Introdução
Este artigo tem como objetivo discutir os contributos da teoria das redes no ministério pastoral a partir de duas questões básicas: (a) os prováveis impactos dos modos de organização contemporâneo de algumas igrejas evangélicas no exercício do pastorado e as possíveis interferências na sua identidade enquanto cuidador vocacionado; (b) a relação entre os mecanismos de proteção e cuidado aos pastores e o papel das redes relacionais no enfrentamento de tensões e constrangimentos no exercício do ministério pastoral. Abordar-se-ão, com este fim, elementos conceituais da teoria das redes que ajudem a pôr em foco alguns dos contributos de se manterem ativadas as redes relacionais no exercício das suas atribuições como estratégia para o enfrentamento de situações de crise. Discutir-se-ão, ainda, as principais mudanças verificadas no campo religioso brasileiro, assim como os deslocamentos provocados no contexto da atividade pastoral da atualidade e os impactos desses deslocamentos na identidade do pastor-cuidador, e que apontam para uma situação de crise de identidade do pastor protestante tradicional. Trata- se de uma análise exploratória, ainda que haja relatos crescentes de pastores diagnosticados com depressão, Burnout, evidenciados nos recentes casos de suicídios entre pastores e líderes religiosos. A partir da revisão da literatura, apresentaremos algumas questões ainda não problematizadas suficientemente.
Para tanto, o texto que se segue está organizado em três seções. A primeira delas, A Teoria das Redes concentra-se na aproximação entre Sociologia e Religião para se conhecer aspectos importantes das redes relacionais no cuidado e prevenção de situações de crise, em que a teoria das redes contribui com a formação de certos tipos de recursos que não podem ser obtidos através do mercado e que são importantes na jornada ministerial.
A segunda seção Reconfiguração do Campo Religioso Brasileiro aborda as principais mudanças no campo e consequentes reflexos na função pastoral da atualidade e a forma como essas mudanças transformam-se em desafios para o exercício do ministério.
A terceira seção, Estudo de Caso, contém a operacionalização do conceito de redes num estudo de caso realizado com uma pastora batista da cidade do Rio de Janeiro, em que se analisou as características da rede, numa discussão crítica dos pressupostos das instituições religiosas como redes de proteção e cuidado, em que os resultados dessa operacionalização nos permitiu refletir sobre a importância das redes relacionais para o apoio efetivo aos pastores que se encontram em crise e/ou em risco iminente.
A Teoria das redes
A análise das redes sociais, considerando o termo “rede” (network) bastante popular atualmente, pode ser aplicada no estudo de diferentes situações e em questões sociais muito distintas. Atualmente, com a popularidade do conceito de rede e sua aplicabilidade, outros domínios científicos passaram a usá-lo nas suas pesquisas (Lemieux, 2000; Ruivo, 2000). Trabalhos clássicos como o de Granovetter (1995), ou MontGomery (1992), abordam a relevância de se estruturar redes em egos para que os indivíduos tenham acesso às oportunidades no mercado de trabalho. Da mesma forma, o artigo de Gould (1993) aborda a importância das redes para se estruturar ações de determinados grupos sociais. O conceito também foi bem explorado por Sílvia Portugal (2006) sobre as redes sociais na produção de bem-estar social, em estudo de caso sobre as famílias portuguesas.
O termo ganhou “dimensão de abstracção que o fez penetrar nos mais diversos domínios”, e é hoje usado como “forma de apreender as interconexões do mundo contemporâneo”, como nos mostra Portugal (2007:1-2), ao analisar os contributos do conceito de redes numa discussão acerca da teoria sociológica. Segundo a autora, os estudos sobre a teoria das redes, dadas as suas potencialidades, têm sido um campo de “interdisciplinaridade” por excelência, e importante ferramenta para a compreensão da multiplicidade das relações entre os vários grupos sociais ou de categorias institucionalizadas.
A partir do conceito de redes, em que o conjunto de “nós” representam as estruturas sociais (grupos, corporações, agregados domésticos e/ou outras coletividades) e os “laços” representam as suas interconexões (fluxos de recursos, relações simétricas de amizade, transferências ou relações estruturais entre “nós”), é possível perceber o comportamento de uma pessoa dentro de sua estrutura social, sua inserção nessa estrutura, suas trajetórias sociais, as posições estruturais que exerce dentro dessa mesma estrutura, como suas decisões pessoais são influenciadas por essa trajetória, e como lhe permitirão ter determinada liberdade de circular por essa estrutura.
É basicamente através das conexões que uma pessoa poderá ter acesso, com a sua rede de contatos, a uma infinidade de possibilidades e oportunidades. As posições sociais dos indivíduos são estruturadas na medida em que certas possibilidades lhes são oferecidas para aceder aos recursos disponíveis nesta estrutura. A estrutura das redes permitirá, dessa forma, o acúmulo de capital social que seria funcional à mobilização de recursos. São as relações entre as pessoas e a força dessas relações que lhes abrirão ou não essas possibilidades (Fontes, 1999; Portugal, 2006; Wellman, 1991).
As redes sociais contribuem, de forma privilegiada, para se compreender as relações sociais e os tipos de conexões que acontecem entre indivíduos e instituições, em suas múltiplas esferas (família, amigos, trabalho, grupos religiosos, associações desportivas, partidos políticos, etc.). Refere-se ao processo de socialização entre as pessoas por um longo período de convivência. Em espaços urbanos em que há maior concentração populacional com grupos sociais diversos, as redes sociais potencializam a capacidade de atuar na conexão e na penetração a grupos de interesses mais específicos (Noronha, 2015).
