Introdução
O objetivo principal deste trabalho foi caraterizar e descrever a perceção dos riscos pelos profissionais de rigging na indústria dos espetáculos ao vivo. Todavia, será também efetuada uma descrição da atividade, bem como dos seus principais riscos. Nesta indústria, os riggers são os profissionais da área técnica que se dedicam à instalação e remoção de equipamentos suspensos, nomeadamente, movimentar, suspender ou segurar objetos. Dentro das áreas técnicas, estes trabalhadores são aqueles que se encontram mais expostos a riscos elevados (alguns deles muito específicos), para além de desempenharem um papel importante para a segurança de toda a equipa técnica e artística.
As tarefas dos riggers são executadas em altura, literalmente por cima de todos os outros trabalhadores. Estas ações implicam a manipulação de peças soltas, criando situações de possíveis quedas de objetos. Do ponto de vista da segurança, há necessidade imperativa de gerar perímetros seguros (zonas de exclusão), de modo a evitar lesões por queda de objetos. Na indústria dos espetáculos é normal atribuir ao trabalhador a responsabilidade de não deixar cair qualquer objeto, e se o fizer (o que acontece algumas vezes, regra geral sem grandes consequências), este é severamente recriminado. Esta é uma prática quase generalizada a nível global e que está relacionada ao cumprimento de prazos “apertados” de produção. Contudo, é pertinente lembrar que as pressões organizacionais e de gestão para acelerar a produção fazem normalmente aumentar o número de erros, falhas, incidentes e acidentes (Areosa, 2021a).
As possibilidades da prevenção de riscos passam hoje pela capacidade de integrar muito do que é produzido e transmitido pela investigação realizada na área da segurança ocupacional, incluindo o estudo dos fatores humanos e da investigação de acidentes (Areosa, 2020). Por vezes, é desconcertante a dicotomia entre o conhecimento disponibilizado pela ciência e os procedimentos reais, colocados em prática na indústria dos espetáculos ao vivo. É evidente a persistência de abordagens algo desatualizadas, em que a fácil apreensão dos modelos deterministas, prevalece sobre abordagens mais recentes no campo da segurança ocupacional. Este facto parece estar em contraponto com o elevado conhecimento adquirido e aplicado na outra vertente da segurança de eventos, que é a gestão de multidões. Esta faceta da segurança de espetáculos ganha maior expressão mediática pela evidência do seu potencial catastrófico, agravado pela crescente ameaça do terrorismo.
Uma eventual falha na produção pode rapidamente transformar-se numa catástrofe, devido à grande proximidade entre o público e o palco, cenário onde tudo acontece. Exemplo disso são os colapsos de estruturas temporárias em eventos de grande dimensão, sejam palcos ou estruturas de apoio, como sucedeu, designadamente, em: Atlantic City (2000 e 2003), Abbotsford (2008), Indiana (2011), Pukkelpop (2011), Toronto (2012), Esteio (2017). Em Portugal, entre vários, refira-se o colapso da bancada do circo Chen (Lisboa, 2009) e Optimos Alive (Algés, 2011). São ainda de realçar incêndios como: Andanças (Sines, 2016) e em Espanha o Tomorrowland (Barcelona, 2017). Estas situações ilustram as diversas ocorrências, em que a catástrofe esteve eminente ou chegou mesmo a consumar-se, havendo assim casos em que ocorreram várias mortes e algumas centenas de feridos, bem como milhões de Euros de prejuízo em danos materiais.
