Introdução
A análise sociológica sobre a polícia e o grupo profissional dos polícias1 adquiriu, no pós anos 1980, uma maior visibilidade na Europa continental, produzindo, em conjunto com estudos realizados na sociologia, antropologia, psicologia, história e criminologia, para além dos estudos jurídicos e da ciência política, um património importante de conhecimentos (Fernández, 1990; Favre, 2001; Monjardet, 2003; Jobard e Maillard, 2015). Em Portugal os trabalhos de Durão (2008; 2010, 2012 e 2015) e de Lisboa e Teixeira (2015), entre outros, são um contributo a reter. É um património que incorpora abordagens teórico-metodológicas diversas, balizadas por contextos espácio-temporais particulares, em que ressaltam os modos como sociologicamente podemos investigar a polícia e os polícias no sentido da sua determinação biunívoca (Robles, 1993; Fernández, 1992).
A Polícia é uma entidade estatal corporativa, de natureza pública, com o monopólio legítimo do uso da força, da violência e do controlo social, exercido de acordo com regras estabelecidas por órgãos políticos do Estado. É, por sua vez, inteligível considerar a polícia como uma instituição e organização, sendo constituída por um grupo profissional específico, os polícias (Monjardet, 1985; Bayley, 2016; Fernández, 1992). Instituição que, por delegação do poder político, aplica e reelabora os valores e normas, socialmente instituídos e permitidos juridicamente, vigia as atitudes e comportamentos da população e faz a proteção e segurança pública, sendo configurada na sua natureza e objetivos pelo poder político. Organização de cariz burocrático (Weber, 1983) de perfil militar, hierarquizada, com processos de estandardização de comando, controlo e de imposição da disciplina interna, com modelos de operacionalização singulares, socialmente diferenciada, segmentada pela especialização, com cultura e clima organizacional próprios. Grupo profissional integrado por funcionários públicos com um mandato e uma licença (Hughes, 1981), formados no seio da própria organização policial, com carreiras, cuja natureza do trabalho é enformada pela incerteza, diversidade, perigosidade e risco, com códigos disciplinares e éticos, com elementos identitários e instâncias de representação política próprias (associações sindicais). Podemos considerá-lo como um grupo profissional de Estado. Note-se que só faz sentido sociológico perceber as plurais dinâmicas sociais que vão reconfigurando tal grupo profissional, se as enquadramos no contexto social onde insere a polícia como instituição e organização.
Sublinhe-se que no âmbito das transformações do trabalho, em Portugal, ocorre, nas décadas mais recentes, uma tendência para a afirmação dos grupos profissionais. Afirmação pela constituição de associações de autorregulação, que fecham os respetivos campos profissionais e estabelecem monopólios, a par da reafirmação dos grupos profissionais já instituídos2. Pretendem reafirmar a sua indispensabilidade social e assim ampliar as condições para a obtenção de um acréscimo de ganhos materiais, sociais e simbólicos, sedimentando as suas posições no mercado de trabalho ou para a reivindicação de novos atributos profissionais. Reconfiguram-se, por exemplo, em termos da natureza do seu trabalho, do uso das tecnologias de informação e comunicação e da (re)construção dos traços identitários (Champy, 2009; Vezinat, 2016). Encontramos alguns desses processos nos polícias, grupo profissional que adquiriu protagonismo na discussão e reivindicação quanto às suas atividades e condições de trabalho.
Tomando em consideração o indicado, no presente artigo propomos uma análise das relações entre a natureza do trabalho e os consumos de performance (medicamentos, suplementos alimentares e outros produtos naturais) para a melhoria do desempenho físico, intelectual e social, no grupo profissional dos polícias da Polícia de Segurança Pública (PSP).
O recurso aos consumos de performance para a gestão do desempenho, tanto no âmbito laboral como nos demais domínios da vida quotidiana, é um fenómeno emergente com a atual modernidade, que se inscreve num quadro mais global de novos usos dos medicamentos. Isto é, de usos que se situam para além das finalidades da saúde e da doença, às quais está associada a génese e o uso tradicional dos medicamentos (Gabe et al., 2015; Lopes et al., 2015). Trata-se de um fenómeno social com relativa disseminação cultural, designado na literatura sociológica como processos de farmacologização. Na sua aceção concetual, a farmacologização é definida como “a transformação de condições humanas em questões farmacológicas passíveis de tratamento ou melhoria” (Williams et al., 2008, pp. 851).
Não obstante a farmacologização se encontrar disseminada na vida quotidiana, esta adquire diferente amplitude em diferentes estruturas e contextos sociais. Os contextos de trabalho, em particular os respeitantes a grupos profissionais sujeitos a elevada pressão social, comportam uma injunção de condições propícias às disposições de adesão e de normalização dos novos usos dos medicamentos, designadamente para finalidades de gestão ou melhoria do desempenho. As mudanças na natureza do trabalho (e no seu modus operandi) e a especificidade dos fatores de pressão que daí decorrem, designadamente a intensificação dos ritmos de trabalho e novas modalidades de competitividade, constituem pressões apelativas para a procura de resposta na oferta medicamentosa. Os contextos de trabalho são igualmente espaços de sociabilidades, de experiências e expectativas partilhadas, onde se difunde informação e se valida - pela experiência prática - resultados de eficácia ou ineficácia de medicamentos e suplementos para finalidades de performance (Lopes e Rodrigues, 2015; Leon et al., 2019; Pawson e Kelly, 2021). Esta relação entre recurso a medicamentos em resposta a necessidades de performance é, por sua vez, indissociável das lógicas neo-liberais de individualização, nas quais, como referem Bloomfield e Dale (2015), os medicamentos dão uma solução individualizada a problemas que frequentemente têm uma origem estrutural de cariz social.