Segundo Noronha (2015:149-150), “relações de parentesco, amizade, vizinhança, religiosa, entre outras, se revelam eficazes na obtenção de favores - com peso significativo à população mais pobre -, nas relações de troca, ou no acesso às estruturas de oportunidade”. Relações de reciprocidade, como as trocas de favores, podem acontecer no interior das redes de amizades, além de permitir o acesso a círculos sociais específicos. É o que apontam Almeida & D’Andrea (2004:98) relativamente ao estudo feito sobre a pobreza e redes sociais no contexto de uma favela na cidade de São Paulo, Brasil, realizado entre 2002 e 2003, em que as relações de reciprocidade acontecem de forma mais “conjuntural e de baixo custo, consistindo por exemplo em emprestar dinheiro para a condução ou em participar nos mutirões de “encher a laje” (construção de casas)”. Trata- se de ações típicas de comunidades com baixa renda e contextos em que há evidências de vínculos decorrentes do processo migratório. Segundo estes autores, “nelas se encontram sistemas de reciprocidade estruturados sob normas sociais cuja regra principal é a relação de confiança” (destaque dos autores).
Nas relações de confiança, há sempre a possibilidade de fluxos de informações privilegiadas, ajudas para se conseguir emprego, alugar uma casa, auxiliar na resolução de problemas, serviços, apoio moral (situações de casamento, batismo, funeral). Nesse tipo de relação podem surgir grupos de ajuda mútua e de solidariedade (dádiva), intercâmbio de favores, com a construção de “redes de apoio e oportunidades”.
As conexões em redes possibilitam não só o acúmulo de capital econômico, mas possibilitam o aumento do capital social daqueles que dela fazem parte, porque gera significado e constrói sentido ao indivíduo. É o que afirma Noronha (2015:24): “para que o “capital social” se opere, é necessário que o participante não apenas esteja motivado a se associar, mas, sobretudo, que se mantenha por um período de tempo, suficiente, para formação de vínculos com outros membros da rede”. A partir da convivência, desse sentido de pertencimento, o indivíduo é capaz de perceber as estruturas de oportunidades que determinadas conexões podem oferecer, como conjunto de benefícios materiais e simbólicos (e de difícil mensuração) que lhe permite aumentar o capital social.
“É essa noção, de um tipo de capital gerado nas ‘relações’, que torna o conceito de capital social indissociável do conceito de rede social” (Portes, 2000; Portugal, 2014 :55). Para a compreensão do conceito de capital social, vários autores consideram importante três abordagens, sendo estas baseadas nos conceitos de Pierre Bourdieu, de James Coleman e de Robert Putnam. Para Sílvia Portugal, Nan Lin define capital social como “investimento nas relações sociais com proveitos esperados no mercado” (Lin, 2001:19, apudPortugal, 2014:61). Com base no conceito formulado por Bourdieu (1982), Noronha (2015:199) conclui que capital social é o conjunto de capital econômico, cultural e simbólico que o indivíduo “acumula” ao longo da vida. O volume de capital que este indivíduo possui indicará a posição que este ocupará dentro de determinado “campo”. Segundo este autor, “o aumento do capital social dependerá das conexões que efetivamente se conseguir mobilizar” na participação em rede.
Outro conceito que tem sua relevância na teoria das redes é o de dádiva. Portugal (2006:67-68) observa que “toda a vida social é pontuada por ocasiões de troca de dádivas, em que solidariedades recíprocas são verificadas, enfraquecidas ou reforçadas”, destacando o poder simbólico nessas trocas. A autora defende a ideia de que as ofertas que acontecem com a dádiva promovem formas de troca social que não são calculadas na quantidade e qualidade e nem são estas residuais, mas que promovem o fortalecimento dos laços entre os indivíduos que dela se beneficiam. Existe uma relação de afinidade nessa troca de dádiva, de conhecimento, de contato, mesmo que esporádico, porque baseia-se na “interação face-a-face”, uma vez que as pessoas se conhecem pessoalmente, além do sentimento de obrigação do “dar-receber-retribuir” e que não necessariamente se inscrevem na contabilidade da equivalência do que é intercambiado. É o que nos afirma Fontes (1999), numa referência à Goudbout (1992):
“não existe sempre o retorno, no sentido habitual, mercantil do termo, de retorno material de objetos ou de serviços (...). Ao contrário, o retorno é frequentemente maior que o dom. Desde que haja troca, esta se distancia do princípio da equivalência mercantil. Os parceiros parecem frequentemente ter o prazer de desequilibrar constantemente o princípio da equivalência da troca, quer dizer, preferem se manter em estado constante de dívida (...). A única coisa não totalmente livre do dom é o fato de receber. Quer queira ou não, se recebe, e existe sempre retorno: a gratidão, que suscita o reconhecimento, este suplemento que circula e que não entra nas contas, são retornos importantes para os doadores” (Goudbout, 1992:136-7, apud Fontes, 1999:242).
Processos como estes constituem-se em elemento fundamental na estruturação do vínculo social e não são contabilizados no cenário econômico, apoiando a compreensão de Portugal (2006), citado anteriormente. Contribui no reforço dos laços entre os indivíduos que dela se beneficiam, especialmente em tempos em que a falência das instituições, até então responsáveis por promover o bem-estar social, se torna cada vez mais evidente (Fontes, 1999).
