Introdução
Ao estudarmos o recrutamento das elites, isto é, ao retratarmos um grupo de poder, não estamos obviamente apenas a satisfazer uma mera curiosidade; estamos, acima de tudo, a indagar o elo de ligação entre os atores (neste caso as elites administrativas) e as instituições (administrativas e políticas) em que atuam e com as quais interagem.
É isso que justifica que a análise dos perfis ou dos padrões de recrutamento surja como dimensão essencial em estudos de referência sobre a relação entre políticos e burocratas2, uma questão que evidentemente não se esgota na análise das suas atitudes políticas ou dos papéis desempenhados no processo de decisão.
Longe vão os tempos em que o estudo das relações entre política e administração em Portugal era secundarizado (Magone, 2011: 758), e em que estávamos reduzidos a investigações exploratórias (Portas e Valente, 1990; Lopes, 2000), com o caso português ausente dos estudos comparativos internacionais (Page e Wright, 1999).
Conhecemos hoje melhor, por exemplo, as relações entre governos, partidos políticos e administração pública (Silva e Jalali, 2016; Silveira, 2021) e até mais especificamente os padrões de recrutamento das elites administrativas, quer numa perspetiva histórica, quer principalmente no período democrático (Almeida, 2007; Matos, 2000; Nunes, 2003, 2015; Teixeira, 2010; Bilhim, 2014; Ferraz, 2020).
Apesar de até ao XIX Governo Constitucional (2011-2015) o método da nomeação política ter prevalecido na provisão dos cargos dirigentes de topo, a literatura disponível aponta para o predomínio de critérios de profissionalização na escolha dos dirigentes de topo da administração central: recrutamento interno à administração pública; escolha de pessoas com carreiras longas nos ministérios em que exercem funções dirigentes; peso significativo das carreiras especiais do Estado (Carmo, 1987; Rocha, 2001; Nunes, 2015; Ferraz, 2020). Onde a politização se tem manifestado de forma um pouco mais saliente é nas estruturas mais recentes, institutos públicos e gabinetes ministeriais, bem como na administração periférica do Estado (Almeida, 2007; Nunes, 2015; Silva et al., 2016; Silva, 2017).
Nem mesmo quando analisamos o fenómeno da politização da administração pública apenas a partir do número de nomeações políticas ao dispor de cada governo (enquanto patrocinato), como sugerem Kopecky e Mair (2006) ou mesmo Suleiman (2003), obtemos um quadro muito diferente (Mascio et al., 2010).
Apesar disso, persiste no imaginário político do Portugal democrático a ideia de uma administração pública “partidarizada”, um pouco à semelhança aliás do que se passava durante o período da Regeneração3 (Almeida, 2007; Nunes, 2015).
É assim que, num balanço de final de mandato em matéria de reforma do Estado, vemos o XIX Governo constitucional (PSD+CDS) apresentar da seguinte forma a criação da CRESAP: «Para acabar com a partidarização da Administração Pública (itálico nosso), o Governo criou a Comissão de Recrutamento e Seleção para a Administração Pública (CRESAP), uma entidade independente que organiza os concursos para os altos cargos da Administração Pública»4.
Antes da criação CRESAP, e de acordo com o estatuto do pessoal dirigente de 1999, o recrutamento de diretores-gerais, subdiretores-gerais e equiparados era feito por escolha, isto é, por nomeação política, «de entre dirigentes e assessores ou titulares de categorias equiparadas da Administração Pública, para cujo provimento é exigível uma licenciatura»5
Com a criação da CRESAP6, o membro do governo competente para assinar o despacho de nomeação passou a ter de escolher um entre três dos candidatos propostos por um júri. Simultaneamente, o mandato dos dirigentes de topo foi alargado para 5 anos (renováveis uma vez), o que pode ser visto como um reforço da autonomia destes face aos ciclos de 4 anos das legislaturas (Bilhim, 2014).
Esta medida não foi de resto revertida pelo Governo seguinte, do Partido Socialista, que se limitou a sugerir a possibilidade de, mantendo os procedimentos concursais, passar a nomear conjuntamente a equipa de diretores-gerais e subdiretores-gerais (ou equiparados) (Público, 2022).