Para o equacionamento da problemática apontada, no presente texto, abordaremos, em primeiro lugar, a natureza do trabalho policial e, em segundo, os consumos de performance no seio do grupo profissional. Sublinhe-se que os resultados que apresentaremos inserem-se numa investigação mais ampla acerca das dinâmicas sociais subjacentes aos consumos de performance dos enfermeiros, polícias e jornalistas, cuja atividade de trabalho ocorre em contextos de elevada pressão para o seu desempenho profissional3.
Metodologia
O nosso estudo baseou-se numa metodologia mista que incluiu análise documental e, em fases sequenciais, grupos focais, inquérito por questionário e entrevistas semidiretivas. O trabalho de campo decorreu de 2019 a 2021 em todo o território de Portugal continental com predominância nas áreas metropolitanas de Lisboa e do Porto. Na primeira fase, com o objetivo de aprofundar a informação sobre a problemática em estudo e contribuir para as fases posteriores de desenvolvimento da pesquisa, incluindo a elaboração do formulário de inquérito, realizaram-se 2 grupos focais (um no Porto e um em Lisboa que envolveram 11 participantes). Na fase seguinte, com o objetivo de obter informação quantitativa sobre as perceções e práticas dos polícias relativamente ao objeto de estudo, foi aplicado o inquérito por questionário, via online, a um total de 195 polícias. Especificamente a população inquirida, apresenta os seguintes atributos: predominância dos homens, 92,8%; 49,2% com uma idade entre os 40 e os 49 anos, com 50 e mais anos, 35,9% e até aos 39 anos, 14,8%; impera o ensino secundário como nível de habilitações escolares, 82,5% e o ensino superior queda-se pelos 12,7%. Em termos de áreas funcionais da PSP, 78,5% são operacionais, 18,5% estão em serviços de secretaria e 3,1% em funções de direção e comando. Por sua vez, 7,2% têm 10 anos ou menos de antiguidade na profissão, 19,0% entre 11 e 20 anos e 76,4% mais de 20 anos. Os dados obtidos foram analisados com recurso ao SPSS. Na fase final do projeto, com o objetivo de aprofundar a informação obtida com o questionário, foram realizadas 14 entrevistas, através de videoconferência. Os dados foram codificados com recurso ao MAXQDA, a exemplo do que sucedeu com os grupos focais.
Contou-se com o apoio do Sindicato Nacional da Polícia e da Associação Sindical dos Profissionais da Polícia para a constituição do conjunto de participantes no estudo4. Os instrumentos de recolha e tratamento de informação foram aprovados pela Comissão de Ética do Instituto Universitário Egas Moniz. A todos os participantes foi disponibilizada informação sobre o projeto e indicaram o seu consentimento informado. Garantiu-se o anonimato e confidencialidade dos dados recolhidos.
Trabalho policial
2.1. Natureza e ritmo
Um dos eixos da investigação sociológica sobre os polícias concretiza-se na análise do que fazem para, deste modo, avaliar a natureza do seu trabalho. Manning (1977), Monjardet (2003), Robles (1997), Bittner (2003), Durão (2008) e Fassin (2013), alicerçados nas suas investigações etnográficas sobre os quotidianos do trabalho policial, explicitam respostas a tal questão. Incerteza, imprevisibilidade e enfrentamento de situações singulares que oscilam entre a violência física e a mediação, perigosidade e risco, aconselhamento e apoio, discricionariedade e autonomia na ação são atributos que se destacam, conjugados com tarefas rotineiras e modos de as operacionalizar, regulamentados pela organização policial. Atributos que, igualmente, variam com os modelos de policiamento e o posicionamento dos polícias na divisão de trabalho e na estrutura hierárquica da corporação. Os polícias afetos à designada “execução”, sobretudo os que realizam patrulhas (“patrulheiros”), estão necessariamente sujeitos à incerteza no decorrer do seu turno e à variabilidade de tarefas de acordo com o contexto social, económico e cultural da sua zona geográfica de atuação. Ao que se acrescenta o uso de meios baseados na informatização, redes de comunicação e da inteligência artificial como ferramentas de vigilância, controlo e recolha de prova para possíveis efeitos punitivos.
Perspetivamos a natureza do trabalho a partir de fatores como: horário; ritmos de trabalho; atividades profissionais; exigências e a exposição aos riscos profissionais. No presente ponto, abordaremos os dois primeiros e no seguinte os restantes.
O tempo dedicado ao trabalho, na qualidade sempre de tempo social, é estruturante da trajetória de vida, instituindo-se como um separador entre diferentes vivências dos agentes sociais. Dos polícias inquiridos (195), 54,9% têm um horário diário até 8 horas e os restantes 9 horas e mais. A maioria indica um regime de horário com turnos (75,4% e destes 87,6% com rotatividade noturna), 20,0% com horário fixo e os outros, um horário “flexível sem turnos”, o que não se afasta do padrão de outras atividades profissionais. Mensalmente, 12,8% dos polícias não estão habitualmente de serviço no sábado, 8,2% uma vez, 25,6% e 53,3%, respetivamente duas, três e mais vezes. Situação idêntica encontramos face ao domingo. O trabalho nestes dias é disjunto das temporalidades dos respetivos agregados familiares com ou sem conjugalidade, conquanto seja inerente ao trabalho policial, que igualmente impõe a total disponibilidade temporal. Por sua vez, 63,5% assinalaram que, no mês que antecedeu a aplicação do inquérito, foram convocados para o trabalho, em menos de 24 horas (entre uma e três vezes, 49,7% e quatro e mais, 13,8%), como indica um dos entrevistados: “É muito imprevisto, ligam-nos de um momento para o outro, surgiu isto…portanto, nós temos uma matriz que muitas vezes não é seguida por circunstâncias do serviço e acontece muito isso nos eventos, os próprios dias de folga são cortados muitas vezes, porque são necessários os meios policiais» (E10).