A teoria das redes no ministério pastoral
Perceber os laços que mantêm o vínculo social entre os indivíduos para se adaptarem às mudanças recentes, tendo esse olhar especial para as relações dentro das instituições religiosas, em especial o líder-pastor, permite identificar as pontes que ligam os indivíduos aos outros e às instituições em que estão afiliados, porque contribuem para construir suas histórias de vida, garantindo-lhes identidade e sentimento de pertença (Fontes, 1999). E é nesta perspetiva que podemos verificar os conceitos da teoria das redes sendo operacionalizados no contexto dessas relações no interior das comunidades religiosas.
As relações sociais são marcadas pela disponibilização de recursos, de informações, apoios e privilégios que muitas vezes não estão disponíveis no mercado, como apoio emocional, suporte financeiro ou ajuda no cuidado com as crianças ou em casos de doenças. Esses são facilmente replicados no dia-a-dia de cada um de nós.
Inseridos numa rede de amigos, parentes ou vizinhança, ou mesmo em instituições religiosas, esses recursos podem ser disponibilizados de forma particular, não obedecendo a lógica do mercado ou do Estado. O que se percebe é que nas redes sociais dentro das igrejas a disponibilização desses recursos acontece de forma bastante particular.
O entrelaçamento entre religião e redes sociais nos permite analisar a dinâmica social das instituições religiosas de se constituírem em redes de proteção e cuidado, especialmente em contextos sociais em que as políticas públicas de assistência não propiciam aos seus participantes as condições, objetivas e subjetivas, de serem assistidos. Dessa forma, pode-se considerar que “as redes, dentro e fora do campo religioso, atuam, muitas vezes, como redes de proteção” e cuidado (Noronha, 2015:21). Também atuam em funções que, a princípio, são do Estado.
Num estudo sobre as relações sociais no contexto dos grupos religiosos numa cidade do interior de São Paulo, a partir da teoria das redes e considerando as práticas sociais como fluxos e os benefícios materiais e espirituais como os conteúdos que circulam nas redes, Noronha (2015) identificou alguns dos principais elementos que são procurados por aqueles que aderem aos grupos religiosos. O autor apresentou os elementos especificando-os conforme o tipo de “capital” envolvido (Bourdieu, 1996):
- no campo material (“capital econômico”): emprego e renda, participação em campanhas/trabalhos assistenciais nas instituições religiosas (indicação para vagas de empregos, campanha de arrecadação de alimentos, roupas e bens essenciais);
- no campo espiritual (“capital simbólico”): salvação e evolução da alma (valores morais/éticos e ajuda na reforma íntima); socialização e pertencimento (autoestima e prestígio) através das redes informais do campo religioso, como cultos, estudos bíblicos, eventos sociais e festivos; ou das redes institucionalizadas, como associações, institutos, que podem contribuir no aspecto material na medida que pode gerar renda ou participação direta/indireta de campanhas assistenciais; cura física e espiritual (mais comum no contexto neopentecostal e pentecostal que tem o tema na centralidade litúrgica, como elemento mágico-religioso); tratamento da dependência química e reinserção social, através das redes informais e/ou institucionalizadas.
Deste modo, fica evidente que as instituições religiosas, que desde sempre desempenham papeis sociais importantes, seriam o locus para práticas de solidariedade nas sociedades contemporâneas, assim como produtoras de dádiva e das trocas simbólicas. Por outro ponto, uma situação pluralista como resultado da secularização tem conduzido a religião, e as instituições que a representam, a um processo de crise de credibilidade. E o indivíduo moderno tem transitado nessa pluralidade de mundos. E, mesmo em tempos em que a ciência e a razão têm oferecido respostas aos desafios da vida moderna, a religião não foi eliminada, mas tem-se transformado, conforme Berger (1985).
Sem dúvidas, em meio a esse cenário atual, os pastores e os ministros religiosos encontram-se numa zona de perigo emocional ao exercerem a sua vocação. Um trabalho desgastante e desafiador, que poderá levar a um cansaço e consequente diminuição na capacidade de enfrentamento das próprias demandas (Silva, 2018). Ao aventurar-se no exercício da vida religiosa, muitos deparam-se com sentimentos de impotência, diminuem a sensação de realização pessoal, sentem-se desvalorizados, até se verem em situações extremas de estresse.
Esgotados emocionalmente e impossibilitados de recuperar a motivação e as forças espirituais do início da jornada, acabam por abandonar o ministério. Outros acabam por cair numa depressão profunda ou mesmo sofrer da Síndrome de Burno2. E, mesmo que reconheçam que estão esgotados, é mais provável que eles neguem, tentem lidar com isso sozinho ou até mesmo esconder da comunidade. A renúncia do Papa Bento XVI, o alemão Joseph Raztinger, de 85 anos, é um exemplo dessa realidade. Ao abdicar de seu papel, justificou sua decisão alegando que suas forças se tinham exaurido e lembrou que quando foi eleito, em 2005, sentiu todo o peso sobre seus ombros3.
Um líder cristão não está livre de enfrentar situações de esgotamento físico e mental. As pressões sobre os pastores muitas vezes podem ser intensas e até mesmo implacáveis, e nem todos aqueles que desempenham a mesma atividade vivenciarão o mesmo grau de pressão e cobrança (Baptista, 2014; Bresch, 2019). Os chamados “profissionais da ajuda”, aqueles que desempenham papeis sociais de apoio e cuidadoestão mais suscetíveis a essas crises, “pois são profissionais que atuam em ocupações emocionalmente desgastantes” (Morais, 2008, apudBaptista, 2014).