Tarefas e riscos na atividade dos Riggers
A profissão de rigger não é uniforme, há múltiplas desigualdades globais (Costa, 2012) que podem influenciar o seu trabalho. As tarefas desempenhadas pelos riggers apresentam algumas particularidades distintivas dos restantes profissionais do setor. A atividade de rigging revela níveis elevados de exposição ao risco para estes profissionais, sabendo que consequências de um eventual erro humano podem ser severas. Contudo, o erro humano é cada vez mais entendido como resultado das condições em que os trabalhadores são colocados e não tanto como um aspeto de natureza individual (Areosa, 2021b). Para melhor se entender os riscos associados à atividade dos riggers é necessário conhecer as especificidades das suas tarefas. Um técnico de rigging deve estar habilitado ao desenvolvimento das seguintes ações: 1- Trabalhar em altura e executar em segurança as tarefas requeridas; 2- Suspender elementos técnicos (iluminação, som, cenário, entre outros); 3- Instalar e operar sistemas motorizados de elevação de cargas; 4- Conectar a cablagem elétrica requerida pelos sistemas de elevação; 5- Operar plataformas móveis para elevação de pessoas; 6- Instalar sistemas anti queda de proteção coletiva, e garantir o uso apropriado destes em conjunto com os Equipamentos de Proteção Individual (EPI), por parte de todos os elementos da equipa de produção envolvidos em trabalhos em altura; 7- Montar e garantir a estabilidade de estruturas temporárias (sistemas treliçados autoportantes); 8- Garantir a criação de zonas de exclusão sempre que existam trabalhos em altura realizados por cima de pessoas (CHRC, 2007; Live Performance Austrália, 2018). Do ponto de vista da atividade dos riggers, dever-se-á ter em conta que o peso médio em equipamento suspenso por uma produção de dimensão média ronda as 30 a 40 toneladas, sendo comum uma grande produção ultrapassar as 60 toneladas de equipamento. Tal representa uma apreciável quantidade de equipamento a suspender, o que faz com que seja extremamente raros uma produção manter em digressão uma equipa de riggers de dimensão suficiente para suprir as necessidades do espetáculo. A solução é recorrer a equipas locais altamente especializadas, normalmente denominadas por house riggers. Estes são técnicos que normalmente estão vinculados à sala de acolhimento e que assistem a equipa de riggers da produção, na montagem dos sistemas de rigging. Usando o exemplo dos grandes concertos, verifica-se que o tempo de permanência de uma produção, no mesmo local (cidade), raramente vai além de 18 horas. Ou seja, a produção chega ao local do espetáculo de manhã, monta toda a estrutura, apresenta a performance, desmontando no final e segue para o próximo destino. Para que tudo isto seja possível dentro dos tempos exigidos e em segurança, existe uma padronização de procedimentos, conhecimentos e competências, que são exigidos de forma equivalente a qualquer rigger, em qualquer ponto do globo. Este facto tem óbvias repercussões a nível da homogeneização dos métodos de trabalho, requisitos técnicos e de segurança. Não é, portanto, espectável uma diferença relevante entre o perfil e competências dos técnicos de rigging à escala global, aplicável ao universo de indivíduos que exercem esta atividade de forma continuada.
Através da descrição de tarefas anteriormente apresentada, pode-se concluir que a atividade normal dos técnicos de rigging está associada a diversos riscos, alguns deles considerados os mais relevantes do setor. O rigging é por isso considerado, em diversos países, como uma atividade profissional de alto risco (Live Performance Austrália, 2018). Na indústria dos espetáculos a segurança deve ser prioritária, considerando em especial a sua componente itinerante. Não obstante desse facto, e à semelhança de outras indústrias, também este setor apresenta riscos mais ou menos específicos e transversais a qualquer produção, independentemente da sua natureza. Na tabela 1 apresenta-se uma sistematização dos principais riscos desta profissão (Martins, 2017; The Purple Guide, 2016; OiRA, 2017; MEAA, 2001).
Segundo Rundmo (2000), a priorização de objetivos de produção pode gerar uma maior aceitabilidade da violação das regras de segurança, mostrando que há um efeito direto entre o compromisso da gestão de topo com a segurança e os comportamentos de segurança dos trabalhadores. Ou seja, numa organização onde não são afetados recursos suficientes à segurança ou em que a pressão dos objetivos produtivos é priorizada, é expectável que os trabalhadores aceitem e cometam mais violações de segurança. Esta premissa fica igualmente sustentada pela teoria do fator humano dos acidentes, nomeadamente em relação aos determinantes das violações situacionais nos atos inseguros (Areosa, 2020).
Voltamos a sublinhar que os profissionais de rigging da indústria dos espetáculos ao vivo atuam perante contextos de risco muito elevado, por isso são formados e instruídos para que o seu desempenho seja uniformizado, a partir de informação igualmente padronizada. Porém, estes trabalhadores quando confrontados com situações ligeiramente atípicas1 revelam alguma dificuldade em processar a informação e adaptar-se, optando ao invés por adotar os procedimentos padrão mais próximos da situação que lhes é apresentada (Amalberti, 2016), resultando por vezes em situações de elevado risco. A opção para contrariar este cenário seria uma formação mais sólida e abrangente, que carece de mais tempo e investimento. Resultaria assim na formação de técnicos mais capazes, mas também mais caros, algo que se afasta do paradigma atual na indústria de produção de espetáculos, em que a sensação é que há uma ausência de acidentes relevantes favorecendo uma “ilusão de controlo” e uma “sobre confiança” no sistema instituído. Por outras palavras, há uma espécie de otimismo irrealista (Weinstein, 1980).
