas de pensamento e de comportamento em culturas de dogmatismo e intolerância, nada é mais recomendável para a saúde da mente do que perscrutar as múltiplas evoluções das culturas religiosas. Num texto já antigo do sociólogo Karel Dobbelaere (1987), podem descortinar-se perspetivas científicas suscetíveis de minimizar as ameaças de fundamentalismo religioso, ao mesmo tempo que capazes de fornecer defesas contra a miopia cultural.
“Resumindo, sugeriria - escrevia o sociólogo há 34 anos - que há amplas indicações na Europa Ocidental de que uma visão cristã do mundo foi substituída por uma crença geral no transcendente, indicando desse modo uma desinstitucionalização do tradicional cristianismo. Interpretações da vida, sofrimento e morte estão sendo desconectadas destas crenças, e não há nenhuma relação entre valores e crenças. Consequentemente, o processo de secularização na sociedade também influencia a perspetiva das pessoas” (Dobbelaere, 1987:127).
Ao mesmo tempo que confessava que uma análise das publicações em revistas de então lhe permitia sugerir que “a teoria da secularização é a espinha dorsal de muitas publicações na Europa” (Dobbelaere, 1987:131), não se coibia de alertar para as condicionantes político- sociais-culturais: “No nosso quadro de referência, a secularização não é um processo mecânico, linear; pode ter oposição de corpos religiosos, se estes podem motivar as suas gentes a usar o seu poder como cidadãos nos tribunais e nas eleições e, também, como consumidores. Mas a questão então passa a ser: quais são as suas chances de sucesso?” (Dobbelaere, 1987:132)
Para fechar este conjunto de análises e reflexões, nada mais apropriado do que retomar as últimas palavras com que o filósofo italiano Paolo Flores d’Arcais sela o seu livro recente (2019:7): “Contra o direito sobre a própria vida ninguém realmente soube argumentar sem ser por teocracia ou por estatolatria. E contudo mesmo nas democracias a pulsão a ser «mais iguais» retorna irresistivelmente e não escuta a razão. Revolta-te, amigo leitor, democrático leitor. Ergue o teu não! a quem fala de sacralidade da vida só para te impor a sua vontade, tirando dignidade à tua vida”.
Por último, mantendo idêntica pauta de reflexão, sem concessões a uma teologia de papagaios altamente sofisticada com recheios de antiquários, valeria bem a pena escutar o que um filósofo-sociólogo como Georg Simmel (1858-1918) nos legou simultaneamente como juízo histórico e como desafio ético: “A moral é hoje na Europa moral de animais de rebanho. Quer dizer, tal como nós vemos as coisas - sublinha Simmel - um tipo de moral humana, ao lado da qual, antes da qual, depois da qual são possíveis ou deveriam sê-lo outras morais, e sobretudo outras morais mais elevadas.” (Simmel, 2005: 8)