Estes processos são analisados aqui a partir do ponto de vista da Teoria das Redes (social network analysis). Um olhar atento às principais mudanças no campo religioso brasileiro e seus possíveis reflexos no desempenho da atividade do pastor batista tradicional nos permitirá perceber algumas tensões que estes vêm enfrentando no exercício do ministério na atualidade, assim como a importância de se ter uma rede social ativada como estratégia de prevenção e cuidado em situações de crises.
Reconfiguração do campo religioso brasileiro
A emergência e consolidação de novos grupos religiosos, quer pela sua diversidade quer pelo ritmo das suas dinâmicas nos espaços públicos, tem suscitado novas problemáticas com um quadro marcado por uma cultura pluralista e com sistemas de valores concorrentes. Esta reconfiguração do campo religioso tem sido evidenciada também na relativização das diferenças denominacionais e no liberalismo teológico- doutrinário.
O liberalismo bíblico promoveu a emancipação da ciência e a produção de saberes de forma autônoma relativamente à religião, e esta acabou por entrar em contradição com a Bíblia. São evidências dessa realidade a conformação das ideias liberais nas doutrinas bíblicas; clivagem entre líderes religiosos e o crente comum (formação teológica e tradição doutrinária) e conformismo e rotinização do carisma na perspectiva weberiana (Vilaça, 2006, 2018, 2020).
Os dados do relatório do Censo Demográfico, realizado pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística - IBGE - no ano de 2010, divulgado em 2012, refletem algumas mudanças no cenário religioso brasileiro. Como consequência dessa situação pluralista apontada anteriormente, houve uma acentuada redução do percentual de pessoas da religião católica apostólica romana, o qual passou de 73,4% em 2000 para 64,6% em 2010; o aumento do total de pessoas que se declararam evangélicas, de 15,4% em 2000 para 22,2% da população, em 2010; e os sem religião, de 7,4% em 2000 para 8% dos residentes (IBGE, 2012).
O relatório também nos permite perceber o crescimento relativo da diversidade dos grupos religiosos no Brasil e este crescimento tem revelado uma maior pluralidade4 nas regiões mais urbanizadas e com maior população do País. Nas últimas décadas, houve um crescimento da população evangélica decorrente da migração religiosa, decorrente do trânsito religioso.
Está em curso um processo de “recomposição do campo religioso a partir de novos modelos” e novas práticas pastorais no ambiente protestante. Um novo estilo, um novo design da função pastoral, onde o especialista em exegese bíblica e teologia sistemática (o pastor-doutor) sai de cena e dá espaço ao pastor-mágico, pastor-coach, o pastor- animador que apela para estratégias de manipulação dos mistérios com o fim de motivar e encantar os espectadores (Campos, 2012; Weber, 1991).
Nota-se que o neopentecostalismo (Freston, 1993; Mariano, 2004; Vilaça, 2006), com a teologia da prosperidade, tem contribuído para uma fratura na função social do pastor protestante, com suas mensagens mágico-religiosas, o fim dos monopólios das tradições religiosas e a instauração de um regime de concorrência. Em consequência, gera-se uma crise de credibilidade das tradições religiosas, que culmina numa crise de identidade e numa baixa coesão social, evidenciando a necessidade de uma redefinição na fronteira de atuação do pastor (Campos, 1999; Mariano, 2003, 2004).
O pluralismo promoveu um tipo de “competição intra-religiosa” (Berger, 1985:149). As igrejas que antes exerciam monopólio religioso agora precisam se adequar à nova realidade. Como afirma Peter Berger, “a submissão é voluntária e, assim, por definição, não é segura. Resulta daí que a tradição religiosa, que antigamente podia ser imposta pela autoridade, agora, tem que ser colocada no mercado. Ela tem que ser “vendida” para uma clientela que não está mais obrigada a “comprar”” (1985:149, destaque do autor).
É o que Leonildo Campos (2012:19) chama de processo de “desmontagem” das instituições que tradicionalmente eram responsáveis por gerir o sagrado e preservar a tradição. O aumento de responsabilidades, com acúmulo de funções; menos tempo com a família e com o cuidado de si mesmo; a necessidade de conhecimentos de gestão na realização das atividades funcionais; remunerações incompatíveis com as responsabilidades assumidas, além do cumprimento de regras para alcançar metas previamente estabelecidas, são algumas das novas exigências que estão ao cargo do pastor contemporâneo.
Este cenário tem produzido no pastor protestante uma série de questionamentos quanto ao seu papel e relevância na sociedade contemporânea. Os pastores têm vivenciado tempos difíceis nas suas relações com as instituições e com a própria comunidade, evidenciados em indicadores crescentes de pastores com depressão, Burnout, além dos casos de suicídios. Interessa-nos diretamente perceber quais foram essas mudanças estruturais e de que forma essas alterações traduzem-se em pontos de tensão para a relação pastor-igreja-comunidade no exercício da função pastoral na atualidade.
2.1. Temos uma crise?
Alguns teóricos5 das ciências sociais ligados à Sociologia da Religião e da Sociologia das Profissões (Campos, 1987; Campos, 2012; Mendes & Silva, 2006; Santos, Machado & Facas, 2018; Silva, 2004; Silveira, 2005) já há algum tempo seguem num esforço em compreender o ofício do pastor.
Numa pesquisa sobre prazer e sofrimento no trabalho considerando a estrutura organizacional de uma igreja evangélica neopentecostal e outra evangélica tradicional, Rogério Rodrigues da Silva (2004) procurou mostrar a relação entre as transformações no contexto dessas organizações religiosas ao longo dos anos e as consequências dessas mudanças na psicodinâmica do trabalho desses líderes. A pesquisa transformou-se, posteriormente, num artigo e, juntamente com Ana Magnólia Bezerra Mendes, ambos concluíram que, “de maneira geral, observa-se uma vivência de prazer-sofrimento semelhante a outras profissões, inclusive as formas de enfrentar o sofrimento, com exceção da espiritualização dos problemas” (Mendes & Silva, 2006:103).