Ao mesmo tempo, ao abrigo do programa PREMAC (Programa de Redução e Melhoria da Administração Central do Estado), lançado pelo Governo PSD/CDS em 2011, e de acordo com dados divulgados pelo próprio Governo no referido exercício de balanço, «foi possível reduzir 37% das estruturas e de cargos dirigentes das Administrações Públicas, 20% da Central, 67% da Periférica, 24% da Indireta e 49% dos órgãos consultivos e outros»7. Ao mesmo tempo, terão sido extintos 290 cargos de direção superior de um total de 715.
Esta tendência para a redução de estruturas e cargos dirigentes, de resto, já vinha de trás e está fortemente associada ao contexto de restrições orçamentais que marcou o País desde a viragem do século e que se traduziu, logo entre 2005 e 2009 (Governo PS), no programa PRACE (Programa de Reestruturação da Administração Central do Estado).
Na sequência destes dois programas de reestruturação administrativa, o número de estruturas desceu para quase metade: de 444 para 220. Essa redução terá sido até em geral mais acentuada no PRACE (corte de 33,3%) do que no PREMAC, já que neste último caso a eliminação de estruturas foi acompanhada pela criação de outras de tipo semelhante (Portugal, 2013: 57). Onde o PREMAC se distingue do PRACE é na eliminação de estruturas da administração periférica do Estado (Portugal, 2013: 57), o que não deixa de ser significativo, já que estas eram desde sempre mais permeáveis a uma politização de tipo partidário e clientelar (Nunes, 2015).
Deste modo, se medirmos a politização apenas em função do número de cargos de nomeação à disposição dos Governos partidários, podemos dizer que houve lugar a uma despolitização da administração pública, iniciada em 2005 e intensificada a partir de 2011 com o PREMAC e a CRESAP, que vieram reduzir e limitar as nomeações do pessoal dirigente de topo.
Interessa, contudo, continuar a olhar para o fenómeno da politização não apenas a partir do número de cargos e estruturas (patrocinato), mas também a partir dos perfis dos nomeados, na linha, por exemplo, dos trabalhos de Tavares de Almeida (1995) e Luc Rouban (2004).
Trata-se aqui de saber se haverá um antes e um depois da CRESAP e das reestruturações da administração central do Estado (PRACE e PREMAC) em matéria de politização e autonomia do pessoal dirigente de topo.
Operacionalização e conceptualização
A introdução de concursos para a nomeação do pessoal dirigente de topo, combinada com a continuação da obrigatoriedade de publicação dos currículos dos nomeados em Diário da República8, oferece-nos a oportunidade de avaliar o impacto daquela reforma institucional nos graus de autonomia e politização revelados pelo perfil de recrutamento da elite administrativa portuguesa.
Para medir esse impacto, podemos comparar o perfil dos dirigentes de topo da administração pública, traçado há 20 anos (Nunes, 2003), portanto bastante antes da redução das estruturas administrativas e da introdução dos procedimentos concursais para pessoal dirigente de topo, com o perfil dos diretores-gerais, gestores públicos e equiparados, nomeados já após estas reformas administrativas mais recentes.
Foi esse exercício que nos propusemos realizar aqui, colocando em confronto os perfis das nomeações de dois governos de natureza semelhante: o XIV Governo Constitucional (GC) e o XXII GC; dois governos do mesmo partido (Partido Socialista) e com o mesmo tipo de maioria no parlamento (relativa). Só se distinguem precisamente nas condições de recrutamento da sua elite administrativa: o segundo Governo já se encontra condicionado pelos procedimentos concursais da CRESAP no provimento dos cargos de direção superior.
Note-se que o XXII GC (2019-2021) é o primeiro Governo em que os dirigentes de topo em funções já foram todos nomeados depois da introdução dos procedimentos concursais da CRESAP, e já sem terem estado durante um período demasiado alargado em regime de substituição ou mesmo em nomeação sem concurso, como ainda aconteceu entre 2011 e 2013, o que teoricamente pode ter dado uma vantagem competitiva aos dirigentes que se submeteram a concurso já na segunda metade do Governo Passos Coelho.
