O Estudo Nacional de Literacia: um novo conceito e um primeiro retrato das competências de literacia dos adultos
Em Portugal, a investigação sobre literacia tem um marco inicial claramente definido: o Estudo Nacional de Literacia (ENL), coordenado por Ana Benavente (Benavente, Rosa, Costa e Ávila, 1996), desenvolvido entre 1994 e 1996, e financiado pela Fundação Calouste Gulbenkian e pelo Conselho Nacional de Educação. O estudo teve bastante repercussão pública e introduziu, pela primeira vez no país, a palavra e o conceito de literacia, que desde essa altura passaram a integrar a linguagem quotidiana ao ponto de terem visto, de alguma forma, diluir-se a sua inicial consistência e pertinência analítica.
O ENL foi um trabalho pioneiro, até ao momento não replicado ou atualizado, no âmbito do qual foram alcançados avanços muito significativos para a investigação sobre a literacia na sociedade portuguesa, em pelo menos três níveis: na elaboração concetual e justificação científica e social da sua pertinência; na operacionalização, concretizada num amplo trabalho de investigação que combinou metodologias extensivas e intensivas; e na discussão das implicações sociais da literacia na sociedade atual.
Esta investigação surge no seguimento de estudos nacionais realizados no Canadá e nos EUA no início dos anos 1990 (Kirsch, Jungeblut, Jenkins e Kolstad, 1993; Montigny, Kelly e Jones, 1991) e é contemporânea da primeira fase de um programa de investigação, o IALS (International Adult Literacy Survey), que visa, pela primeira vez, concretizar uma pesquisa de caráter extensivo e comparativo, de âmbito internacional, sobre literacia. O IALS foi desenvolvido em três fases, cada uma delas integrando um conjunto de novos países. A primeira fase teve lugar em 1994, a segunda em 1996 e, finalmente, a terceira em 1998. Foram publicados três relatórios, no último dos quais se sistematizam e comparam os resultados dos 20 países participantes (OECD e Statistics Canada, 2000).
Num quadro mais alargado, importa mencionar que no período em que decorrem o ENL e o IALS (segunda metade da década de 1990) se assiste a um forte reconhecimento social e político, nacional e internacional, da importância dos processos educativos e da aprendizagem ao longo da vida, para a economia e para a sociedade como um todo. A aposta nas qualificações e na melhoria das competências da população adulta é considerada decisiva, reconhecendo-se que, no decorrer da vida, podem ser muito diversos os contextos de aprendizagem e os modos de aprender.
É nesta época que surgem documentos de referência como o Livro Branco sobre educação e formação publicado pela Comissão Europeia (Ensinar e Aprender, Rumo à Sociedade Cognitiva; Comissão Europeia, 1995), cujo foco central é o modo como a Europa poderia enfrentar as oportunidades e desafios da globalização, da expansão das tecnologias da informação e comunicação e das aplicações da ciência, considerando-se que apenas uma aposta na educação e formação poderia aumentar a competitividade europeia num contexto de globalização da economia. Um ano depois, 1996 é declarado o Ano Europeu da Educação e da Aprendizagem ao Longo da Vida e é publicado o relatório da UNESCO, coordenado por Jacques Delors - Educação, um Tesouro a Descobrir (Delors, 1996). Ainda em 1996, a OCDE publica o relatório “Aprendizagem ao Longo da Vida para Todos” e, em 1997, a UNESCO realiza a V CONFINTEA (Conferência Internacional de Educação de Adultos) que, na sua declaração final, avança uma conceção de educação e formação de adultos que remete para o conceito de sociedade educadora, numa perspetiva simultaneamente holística (abarcando todos os aspetos da vida social dos indivíduos) e transetorial (incluindo todas as áreas de atividade cultural, social e económica) (Instituto de Educação da UNESCO, 1998). Já na transição para o século XXI, no ano 2000, e novamente no quadro da União Europeia, é publicado o amplamente citado Memorando para a Aprendizagem ao Longo da Vida (Comissão Europeia, 2000). É neste contexto que pesquisas como o ENL e o IALS ganham particular relevância. Têm como foco os adultos e procuram conhecer as competências de literacia da população, independentemente dos contextos em que foram desenvolvidas, por estas serem entendidas como basilares em sociedades marcadas pelo conhecimento e pela necessidade permanente de aprender.
Situar historicamente o ENL e o IALS enquanto estudos em grande medida contemporâneos é importante para se entender os seus pontos de convergência e também o caráter singular de cada um deles. Começando pelos elementos de convergência, deve sublinhar-se, sobretudo, a adoção de um conceito nuclear comum, a literacia. Como atrás já se aludiu, em Portugal a palavra literacia estava, até aí, ausente, quer do discurso quotidiano, quer do científico, pelo que a sua clarificação concetual era fundamental.
As páginas iniciais do livro que resultou do ENL são dedicadas a essa explicação detalhada, a qual passava por contrapor o novo conceito (de literacia) a outros próximos, como o de alfabetização, face aos quais era necessário estabelecer as diferenças:
.“Se o conceito de alfabetização traduz o acto de ensinar e de aprender (a leitura, a escrita e o cálculo), um novo conceito - a literacia - traduz a capacidade de usar as competências (ensinadas e aprendidas) de leitura, de escrita e de cálculo. Tal capacidade de uso escapa, assim, a categorizações dicotómicas, como sejam "analfabeto" e "alfabetizado". Pretende-se, com aquele novo conceito, dar conta da posição de cada pessoa num continuum de competências que tem a ver, também, com as exigências sociais, profissionais e pessoais com que cada um se confronta na sua vida corrente. Define-se então literacia como: as capacidades de processamento de informação escrita na vida quotidiana. Trata-se das capacidades de leitura, escrita e cálculo, com base em diversos materiais escritos (textos, documentos, gráficos), de uso corrente na vida quotidiana (social, profissional e pessoal)” (Benavente, Rosa, Costa e Ávila, 1996: 4)
Assim definido, o conceito de literacia afasta-se não apenas do de alfabetização, mas também dos graus formais de escolarização: centrando-se na “(…) capacidade de uso dessas competências (de literacia), e não tanto na sua obtenção, permite distinguir entre níveis de literacia, por um lado, e graus de instrução formal, por outro” (Costa e Ávila, 1998: 131).