A lógica de competição entre as igrejas e o processo crescente de “burocratização das instituições religiosas” faz com que “tipos específicos de pessoal” sejam necessários nesse novo cenário, que exige não só habilidades técnicas, mas também características psicológicas específicas para dar conta das novas exigências do mercado. Berger (1985:152) afirma que “não importa muito se um certo funcionário burocrático veio da tradição protestante de ministério “profético” ou da tradição católica de ministério “sacerdotal” - em qualquer dos casos, ele tem de, acima de tudo, adaptar-se às exigências do papel burocrático”.
Além das questões apontadas, Nepomuceno (2013:94) considera “que a crise da perda de legitimidade social deste sujeito social, somada a todas as questões inerentes ao próprio contexto cultural da pós-modernidade tem gerado uma grande evasão do ministério pastoral”. Muitos pastores, inclusive, têm buscado legitimação em outras áreas profissionais, mas que tenha ligação com o trabalho religioso pastoral.
Num artigo que aborda a questão do sofrimento enfrentado por pastores e líderes eclesiásticos, Buhr salienta que “poucos imagina o que se passa nos “bastidores”, na vida privada e familiar dos líderes. Parece que o pastor não enfrenta as mesmas dificuldades que afetam os membros. Ou se passa por problemas, eles não o abalam, afinal de contas o pastor está mais próximo de Deus e treinado para superar qualquer obstáculo que apareça em sua caminhada. Todavia, a realidade não é tão bonita como parece. Assim como médicos precisam de médicos, pastores também precisam de pastores que cuidem deles, que os escutem e entendam. Pastores estão sofrendo, muitos deles calados, enquanto tentam ajudar as pessoas necessitadas à sua volta” (Buhr, 2013:106).
Relativamente ao esgotamento relacional no ambiente profissional, Piccinato (2019:37) atesta que “em 2016, segundo dados do International Stress Management Association - ISMA-BR, este gerou um prejuízo de 4,5% ao Produto Interno Bruto (PIB)”. São valores que envolvem aposentadorias precoces, afastamentos, licenças médicas, erros laborais e a queda na produtividade. O autor afirma que um trabalhador com Burnout trabalha em média cinco horas por semana. Estudos do ISMA-Brasil também afirmam que 92% das pessoas que sofrem de Burnout permanecem ativas no trabalho (Araújo, 2020, jornal eletrônico)6.
Campos (2002a: 92) sustenta a hipótese de que os pastores protestantes tradicionais são os que mais sofrem com as constantes transformações no campo religioso brasileiro. O autor afirma que os pastores neopentecostais são mais “flexíveis, ousados e empreendedores”, a despeito de tantas instabilidades e mutações. O pastor tradicional tem o desafio de conviver com uma religião que se mistura com entretenimento e precisa desenvolver estratégias para sobreviver num contexto de competitividade intrarreligiosa, numa lógica capitalista e racionalizante (Berger, 1985; Campos, 2002b; Silveira, 2005).
A onda de suicídios envolvendo líderes religiosos no Brasil e nos Estados Unidos, nos últimos anos, chamou a atenção de psicólogos, psiquiatras e outros profissionais da saúde, que se mobilizaram e passaram a abordar o tema em congressos, conferências, palestras e simpósios para instituições que são ligadas direta e/ou indiretamente às organizações religiosas. Estudiosos das ciências das religiões e da teologia também têm desempenhado papel importantíssimo em levar o tema para discussão no ambiente eclesiástico.
Como os líderes-pastores enfrentam situações como as que foram apontadas acima? Com quem efetivamente podem contar quando estão a enfrentar tais tensões e constrangimentos? Quem faz parte da rede social dos/as pastores/as? Quais são as características dos membros das redes? Que laços são ativados? Qual o valor das redes como capital social? Estas são algumas das questões às quais pretendemos desenvolver na próxima seção.
Estudo de Caso: A rede social da pastora batista
Em 2018, e com o objetivo de realizar um ensaio sobre a teoria das redes através da análise de um caso concreto, realizei uma entrevista com a Fernanda7 no sentido de reconstituir a sua rede como pastora, no contexto da sua vida e do seu ministério. Na altura em que foi realizada a entrevista, colheu-se as informações junto da Fernanda, que passa a ser identificada também como EGO para a associarmos ao conceito das redes.
Considerando a sua posição dentro da estrutura hierárquica da igreja8, partimos da seguinte pergunta: qual a rede de relacionamentos de um indivíduo que está num cargo importante na cadeia de uma instituição religiosa? A pergunta foi subdividida em outras quatro assim identificadas: primeira, quais as pessoas com quem se relaciona no dia-a- dia? Segundo, com quais pessoas efetivamente pode contar em situações de necessidades, como apoio material e/ou financeiro? Terceiro, em questões de saúde, sejam elas física, emocional ou psicológica, com quem pode contar? E, por último, quanto aos desafios no exercício do ministério pastoral, com quem efetivamente pode contar? Foi a partir dos resultados desse trabalho que surgiu o interesse em transformar o estudo de caso num trabalho acadêmico com uma abordagem mais aprofundada sobre a questão da solidão dos pastores, e que serão sintetizadas nesta seção.