Procuraremos também matizar esta confrontação entre dois governos separados por 20 anos, contextualizando-a no âmbito mais vasto de dados (quantitativos e qualitativos) já apresentados para um período mais longo, de 1999 a 2009 (Nunes, 2015).
Para garantir comparabilidade com essas investigações anteriores (Nunes, 2003; Nunes, 2015), optou-se por analisar aqui também apenas os currículos dos dirigentes equiparados a diretores-gerais (a grande maioria) ou a gestores públicos: diretores-gerais, diretores regionais, diretores de serviços de estudo e conceção, secretários-gerais, inspetores-gerais e presidentes de institutos públicos.
Estamos, portanto, a falar dos dirigentes de topo de todas as estruturas da administração direta e indireta do Estado, sendo que neste último caso (indireta) só incluímos os institutos públicos, deixando de fora entidades administrativas independentes, órgãos consultivos e estruturas semelhantes. A tabela seguinte mostra-nos o número de estruturas dos serviços centrais (administração direta e indireta) e desconcentrados da Administração do Estado existentes, antes e depois das restruturações da Administração Central do Estado (PRACE e PREMAC), e o número de dirigentes que cujos currículos obtivemos através de pesquisas no Diário da República.9
Estruturas antes do PRACE (2005)10 | 444 |
Estruturas pós-PRACE e PREMAC (2005-2015) | 224 |
Currículos Governo Guterres (1999-2002) | 187 |
Currículos Governo Costa (2019-2021) | 140 |
Fontes: Portugal, 2013 e autor
Recorrendo a investigações anteriores, vamos assim complementar os resultados do método prosopográfico11 da análise curricular com informações qualitativas complementares obtidas através de entrevistas12 realizadas com membros do governo que estiveram em funções na primeira década deste século, em ministérios, posições e ciclos políticos diferentes (Nunes, 2012).
Também para garantir comparabilidade com as referidas análises anteriores, voltamos agora também a seguir as mesmas referências para a identificação dos indicadores de politização, entendida como politização de controlo, conforme apresentado na tabela seguinte (Page e Wright, 1999; Rouban, 2004).
Assim, consideramos de novo os seguintes indicadores de politização: o facto de se chegar a um cargo dirigente de topo em idade jovem (inferior a 40 anos); o facto de se ter feito carreira no sector privado; a passagem por gabinetes ministeriais; a ausência de experiência dirigente; e o exercício de cargos políticos.13
Consequentemente, foram identificados como indicadores de autonomia profissional: o facto de se ter mais de 50 anos; carreira no sector público; carreira no ministério onde os dirigentes exercem essas funções; experiência dirigente; experiência dirigente de topo em diferentes ciclos políticos; pertença a uma carreira especial do Estado.
Padrões de recrutamento | Indicadores |
---|---|
Politização clientelar | Partidarização das nomeações |
Politização de controlo | Ligação a partidos, mas também (e principalmente) ligação personalizada a políticos. Perfil típico: elites administrativas mais jovens e oriundas do setor privado ou dos gabinetes ministeriais. |
Autonomia profissional | Perfil típico: elites administrativas mais velhas, com carreiras longas na administração pública. |
Fonte: Elaboração própria do autor
Uma grande continuidade
Pensando nos indicadores de autonomia profissional, o primeiro que salta à vista é o da elevada percentagem de dirigentes recrutados com 50 ou mais anos. Eram 66,2% na viragem do século e representam agora 65,9%, perfeitamente em linha com o que já se verificara para toda a primeira década deste século (Nunes, 2012: 140).
XIV GC | XXII GC | |||
---|---|---|---|---|
Idade | N | (%) | N | (%) |
< 40 | 3 | 2,0 | 1 | 0,7 |
40-49 | 47 | 31,8 | 46 | 33,3 |
50-59 | 79 | 53,4 | 61 | 44,2 | aberbach
> 60 | 19 | 12,8 | 30 | 21,7 |
TOTAL | 148 | 100 | 138 | 100 |
Fonte: elaboração própria do autor
Há aqui uma aparente estabilidade nos critérios etários de recrutamento, sendo que numa análise mais fina até se verifica uma intensificação do número daqueles que são nomeados para estes cargos já depois dos 60 anos, o que acompanha a tendência geral de envelhecimento verificada na administração pública em geral, onde a idade média também subiu de 43,64 em 2011 para 47,42 anos em 2020 (Público, 2022).