As perceções de riscos dos trabalhadores: enquadramento teórico e conceptual
O modo como o conhecimento científico é transmitido nas sociedades é um fator importante para a compreender a formulação das perceções de riscos dos trabalhadores. Em certos casos, o conhecimento produzido pela ciência atual tende a democratizar-se e converte-se em senso comum. Giddens (1994) designa por dialética do controlo a reapropriação do conhecimento científico por parte dos atores leigos. Podemos afirmar que as perceções de riscos são uma forma particular de conhecimento e são também uma construção individual, social e cultural (Douglas e Wildavsky, 1982; Sjöberg, Moen e Rundmo, 2004) que refletem a história pessoal, valores, crenças e ideologias; representam a forma como as pessoas pensam, analisam e classificam as ameaças a que estão sujeitas ou que simplesmente têm conhecimento (Areosa, 2014). Por outras palavras, traduzem a visão do mundo dos diferentes atores sociais (Vaughan, 1996). O modo como os não especialistas vêem os riscos remetem para a sua avaliação subjetiva quanto à possibilidade de um determinado acidente ocorrer, em conjunto com a ponderação da severidade das suas consequências (Sjöberg, Moen e Rundmo, 2004).
Há determinados aspetos que influenciam as perceções de riscos dos trabalhadores, nomeadamente: a forma como os riscos são ampliados ou atenuados socialmente (Kasperson et al., 1988); a habituação ou familiaridade com os riscos pode gerar uma falsa sensação de segurança (os riscos mais familiares tendem a ser subavaliados, enquanto os riscos menos conhecidos surgem como sobrevalorizados) (Slovic, 1987); os riscos que se transformaram em acidentes tendem a ser mais percecionados (Areosa, 2014); a elevada perceção de controlo sobre o risco tende a diminuir a perceção sobre a sua gravidade (Slovic, 2000); a exposição ao risco afeta mais os outros do que a nós próprios (otimismo irrealista ou sensação de invulnerabilidade) (Weinstein, 1980); os riscos que causam efeitos imediatos (acidentes de trabalho) geram mais medo, por comparação com os riscos cujos efeitos surgem apenas a longo prazo (doenças profissionais) (Slovic, 1987, 2000; Areosa, 2011).
As perceções dos trabalhadores evidenciam uma influência nos processos de tomada de decisão perante uma situação de incerteza (Loewenstein, Weber, Hsee e Welch, 2001). A interpretação e julgamento que cada indivíduo faz dos riscos, estão associados à forma como as pessoas valorizam esses riscos, afetando o seu nível de aceitação (Slovic e Weber, 2002). É importante compreender a perceção de riscos laborais a partir dos próprios ambientes de trabalho, bem como das culturas profissionais em que estão inseridas (Martin, 2003). Sabemos que as perceções de riscos podem influenciar os comportamentos e afetar as possibilidades de ocorrência de acidentes (Areosa, 2012a). Paralelamente, os riscos não percecionados pelos trabalhadores são riscos incapazes de moldar os seus comportamentos. Este aspeto torna o estudo das perceções de riscos um fator fundamental para compreender os níveis de segurança dentro das organizações.
É pertinente referir que viver requer, por inerência, alguma convivência com perigos e riscos (Oltedal, Moen, Klempe e Rundmo, 2004), já que os riscos são, de certo modo, omnipresentes (Areosa, 2021a), embora sejam percecionados de forma diferente por pessoas diferentes. As perceções de riscos estão relacionadas com diversas conceções de conhecimento, as quais, por vezes, desafiam os limites da compreensão das ciências (Sjöberg, Moen e Rundmo, 2004). Ao nível da análise dos riscos há uma separação clara entre a compreensão racionalista dos riscos, por parte dos especialistas, e a perceção dos riscos dos não especialistas (Beck, 2015). A análise baseada na ciência determina os “riscos reais” e a população (generalidade dos indivíduos), em que se encontra a massa trabalhadora, “perceciona os riscos” (Beck, 1992). Paralelamente, o próprio risco contém elementos subjetivos que contribuem para a criação da perceção (Slovic e Weber, 2002).