Esta elaboração concetual segue de muito perto a que vinha sendo desenvolvida no quadro de estudos nacionais, atrás já referidos, realizados nos EUA e Canadá. Estes partiam da expressão “literacy”, já existente e usada recorrentemente em língua inglesa, mas a proposta concetual que é desenvolvida enfatiza o uso, na vida quotidiana, da leitura e escrita (e não os processos que conduzem à sua aquisição, ou os diplomas que a atestam). No relatório final do IALS, em 2000, define-se literacia como “a capacidade de interpretar e utilizar informação escrita impressa nas atividades diárias - em casa, no trabalho e na comunidade - para atingir os objetivos pessoais e desenvolver os conhecimentos e os potenciais próprios” (OECD e Statistics Canada, 2000: X).
Ainda considerando a aproximação concetual entre o ENL e o IALS, ambos distinguem, enquanto dimensões da literacia, a literacia em prosa, a literacia documental e a literacia quantitativa. Segundo Irwin Kirsch, “é possível reconhecer que a estrutura de textos em prosa é qualitativamente diferente da estrutura associada a documentos, como gráficos e tabelas, e ainda distinguir uma terceira dimensão para as tarefas em que o processamento de informação escrita envolve alguma combinação com operações aritméticas” (Kirsch, 2001: 9). Assim, a literacia em prosa reporta-se ao processamento de texto corrido em livros, jornais, informações comerciais ou institucionais, enunciados, notas e outras mensagens; a literacia documental incide sobre o relacionamento com formulários, impressos, tabelas e outros materiais semelhantes. E, finalmente, a literacia quantitativa traduz a utilização de valores numéricos e a realização de operações aritméticas com base em materiais escritos.
Definida desta forma, a literacia é então entendida enquanto uma competência-chave (transversal e transferível) nas sociedades contemporâneas, sociedades profundamente marcadas pela escrita e nas quais os materiais escritos estão cada vez mais presentes em múltiplos contextos e suportes. Tem por isso um caráter multicontextual e multidimensional e é entendida como evolutiva, numa dupla perspetiva - social e individual: não apenas as exigências da sociedade a este respeito são dinâmicas (os usos, abrangência e suportes dos materiais escritos vão sofrendo transformações), como as competências dos indivíduos não são estáticas, podendo alterar-se (desenvolver-se ou regredir) no decorrer da sua vida. O conceito de literacia remete, por isso, para contínuos (e níveis) de competências, distanciando-se de classificações dicotómicas e redutoras, como as que opõem alfabetizados e analfabetos, ou escolarizados e não escolarizados.
Dirigir o foco analítico para as competências de literacia mobilizadas em situações relevantes do dia-a-dia colocava um enorme desafio metodológico: que indicadores poderiam ser mobilizados que possibilitassem conhecer, de forma extensiva e comparável, os níveis de literacia da população adulta? Como ir para além das medidas habituais, apoiadas quase exclusivamente nos diplomas escolares alcançados ou em autoavaliações de competências?
A resposta recaiu numa nova geração de estudos, metodologicamente muito inovadores, que operacionaliza o conceito de literacia através de um conjunto articulado de instrumentos, entre os quais se destaca a construção de indicadores de avaliação direta. Na impossibilidade de acompanhar, de forma extensiva, os sujeitos no seu dia-a-dia, observando “diretamente” as suas práticas, é construída uma bateria de testes que procuram simular, tanto quanto possível, situações do dia-a-dia que requerem a mobilização de competências de literacia. O ponto de partida é o levantamento de um conjunto de materiais escritos, em diferentes contextos, e com diversos formatos, podendo ou não ter imagens associadas, cuja descodificação/interpretação requer a mobilização de competências de literacia. É importante sublinhar que quer os materiais, quer as questões colocadas, remetem para situações do quotidiano com as quais a generalidade da população tem de confrontar-se no seu dia-a-dia e que implicam a mobilização de competências de literacia (interpretar corretamente os preços e descontos de produtos num folheto de supermercado, uma notícia de jornal, as instruções de um aparelho, a bula de um medicamento, etc.). Tendo por referência esses materiais, são formuladas questões que podem ser, nas suas versões mais simples, de localização de informação ou, em versões de maior complexidade, implicar a integração e o relacionamento de informação situada em diferentes partes do suporte, ou mesmo incluir operações mais complexas de processamento da informação que obrigam à geração de enunciados que não só relacionam vários elementos do suporte, como vão além da informação nele contida, procedendo a inferências e sínteses (Kirsch, Jungeblut e Mosenthal, 1998).
Segundo o modelo desenvolvido, é então necessário distinguir dois tipos de variáveis na interpretação do processamento da informação escrita: as variáveis de legibilidade ou estrutura, e as variáveis de processo. Enquanto as primeiras remetem para o tipo de materiais - os suportes da informação escrita - as segundas remetem para as tarefas, ou problemas concretos, cuja resolução implica a leitura dos referidos materiais, ou seja, para as operações de processamento da informação, cuja complexidade decorre não apenas do tipo de associação que é necessário estabelecer, como também do tipo de informação solicitada e da plausibilidade dos distratores. É da combinação entre o grau de complexidade dos materiais/suporte e a complexidade das questões propostas que decorre a possibilidade de antever, e interpretar teoricamente, o nível de literacia subjacente a cada uma das tarefas, o qual é depois verificado empiricamente a partir das respostas dos inquiridos (idem).