Não será completamente de excluir a hipótese de estarmos perante o efeito acrescido dos júris da CRESAP na valorização do fator experiência. É que recordando igualmente o que se conhece dos perfis de recrutamento durante os Governos Barroso e Sócrates, parece que a entrada em cena dos procedimentos concursais coincide com a travagem da tendência para o aumento do recrutamento de quadros mais jovens (menores de 40 anos) (Nunes, 2012: 141): 8,5% durante o Governo PSD/CDS; 9,6% no Governo Sócrates; e apenas 0,7% agora.
Mas, tendo em conta o envelhecimento geral da administração pública, também não podemos rejeitar outra hipótese explicativa, que é a de estarmos perante a mesma geração de dirigentes que já exercia estes cargos no passado e que os continua a exercer agora, numa idade mais avançada.
De facto, 73% dos atuais dirigentes revelam já ter exercido este tipo de cargos (intermédios e de topo) no passado, uma percentagem que em todo o caso também não difere muito da verificada há 20 anos (69,2%), como se pode ver na tabela seguinte:
XIV GC | XXII GC | |||
---|---|---|---|---|
Recrutamento e Experiência de Chefia | N | % | N | % |
Carreira no sector privado | 18 | 9,8 | 15 | 10,8 |
Carreira no sector público administrativo | 162 | 89,0 | 124 | 89,2 |
Carreira no ministério onde é diretor-geral | 99 | 55,6 | 77 | 55,8 |
Foi anteriormente dirigente da função pública | 130 | 69,5 | 100 | 73,0 |
Fonte: elaboração própria do autor
Os dados desta tabela 4, de resto, confirmam e reforçam um padrão geral de recrutamento com baixos níveis de politização, independente do enquadramento legal vigente.
Não havendo limitações legais em relação ao lugar de origem para o provimento destes cargos dirigentes, a verdade é que a elite administrativa portuguesa continua a ser recrutada no interior da administração pública e frequentemente no próprio ministério onde exerce as atuais funções, o que sugere forte especialização e persistência de baixos níveis de mobilidade interministerial, só possível com quadros mais generalistas ou politizados.
A percentagem de dirigentes oriundos da administração pública e recrutados no mesmo ministério em que exercem funções de topo é praticamente a mesma ao fim de duas décadas, não se registando assim, em geral e a este nível, qualquer influência das doutrinas mais privatísticas da chamada Nova Gestão Pública.14
Deste modo, cruzando este dado com os intervalos etários atrás mencionados, não surpreenderá notar que 72,2% dos diretores-gerais em funções no XXII Governo Constitucional tem já mais de 20 anos de função pública, percentagem que acentua muito ligeiramente a tendência verificada no período de 1999-2009, estudado anteriormente (Nunes, 2012: 161).
Deste modo, mais do que um efeito imediato da introdução de regras concursais, tudo indica que estamos perante padrões de recrutamento muito consolidados ao longo do tempo, certamente motivados pela baixa competitividade salarial destes cargos em relação ao que é praticado setor privado15, mas provavelmente privilegiados pelos próprios ministros e secretários de Estado. Veja-se o testemunho de um antigo governante entrevistado: «Nunca tive problemas com as remunerações porque privilegiava escolhas no universo da administração pública ou na área da atuação do Ministério. Nunca escolhi pessoas fora do ambiente», confessa um antigo ministro entrevistado (Nunes, 2012: 162).
Esta outra frase de um antigo ministro incluído no referido conjunto de entrevistas resume bem o espírito dominante: «Uma das escolhas que fiz e que falhou foi de uma pessoa que vinha do privado e sobre a qual tinha as melhores referências. Teve enorme dificuldade e não conseguiu fazer a apreensão do organismo e das suas regras. Tinha de lhe estar sempre a dar orientações… Há lugares em que o conhecimento das regras da administração pública é importante», considera ainda outro dos ministros entrevistados (citado in Nunes, 2012:195).