As perceções são assim entendidas como a forma dos não especialistas (leigos) compreenderem os fenómenos associados ao risco (Areosa, 2014). Perante o olhar de alguns especialistas, os leigos comportam-se de forma equivalente a “caloiros de engenharia”, são ignorantes, mas bem-intencionados, dedicados, mas descontextualizados (Beck, 1992), e tendem a ver riscos onde eles não existem, ou a não os ver quando eles existem (Sjöberg, Moen e Rundmo, 2004). No entanto, alguns autores defendem que pode não existir uma diferença tão marcante entre estas duas formas de conhecimento (Slovic, 2000; Areosa, 2012b; 2014). Os especialistas nas suas análises baseiam-se também em modelos teóricos, com estruturas subjetivas orientadas para a suposição, dependentes de julgamentos (Slovic e Weber, 2002), e da própria perceção individual de quem executa a análise (Areosa, 2012b), estando assim igualmente sujeitos a enviesamentos (Slovic, 2000). No final do século passado, Slovic, Fischhoff e Lichetenstein (1982) chamavam a atenção para este fator, considerando que não seria expectável a dissipação das divergências científicas. Afinal, a ciência não é una, nem tem um pensamento monolítico.
Apesar de socialmente menos valorizados, os saberes ligados ao senso comum têm vindo a ganhar importância (Slovic, 2000; Areosa, 2014). As perceções de riscos, também denominadas por riscos subjetivos (Martin, 2003), começam a ser consideradas como um tipo particular de cognição, e ganham relevância na área da segurança ocupacional (Areosa, 2012a), sob a forma da participação dos trabalhadores nos processos de análise, identificação e avaliação dos riscos.
Os riscos subjetivos exercem influência nos processos de tomada de decisão individual (Loewenstein, Weber, Hsee e Welch, 2001), sabendo que para a própria pessoa eles são absolutamente reais e objetivos (Areosa, 2012b). O estudo da perceção de riscos pelos trabalhadores torna-se então pertinente, já que essas perceções podem influenciar comportamentos e, por consequência, afetar as possibilidades de ocorrência de acidentes (Areosa, 2012a; 2017). É igualmente pertinente a necessidade de compreender as razões que levam a que determinadas pessoas valorizem mais uns riscos em detrimento de outros (Douglas e Wildavsky, 1982; Slovic e Weber, 2002), uma vez que parece haver uma ligação entre os “julgamentos” que as pessoas fazem dos riscos e os fatores que determinam o seu nível aceitação. Estes são de resto os dois componentes subjetivos do conceito de risco, em que a perceção se avalia de forma qualitativa e a aceitabilidade de forma quantitativa (Rohrmann, 1999). A compreensão dos determinantes da perceção do risco pode ainda promover um melhor entendimento das medidas necessárias à prevenção dos acidentes (Oltedal, Moen, Klempe e Rundmo, 2004).
As perceções são, porém, quase sempre incompletas ou parciais, representando apenas uma parte dos riscos existentes e a forma como eles são entendidos por cada pessoa (Areosa, 2012b; 2014). Não só não é possível a um indivíduo reconhecer todos os riscos a que se encontra exposto (Douglas e Wildavsky, 1982; Oltedal, Moen, Klempe e Rundmo, 2004), como também existem riscos que continuam inevitavelmente desconhecidos, por serem novos ou inexplorados (Beck, 1992; Perrow, 1999; Areosa, 2014). É ainda possível que se dê algum enviesamento percetivo por parte de cada individuo (Areosa, 2012b). Este desvio pode estar associado a: informação deficiente ou errónea, erros de interpretação de informação ou recurso a atalhos mentais (Williamson e Weyman, 2005).