Ao serviço normal juntam-se os “serviços remunerados” 5(“gratificados”), exercidos por 45,1% dos inquiridos. Em média de horas semanais, 70,5% trabalham 10 horas ou mais (menos de 5 horas, 11,4% e de 5 a 9 horas, 18,2%). Provavelmente a adesão dos polícias, a tais “serviços” traduz a procura de um complemento remuneratório, concretizando-se num prolongamento do tempo de trabalho semanal.
Quer seja na distribuição e organização semanal das horas de trabalho, quer na intensidade, assiste-se a uma reconfiguração, nas décadas mais recentes, do ritmo, sempre no sentido de uma mobilização mais intensiva da mão de obra (Svendsen, 2013). No caso dos polícias, provavelmente tal processo também ocorreu. Em termos de ritmo de trabalho percebido, 63,1% apontam como muito/excessivamente intenso e 36,4% como normal. O primeiro grau caracteriza-se por 73,2% serem operacionais e 40,6% terem uma idade superior aos 50 anos. Daqui decorre talvez a menor capacidade para desempenhos mais intensos, sobretudo no enfrentamento de contextos violentos que requerem capacidade acrescida de resistência e destreza física. A conjugação do prolongamento do horário de trabalho com a imprevisibilidade da ação e os ritmos podem constituir para os polícias um fator de pressão social global para o seu desempenho profissional.
2.2. Exposição aos riscos
Os fatores de pressão social indicados permitiram-nos obter uma primeira leitura sobre a natureza do trabalho policial. Importa aprofundar tal aspeto convocando as atividades que enformam o quotidiano de trabalho, que são indissociáveis dos demais aspetos caracterizadores daquela natureza (Tabela 1). Atividades do tipo emocional (controlo emocional, gestão de conflitos e capacidade de comunicação) e intelectual (concentração, memorização e agilidade mental) registam valores mais elevados nos graus muito/extremamente exigente, enquanto do tipo físico (força, resistência e agilidade físicas) prepondera o normal. Em parte, contrapõem-se à imagem estereotipada do polícia como tendo um trabalho fundamentalmente físico. Tal atributo depende das mudanças na natureza do trabalho deste grupo profissional, que têm vindo a ocorrer no passado recente, incorporando para além das funções tradicionais de vigilância/patrulha (roubos ou acidentes rodoviários e de trânsito, por exemplo), tarefas polivalentes cada vez mais diversificadas e que exigem a mobilização das emoções, como a intervenção em conflitos interpessoais, violência doméstica ou relações de vizinhança: “se eu contar as vezes que usei o físico, nem são tantas, em 20 anos, vinte/trinta vezes e talvez já esteja dando um número exagerado” (E12).
Questionar a natureza do trabalho policial e o grau de exigência que lhe subjaz implica ter presente as determinantes enquadradoras da função da polícia no seio do Estado, as suas formas de organização, cultura e clima organizacional e os modelos de policiamento (Bayley, 2002). Desde a década de 2000, a PSP vem afirmando o seu cunho civilista (Torres, 2020), adjetivando-a parcialmente como uma “polícia da tranquilidade pública” (Monjardet, 1996) em que existem práticas integrantes do modelo de policiamento de proximidade de apoio, ajuda e resolução de conflitos (Durão, 2012). A mudança de modelo de policiamento conduz à reconfiguração da natureza do trabalho (tarefas e procedimentos) como, por exemplo, o relacionamento com a população. É a assunção da tendência europeia de reconfiguração dos corpos policiais (Newburn, 2008), no sentido da rutura com a militarização, o aumento da especialização interna por tipos de ações e simultaneamente a sua diversificação, a formação cada vez mais específica dos polícias e, especialmente, o desenvolvimento de modelos de policiamento de proximidade ou de comunidade (Bayley, 2016).
Face às atividades que caracterizam a natureza do trabalho policial, quais os tipos de exigência que são requeridos? Várias evidências empíricas importantes para questionamento sobressaem dos dados da (Tabela 2 6. Abordamos duas.
Em primeiro, a exigência emocional destaca-se quanto ao “Lidar com a violência doméstica/contra idosos” (83,1%) e com a violência verbal (78,5%). Ações que vincam o atributo relacional da polícia como estruturante da sua vivência profissional. A última coloca em causa a autoridade do polícia, isto é, o seu mandato e licença (Hughes, 1981). A outra remete para a noção de cidadania, extravasando o seu ethos profissional. Ambas envolvem as emoções e as relações com a população, destacando-se o aumento do escrutínio por parte desta. Constitui-se um processo de interação particularmente exigente que gera diferentes formas de pressão sobre o desempenho profissional policial. As culturas policiais são um dos elementos que enformam a ação dos polícias e por isso mesmo são importantes na problematização das emoções e daquele tipo de relação (Monjardet, 1996; Westmarland, 2008). O destaque da exigência emocional vai de encontro ao atual interesse da sociologia pelas articulações entre trabalho e emoções, após um longo período em que estas foram invisíveis aos sociólogos quando estudavam as organizações (Lively, 2006). Problematizar as emoções como a interseção entre o sujeito, por via da sua expressão corporal, e o social é uma rutura com a versão psicologista e naturalista (Turner, 2007; Jeantet, 2018; Hochschild ,1983). As emoções são estruturantes da vivência em contextos de trabalho. O cruzamento entre as disposições e as práticas dos sujeitos, neste caso os polícias, e a natureza do seu trabalho (ao nível micro do quotidiano imprevisível e polivalente e ao nível macro da organização da instituição policial) é crucial para a análise das emoções. O polícia é um ator, no sentido dado por Goffman (1975), interpretando um papel prefigurado pela corporação policial, em que a ocultação das suas emoções, quando em ação, é imperativa. A construção da condição de ator ocorre na sua formação para a profissão, mas fundamentalmente na socialização interpares. Na vida quotidiana, o papel do polícia vai sendo recomposto, conforme, entre outros aspetos, a natureza das situações enfrentadas (perigosidade, população abrangida, local geográfico e número de polícias envolvidos), bem com os valores, a ética e cultural policial (Bayerl et al., 2014).