A igreja de que era responsável a Fernanda é a mesma que ela atualmente pastoreia, contando, na altura, com cerca de 7.980 membros efetivos. Informações mais recentes apontam que esse número ultrapassou a marca dos 12 mil membros. Seu modo de cuidado com os membros desde sempre envolveu: encontros aos domingos com toda a congregação; reuniões semanais nos lares, onde as pessoas recebem ali estudos bíblicos, apoio emocional e espiritual, e fazem parte de um grupo menor de membros que promovem ações e atividades diversas para promoção da identidade e fortalecimento das relações sociais. Eram cerca de 938 grupos como esses, formados por perfis variados (homens, mulheres, crianças, casais, jovens, adolescentes, terceira idade, atletas, motociclistas, etc.).
Na definição de visão defendida pela instituição, já foi possível perceber características que remetem ao conceito de redes. Vejamos: “Ser uma comunidade Cristã inovadora, útil à sociedade, que adora ao Senhor em Espírito e em verdade, ensina para transformação, e gera ministros eficazes que priorizam a evangelização e a comunhão em células”9. A expressão “útil à sociedade” remete ao conceito da dádiva, do dom, e do capital social que circula dentro da instituição; e a expressão “a comunhão em células”, como modelo de relações micro num universo macro, permite visualizar uma estrutura em redes, subdividida em grupos menores e ligados a outros que se apoiam e que promovem informação, influência, credenciação, além de contribuir para o reforço identitário dos frequentadores.
A partir das respostas da Fernanda foram analisados os nós, identificados pelos parentes, amigos, colegas e vizinhos; e os laços, sendo esses fortes ou fracos; positivos, negativos, mistos ou de indiferença; ativos ou passivos e de parentesco ou não. Em se tratando de uma abordagem centrada na pessoa da Fernanda, foram levantadas informações sobre a rede de íntimos, aquelas pessoas consideradas importantes, aquelas cujas opiniões sobre determinados assuntos da vida são relevantes para si, e que são muito próximas da pastora; a rede de interação, definida pelas pessoas com quem ela interage no dia-a-dia, numa média de frequência de contato que seja ao menos semanal; e também a rede de trocas, constituída por pessoas com quem busca apoio na ajuda material, na prestação de serviços, podendo também buscar aconselhamento, companhia em atividades de lazer, e cujo comportamento pode, de alguma forma, oferecer um benefício ou um encargo (Milardo, 1988).
As principais conclusões do trabalho e que nos interessam apresentar aqui são as seguintes: apesar de ser uma figura importante numa estrutura tão ampla, a Fernanda tem uma rede de íntimos muito seletiva, voltada para os laços íntimos de parentesco, seu marido, sua filha, porém não se limitando a esse “subsistema”, mas numa abertura de laço que envolve uma pessoa ligada a ela, identificada como uma amiga que também é pastora, e esse laço é construído por afinidade a essa pessoa. É uma rede seletiva “porque existe uma triagem no interior da multiplicidade de relações estabelecidas (parentes distantes, colegas, vizinhos) sobre quem se traz para o interior da rede, como amigo”, e que coincide com a rede de cuidados e apoio nos desafios que enfrenta no exercício do ministério (Portugal, 2014:215).
No ambiente profissional (o ministério pastoral), a Fernanda é considerada um “catalisador”10, ou seja, uma pessoa por quem passam os laços estabelecidos entre os diferentes membros da rede. Essa constatação se deu pelo fato de ser ela a funcionária mais antiga desde a fundação da instituição e por conhecer todas as áreas e atividades desenvolvidas ali. Devido a essa condição, a Fernanda acaba por ser o laço mais “seguro” em se tratando de informações, e também um canal de acesso ao pastor presidente. Quanto ao conteúdo que circula nos laços, tem-se trocas de conhecimentos, relatos de estudos bíblicos e informações diversas nos laços fracos. Apoio emocional e afetivo, financeiro, material e confidencialidades nos laços fortes; sociabilidades e dádivas entre os demais laços.
“As redes seletivas implicam numa divisão de papeis no seu interior: amigos e parentes são importantes no plano expressivo, mas tem funções diferenciadas. Os parentes prestam apoios materiais e em serviços, os amigos desempenham um papel fundamental nas sociabilidades, nas conversas, nas trocas de informações, nas cumplicidades e nos afetos” (Portugal, 2014:216).
Quanto ao capital social circulante na rede da Fernanda, foi possível perceber a presença de elementos que estão na rede da pastora e que não foram citados por ela na entrevista11, mas que estão ligados a elas por motivos que são, muitas vezes, distintos daqueles que suas atribuições lhe conferem. O tipo de Capital Social que se enquadra nesse modelo de rede é o “Bonding Social Capital”, ou seja, um tipo de capital social que é construído através dos laços entre semelhantes. Ou seja, existem indivíduos que se conectam à rede da Fernanda, investindo nas relações sociais com ela, almejando resultados para além da missão da instituição.
São pessoas que procuram contactá-la usando-a como “ponte” de conexão com o pastor presidente, ou com o responsável por obras da igreja para ofertarem seus serviços/produtos. Esses indivíduos, fora da rede da pastora, poderiam não ter o mesmo acesso que suas pertenças à rede lhes oferecem. “Ter uma localização estratégica na rede ou possuir um contacto que tenha pode revelar-se fundamental para mobilizar recursos com um objetivo” (Portugal, 2014:223). E a própria pastora também poderá se beneficiar dessa rede na formação do capital social.