Ao confrontar um trabalhador com a necessidade de avaliar o seu nível de exposição a determinado risco ou à possibilidade de este resultar em acidente, o trabalhador recorre a processos cognitivos ou julgamentos racionais. No entanto, ao questionar um trabalhador sobre o seu nível de preocupação com essas fontes de risco, é expectável que este recorra a processos ligados a componentes emocionais. Nesta linha de pensamento, alguma literatura sugere que as perceções estão separadas em dois componentes, o emocional e o cognitivo, havendo uma relação de interdependência (Rundmo, 2000; Kahneman, 2012). Slovic e Peters (2006) sugerem que a componente emocional representa a forma predominante de análise dos riscos por parte dos indivíduos no seu dia-a-dia. Este mecanismo já foi apelidado por heurística do afeto (Kahneman, 2012). Já o processo cognitivo apresenta processos analíticos mais morosos com caminhos lógicos e menos automáticos.
Para concluir, é importante mencionar que estudo da perceção de riscos tem sido essencialmente dominado por duas abordagens distintas, nomeadamente o paradigma psicométrico, com enfase no individuo e nos fatores psicológicos (Sjöberg, Moen e Rundmo, 2004), e a teoria cultural do risco, que enquadra as perceções no âmbito dos contextos coletivos, sociais e culturais (Douglas e Wildavsky, 1982; Rippl, 2002). Todavia, são escassos os trabalhos que tentam integrar simultaneamente os contextos coletivos e individuais, bem como a forma como ambos interagem (Williamson e Weyman, 2005).
Metodologia utilizada na pesquisa
Ao nível metodológico o estudo agora apresentado caracteriza-se por ser um trabalho de natureza aplicada, transversal no tempo e quantitativo em termos de abordagem. O instrumento usado é o “Questionário sobre Perceções e Atitudes Face ao Risco” de Pereira (2010), adaptado à realidade do universo observado. Foram incluídos e ajustados os riscos específicos da indústria dos espetáculos ao vivo, determinados em: MEAA (2001); Martins (2017); OiRA (2017); The Purple Guide (2016). A pesquisa foi feita em três fases: A primeira envolve a identificação do problema, e objetivos a atingir, procede a pesquisa bibliográfica e define hipóteses e variáveis. Uma segunda fase, de natureza descritiva, especifica a amostra e as caraterísticas do instrumento de análise. E, uma terceira fase procede à recolha, análise e discussão dos dados obtidos.
O questionário foi aplicado a uma amostra não probabilística de conveniência, tendo em certa medida beneficiado de algum efeito da categoria de amostras designadas por “bola de neve”, já que foi solicitado a alguns participantes chave que distribuíssem o link do questionário dentro das suas zonas de influência direta. O questionário incidiu sobre uma amostra constituída, exclusivamente, por profissionais de rigging. Os técnicos abrangidos pela amostra não representam qualquer organização específica, tendo na sua maioria como elemento comum, somente, a atividade profissional que desempenham.
O instrumento foi colocado on-line através da plataforma “Google Forms”, sendo disponibilizada uma versão em inglês e uma versão em português. A abordagem aos participantes realizou-se através da disponibilização do link do questionário por contacto pessoal, direto através das redes sociais, e de contacto em grupo por via do fórum on-line, “Safety in Aerial Arts”. O cariz facultativo da participação e a extensão considerável do questionário poderá ter limitado a adesão de participantes. Obtiveram-se as respostas de 163 técnicos de suspensão de equipamentos, riggers, da indústria dos espetáculos ao vivo, para um universo aproximado de 1000 indivíduos contactados. A amostra representa um total de 27 nacionalidades, sendo os EUA (com 53 respostas) e Portugal (31), os mais representados, seguidos de Reino Unido (13), Austrália (11), Brasil (8) e Nova Zelândia (5). Os restantes países têm um número de respostas inferior às anteriormente apresentadas. Deve ainda ser salientado que a amostra de 31 indivíduos, referente a Portugal, representa mais de 90% do universo total de técnicos de rigging existentes no país (dados APR - Associação dos Profissionais de Rigging).
O instrumento
O questionário é constituído por três dimensões de análise, correspondentes a: Dados sociográficos; Determinantes pessoais da perceção do risco e Riscos específicos da indústria dos espetáculos ao vivo. Estando estas dimensões subdivididas em escalas e subescalas de análise.
A secção dedicada aos dados sociográficos é composta por 10 itens informativos relativos a dados pessoais e profissionais, designadamente: nacionalidade dos participantes, sexo e idade, anos de experiência profissional, localidade das carreiras, vínculo contratual, função hierárquica, experiência de acidentes e sua gravidade, e finalmente, vivência de acidentes com terceiros.