Em segundo, “Lidar com o escrutínio dos meios de comunicação social/redes sociais” apresenta valores percentuais elevados na exigência intelectual e emocional, a par de “Comunicar com a população”. O escrutínio é um instrumento de vigilância, de julgamento e de (re)construção das representações sociais sobre os polícias como grupo profissional, e da polícia como instituição de Estado. Pode influenciar o desempenho dos polícias: «Hoje em dia, toda a gente filma, toda a gente vê, a contenção é maior, a pressão é maior, temos de ter ali um rigor» (E09). Com efeito, o uso das tecnologias de informação e comunicação conduz à tecnovigilância (Tavares et al., 2022), nas suas múltiplas formas, que se expande aceleradamente na atualidade. A polícia e população vigiam-se mutuamente. Por sua vez, numa relação imbricada com o anterior fator, “Comunicar com a população”, num modelo de policiamento de proximidade e de aconselhamento e ajuda, faz apelo a competências de saber-estar e de saber-fazer que estão nas antípodas da imagem tradicional dos polícias.
O trabalho policial é uma atividade caracterizada pelo alto grau de exposição ao risco que se inscreve e institucionaliza na sua vida profissional. Aos inquiridos foi-lhes pedido que classificassem o seu grau de exposição face a determinados riscos (que são elementos das condições de trabalho e fatores de pressão sobre o desempenho). É um exercício de perceção sobre o risco (subjetivo e avaliativo) que ocorreu algures, que implica memorização, seleção e tipificação. Tal perceção é produto do cruzamento entre as dimensões individuais, sociais e culturais, que proporciona outra leitura, a agregar às já enunciadas, sobre os polícias. Centrando-nos no grau muito/extremamente elevado, salienta-se a perda de autoridade dos polícias e a sujeição a agressões físicas (Tabela 3). Numa situação de intervenção policial tais riscos podem acontecer em simultâneo, reforçando-se entre si. Manter a autoridade é axial para a organização policial e para os seus profissionais. Não o fazer é anular um dos pilares que justificam a existência de uma instituição de controlo da denominada “ordem pública” e, assim, não sustentar e proteger o próprio sistema político (Bayley, 2016). Vários estudos sobre o quotidiano de trabalho dos polícias, como por exemplo o de Robles (1997) e Monjardet (2003), apontam para a centralidade da autoridade no quadro das relações entre os polícias e população. Por sua vez, essa autoridade pode estar associada a práticas discricionárias, no sentido da interpretação da aplicação da lei (Newburn e Reiner, 2012).
A violência física contra os polícias, que geralmente é acompanhada pelas verbais, foi adquirindo um espaço analítico cada vez mais significativo. Como indica um dos nossos entrevistados:
«A primeira vez que sou confrontado com a iminência de ser agredido, fizeram-me mesmo frente (…) Há sempre um tipo de pressão, já me ameaçaram tirar a farda não sei quantas vezes, já perdi a conta, somos muitos confrontados (…) Já estive perante situações em que deitei a mão ao braço de um indivíduo, a dissuasão não funcionou, porque ele partiu para a situação pior, mas usei o gás e com a força de outros colegas, estava eu e mais dois, conseguimos maniatar o indivíduo, sem danos corporais para ele, sem danos corporais para nós também» (E08).
Para Dieu (2017), os polícias são sujeitos a uma violência simbólica e social vinculadas por representações sociais que diabolizam o grupo. Violência que tem consequências. Ellrich (2018) demonstra a existência de um decréscimo do empenhamento na organização policial por parte dos polícias violentados (no caso da Alemanha), enquanto Simmler et al. (2019) concluem, pelo contrário, que existe um acréscimo da punitividade por parte daqueles. Ainda que se verifiquem agressões físicas, a perceção dos polícias não é independente, na conjuntura atual, da forte mediatização deste tema (agressões a polícias) e do conteúdo ideológico dos próprios discursos profissionais que tendem a enfatizar a perda de autoridade deste grupo profissional, ao longo do tempo. A perda de autoridade no exercício das suas funções e as agressões físicas aos polícias surgem predominantemente associadas nos discursos destes atores a fatores de índole político-social.
Revisitando a Tabela 3, é ainda relevante um outro aspeto: se associarmos os graus elevado e o muito/extremamente elevado, o risco principal é "a intervenção em incidentes de ordem pública sem o número adequado de agentes" (83,4%), que está relacionado com fatores organizacionais associados à escassez de recursos humanos, fator muito presente no discurso dos polícias (conforme pudemos constatar nas entrevistas e nos grupos focais) e das organizações representativas do grupo profissional.
3. Consumos de performance na gestão do desempenho profissional
Abordámos um conjunto de fatores caracterizadores do trabalho policial na PSP - horário, ritmos, atividades e exigências profissionais e exposição aos riscos. A análise aponta para que se possam qualificar como fatores de pressão no quotidiano daquele trabalho. Passaremos a equacionar a interligação entre eles e os consumos de performance (medicamentos, suplementos alimentares e outros produtos naturais) para a melhoria do desempenho físico, intelectual e social no seio dos profissionais de polícia.
3.1. Âmbito e natureza dos consumos de performance
Para a problematização do nosso tema, é relevante, em primeiro lugar, caracterizar os consumos de performance no quotidiano dos polícias. Para o efeito, elaborou-se uma tipologia de dez finalidades de uso de medicamentos e suplementos, que foram incluídas no questionário já referido na metodologia. Estas finalidades de uso7, foram posteriormente organizadas em duas categorias mais amplas relativas ao âmbito dos consumos: (i) consumos de âmbito cognitivo relacional - dormir, manter-se acordado, concentração, memória, descontrair e melhorar o humor; (ii) consumos de âmbito físico- corporal - aumentar a energia física, emagrecer, desempenho sexual e aumentar a massa muscular. Por sua vez, cada uma das finalidades foi desdobrada por “medicamentos” e “suplementos/produtos naturais”, de modo a captar-se a proporção de cada uma destas categorias nas diferentes finalidades de uso.