Foi este o quadro de referência teórico-metodológico mobilizado no ENL, que assim partilhou com o IALS não apenas uma conceção de literacia idêntica, mas também a grelha para a construção e análise dos instrumentos de avaliação das competências de literacia. Por outras palavras, quer o conceito de literacia adotado, quer as dimensões a operacionalizar (literacia em prosa, documental e quantitativa), quer ainda a grelha teórica desenvolvida por Kirsch, Jungeblut e Mosenthal para explicar o nível de dificuldade das tarefas e as competências por elas requeridas estiveram presentes em ambos os estudos.
As diferenças entre o ENL e o IALS surgem na concretização da operacionalização, etapa em que os dois estudos seguem caminhos distintos. Se o ENL foi assumido como uma pesquisa de âmbito nacional, construindo de raiz as tarefas de literacia a usar na avaliação direta, o IALS foi desenhado como estudo comparativo internacional, construindo uma prova comum a ser aplicada em todos os países participantes (regressaremos a este tópico mais à frente). É importante notar que a participação de Portugal no IALS chegou a ser ponderada, logo na primeira fase ou ronda, mas vários fatores - sobretudo de ordem financeira - acabaram por inviabilizar que o país fizesse parte do núcleo inicial de países participantes no IALS.
No plano empírico, a componente extensiva do Estudo Nacional de Literacia possibilitou a recolha de informação a uma amostra representativa da população, dos 15 aos 64 anos, residente em Portugal Continental, através de um inquérito por entrevista direta. Os dados foram recolhidos pelo INE, durante o ano de 1994, e abrangeram um total de 2.449 indivíduos. Tal como no IALS, o inquérito era constituído por duas partes distintas: um questionário que visava a obtenção de dados de caracterização sociográfica, de indicadores relativos às práticas (declaradas) de leitura, escrita e cálculo, e ainda de autoavaliação das competências de literacia; e, finalmente, uma prova em papel constituída por um conjunto diversificado de textos impressos e tarefas, dirigidos especificamente à avaliação direta de competências de literacia, o qual era respondido de forma autónoma pelos inquiridos.
Como se explica no enquadramento teórico-metodológico do ENL,
“tais textos, de natureza não escolar, tratavam assuntos relacionados com atividades quotidianas, apresentando situações com que os adultos se confrontam na sua vida. Os textos foram retirados de publicações e outros suportes impressos correntes (jornais, anúncios, folhetos, preçários, etc.). Não se pretendendo, porém, testar rotinas funcionalizadas, mas a capacidade de utilizar informação escrita necessária nas diferentes dimensões da vida adulta, os conteúdos de tais textos centraram-se em situações da vida pessoal, profissional e social bastante difundidas e de carácter o mais possível transversal à generalidade das condições de existência nas sociedades contemporâneas” (Benavente, Rosa, Costa e Ávila, 1996: 14).
Os resultados do estudo nacional proporcionaram um primeiro retrato da distribuição das competências de literacia em Portugal. Atendendo ao número de tarefas para os quais foi recolhida informação, optou-se por construir uma escala única de literacia, que incluiu tarefas de três tipos (prosa, documentos e quantitativo) (Benavente, Rosa, Costa e Ávila, 1996: 89)1. Os resultados mostraram, de forma muito evidente, que a maioria dos inquiridos apresentavam níveis de literacia muito baixos (Nível 0 = 10,3%; Nível 1 = 37%; Nível 2= 32,1%; Nível 3 = 12,7% e Nível 4 = 7,9%) (idem: 121).
Além de permitirem conhecer a distribuição das competências de literacia da população adulta portuguesa, os resultados obtidos contribuíram para aprofundar o conhecimento sobre o modo (profundamente desigual) como essas competências se encontravam distribuídas na população adulta, evidenciando não só a forte relação com a escolaridade (o principal “preditor” da literacia), mas também com os contextos de vida (pessoal, familiar, profissional) e com as práticas neles desenvolvidas. Foi assim possível evidenciar a relação entre literacia e educação de adultos, entendida no seu sentido mais abrangente: não é apenas a “escola” que surge associada às competências de literacia (incluindo as diversas modalidades de educação e formação de adultos que conduzem à certificação formal), também as atividades quotidianas podem ter um potencial educativo decisivo neste domínio. Os resultados permitiram ainda compreender as implicações sociais da literacia, com manifestações em diversos planos: no emprego e no rendimento, na cidadania e na participação cívica, na saúde e bem-estar, na educação ao longo da vida, na literacia familiar e sucesso escolar de crianças e jovens, entre muitos outros.
A par dos resultados substantivos alcançados, o ENL teve um outro conjunto de repercussões que merecem ser sublinhadas. Uma delas, já mencionada, foi a introdução do termo literacia no vocabulário académico e não académico; a outra foi o seu contributo no campo educativo, em particular na definição das políticas de educação e formação de adultos no final da década de 1990. O reconhecimento das aprendizagens desenvolvidas ao longo da vida, nos mais diversos contextos, e a elaboração de referenciais de competências orientados para competências-chave ou transversais, entre as quais as de literacia, são exemplos de instrumentos que puderam beneficiar da investigação realizada.
2. A participação no primeiro estudo internacional de avaliação de competências de literacia
Em 1998, somente dois anos após a publicação dos resultados do Estudo Nacional de Literacia, Portugal integrou, a convite da Comissão Europeia, a segunda ronda de países participantes no estudo internacional de literacia (OECD e Statistics Canada 2000). O convite, em certa medida inesperado, foi feito no seguimento de alguma controvérsia em torno dos primeiros resultados desse estudo (Carey, Bridgwood, Thomas e Ávila, 2000; Ávila 2008).