Procedeu-se à avaliação das componentes Emocional e Cognitiva da Perceção de Riscos Específicos da indústria dos espetáculos e eventos ao vivo. Estas subescalas foram, igualmente, pontuadas numa escala de Likert, variável entre 1 e 7, em que 1 corresponde a nenhuma preocupação/exposição e 7 corresponde a elevada preocupação/exposição. A tabela 2 apresenta uma síntese destas subescalas, as quais se encontram com maior detalhe no Anexo.
Relativamente aos Determinantes Pessoais da Perceção do Risco, foram consideradas 24 subescalas, num total de 96 itens em que os participantes pontuaram cada item numa escala de Likert variável entre 1 e 7, em que 1 corresponde a total discordância com a influência do determinante na atitude pessoal do participante face ao risco. Em oposição o valor 7 corresponde a total concordância com o prossuposto da afirmação formulada em cada item. As subescalas e respetivos coeficientes α de Cronbach, são as seguintes: Procura de experiências (α = 0,92); Inercia, falta de tempo ou meios (α = 0,80); Estimativa do risco (α = 0,80); Voluntarismo (α =0,73); Conhecimento/novidade (α = 0,67); Ilusão de controlo (α = 0,64); Número de indivíduos afetados (α = 0,86); Severidade/efeito imediato ou remoto (α = 0,79); Memorização (α = 0,67); Ancoragem/supressão (α = 0,67); Negação (α = 0,55); Irrelevância de evitar o risco (α = 0,62); Retrospetiva (α = 0,85); Recompensas (α = 0,75); Compensação do risco percebido (α = 0,92); Reatância/resistência (α = 0,76); Influência social (α = 0,72); Sobre confiança (α = 0,83); Atração pelo risco (α = 0,82); Locus de controlo interno (α = 0,50); Locus de controlo externo (α = 0,78); Mudanças (α = 0,81); Impulsividade (α = 0,88); Ansiedade (α = 0,86).
Dados obtidos
As pontuações dos participantes nos componentes Cognitivo e Emocional da Perceção de Riscos Específicos, da atividade dos riggers na indústria dos espetáculos e eventos ao vivo, correspondem aos valores presentes nas tabelas 3 e 4, as quais apresentam uma ordenação descendente, com base nos valores das médias obtidas:
Destaca-se que os três valores mais elevados das médias apresentadas na tabela 3 são os seguintes: Trabalho em altura (6,14); Movimentação manual de cargas (5,71) e Cargas horarias excessivas (5,66).
Já os três valores mais elevados das médias apresentadas na tabela 4 são os seguintes: Cargas horarias excessivas (5,95); Trabalho em altura (5,84) e Trabalho em zonas expostas a queda de objetos (5,66). Procedeu-se, posteriormente, ao mesmo tipo de análise, relativamente às influências significantes entre Variáveis Sociográficas e componente Racional e Emocional da Perceção dos Riscos Específicos. Os resultados estão presentes, respetivamente, nas tabelas, 5 e 6.
Foi ainda realizada a análise da influência entre Componentes da Perceção de Riscos Específicos e os resultados das subescalas relativas aos Determinantes gerais da perceção de riscos pelos riggers, com recurso à regressão linear, com p value ≤ 0,05. Os resultados com dados significativos estão presentes na tabela 7.
Discussão dos dados obtidos
A abordagem global dos dados obtidos, evidencia que a componente emocional da perceção do risco encontra maior expressão nos indivíduos face à componente racional. Este fenómeno está descrito por vários estudos (Rudmo, 2000; Slovic e Peters, 2006). Os autores referem que os indivíduos utilizam predominantemente processos de avaliação emocional, principalmente porque estes processos são automáticos e não carecem da complexidade das análises racionais e lógicas da componente cognitiva. Esses dados são interpretáveis nas tabelas anteriores e mais clarificados com recurso ao diagrama presente na figura 1.
Foi, no entanto, possível identificar exceções a esta “regra”, nomeadamente para os riscos: trabalho em altura, movimentação manual de cargas, movimentação de cargas suspensas, montagem de estruturas temporárias, trabalho com plataformas elevatórias de pessoas e trabalho com condições reduzidas de iluminação. Os resultados sugerem que para estes riscos mais familiares, os riggers, pontuam de forma mais moderada a componente emocional da perceção dos riscos, o que pode ser explicado pelo determinante “Conhecimento/Familiaridade”. Segundo Geller (2001), quanto maior é a familiaridade com o risco, menor será a ameaça percecionada.