A dimensão global destes consumos e a sua expressão por finalidades foi aferida a partir de diferentes tipos de indicadores: indicadores simples (referentes a cada finalidade) e indicadores compósitos (resultantes da agregação de diferentes finalidades). Como se pode observar na Tabela 4, o indicador global de consumo (74,4%) - constituído pelo total de inquiridos que indicaram “já usou ou costuma usar” medicamentos ou suplementos para alguma ou várias das finalidades elencadas - aponta para uma expressiva disseminação deste tipo de consumos. De entre aqueles que indicaram recorrer a esses consumos, 23,4% estavam a usar medicamentos ou suplementos para essas mesmas finalidades no período em que o questionário foi aplicado. Também 34,5 % daqueles que consumiam já o tinham feito para quatro ou mais finalidades.
Indicadores de consumo | |
---|---|
Indicador de consumo global a) | 74,4 |
Indicador de consumo atual b) | 23,4 |
Consumo (per capita) para quatro ou mais finalidades c) | 34,5 |
Nota: a) Total de inquiridos que “já usou ou costuma usar” para uma ou mais finalidades; b) Total de consumidores que “estava a usar”; c) Total de consumidores que já tinha consumido para quatro ou mais finalidades
Passando dos indicadores globais para um nível de leitura mais fino, obtém-se uma panorâmica mais explícita da preponderância de cada uma das finalidades em análise no quadro mais global dos consumos de performance. Essa leitura remete para a tabela abaixo, onde se identifica a percentagem de inquiridos com consumos em cada uma das finalidades. Dos consumos com maior prevalência no âmbito cognitivo-relacional, destacam-se os usos para dormir (36,4%), memória (32,3%) e descontrair/acalmar (31,3%); no âmbito físico corporal, destacam-se a energia física (39,0%) e massa muscular (20,0%).
Finalidades | Já usou ou costuma usar |
---|---|
Dormir | 36,4 |
Manter-se acordado | 6,7 |
Concentração | 25,6 |
Memória | 32,3 |
Descontrair/acalmar | 31,3 |
Humor/boa disposição | 11,3 |
Energia física | 39,0 |
Emagrecer | 18,5 |
Desempenho sexual | 12,8 |
Massa muscular | 20,0 |
(N=195)
Nota: a) Valores referentes a respostas múltiplas
A duração dos consumos - tendo por referência a “última vez que usou” o medicamento ou suplemento - é outro dos indicadores a considerar8. Trata-se de um indicador que permite aferir do teor pontual ou prolongado da necessidade de apoio para o desempenho em questão. De entre os consumos com maior regularidade de uso pontual (1 a 3 dias), destacam-se os destinados a dormir (21,6%), descontrair/acalmar (22,6%) e desempenho sexual (34,3%). De entre os consumos de maior durabilidade (mais de 1 mês), destacam-se os destinados à concentração (66,7%), melhorar o humor/ boa disposição (66,7%), emagrecer (62,3%) e massa muscular (78,7%). Constata-se que, globalmente, o padrão dominante de durabilidade é o consumo de longa duração.
Este padrão de consumos, inclui tanto o uso de fármacos como de suplementos, os quais são geralmente usados em alternância ou em complementaridade e, com menor frequência, usados em exclusividade. Nos consumos com recurso predominante a fármacos, prevalecem as finalidades destinadas a: humor (40,9%), dormir (40,8%), descontrair (39,3%) e desempenho sexual (36,0%); nos consumos com recurso predominante a suplementos, prevalecem as finalidades de: massa muscular (74,4%), energia (50,0%) e emagrecer (47,2%); nos consumos com predomínio de uso, alternado ou simultâneo, de ambos os tipos de recursos, prevalecem as finalidades de: concentração (62%), descontrair (52,5%) e memória (50,8%). Constata-se, nestes resultados, a relativa intermutabilidade entre o farmacológico e o natural, que vem caracterizando o universo dos consumos de performance, e que vem contribuindo para a expansão destes, igualmente constatada em estudos anteriores (Lopes, 2010; Lopes et al., 2012; Rodrigues et al., 2019).
A componente geracional expressa nestes consumos, aferida através da variável idade (até 39 anos; 40-49 anos; 50 e mais anos), revela-se na desigual prevalência das finalidades de consumo, na comparação dos segmentos etários. A faixa etária mais jovem é a que apresenta maior incidência de consumos nas finalidades de âmbito físico-corporal, com decréscimo progressivo na proporção inversa da idade (p.0.031). Nas finalidades de âmbito cognitivo-relacional o efeito etário de diferenciação é residual, o que evidencia a maior transversalidade desta categoria de consumo na amostra em estudo. Contudo, a variação etária readquire expressão na análise nominal dos consumos por finalidades. A faixa etária mais jovem prevalece nos consumos para: energia física (55,2% - p.0.004), massa muscular (44,8% - p.0.000) e emagrecer (24,1%), aos quais acrescem os consumos para a concentração (37,9% - p.0.035). A faixa etária intermédia prevalece no consumo para: “descontrair/acalmar” (36,5%) e apresenta, também, elevada expressão no consumo para a “energia física” (44,8%). A faixa etária mais velha prevalece nos consumos para: “dormir” (41,4%), “memória” (38,6%) e desempenho sexual (22,9% - p.0.007).