Continuando a explorar os resultados das entrevistas, há outra ideia que importa reter: «Há uma espécie de bloco tecnocrático com pessoas com simpatias políticas mais à direita e mais à esquerda que roda nos cargos. Pareceu-me uma regra não-escrita, mas conhecida de todos os quadros com carreiras longas no ministério» (citado in Nunes, 2012: 173).
De facto, só assim se explica que mais de metade das elites administrativas em funções quer no XIV GC, quer no XXII, tenha exercido essas funções em diferentes ciclos políticos, independentemente da existência de regras concursais (ver tabela seguinte). Ou que metade dos dirigentes de topo do Governo Guterres com experiência de gabinetes ministeriais tenham tido essa experiência durante governos PSD, sendo que mais de um quarto dos atuais dirigentes com esse tipo de experiência estão na mesma situação, apesar de o PSD só ter estado no Governo durante 6 anos desde 1995.
XIV GC | XXII GC | |||
---|---|---|---|---|
Indicadores de Politização | N | % | N | % |
Dirigente durante governos PSD | 95 | 52,2 | 69 | 50,4 |
Participação em gabinetes ministeriais | 31 | 16,6 | 43 | 30,7 |
Participação em gabinetes de membros do governo PSD | 17 | 9,2 | 12 | 8,6 |
Participação em gabinetes de membros do governo PS | 14 | 7,6 | 31 | 22,1 |
Exercício de cargos políticos | 19 | 10,0 | 4 | 2,9 |
Fonte: elaboração própria do autor
Algumas variações temporais e institucionais
Este quadro de perfis estáveis num período de 20 anos não nos deve fazer ignorar algumas variações temporais e institucionais relevantes.
Em primeiro lugar, de acordo com os dados da tabela 5, é muito mais frequente hoje entre a elite administrativa a passagem por gabinetes ministeriais do que era há 20 anos, o que não pode deixar de ser lido como um reforço da politização e do papel da chamada “administração paralela” no recrutamento do pessoal dirigente de topo, e consequentemente no controlo da administração tradicional pelos governos partidários nos processos de decisão e implementação das políticas públicas - a chamada politização de controlo16 (Thiel, 2004; Silva, 2017).
É certo que, como vimos atrás, no XXII GC um quarto desses casos diz respeito à passagem por gabinetes de membros de um governo liderado por um partido que está na oposição no momento em que exercem os cargos dirigentes. De qualquer modo, sabemos que não só se trata de cargos de livre nomeação (ainda que não assegurem vínculo à função pública) como os próprios membros do Governo reconhecem que em parte seguiram critérios de confiança política para os preencher: «O gabinete ministerial tem uma componente técnica e uma componente política, tem de ser uma escolha pessoal e política, e em alguns casos até tem de haver confiança partidária» (citado in Nunes, 2012: 180).
No entanto, dificilmente este aumento da frequência de dirigentes de topo com experiência de gabinetes ministeriais, que atinge agora os 30,7%, será explicável pela valorização destes percursos por parte dos júris da CRESAP, tanto mais que o fenómeno vinha a consolidar-se desde os Governos Barroso (27%) e Sócrates (25,6%) (Nunes, 2015).
Esta tendência deverá estar antes associada à expansão das nomeações para os gabinetes ministeriais, que começa precisamente no período em que o grosso dos atuais dirigentes de topo terá entrado para os quadros do Estado.
Recorde-se que logo em 1988, o Governo Cavaco Silva (maioria absoluta PSD), através da Lei 262/88, de 23 de julho, atualizou as regras relativas à composição e organização dos gabinetes ministeriais. O diploma esclarecia que as medidas não se destinam a «substituir os serviços da Administração Pública», mas ao criar a figura dos colaboradores de gabinete e ao prever o recurso à prestação de serviços externos, sem limitar em termos quantitativos essas inovações, veio abrir a porta a uma composição muito mais alargada destas estruturas de confiança pessoal e política dos membros do Governo17.