Perante a evidência de que a afinidade emocional dos trabalhadores com os riscos específicos, e as suas consequências, pode reduzir com a familiaridade desse risco, fica demonstrado que a capacidade ponderativa e analítica da exposição aos riscos, parece atuar num processo independente da relação emocional, como de resto é sugerido por Slovic e Peters (2006). Importa ainda referir que os riscos mais pontuados pelos trabalhadores são parcialmente similares os identificados pelos especialistas, relativamente à exposição na atividade diária dos riggers. Este facto aponta para uma percetividade complexa e uma capacidade objetiva de ponderação da exposição por parte dos indivíduos não especialistas, algo que vem sendo vinculado em diversos estudos (Areosa, 2012b; 2014).
Em sentido oposto resulta a análise dos resultados obtidos para o risco específico “trabalho com recurso a plataformas elevatórias de pessoas”. Este aparece pontuado com um nível de exposição elevado, pese embora o facto de este procedimento corresponder a uma situação de trabalho de menor exposição ao risco, quando por exemplo, comparado com o “trabalho em zonas expostas a queda de objetos”, que em contrapartida aparece pontuado duas posições abaixo. Este enviesamento percetivo pode, no entanto, encontrar explicação noutros fatores. Ao analisar as situações de “risco de queda de objetos”, pode ser generalizado que esse risco está intimamente ligado ao desempenho de segurança nas tarefas específicas de um rigger, que por sua vez remete para determinantes relacionados com o controlo do profissional sobre a tarefa.
As dimensões “Locus de controlo interno”, “Sobre confiança” e “Ilusão de controlo” estão pontuadas pelos participantes acima do valor médio da escala, evidenciando a influência destes determinantes no perfil dos riggers da amostra deste trabalho. É então espectável encontrar indivíduos que reúnam em si mesmos a responsabilidade pelo desfecho dos eventos (Locus de controlo interno), que se considerem mais competentes do que a maioria dos seus pares, e perfeitamente capazes de mitigar e controlar o que diretamente lhes diz respeito (Ilusão de controlo), acompanhado por algum enviesamento e incapacidade de definir as fronteiras das suas capacidades e competências (Sobre confiança). Fica assim evidente que estando o risco de “queda de objetos” intimamente ligado ao desempenho individual, resulta que os fatores determinantes referidos possam influir na perceção deste risco específico. A baixa perceção de exposição pode ser efeito de uma ilusão de controlo, mas a extrema relação de responsabilidade com este risco coloca a componente emocional a um nível muito elevado, podendo este comportamento ainda ser reforçado pelo “valores” da subcultura dos profissionais de rigging, quando dizem que “a única coisa que um rigger deixa cair, são gotas de suor”.
Na análise das componentes da perceção dos riscos específicos, verifica-se ainda, que os três riscos menos pontuados na componente cognitiva, são: “Trabalho com equipament os deficientes ou desadequados”, “Falta de formação específica ou execução de tarefas fora do âmbito de competências” e “Uso de equipamentos de proteção individual inadequados ou ausência dos mesmos”. Tendo em conta a natureza organizativa e de cumprimento de requisitos específicos associada aos riscos mencionados, parece legítimo que a baixa pontuação de exposição se possa associar à grande padronização de procedimentos e conhecimentos a um nível global, muito característica deste setor. Este pressuposto pode legitimar a teorização do paradigma de “controlo versus variabilidade” de Reason (2000), parecendo evidente, que embora com uma componente emocional dentro da média, a exposição perde relevância para os inquiridos. Resta saber se por uma razão de cumprimento escrupuloso dos requisitos e procedimentos, ou simplesmente porque a padronização reduz a capacidade analítica dos trabalhadores.