Haviam surgido críticas dirigidas à componente nuclear, e também mais inovadora, do IALS, implementada, pela primeira vez, numa pesquisa comparativa internacional: a avaliação direta da literacia, através de uma prova que simulava situações do quotidiano que implicavam o processamento e a interpretação de informação escrita. Assegurar a comparabilidade dos resultados dos vários países participantes, apesar das especificidades de cada um deles, através de uma prova comum, traduzida para as várias línguas era, inequivocamente, o grande desafio do IALS2.
Ora, essa comparabilidade foi posta em causa por alguns dos países participantes na primeira fase do IALS, em particular pela França, que contestou os resultados do país (abaixo do esperado), e impediu a sua divulgação e publicação, alegando que as comparações entre os países estariam fortemente enviesadas, não podendo por isso ser interpretadas como diferenças em termos de níveis de literacia (Blum e Guérin-Pace, 2000).
Para tentar identificar eventuais fontes de erro existentes no IALS, a Comissão Europeia promoveu então a realização de uma investigação, coordenada pelo Office for National Statistics do Reino Unido, que avaliou vários aspetos da metodologia do IALS, como a tradução dos materiais, os processos de amostragem e de recolha de informação, o tratamento das não-respostas, a construção das escalas de literacia, entre outros. Pretendia-se, assim, contribuir para a compreensão dos resultados da França, para muitos, inesperados, e, simultaneamente, propor um conjunto de “boas práticas” a serem implementadas em futuras avaliações extensivas de competências a nível internacional (Carey, 2000).
Portugal, através da equipa que tinha estado envolvida no ENL, é convidado a participar nessa avaliação por ter sido o único país europeu a ter desenvolvido um estudo extensivo, de âmbito nacional, de avaliação das competências de literacia da população adulta. Se o IALS fosse aplicado a uma amostra representativa da população portuguesa (como veio a acontecer), haveria a possibilidade de comparar os resultados de dois modos de operacionalização distintos, embora baseados em princípios teóricos e metodológicos comuns (Gomes, Ávila, Sebastião e Costa, 2002). Como atrás se referiu, no ENL, a prova para a avaliação direta da literacia foi desenvolvida com base em materiais/suportes que não foram adaptados ou traduzidos, por se encontrarem em circulação na sociedade portuguesa. Confrontar e triangular os resultados do ENL e do IALS constituía, por isso, uma oportunidade singular para testar empiricamente uma questão decisiva: a das relações entre a transversalidade sociocultural da literacia e a sua contextualidade nas sociedades atuais (Costa e Ávila, 1998).
Foi então aplicada, em Portugal, a prova de literacia usada no estudo internacional (depois de traduzida para português) e uma versão ligeiramente mais reduzida do questionário de caracterização social. A amostra, de 1.200 casos, representativa da população com idade entre os 16 e os 65 anos residente em Portugal Continental, foi desenhada pelo INE, que assegurou, igualmente, a recolha dos dados. Foi assim possível comparar duas pesquisas que, embora partilhando orientações concetuais e metodológicas comuns, haviam sido operacionalizadas com base em materiais distintos, num caso através de uma prova construída exclusivamente com materiais recolhidos na sociedade portuguesa (estudo nacional), e no outro através de uma prova elaborada com materiais provenientes de diferentes países (estudo internacional).
A principal nota a retirar da participação de Portugal no estudo internacional é, sem dúvida, o facto de os resultados obtidos serem praticamente idênticos aos do estudo nacional, o que contribuiu para a validação metodológica recíproca das duas pesquisas. Embora agregando os níveis 0 e 1 (considerados separadamente no ENL) e podendo distinguir as três dimensões da literacia (agregadas numa única escala no ENL), é evidente a quase sobreposição dos resultados: o país tinha, em 1994 e em 1998, uma larga maioria da sua população adulta com níveis de literacia muitíssimo reduzidos, situando-se 80% dos inquiridos, no máximo, nos níveis até ao nível 2 de literacia (Ávila, 2008; Carey, Bridgwood, Thomas e Ávila, 2000) (Figura 1).
O estudo internacional permitiu ainda acrescentar, ao conhecimento aprofundado da realidade nacional proporcionado pelo ENL, a comparação de Portugal com outros países. A Figura 2, publicada no relatório final do IALS, mostra, para a literacia em prosa, que a posição relativa de Portugal era muito baixa: representado muito perto da Hungria, Eslovénia, Polónia e Chile, o país registava uma das percentagens mais elevadas da população (cerca de 80%, como atrás referido), nos níveis de literacia mais baixos (inferiores ao nível 3) (OECD e Statistics Canada, 2000: 17). Aprofundamentos posteriores, permitem perceber a singularidade de Portugal face aos restantes países participantes no IALS, por combinar níveis médios de literacia muito baixos com níveis muito elevados de desigualdades na sua distribuição na população (Ávila, 2007, 2008).
Embora importante, o exercício de comparação internacional levado a cabo pelo IALS teve algumas limitações, desde logo devido ao reduzido número de países participantes (20 no total) e também ao perfil dos mesmos, evidenciando-se a ausência de países do sul da Europa (com a exceção de Portugal).
Assim, num primeiro nível, a participação portuguesa foi importante essencialmente por razões de ordem empírica. Para o IALS, a recolha de dados sobre Portugal significou a integração na pesquisa de um país do sul da Europa, o que, do ponto de vista da representatividade da pesquisa ao nível dos países abrangidos, se afigurava como sendo essencial. Para Portugal, e após o Estudo Nacional de Literacia (ENL), a participação no IALS representava a oportunidade de atualizar, e de prosseguir, a investigação sobre os padrões de literacia na sociedade portuguesa, desta vez com possibilidade de comparação dos resultados com os dos outros países participantes (Ávila, 2007, 2008). Mas a importância da inclusão de Portugal no IALS pode ser perspetivada num segundo patamar, de ordem metodológica e teórica (precisamente aquele que justificou o convite à participação). Portugal avaliou as competências de literacia da população adulta com base em duas provas distintas - a do IALS e a construída no âmbito do ENL - o que possibilitou a discussão, apoiada em resultados empíricos, de vários tópicos, não só de ordem teórica, mas também metodológica, que têm atravessado a investigação de natureza extensiva sobre a literacia nas sociedades contemporâneas.