Em segundo lugar, e agora em sentido inverso (despolitização, despartidarização), temos outra mudança de padrão na frequência de recrutamento de pessoas com experiência de cargos políticos eletivos ou executivos: nunca fora muito relevante (10% em 1999-2001); havia descido para a casa dos 6% durante os Governos Barroso e Sócrates (Nunes, 2012: 182) mas caiu agora para uma percentagem bem mais residual (2,9%).
Mais uma vez podem colocar-se várias hipóteses explicativas: desde o eventual crescimento do fenómeno das “portas giratórias” entre os cargos políticos e o setor privado (Louçã et al., 2014), que afastaria as elites políticas de percursos na administração do Estado, até ao próprio efeito dos critérios de recrutamento da CRESAP que tenderão a sobrepor o profissionalismo e a especialização setorial em relação à experiência política. Mas também aqui estamos a falar de uma tendência que começa antes da criação da CRESAP e dos procedimentos concursais.
Seja como for, esta contradição entre os dados referentes à passagem pelos gabinetes ministeriais e os dados sobre as experiências políticas, comum a outras democracias ocidentais (Veit e Vedder, 2023) pode ser apenas aparente, na medida em que, como havíamos notado em análises anteriores, a politização partidária e clientelar (associada ao recrutamento de pessoal político) pode conviver, e até estar a dar lugar, à referida politização de controlo, mais assente na lealdade pessoal e mais ancorada nos gabinetes ministeriais (Nunes, 2015).
A substituição progressiva da politização clientelar pela politização de controlo pode perfeitamente ter-se acentuado com a drástica redução das estruturas da administração periférica, mais intensa do que a verificada nos institutos públicos e nos gabinetes ministeriais (estes, pelo contrário, registaram basicamente uma consolidação).
Finalmente, uma outra dimensão em que a criação da CRESAP também não parece estar a ter um impacto muito evidente é no reforço da influência de algumas carreiras especiais da administração do Estado enquanto fontes de recrutamento, pelo menos nalguns dos ministérios em que atuam mais privilegiadamente.
O padrão de recrutamento interno à administração pública, por vezes circunscrito à pasta setorial, tem-se traduzindo ao longo do tempo numa presença significativa das carreiras especiais nos cargos de topo de certos ministérios: docentes na Educação, diplomatas nos Negócios Estrangeiros, militares na Defesa Nacional ou médicos na Saúde (Nunes, 2015: 119).
Ora como podemos ver na tabela seguinte, esse “corporativismo” estará a esbater-se um pouco na Educação e principalmente na Defesa Nacional:
XIV GC | XXII GC | ||||
---|---|---|---|---|---|
Peso das Carreiras | N | % | N | % | |
Docentes na Educação | 9 | 69,2 | 3 | 30 | |
Diplomatas no MNE | 9 | 64,3 | 6 | 85,7 | |
Militares na Defesa Nacional | 4 | 44,4 | 1 | 14,2 | |
Médicos na Saúde | 3 | 37,5 | 7 | 50 |
Fonte: elaboração própria do autor
No caso do Ministério da Educação, parece confirmar-se que o período pós-Guterres marcou um ponto de viragem dos padrões de recrutamento (Nunes, 2015: 120), plenamente confirmado agora, nos Governos António Costa: se durante o Governo Guterres quase 70% dos dirigentes de topo deste ministério provinha da carreira docente, e no período mais vasto de 1999-2009 essa percentagem já havia caído para os 50%, agora não passa dos 30%.
A perda de influência dos militares nos departamentos civis do Ministério da Defesa Nacional é mais surpreendente, já que nas referidas entrevistas a antigos titulares da pasta este surgia invariavelmente naquele tipo de ministérios onde as escolhas dos dirigentes estavam pré-condicionadas por “regras tácitas” e, neste caso, por equilíbrios entre os Ramos das Forças Armadas (Nunes, 2012: 176).
Mais: nessas entrevistas notava-se uma diferença de atitude consoante se tratava de “corporativismos” nas áreas sociais ou nas áreas de soberania, já que enquanto o “partido da educação” ou o “partido da saúde” combinam interesses profissionais com determinados posicionamentos ideológicos e programáticos que podem ser contraditórios com os do Governo, nas áreas de soberania (nomeadamente Defesa e Negócios Estrangeiros) o consenso nacional é mais alargado e a agenda política está estatutariamente ausente da intervenção pública dos corpos do Estado (Nunes, 2012: 178).