Acerca da interação entre variáveis sociodemográficas e os riscos específicos, resultou alguma evidência de que as variáveis “Idade”, “Sexo” e “Trabalho local ou internacional”, têm uma influência razoável na construção da perceção, embora os resultados para a variável “Idade” possam apresentar algum enviesamento devido à distribuição da amostra dentro dos subgrupos da variável, já que a fraca representatividade do subgrupo abaixo dos 24 anos ser muito baixa, o que condiciona o potencial interpretativo dos resultados para esta variável (Martins, 2021). Todavia, será de notar a tendência de a exposição ser percecionada de forma menos explícita pelos trabalhadores mais velhos, o que pode estar associado ao determinante “Procura de experiências”, que parece ter mais expressão para os trabalhadores mais velhos. Paralelamente, o Contexto de trabalho Local ou Internacional, evidencia de forma espectável que os trabalhadores que desempenham as suas funções em contextos locais, apresentam perceções de exposição menores que os restantes, o que está naturalmente associado à dimensão das estruturas organizativas em que estes se incluem e que são, regra geral, maiores e mais organizadas em produções internacionais, onde os requisitos de segurança têm uma maior expressividade na cultura das organizações.
Notas finais
O principal objetivo deste estudo foi caraterizar e descrever as perceções de riscos dos profissionais de rigging na indústria dos espetáculos ao vivo, incluindo, por exemplo, a componente racional e emocional. Pretendemos destacar que o levantamento de dados decorreu num período anterior à pandemia de COVID-19 e que a situação pandémica representou a paragem quase total de toda a atividade associada a esta indústria.
Nem sempre as perceções de riscos dos trabalhadores traduzem plenamente a realidade laboral, visto que as perceções podem sofrer diversos de enviesamentos, ou seja, podem ser um meio de apreender o mundo exterior de forma distorcida. No entanto, não podemos deixar de considerar que as perceções de riscos são para os próprios trabalhadores absolutamente “reais e objetivas”, e que eles atuam mediante essas mesmas perceções (Areosa, 2012b). Paralelamente, os resultados sugerem que a vivência de acidentes de terceiros não parecem afetar a perceção dos riggers (Martins, 2021), o que contraria a literatura sobre o tema (Slovic, 2000). É pertinente sublinhar que neste setor de atividade as pressões exercidas sobre os trabalhadores para o cumprimento dos prazos, os quais são sempre diminutos, são um fator que potencia a ocorrência de erros, falhas, incidentes e acidentes. Verifica-se que os trabalhadores são criticados por qualquer erro ou falha. A esta situação está associada à potencial gravidade dos acidentes causados, quer em outros trabalhadores, quer inviabilizado o próprio espetáculo/evento ao vivo. As tarefas destes trabalhadores são, por vezes, muito complexas e os riscos ocupacionais são elevados. O número de horas excessivas de trabalho, os trabalhos executados em altura e exercer a atividade em locais cuja exposição a queda de objetos é constante são algumas das principais preocupações dos riggers. Neste contexto, o risco de queda de objetos está intimamente ligado ao desempenho individual. Voltamos a sublinhar que, no âmbito da cultura dos profissionais de rigging, é afirmado “a única coisa que um rigger deixa cair, são gotas de suor”. Mesmo entre pares há uma certa desconfiança e desaprovação sobre quem deixa cair algum objeto, tento em conta as graves consequências que daí podem advir.
Deste trabalho resulta a evidencia de que as dimensões da perceção de riscos, “Locus de controlo interno”, “Sobre confiança” e “Ilusão de controlo”, contribuem para a formação das atitudes dos riggers face ao risco, sendo expectável encontrar no universo dos riggers indivíduos que reúnam em si mesmo a responsabilidade pelo desfecho dos eventos (Locus de controlo interno). Alguns consideram-se mais competentes do que a maioria dos seus pares, sentindo-se capazes de mitigar e controlar o que diretamente lhes diz respeito (Ilusão de controlo), acompanhado por algum enviesamento e incapacidade de definir as fronteiras das suas capacidades e competências (Sobre confiança). Este aspeto apresenta-se como outra curiosidade interessante quando confrontado com a cultura da indústria dos espetáculos, já que os riggers são normalmente considerados egocêntricos, equiparando-se a quase deuses das arenas e recintos de espetáculos. Este facto está materializado na expressão irónica, recorrente neste setor, em que ao se perguntar a diferença entre um rigger e Deus? A resposta é “Deus não acha que é rigger”. Apesar de ser uma ironia apenas partilhada por quem trabalha em espetáculos, é interessante constatar a auto-imagem que estes trabalhadores constroem, a qual se traduz numa certa omnipotência. Naturalmente que este perfil influencia as perceções de riscos destes trabalhadores, nomeadamente em fatores como a ilusão de controlo.