Esse trabalho permitiu perceber que, mesmo tendo uma média de duas mil pessoas ligadas a ela de forma indireta, a Fernanda está, de certa forma, “sozinha na rede”, pois seus vínculos (laços íntimos) limitam-se aos parentes próximos, no caso o marido e a filha, e a amiga pastora. Tem uma rede forte muito pequena e uma rede fraca muito grande, que pode ser um fator limitante para se obter apoio e prestação de cuidados.
Contextos mais homogêneos em que as formações das redes tendem a centrar-se no próprio grupo, com pouca diversificação (familiares, vizinhos, grupos profissionais), embora contribuam no fortalecimento dos vínculos entre os participantes, “os afastam de estruturas de oportunidades que residem para além do próprio grupo”, questão que Granovetter denominou de “fraqueza dos laços fortes” (Granovetter, 1973, apudNoronha, 2015:151).
Os laços fracos numa rede são indispensáveis para a construção de oportunidades, quanto para a integração dos indivíduos a outros grupos sociais. Ao circular por diversos grupos, para além daqueles que estão habituados a circular, os indivíduos acedem a novos fluxos de informações e novas estruturas de oportunidades, inclusive aos mecanismos de suporte e apoio ofertados para a produção de cuidados (Noronha, 2015; Portugal, 2006, 2014).
3.1. E o que mudou desde então?
Ao construir a nossa análise a partir das dinâmicas sociais em que as instituições religiosas, para além da sua capacidade de produzir capital social, se revelam como redes de proteção e cuidado, nossa hipótese considerou a problemática das tensões vividas pelos pastores no exercício do ministério em estruturas funcionais que promovem certo isolamento dos líderes e potencializando certa competição entre eles. A dificuldade de se relacionar, de se abrir com os colegas porque tem receio de expor suas fragilidades e assim perder o respeito, faz com que muitos pastores selecionem cada vez mais as pessoas que farão parte da sua rede de íntimos.
A entrevista com um dos pastores que era parte integrante da amostra mostrou que a situação de isolamento se mantém ainda hoje, assim como o quanto as cobranças por resultados têm contribuído para a competição entre os colegas de ministério. Quando lhe foi apresentada a proposição acerca da sua rede relacional e de suporte em situações de desafios pessoais ou de busca por apoio e suporte, esse pastor apresentou o seguinte relato:
“Este é, na minha leitura, lidando com pastores há tantos anos, o maior... espaço de crise. Os pastores estão isolados... Eu tenho um estilo colegiado de trabalhare servir. Então, este estilo colegiado, é, diria entre aspas, “salva a minha pátria”. Mas, infelizmente, os pastores estão muito sozinhos. Sozinhos nas decisões. Sozinhos nas lutas emocionais. Sozinhos nas questões financeiras. Sozinhos na liderança. Então, essa é uma crise que os vocacionados estão enfrentando hoje, não só no Brasil, mas eu imagino que esse é um problema do nosso tempo. Nós nunca estivemos tão interligados como está hoje, graças aos recursos tecnológicos, especialmente a internet. Mas, talvez, nunca estivemos também tão isolados”.
Para um outro pastor e também integrante da amostra da referida pesquisa, quando lhe foi apresentada a proposição acerca das pessoas com quem poderia contar em momentos de desafios pessoais, este que na altura da entrevista havia há poucos dias passado por uma situação traumática de violência urbana, afirmou contar com uma boa equipe na igreja; apesar de não ser muita gente, mas considerava-os boas pessoas. Ter com quem contar nos momentos de desafios contribui como uma espécie de suporte social, pois ajuda a aliviar o fardo, além de promover segurança emocional e sentimento de valorização. Esse apoio emocional não está diretamente relacionado ao tamanho da rede social do indivíduo, pois afinal, conforme afirma Baptista (2014:71), “não é a quantidade ou o tamanho das redes sociais que influenciam o bem-estar, mas a qualidade delas”. Como fundador da comunidade a que pertence e com estilo de liderança carismática, este pastor conta com o apoio de pessoas que estão mais próximas. Vejamos seu relato:
“O que eu gerei nessa igreja... afeto e compreensão. O que a gente planta, a gente colhe. E eu estou colhendo, afeto, cuidado... os irmãos nos visita; os irmãos nos liga; os irmãos nos ajudam. E eu acho que é o que a gente está plantando e semeando. Mesmo numa luta... na dificuldade, eu estou feliz, porque... as pessoas chegam lá e fala... “você me ajudou”, “você me ajudou a ficar de pé, então fica tranquilo”. Então... a gente precisa aprender a descansar em Deus”.
Esse relato deixa evidente uma das características fundamentais da dádiva que, segundo Portugal (2006:67), “é o seu caráter simultaneamente livre e obrigatório”, porque envolve o “dar-receber-retribuir”. Sílvia Portugal complementa essa afirmação ressaltando que, “quando surge uma dádiva cria-se um sentimento de obrigação, o indivíduo é livre para assumir ou para o recursar (...). Ao assumir a obrigação de retribuir estabelece-se uma relação, no interior da qual a dádiva circula como forma de alimentar e recriar o vínculo estabelecido”. Esse apoio, cuidado, carinho e suporte no momento de luta é o capital simbólico que circula na rede, e tem a ver com o semear e colher.