As diferenças geracionais que se acentuam nos consumos de performance físico-corporal remetem para um duplo ângulo de análise sobre a instrumentalidade corporal neste grupo profissional. Para além do investimento corporal tradicionalmente associado aos requisitos do trabalho policial, expresso nesta categoria de consumos, acrescem investimentos de ordem estética e identitária (Westmarland, 2017). Note-se que, apesar da prevalência dos consumos físico-corporais na faixa mais jovem, a exigência física da profissão é avaliada abaixo do grau médio de exigência (3,17)9 de outras componentes da atividade profissional (exigência intelectual, 4,1 e exigência emocional, 4,28). Indicia-se nestes dados um novo padrão de culturas corporais - alimentadas pelas transformações no trabalho e pelo crescente contexto de farmacologização das opções estéticas e corporais (Featherstone, 1991) - cujo impacto identitário justifica futuros aprofundamentos analíticos. Esta emergente componente estético-corporal/profissional revelou-se também nas entrevistas, como o ilustram os seguintes excertos:
“Eu acho que os polícias mais novos, um bocadinho pelo culto do corpo e do ginásio, andam nos ginásios, consomem muita proteína, não digo que sejam substâncias proibidas, mas as proteínas, aquelas substâncias próprias do ginásio” (E05). “Certos colegas é mais por aí, passa mais pela imagem, do que pela compleição física para o serviço, penso que é mais por aí; alguns sim, mais pela imagem, os metrossexuais, do que pelo serviço” (E04). “(…) é sem dúvida uma questão de estética, o polícia onde estiver é o centro das atenções, toda a gente olha para nós, o polícia se estiver fardado numa praça, toda a gente olha para o polícia. (…) eu não me considero velho, gosto de me sentir bem com a minha aparência, gosto de vestir a farda e sentir-me bem com ela” (E02).
3.2. Consumos de performance e fatores de pressão laboral
A par das diferentes motivações e das finalidades diversas do recurso a consumos de performance neste grupo profissional, como veremos os dados obtidos apontam para uma associação entre estes consumos e os fatores de pressão laboral. Retomando os resultados apresentados sobre o posicionamento dos polícias face ao seu trabalho, atrás analisados, elegemos três fatores de pressão laboral: ritmos de trabalho; exigência da atividade profissional10; exposição a riscos11.
Como se pode verificar na síntese dos resultados que se apresenta na Tabela 6, as médias globais de cada um dos fatores de pressão mostram níveis de intensidade mais elevados entre os profissionais que recorrem a consumos de performance do que entre aqueles que não apresentam quaisquer consumos neste âmbito. Essa diferença é estatisticamente significativa nos dois primeiros fatores e menos diferenciada no terceiro (a exposição aos riscos).
Considerando as categorias de finalidades de consumo com maior expressão, atrás identificadas (Tabela 5) - designadamente para a energia física (39,0%), dormir (36,4%) e descontrair/acalmar (31,3%) - constata-se a consonância da tipologia de consumos com a natureza dos fatores de pressão aqui referenciados. Saliente-se que, de entre os indicadores que constituem a variável exigência profissional, é preponderante a “exigência emocional” (média 4,26), e na variável “exposição a riscos” é preponderante a “perda de autoridade” (média 4,53). O que estes resultados revelam é também o efeito das disposições de adesão ao uso de auxiliares de performance - suscitado pela sua progressiva difusão social e cultural (Williams et al., 2008; Gabe et al., 2015) - e nas quais se reconfigura a avaliação da própria pressão e a maior intolerância a esta. É neste contexto de exigências, de pressão e de subjetividades partilhadas, que se vai constituindo a legitimidade cultural e a hierarquia de legitimidade dos consumos de performance. Uma hierarquia de legitimidade assente, no caso dos contextos de trabalho, na expectativa de melhoria e/ou facilitação do desempenho e da competitividade (Ballantyne, 2021; Leon et al., 2019).
Fatores de Pressão | Consumos de performance | Média | Desvio-padrão | Sig. t-test |
---|---|---|---|---|
Ritmos de trabalho | Com consumo | 3,78 | 0,629 | p=0,010 |
Sem consumo | 3,54 | 0,613 | ||
Exigência da atividade profissional | Com consumo | 3,86 | 0,479 | p=0,014 |
Sem consumo | 3,69 | 0,503 | ||
Exposição a riscos | Com consumo | 4,10 | 0,986 | p=0,197 |
Sem consumo | 3,96 | 1,048 |
(N=195. Com consumo=145; sem consumo=50)
A satisfação com a profissão é um outro dado passível de ser lido como um duplo indicador (de causa e efeito) de pressão laboral. Encontrou-se uma expressiva associação entre a “insatisfação profissional” e a maior prevalência de recurso a consumos de performance. Entre os profissionais que recorrem a estes consumos, cerca de metade (49,7%) posiciona-se em “extremamente/muito insatisfeitos ou insatisfeitos com a profissão”; entre aqueles que não consomem, a insatisfação apresenta uma proporção significativamente menor (32% - p.0.050). Esta diferenciação em torno da variável consumo é mais acentuada quando se consideram os consumos de âmbito cognitivo-relacional, onde a insatisfação profissional corresponde a 54,1% daqueles que recorrem a este padrão de consumo e a 33,7% dos que não consomem (p.0.016). Relativamente aos consumos de âmbito físico-corporal, as diferenças são substantivamente menores: entre os que consomem e os que não consomem, os valores são, respetivamente, 49,5% e 45,1% (p.0.050).
3.3. Consumos de performance: entre a aceitação, rejeição e invisibilidade
Não obstante a expressão que os consumos de performance apresentam no quotidiano dos polícias, a relação destes profissionais com esses consumos reveste-se de alguma ambivalência quanto à sua aceitação.