Aprofundamentos teóricos e metodológicos após o IALS
Após o IALS, entre 2000 e 2006, a investigação internacional no domínio da literacia dos adultos conheceu outros desenvolvimentos.
Merece destaque, em primeiro lugar, um trabalho de reflexão teórica alargada que culminou numa proposta concetual de competências-chave. Conhecido pela sigla DeSeCo (Defining and Selecting Key Competencies:Theoretical and Conceptual Foundations), este projeto, coordenado pelo Instituto Federal de Estatística Suíço e realizado sob a égide da OCDE, juntou inúmeros especialistas, não apenas académicos (em especial das ciências sociais e humanas), mas também políticos, sindicalistas e dirigentes patronais, bem como investigadores ligados aos estudos extensivos internacionais neste domínio. O objetivo foi promover o debate entre esses vários especialistas, de modo a alcançar um entendimento comum sobre as “competências-chave para o século XXI”. O conceito de competências foi definido como a “capacidade de responder a exigências complexas num determinado contexto através da mobilização de pré-requisitos psicossociais (incluindo aspetos cognitivos e não cognitivos)” (Rychen e Salganik, 2003: 43).
Esta formulação, apesar de muito abrangente, contém alguns aspetos que merecem ser destacados. Um dos mais importantes é, sem dúvida, a ênfase colocada na utilização externa, ou seja, na resposta a solicitações e exigências que os indivíduos enfrentam em diferentes contextos (demand-oriented aproach). Neste sentido, e embora as competências sejam simultaneamente concebidas do ponto de vista da sua estrutura interna, sublinha-se que as mesmas se manifestam, e atualizam, nas ações e nos comportamentos (único nível a que podem ser apreendidas) e, sobretudo, que os requisitos e as exigências dos contextos são cruciais para a definição e seleção das competências “chave”. Um outro ponto a salientar é aquilo a que os autores chamam uma conceção holística da competência, que se traduz na contemplação de atributos de tipo muito diferenciado: além das capacidades cognitivas, o modelo proposto engloba também “motivações, emoções e valores” (idem: 45). Finalmente, o modelo concetual definido incide em competências individuais (e não coletivas, ou organizacionais), as quais devem poder ser aprendidas e ensinadas. Procuram assim excluir-se capacidades inatas e qualidades pessoais, colocando ao mesmo tempo no centro da abordagem o tema da aprendizagem ao longo da vida.
A proposta apresentada consistiu numa categorização das competências-chave em três grandes eixos: a) interagir em grupos sociais heterogéneos; b) agir autonomamente; e c) usar instrumentos de modo interativo (Rychen, 2003). Numa tradução menos literal e bastante mais concisa e clara quanto aos aspetos fundamentais, as competências poderão ser designadas, respetivamente, como relacionais, auto-orientadoras e operatórias (Costa, 2003: 188). As primeiras remetem para competências de caráter relacional, de cooperação, ou de resolução de conflitos. As segundas para a capacidade de auto-orientação, ou de agir autonomamente, nos diferentes contextos e esferas da vida. E, finalmente, as terceiras remetem para as competências de tipo operatório, das quais fazem parte as ferramentas que possibilitam a utilização da linguagem, de símbolos e de textos, o acesso ao conhecimento e à informação, e ainda o domínio das competências tecnológicas. Esta última categoria inclui, assim, o núcleo central de competências até aí operacionalizadas em grandes inquéritos internacionais, como IALS e o PISA, mas é mais abrangente. Além da literacia em prosa, da literacia documental e da numeracia, identificada como dimensão autónoma, são consideradas também competências associadas à utilização das tecnologias da informação e comunicação3.
Logo após o DeSeCo, e muito influenciado por este, realizou-se o ALL (Adult Literacy and Lifeskills Survey), um programa de investigação, coordenado pelo Statistics Canada e o US National Center for Education Statistics, cuja relevância decorreu não tanto do número de países participantes (apenas 11), mas sobretudo da forma como foi preparada a pesquisa. Através de um projeto que envolveu um vasto conjunto de especialistas e instituições, não só norte-americanas e canadianas, mas também europeias, procurou-se construir instrumentos válidos, interpretáveis, comparáveis e relevantes em termos linguísticos, culturais e geográficos (Murray e Clermont, 2005). Para o efeito, o trabalho de construção das tarefas destinadas à avaliação de competências envolveu um total de 35 países, entre os quais Portugal4, e 20 idiomas.
Com a divulgação dos primeiros resultados do ALL (Statistics Canada e OECD, 2005), foi também disponibilizado um relatório que sistematizou o complexo e longo trabalho de preparação dessa operação de pesquisa (Murray, Clermont e Binkley, 2005). Esse relatório contém elementos fundamentais para perceber a articulação com projetos de natureza teórica sobre competências-chave, como o DeSeCo, representando, em si mesmo, uma oportunidade para o aprofundamento da reflexão metodológica e teórica neste domínio de investigação.
A participação de Portugal no PIAAC
A partir de 2008 teve início um novo e muito ambicioso programa internacional de avaliação das competências dos adultos, o PIAAC (Programme for the International Assessment of Adult Competencies).
O 1.º ciclo decorreu entre 2008 e 2017, tendo nele participado 38 países (OECD, 2013, 2016, 2019b). Muito inspirado pelo debate promovido pelo projeto DeSeCo, pelos desenvolvimentos implementados no ALL, e também noutros estudos de avaliação de competências, o PIAAC é considerado um ponto de viragem na história dos estudos internacionais de avaliação de competências, embora não deixando de assegurar a comparabilidade com os que o antecederam.