Apesar de tudo, no caso da Saúde, e em contraste com a Educação, temos vindo a assistir a uma consolidação da presença da carreira médica no topo do Ministério, quer em relação ao Governo Guterres quer face ao período 1999-2009 (Nunes, 2015).
Finalmente, no caso do Ministério dos Negócios Estrangeiros, é evidente que a redução de estruturas não foi acompanhada por uma redução da influência da carreira diplomática enquanto fonte de recrutamento, desde logo porque a própria Lei Orgânica do Ministério prevê que, em regra, os titulares de cargos dirigentes são designados de entre funcionários diplomáticos.18
Não será assim por acaso que o MNE já havia sido o ministério que menos mudanças sofrera nos saneamentos políticos que se seguiram ao 25 de abril de 1974, limitados «a uns poucos membros do corpo diplomático que tinham exercido funções governativas no anterior regime» (Pinto, 1999: 35) Trata-se de um ministério antigo igualmente dominado por uma das carreiras mais antigas do Estado, com um papel próprio, estatutário, nos processos de recrutamento do pessoal dirigente.
A situação é um pouco diferente na Defesa Nacional, onde a antiguidade da carreira (militar) não é acompanhada pela antiguidade do ministério, criado precisamente para responder a compromissos internacionais (NATO) e consolidar o controlo do poder civil sobre as Forças Armadas, que têm o seu monopólio de representação próprio nas chefias do Estado Maior General e dos Ramos.
Já em estudos anteriores, centrados no período 1999-2009, havíamos visto como os dirigentes de ministérios mais antigos e com carreiras mais consolidadas, como os Negócios Estrangeiros, a Justiça e as Finanças19 resistiam melhor às lógicas de controlo político (Nunes, 2012: 202).
Também entre os dirigentes nomeados no XXII GC vemos a mesma tendência: metade dos dirigentes de topo do Ministério da Justiça são magistrados de carreira; nas Finanças, 5 em 8 dirigentes de topo fez carreira no próprio ministério, todos (menos um) com mais de 20 anos de funcionalismo público, metade dos quais nomeados já com mais de 60 anos.
Pelo contrário, havíamos notado que o pessoal dirigente dos institutos públicos revelava um perfil relativamente mais politizado, ainda que mesmo aí predominem padrões de alguma autonomia profissional (Nunes, 2012: 201-202)20
Ou seja, para além da antiguidade do Ministério, a antiguidade ou a natureza dos serviços em causa também conta na tensão que existe entre politização e autonomia ao nível do recrutamento. Para o responsável final pela nomeação, não será irrelevante saber se se trata de uma escolha para um serviço que executa políticas públicas (instituto público, direção-geral) ou para um serviço destinado a apoiar administrativamente ou mesmo a controlar (e inspecionar) a execução dessas políticas.
Essa diferenciação encontrava-se de facto perfeitamente interiorizada entre os membros do Governo, mesmo antes da introdução das regras concursais: «Eu defendia que, para além dos dirigentes intermédios, alguns dirigentes de topo, como secretários-gerais, inspetores-gerais, mas não só, fossem escolhidos por concurso» (citado in Nunes, 2012: 121).
Uma vez mais, encontramos uma grande semelhança de padrões de recrutamento antes e depois da CRESAP. Se até ao Governo Sócrates, era nos institutos públicos que se encontravam níveis mais elevados de politização (mais casos de dirigentes jovens, oriundos dos gabinetes e do setor privado) mais recentemente a percentagem de presidentes deste tipo de serviços recrutados no privado atinge os 19,2%, ao mesmo tempo que não há registo de qualquer secretário-geral ou inspetor-geral recrutado fora do setor público.21
Compreende-se assim por que razão um antigo ministro entrevistado dizia que o critério para as escolhas variava em função do tipo de serviço em causa: «Os critérios eram adequados à natureza dos serviços. Nuns casos, salvaguardando perfis que garantam a independência, noutros precisamente o oposto» (citados in Nunes, 2012: 195).