Para aferir das disposições sociais de aceitação e/ou rejeição deste tipo de consumos, bem como da perceção dos profissionais sobre a disseminação dos mesmos em contexto laboral, recorreu-se a um conjunto de asserções, incluídas no questionário, que se apresentam na Tabela 7. Como se pode verificar, os consumos para a gestão das exigências físicas, intelectuais e de interação - asserções 1, 2 e 3 - apresentam uma distribuição média de manifesta concordância com o recurso a medicamentos e/ou suplementos, para lidar com as exigências físicas e intelectuais, e manifestamente abaixo da concordância no que respeita às exigências da interação. Corrobora-se nestes dados uma hierarquia de legitimidade para estes consumos (Lopes et al., 2015; Lopes e Rodrigues, 2015), já atrás constatada, que privilegia as exigências intrínsecas à natureza do trabalho e à adesão aos recursos que facilitem a capacidade de respostas a tais exigências. Diferentemente, as exigências de interação, em geral perspetivadas como competências extrínsecas à natureza do trabalho, torna-as (culturalmente) menos ilegíveis para a legitimidade dos consumos. São resultados que também corroboram análises equivalentes, produzidas noutros estudos sobre medicamentos e suplementos em contextos de trabalho (Sales et al., 2019; Leon et al., 2019).
Discordância total/ parcial (%) | Concordância Total / parcial (%) | Média a) | |
1. As exigências físicas do trabalho de polícia tornam aceitável o recurso a medicamentos e/ou suplementos para aumentar a energia. | 37,8 | 62,2 | 3,62 |
2. As exigências intelectuais do trabalho de polícia tornam aceitável o recurso a medicamentos e/ou suplementos para melhorar o desempenho. | 41,8 | 58,2 | 3,53 |
3. As exigências de interação do trabalho de polícia tornam aceitável o recurso a medicamentos e/ou suplementos para gerir o relacionamento com os outros. | 56,4 | 43,6 | 3,18 |
4. Apenas um reduzido número de polícias recorre a medicamentos e/ou suplementos para melhorar o seu desempenho profissional e/ou pessoal. | 3,3 | 46,7 | 3,35 |
5. Nos locais de trabalho, em geral, há alguma relutância em os(as) polícias falarem dos seus próprios consumos de medicamentos e/ou suplementos para melhorar o desempenho profissional e/ou pessoal. | 25,6 | 74,4 | 4,25 |
(N=195)
Nota: a) Numa escala de 1 (discordo totalmente) a 6 (concordo totalmente). Ponto médio 3,5
Esta hierarquia de legitimidade, atribuída aos consumos de performance, também apresenta variações em função das duas variáveis já atrás consideradas: idade e consumo. Os profissionais mais novos (até 39 anos) apresentam médias de concordância mais elevadas e de discordância mais reduzida (asserções: 1 (4,07), 2 (3,79), 3 (3,32)). Os mais velhos (50 e mais anos) apresentam médias mais baixas de concordância e de discordância mais elevada (asserções: 1 (3,52), 2 (3.54), 3 (3,18)). Esta discreta variância estatística não deixa de reconfirmar o efeito geracional, já atrás sinalizado, presente nas disposições culturais de aceitação e rejeição do recurso a estes consumos. Quanto à variável consumo, o seu efeito diferenciador é particularmente evidente: a concordância é mais elevada entre quem recorre a consumos de performance (asserções: 1 (3,79), 2 (3,70), 3 (3,35); e a discordância acentua-se entre aqueles que não recorrem a estes consumos (asserções: 1 (3,13), 2 (3,04), 3 (2,69)). A variação em torno do consumo apresenta-se estatisticamente significativa para cada uma das 3 asserções (T-test p=0,002 (1); 0,000 (2); 0,019 (3)).
Quanto à perceção da disseminação destes consumos entre o grupo profissional dos polícias - asserção 4 da Tabela 7 - verifica-se que prevalece a ideia de que os consumos estão relativamente disseminados (53,3%), o que é expresso na discordância com a afirmação de que “apenas um reduzido número de polícias recorre a estes consumos”. Esta discordância é também mais acentuada entre aqueles que recorrem a estes consumos (55,3%) do que entre os que não recorrem (47,6%). Também em termos etários se registam variações que reconfirmam o efeito geracional: a discordância com a asserção 4 é mais generalizada entre os mais novos (72,0%) do que entre os mais velhos (52,5%). A perceção de que estes consumos estão relativamente disseminados foi manifesta também nas entrevistas.
“Sei que há muita gente que toma calmantes, toma outras coisas, mesmo prescritas, toma bastante, isso é o que os faz aguentarem-se” (E09). “Existe (consumos) nos dois lados, da parte psicológica e da parte também do culto do corpo, tenho essa noção e, às vezes, é notório, nota-se perfeitamente, mesmo que não falem sobre o assunto” (E03). “Não tenho dúvidas que mais de metade do efetivo, se não recorreu, em breve vai recorrer a um médico para que seja prescrito, seja para dormir, seja para andar menos tenso, seja para o que for (E08).
Paralelamente à perceção da disseminação destes consumos, há igualmente a perceção de que existe uma certa invisibilidade social sobre os mesmos - asserção 5 da Tabela 7. Regista-se uma elevada concordância (74,4%) quanto à afirmação de que, nos locais de trabalho há alguma relutância em falar dos seus próprios consumos de performance. Esta perceção é mais generalizada entre quem consome (77,6%) e menos entre quem não consome (65,2%). Também neste item, a idade introduz uma significativa variação, sendo que a perceção da relutância é mais generalizada entre os mais velhos (82,2%) e menos entre os mais novos (57,7% - p.0,044).
De entre os fatores que potenciam a relutância na partilha da informação sobre os próprios consumos, e a mantêm no domínio privado, é de referir a presença de um certo conflito ideológico entre a imagem profissional e o recurso a consumos de performance. Desde logo, porque são consumos socialmente passíveis de ser imputados a uma imagem de “insuficiência pessoal”, com efeito estigmatizante e impacto na própria identidade profissional (Cooper, 2021); por outro lado, o estrito controlo institucional (por via clínica) sobre diferentes tipos de consumos, a que estes profissionais estão sujeitos, e o desvio social que estes consumos (mesmo sendo legais) possam representar, com as eventuais sanções daí decorrentes, contribuem para este relativo fechamento ou “consumo oculto” (Smith e Land, 2014).