Como mostram de forma detalhada Kirsch e Lennon (2017), o PIAAC representa o culminar de tudo o que tinha sido aprendido ao longo das várias décadas, nomeadamente em termos de conceção de instrumentos, de procedimentos de tradução e adaptação, e de interpretação de resultados em avaliações em larga escala. Possibilitou ainda outras inovações decorrentes da utilização, pela primeira vez, neste tipo de estudos, de computadores na recolha de informação: o desenvolvimento de uma prova “adaptativa”, em que as tarefas vão sendo administradas em função das respostas dadas, a classificação automatizada de itens de resposta aberta em várias línguas, e a inclusão de textos eletrónicos e materiais interativos.
Assim, no domínio da literacia foram alargados os materiais considerados, que deixaram de ser apenas materiais impressos, reconhecendo-se os múltiplos modos e suportes, em grande parte digitais, em que a interpretação de informação escrita hoje ocorre. Além disso, uma outra importante diferença consistiu no facto de a literacia ter passado a ser medida numa única escala, e não em várias escalas separadas. A numeracia foi concetualizada e operacionalizada como dimensão autónoma (e já não como uma dimensão da literacia) e foram ainda introduzidas duas novas áreas de inegável importância: a resolução de problemas em ambientes tecnológicos (simulando problemas do quotidiano cuja resolução implica o recurso a ferramentas como a pesquisa na internet, a utilização de uma folha de cálculo, do e-mail, entre outras) (PIAAC Expert Group in Problem Solving in Technology Rich Environments, 2009); e os “componentes de leitura”, fundamentais para aprofundar o conhecimento sobre o tipo de dificuldades dos indivíduos com baixos níveis de literacia (Sabatini e Bruce, 2009). De um modo geral, ao permitir uma avaliação baseada em computador, o PIAAC expandiu o que podia ser medido, passando a incluir tarefas de base tecnológica que refletem a natureza mutável da informação (Kirsch e Lennon, 2017).
Portugal integrou o núcleo inicial de países participantes no PIAAC5. Todas as etapas previstas para a primeira fase do projeto foram concretizadas: adaptação e tradução dos instrumentos cognitivos (versão papel e computador); adaptação e tradução do questionário de caracterização; desenho amostral e elaboração de manuais para os entrevistadores (pré-teste, pesquisa principal e materiais de divulgação do projeto); recrutamento, formação de entrevistadores e pré-teste de todos os instrumentos e procedimentos; análise dos resultados e revisão dos instrumentos. Com uma amostra de 1.200 casos, o pré-teste visou ensaiar todos os procedimentos a implementar na pesquisa principal (qualidade da tradução e adaptação de todos os materiais, procedimentos de classificação das respostas às tarefas, aplicação da prova em computador, entre outros). Como o primeiro ciclo do PIAAC introduziu, pela primeira vez, a possibilidade de a prova de avaliação de competências poder ser realizada em computador, o pré-teste foi desenhado também com o intuito de comparar os resultados de dois modos de administração (papel e computador) (Ávila et al., 2011).
Apesar de todo o trabalho realizado, a participação de Portugal no PIAAC foi inesperadamente interrompida em 2011 por decisão governamental, no seguimento da tomada de posse do XIX Governo Constitucional, a apenas um mês do início da recolha de informação para a pesquisa principal e após cerca de três anos de intenso trabalho e avultado investimento financeiro. Nos anos seguintes, foram feitas sucessivas tentativas de reentrada no projeto, em novas rondas (2.ª e 3.ª rondas do 1.º ciclo do PIAAC)6, o que permitiria tirar partido, pelo menos em parte, do investimento inicial feito, mas todas acabaram por não se concretizar.
Como resultado da interrupção da participação do país no primeiro ciclo do PIAAC, a investigação de caráter extensivo no domínio da literacia em Portugal, em particular aquela que é dirigida à população adulta, não teve ainda, 30 anos após o Estudo Nacional de Literacia e 28 anos após o IALS, novos desenvolvimentos.
Este cenário deverá alterar-se muito brevemente, pois encontra-se atualmente em fase avançada a primeira ronda do 2.º ciclo do PIAAC, contando com a participação de Portugal7. O novo ciclo integra, no essencial, os principais traços dos programas anteriores. Mantém o recurso a uma metodologia de avaliação direta de competências, tendo sido introduzidas algumas alterações que refletem novos avanços na investigação extensiva sobre literacia e outras competências-chave dos adultos, sobretudo relacionadas com a afirmação crescente dos meios digitais (Kirsch e Lennon, 2017; OECD, 2021). Destaca-se o facto de a prova deixar de poder ser administrada em papel (essa possibilidade coexistiu, no PIAAC, com a administração em computador), passando a ser usados tablets; o alargamento da concetualização e modo de operacionalização da numeracia, que passa a incluir, à semelhança do que já acontecia na literacia, um módulo de “componentes de numeracia” para aprofundamento do conhecimento sobre o processamento de informação quantitativa nos níveis de proficiência mais baixos; e a revisão e atualização do domínio dedicado à “resolução de problemas”, que assume uma formulação mais abrangente, considerando problemas relevantes numa série de ambientes e contextos, já não restringida a problemas de âmbito digital (idem: 13-39).
Embora o PIAAC, o ALL e o IALS se baseiem numa ferramenta concetual e modo de avaliação das competências de literacia equivalentes, é inequívoca a evolução desde os primeiros estudos, na década de 1990. Não só porque a sociedade se transformou profundamente, mudando as competências e as práticas de literacia, e outras, no dia-a-dia, mas também porque, simultaneamente, evoluíram os recursos tecnológicos que podem ser mobilizados na avaliação dessas mesmas competências. Em particular, o recurso a computadores ou tablets veio permitir a inclusão de indicadores que simulam a complexidade e diversidade da vida contemporânea, nas várias esferas (trabalho, familiar, pessoal), e também o desenvolvimento de novos modos de avaliação de competências (Computer-Based Assessment) (Kirsch e Lennon, 2017; OECD, 2021).