Quanto à Fernanda, sua realidade sofreu pouca alteração desde o ensaio realizado anteriormente. Afirma sentir-se sobrecarregada, porque há muita cobrança para cumprir as metas que são estabelecidas pela liderança, e tem dias que ela própria se vê necessitada de um ombro para se apoiar. O apoio do marido em todas as horas é fundamental, ainda que ele não a acompanhe na igreja. Conta ainda com o apoio e amizade da filha, que também é a sua médica, numa parceria que desenvolveram há um ano, de se encontrarem semanalmente para conversar. Mas quando tem o desejo muito forte de conversar com alguém e que isso não tenha nenhuma ligação com a igreja, procura por uma irmã, uma missionária bastante conceituada no meio evangélico, com quem mantém uma amizade de longa data. Sabe que é alguém que sempre pode contar para compartilhar e desabafar. “Só pode ser com ela sabe… que não é ninguém do convívio, pra que não distorça algumas coisas, eu ainda faço com ela”. E não encontra apoio da instituição para o enfrentamento de situações de crise.
Considerações Finais
Ao considerar os resultados da pesquisa que deu origem a este artigo, e tendo em conta o universo pesquisado, estes mostraram como o peso dos mecanismos de apoio e suporte é alto para a prevenção de tensões na vivência do pastorado. A investigação que deu origem a este artigo foi iniciada antes de a pandemia do COVID-19 iniciar, e a pesquisa de campo, a coleta dos dados empíricos e uma parte do referencial teórico também foram desenvolvidos antes que o mundo “parasse”. Mas a pandemia fez com que a análise dos dados só acontecesse durante esse período de confinamento. Isso me fez perceber o quanto a pesquisa é relevante e necessária para os tempos atuais, porque esta pandemia acendeu luzes de alerta para a realidade do líder religioso, dos pastores, padres e seminaristas, relativamente aos desafios inerentes à atividade pastoral e às mudanças das dinâmicas sociais, com mudanças profundas na composição, participação e fixação de fiéis, e acabou por trazer a temática à superfície12.
No entanto, as entrevistas também apontaram para a importância que a decisão do pastor em manter ativos todos os mecanismos disponíveis, poderá salvar sua vida. O permitir ser cuidado e apoiado por outras pessoas faz dele um ser também humano, capaz de despir de toda altivez e se permitir ser visto como um ser finito, limitado.
Se as entrevistas mostram como o cuidado de si mesmo é importante enquanto mecanismo de proteção e cuidado, mostram, também, como as redes sociais são um suporte fundamental nesse processo de cuidado e proteção. Quanto maior o número de pessoas ativas na rede de íntimos, maior será o apoio e, também, a possibilidade de se ter acesso a outros recursos para o cuidado a partir desses laços fortes (Portugal, 2006).
Vimos que um dos fatores que constituem o capital social no ministério pastoral é a interação promovida dentro dos grupos mais homogêneos (familiares, vizinhos, grupos profissionais). Em contextos com este formato, em que a formação das redes tende a centrar-se no próprio grupo, com pouca diversificação, embora contribuam no fortalecimento dos vínculos entre os participantes, “os afastam de estruturas de oportunidades que residem para além do próprio grupo”, questão que Granovetter denominou de “fraqueza dos laços fortes” (Granovetter, 1973; Noronha, 2015).
Ao circular por diversos grupos, para além daqueles que estão habituados a circular, os indivíduos acedem a novos fluxos de informações e novas estruturas de oportunidades, inclusive aos mecanismos de suporte e apoio para a produção de cuidados (Noronha, 2015; Portugal, 2006, 2014). Quer dizer que a estrutura das redes relacionais modela a “estrutura de oportunidades” que, conforme Almeida & D’Andrea (2004:106), acontece “na medida em que o capital social reside no vínculo entre as pessoas e não nas próprias pessoas”.
O discurso da Fernanda mostrou que a rede de íntimos é ativada quando esta precisa desabafar e conversar com alguém, o que leva a crer que procura formas de se proteger do desgaste da função pastoral, porém, permite perceber certa limitação quanto aos mecanismos de apoio disponíveis, porque conta com uma rede de íntimos muito restrita, limitada aos familiares mais próximos, ou com alguns poucos amigos íntimos. E não encontra apoio na instituição para o enfrentamento de situações de crise.
Na perspectiva do gênero, a mulher pode acumular tensões no exercício do ministério pastoral que os homens não enfrentam, e essa uma questão bastante evidente ainda nos tempos atuais. O fato de trabalhar fora e ser remunerada nem sempre implica em diminuição das responsabilidades domésticas (Portugal, 2006). Doar-se até não se ter mais, além de dedicar-se ao trabalho até sucumbir para ter a aprovação e o reconhecimento da comunidade e mostrar que é indispensável, são comportamentos que muitas líderes adotam como forma de se autoafirmarem e serem aceites.
Segundo Oliveira (2004), a sociedade contemporânea é marcada por uma ambivalência relativamente aos líderes religiosos, onde o cuidado e o descuido se fazem presentes. Essas foram algumas das evidências que foram abordadas no discurso da Fernanda que, além de ter de assumir os dois papeis, claramente adotou posturas como as elencadas acima para “marcar” seu espaço e ter o reconhecimento social.
Constata-se, a partir da operacionalização no estudo de caso, que os pastores se encontram, de certa forma, isolados dentro da estrutura das instituições, assim também nas suas redes relacionais, pois seus vínculos (laços íntimos) limitam-se aos parentes mais próximos e a poucos amigos. No caso específico da Fernanda, esta possui uma rede forte muito pequena e uma rede fraca muito grande, que pode ser um fator limitante para se obter apoio e prestação de cuidados. Os laços fracos numa rede são indispensáveis para a construção de oportunidades, quanto para a integração dos indivíduos a outros grupos sociais (Granovetter, 1973; Portugal, 2006).