).(Consumo de antidepressivos, ansiolíticos) É um tabu, ninguém fala disso (…) Por duas situações, uma porque é sinal de fraqueza, quem assume, parece que está a dar um sinal de que não é mentalmente forte para aguentar. Segundo, o que o Comando vai pensar de mim.” (E12). “É sempre um tabu o uso desse tipo de medicamentos, é normal (…). Nós estamos numa esquadra, no mínimo, 50 a 60 homens numa esquadra, há sempre um comentário, há sempre um cochicho, eu acredito que haja em todas as instituições, em que trabalhe muita gente junta.” (E02
Esta invisibilidade dos consumos e a relutância em falar dos seus próprios consumos desvanece-se em circuitos mais fechados de sociabilidades, os quais, não raro, se constituem como fontes de informação e validação das opções e finalidades desses mesmos consumos.
“Eu com as pessoas que tenho mais proximidade, elas falam do produto, dos efeitos, do que faz, se este faz perder peso, não vejo nenhuma relutância, aqui estamos a falar na parte física. Na outra parte, aí sim, já é diferente” (E03). “As pessoas depois de começarem a falar das enxaquecas, da dor de cabeça, «não estou a conseguir dormir tão bem» e há um ou outro colega que indica, dá ali uma sugestão, isso é recorrente” (E01).
O percurso analítico, aqui apresentado, sobre os consumos de performance entre os profissionais de polícia, deixa em evidência a coexistência entre a expressiva disseminação do recurso a medicamentos/suplementos para gerir as pressões do quotidiano, pessoais e laborais, ou para investimentos hedonistas e identitários, e uma relativa parcimónia e discrição na partilha desta informação com os outros. Embora estes consumos não se circunscrevam aos requisitos das pressões laborais, como foi sendo sinalizado, é nestes que aparentemente adquirem tração e legitimidade social.
Conclusão
A análise sociológica dos polícias como profissionais confronta-se com obstáculos decorrentes da natureza e funções que toma a polícia, como instituição de Estado, no âmbito das dinâmicas sociais e especificidades que as atividades daqueles tomam face às dos outros profissionais. Não deixámos de ter isto presente quando, ao longo do texto, fomos equacionando as relações entre a natureza do trabalho e os consumos de performance para a melhoria do desempenho físico, intelectual e social dos polícias da PSP. O trabalho policial caracteriza-se pela imprevisibilidade e ação face a situações de mediação, de aconselhamento, de apoio, de violência, a par de tarefas rotineiras e regulamentadas em que é possível a existência de autonomia, sendo enformado por fatores de pressão social de ordem diversa. É, por sua vez, um trabalho investido de autoridade de Estado, que confere um poder legítimo aos polícias, conquanto sujeitos a um escrutínio, cada vez mais denso, interno à polícia, das magistraturas judiciais e da população e meios de comunicação social, usando frequentemente as tecnologias de informação e comunicação.
A conjugação do prolongamento do horário de trabalho com a imprevisibilidade da ação e os ritmos são fatores relevantes que se enquadram nos processos de reorganização da PSP, em curso nas últimas décadas, com a existência de outros modelos de policiamento. Constituem-se como fatores de pressão que, no quotidiano de trabalho, se interligam com outros, como a exigência da atividade profissional e a exposição aos riscos. Ao invés da ideia corrente de que a ação policial se baseia estritamente na violência física, é dada, pelos inquiridos, uma ênfase à dimensão emocional face aos vários tipos de exigência, que se configuram como ações específicas das forças de segurança, embora algumas delas exigindo um forte empenhamento pessoal como, por exemplo, a violência doméstica/contra idosos. Por sua vez, o trabalho policial é enformado pelo elevado grau de exposição ao risco, em particular face à eventual perda da autoridade e violência física, elemento relevante nas mudanças nas relações com a população.
O mapeamento das atividades dos polícias adquire outro significado se o equacionarmos face aos consumos de performance. Desde logo, observa-se a importância que o uso de medicamentos e suplementos tem no grupo profissional, com uma predominância não só daqueles que se inscrevem nas finalidades de âmbito cognitivo-relacional, mas concomitantemente a associação entre os produtos de natureza farmacológica e os naturais e o consumo de longa duração para quase todas as finalidades. Uma parcela significativa dos inquiridos mais jovens dirige os seus consumos para as finalidades de âmbito físico-corporal expressando, deste modo, uma motivação para uma cultura corporal que não subsiste nos outros grupos etários. Estamos perante um padrão que, relacionado com os fatores de pressão social sobre o trabalho policial, permite concluir que os polícias mais expostos a tais fatores são os que mais recorrem aos consumos de performance. No mesmo sentido, encontram-se os polícias que avaliam de modo insatisfatório a sua situação profissional. Os consumos de performance são genericamente aceites pelos polícias, justificados principalmente pelas exigências físicas do seu trabalho, e sendo percecionados como disseminados no seio do grupo profissional. Contudo, o controlo, e possível penalização, que a instituição policial exerce sobre os consumos, a desvalorização social e profissional face aos pares, a dissonância entre a imagem formal e pública dos polícias, como representante do Estado, e o uso dos consumos de performance concorrem para a invisibilidade destas práticas.
A reflexão que desenvolvemos permite concluir da associação entre os consumos de performance, como uma prática corrente, e o desempenho físico, intelectual e social dos polícias da PSP. Fatores de pressão social integrantes da natureza do trabalho policial constituem-se como configuradores de um contexto laboral, diverso em tarefas, permeado pelo risco e pelo julgamento público e institucional, funcionando como geradores daquela associação. As atuais transformações na natureza do trabalho da polícia (ou no seu modus operandi) e o lugar que os consumos de performance ocupam enquanto “auxiliares de desempenho” requerem a ampliação e aprofundamento futuro deste enfoque analítico. É de realçar que a nossa incursão analítica sobre a expressão dos consumos de performance entre os polícias, que revela os novos fatores de pressão sobre esses consumos e a transformação nas formas de gestão do desempenho profissional, é um equacionamento analítico ainda em início.