Os resultados do PIAAC, quando disponibilizados, serão fundamentais para atualizar o conhecimento sobre a literacia dos adultos e outras competências-chave na sociedade portuguesa (Rothes e Queirós, 2023). Mais do que comparar com os resultados do ENL e IALS, o que terá de ser feito com alguma prudência, os dados permitirão um retrato muito alargado, e comparável com outros países, das competências dos adultos nos domínios avaliados. Permitirá ainda explorar a relação dessas competências com múltiplos indicadores, como as práticas diárias de literacia e outras, as condições socioprofissionais, as qualificações escolares e profissionais, a participação em atividades educativas e de aprendizagem ao longo da vida, entre muitos outros.
A literacia e os estudos extensivos de avaliação de competências de literacia no século XXI
Os desenvolvimentos recentes dos estudos internacionais de avaliação de competências dos adultos têm vindo a refletir e a incorporar uma atualização da análise da literacia que reflete as mudanças que foram ocorrendo na sociedade. Em 30 anos, após o ENL e o IALS, a sociedade sofreu profundas alterações, muitas delas com repercussões nas práticas e competências de literacia.
Desde que foi inventada, há mais de cinco mil anos, na Mesopotâmia, a escrita tem marcado profundamente as sociedades. A sua evolução e de outras tecnologias que lhe servem de suporte (como a imprensa e, mais recentemente, as tecnologias digitais), associadas ao crescimento, que ainda hoje prossegue, do número daqueles que são capazes de a utilizar (com o aumento das taxas de escolarização da população) estão na base das principais marcas das sociedades contemporâneas. Nas sociedades atuais, da informação, do conhecimento e digitais, a presença de materiais escritos, de diferentes tipos, em diferentes formatos e para diferentes fins é de tal forma expressiva e transversal que muitas vezes não damos por eles, embora a sua importância seja cada vez maior. A crescente utilização de dispositivos tecnológicos (computadores, tablets ou smartphones) exacerbou ainda mais a importância da literacia pois neles a informação escrita é ubíqua: dificilmente alguém sem competências de literacia conseguirá tirar partido daqueles recursos tecnológicos e aceder a informação sobre empregos, serviços ou mesmo participar na vida social (OECD, 2021: 40).
A literacia tem sido investigada a partir de múltiplas perspetivas e áreas disciplinares. Dela têm-se ocupado, por exemplo, as ciências cognitivas, a psicologia educacional, a linguística, a história, a antropologia, a sociologia, entre outras. Uma tradição importante, no âmbito das ciências sociais, têm sido os estudos de literacia (literacy studies) (entre outros, Barton, Hamilton e Ivanic, 2000; Street, 1984). Estes têm estudado a literacia enquanto prática social e cultural “situada”, quer dizer, enraizada nos contextos sociais, e têm revelado as múltiplas utilizações de materiais escritos e os diferentes significados que lhe são atribuídos em comunidades e grupos sociais. Adotando o conceito de “literacias” (plural de “literacia”) esta linha de investigação evidencia a pluralidade e diversidade social e cultural da literacia, o modo como as práticas de leitura e de escrita estão socialmente inscritas no dia-a-dia das populações, e também como se transformam, acompanhando outras dinâmicas sociais. Este caráter plural da literacia tem sido sublinhado também por organismos internacionais, como a (UNESCO, 2004), que reforça a necessidade de essa pluralidade ser tida em conta no desenho de atividades e programas que visam a sua promoção.
Alguns autores e linhas de investigação têm, por sua vez, sublinhado as implicações cognitivas da leitura e da escrita para os indivíduos e para a sociedade como um todo. É o caso de Jack Goody (Goody, 1987, 1988, 2000) que nos seus trabalhos mostrou que a escrita não é apenas um meio de comunicação, ou de acesso à informação, pois modifica a comunicação do indivíduo consigo próprio, ou seja, tem efeitos cognitivos. Também David Olson (1994, 2016) tem sublinhado a relação entre literacia, pensamento sistemático, reflexividade e racionalidade. Na sociologia, Bernard Lahire (1993, 2003) entende que a leitura e a escrita constituem recursos para a ação, permitindo o que designa por “preparação reflexiva da ação” e “retorno reflexivo sobre a ação”.
Estas implicações ou “possibilidades” da literacia não podem deixar de ser tidas em conta quando esta é considerada uma competência-chave. A literacia pode ser problematizada e investigada enquanto recurso desigualmente distribuído e associado a múltiplas desigualdades sociais. À medida que a informação e o conhecimento se encontram cada vez mais na base da estruturação e organização da sociedade, a capacidade de produzir e interpretar informação escrita, nos seus diversos suportes e por referência às mais variadas situações, assume um caráter decisivo. Por outras palavras, as sociedades atuais caracterizam-se não apenas pela abrangência e transversalidade da presença da escrita, mas também pelo facto de, nessas sociedades, o domínio da escrita passar a constituir uma competência-chave (Ávila, 2008). A literacia converte-se, assim, num recurso de base, sem o qual podem ficar comprometidos, ou seriamente limitados, os acessos ao emprego, aos serviços de saúde, às oportunidades de aprendizagem ao longo da vida, entre muitos outros. A ausência de competência de literacia é cada vez mais considerada um fator de desigualdade social e de exclusão social (EU High Level Group of Experts on Literacy, 2012).