Conclusões
Do que atrás fica exposto resulta um quadro de grande continuidade nos perfis dos dirigentes do Estado, praticamente imune à introdução dos procedimentos concursais.
A elite administrativa portuguesa, independentemente do seu método de recrutamento, segue um padrão de envelhecimento e continua a ser recrutada essencialmente no interior da administração pública, e frequentemente dentro do próprio ministério onde exerce funções.
A permanência das mesmas pessoas em lugares de topo parece resistir aos ciclos políticos ou às regras de recrutamento em vigor.
Mesmo a perda de influência de algumas carreiras especiais (militares, docentes) não parece corresponder a um padrão geral, já que há outras que vão mantendo ou recuperando poder ao longo do período em análise (diplomatas, médicos, magistrados).
As variações de perfil no seio da elite administrativa surgem associadas a fatores institucionais estranhos à passagem do tempo ou às reformas administrativas mais recentes, como se viu na influência que tem a natureza dos serviços ou dos ministérios em causa.
Também a crescente passagem por gabinetes ministeriais, indicador de politização (de controlo), não pode ser certamente atribuída ao efeito CRESAP, uma vez que estamos perante mais uma tendência que vem de trás. E o mesmo se pode dizer da despolitização (partidária) resultante do caráter quase residual dos casos em que há de experiência de exercício de cargos políticos.
Se há um antes e um depois das reformas administrativas lançadas em 2005 (Governo Sócrates) e intensificadas em 2011 (Governo Passos), não será tanto a respeito do perfil dos dirigentes nomeados, mas mais quanto ao número de nomeações disponíveis, que, pelo menos ao nível destas estruturas da administração central do Estado, caiu praticamente para metade e, a partir de 2013, de forma bastante acentuada na administração periférica, onde o fenómeno da politização partidária tinha um lastro reconhecido pelos próprios membros do governo entrevistados (Nunes, 2012) e identificado para diferentes momentos históricos (Almeida 2007; Nunes, 2015)22.
Também nos gabinetes ministeriais, espaços privilegiados de politização de acordo com a literatura e com os próprios ministros, houve lugar a novas regulamentações legais23 que incentivaram o recrutamento interno, mas que não contribuíram para reduzir o número de nomeações disponíveis.
Deste ponto de vista, é bem possível que o controlo político dos governos partidários sobre a administração, nos processos de decisão e implementação de políticas públicas, seja hoje exercido cada vez mais através destes gabinetes24, de pertença transitória, do que por via dos institutos públicos, que viram o seu número reduzir-se de 95 para 55 após as referidas reestruturações administrativas (Portugal, 2013).
De resto, a ausência de mudanças significativas nos perfis dos dirigentes ao longo do tempo nos deve surpreender, mesmo tendo em conta a dimensão destes cortes nas estruturas administrativas e especialmente a introdução de procedimentos concursais.
A experiência comparada ensina-nos que requisitos legais de recrutamento semelhantes podem conviver com perfis dirigentes completamente distintos, sendo muito mais determinantes a cultura política, a autonomização das elites, o enraizamento das carreiras do Estado ou a solidez das instituições que estas servem.
Basta lembrar que casos tão díspares como a Alemanha, a Grécia ou o Reino Unido têm em comum um recrutamento da sua elite administrativa limitado ao universo dos funcionários públicos. Também a Grécia, há mais tempo do que Portugal, introduziu mecanismos concursais para a nomeação dos seus dirigentes administrativos, e nem por isso ficou mais impermeável às dinâmicas clientelares (Sotiropoulos, 1999).
Talvez devamos considerar a hipótese desta reforma do Estado não estar a produzir um significativo reforço da autonomia profissional no perfil da elite administrativa portuguesa pela simples razão de que essa autonomia profissional, no essencial, sempre existiu, ainda que matizada, é certo, por novos mecanismos de controlo político (institutos públicos e gabinetes ministeriais) e por velhas dinâmicas de politização clientelar (na administração periférica) que podem ter sido parcialmente prejudicadas pelas recentes reestruturações administrativas.