Aliás, o reconhecimento da literacia enquanto competência-chave continua bem patente em múltiplos documentos produzidos por organismos nacionais e internacionais que procuram intervir nesta área. Todos eles, de forma mais ou menos destacada, incluem a literacia enquanto competência fundamental, de base, que é necessário assegurar a todos os cidadãos. É o caso do RALE (Recommendation on Adult Learning and Education), da UNESCO (2016), que, na sua versão mais recente, continua a salientar a importância da literacia
“Literacy is a key component of adult learning and education. It involves a continuum of learning and proficiency levels which allows citizens to engage in lifelong learning and participate fully in community, workplace and wider society. It includes the ability to read and write, to identify, understand, interpret, create, communicate and compute, using printed and written materials, as well as the ability to solve problems in an increasingly technological and information rich environment. Literacy is an essential means of building people’s knowledge, skills and competencies to cope with the evolving challenges and complexities of life, culture, economy and society” (UNESCO, 2016: 7).
Também a Comissão Europeia continua a destacar a literacia como fazendo parte de um núcleo fundamental de competências-chave (European Commission, Directorate-General for Education e Culture, 2019). Embora a centralidade da literacia nas sociedades atuais continue a ser inegável, tem-se assistido, nos últimos anos, a um esbatimento da sua visibilidade analítica face a outras competências igualmente consideradas chave, ou fundamentais8. Paradoxalmente, o menor destaque dado em várias reflexões e documentos de referência à literacia ocorre ao mesmo tempo que o termo passou a ser apropriado enquanto sinónimo de conhecimentos e competências necessários em múltiplas áreas: literacia financeira, literacia digital, literacia mediática, literacia ambiental, literacia em saúde e muitas outras “literacias” passam a ser designações comuns. Embora na origem desta generalização esteja a ideia de que no mundo atual a aquisição de outras competências é crescentemente mediada pela palavra escrita, o tipo de atividades e preocupações para que aquelas definições hoje remetem pouco têm a ver com a leitura e com a escrita, como de forma certeira referem os autores da secção dedicada à explicação da concetualização de literacia seguida no 2.º ciclo do PIAAC (Rouet et al., 2021: 40).
Porém, como já se referiu, e ao contrário do que se poderia supor, no mundo digital a literacia não só não perde relevância, como surge reforçada. Constitui uma competência de base sem a qual o acesso e uso das tecnologias digitais é impossibilitado. Segundo Barton e Lee (2013), vivemos num mundo social mediado por textos (textually mediated social world), uma vez que os textos (de vários tipos) são centrais no mundo online. Continuam, por isso, a ser fundamentais as competências de literacia, que permitem a leitura e a interpretação de diferentes materiais escritos e também a sua produção.
Alguns autores têm analisado o que muda na literacia quando o “contexto” de utilização são os meios digitais, alegando que estamos perante a emergência de “novas literacias”, ou “multiliteracias”, uma vez que a literacia no mundo digital comporta desafios acrescidos, face aos colocados pelo impresso (entre outros, Barton e Lee, 2013; Baynham e Prinsloo, 2009; Forzani e Leu, 2017; Leu, Kinzer, Coiro e Cammack, 2004). Porém, se for recordado o caráter dinâmico da literacia, fica claro que não desaparecem as características anteriores, surgem sim novas exigências e práticas, dado que os textos são cada vez mais combinados com recursos digitais (que incluem muitas vezes hiperligações, múltiplos elementos gráficos, som, etc.). Se a literacia sempre foi multimodal (porque na leitura dos textos impressos, além da palavra escrita, também os efeitos gráficos e visuais condicionam a leitura e os modos de ler), agora, com o digital, esse caráter multimodal está ainda mais presente e a interpretação da informação torna-se mais complexa. Além disso, temos hoje acesso a informação muito mais variada (social e culturalmente), sendo necessário compreender a sua origem, como e por quem foi produzida, e também com que intenção. Finalmente, a capacidade de pesquisar informação, de interpretar os resultados das pesquisas e de fazer inferências corretas a partir da informação localizada são outras dimensões que têm também de passar a ser consideradas na análise da literacia (Rouet e Britt, 2017; Rouet et al., 2021).
São precisamente estas transformações que estão refletidas no modo como atualmente a literacia está a ser investigada em estudos comparativos internacionais. Como é explicitado no documento que detalha as orientações teórico-metodológicas seguidas no 2.º ciclo do PIAAC, a leitura digital constitui atualmente uma dimensão central para a participação ativa na sociedade, requerendo três tipos de competências, a saber: a) a capacidade de navegar em, e entre, documentos em rede; b) a capacidade de compreender e integrar fontes de informação múltiplas e por vezes contraditórias; e c) a capacidade de avaliar criticamente a informação apresentada (Rouet et al., 2021: 41-42).
O ponto mais importante a frisar nesta reflexão final, devidamente sublinhado logo no primeiro estudo realizado em Portugal, é o caráter dinâmico da literacia (Ávila, 2008; Benavente, Rosa, Costa e Ávila, 1996; Costa, 2003). Como bem referem Barton, Hamilton e Ivanic (2000), as práticas de literacia são tão fluidas, dinâmicas e em transformação como são as vidas e as sociedades das quais fazem parte. Não só o que se entende por literacia tem sempre de ser situado histórica e socialmente (e, nesse sentido, é um conceito em permanente revisão e atualização), como, do ponto de vista dos sujeitos, a literacia é também complexa e processual, transformando-se ao longo da vida.
Por tudo isto, cerca de três décadas após o ENL e o IALS, é urgente conhecer a situação de Portugal relativamente aos níveis de literacia da população adulta, retomando e prolongando uma linha de investigação que permita compreender, de forma atualizada, a complexidade da literacia enquanto prática, sempre em renovação, estreitamente ligada às transformações sociais. É ainda decisivo conhecer o modo desigual como se distribui e os seus múltiplos efeitos (no trabalho, na vida social e pessoal), assim como os processos e dinâmicas sociais que permitem, ou limitam, o seu desenvolvimento.