Introdução
No contexto global atual da educação e da sociedade, a temática da inclusão social e educacional revela-se de suma importância. A busca por estratégias que promovam a equidade e o desenvolvimento de competências socioemocionais torna-se premente, especialmente em contextos onde a exclusão social e as desigualdades educacionais se manifestam de maneira acentuada.
A exclusão social, um problema que transcende as fronteiras geográficas e culturais, continua a ser um desafio geral. Muitos indivíduos, especialmente crianças e jovens, encontram-se à margem do sistema educacional e enfrentam barreiras que limitam seu acesso pleno à aprendizagem e ao desenvolvimento de suas potencialidades. Essa exclusão pode ser resultado de fatores socioeconómicos, culturais, étnicos ou de género, entre outros.
A educação não-formal, por sua vez, ganha destaque como um complemento essencial à educação formal. Ela oferece espaços e oportunidades para o desenvolvimento de competências socioemocionais, como a inteligência emocional e respeito à diversidade, que são fundamentais para o sucesso na vida e na sociedade. Projetos sócio-desportivos, que combinam o desporto com abordagens educacionais, surgem como uma ferramenta valiosa na intervenção social e no desenvolvimento dessas competências.
Este artigo tem como objetivo central explorar as interseções entre a intervenção social e o desporto, por meio da análise do projeto Futebol para Cidadania implementado numa escola do município de Gondomar, distrito do Porto, participante do Projeto Territórios Educativos de Intervenção Prioritária (TEIP). O projeto representa um exemplo significativo de como o desporto pode ser utilizado como um veículo para promover a inclusão social e o desenvolvimento de competências socioemocionais em contextos educacionais desafiadores.
Por meio deste estudo, buscamos lançar luz sobre as potenciais implicações e aplicações de programas desportivos que visam a inclusão social e o desenvolvimento de competências socioemocionais, proporcionando conhecimento que pode ser valioso tanto no campo académico quanto nas práticas sociais e desportivas.
Futebol para Cidadania: projeto sócio-desportivo em contexto escolar
O projeto “Futebol para Cidadania” foi concebido e dinamizado durante o ano letivo 2022/2023 na Escola EB 2,3 Marques Leitão, do Agrupamento de Escolas de Valbom (AEV) localizada na cidade de Valbom, nos limites do concelho de Gondomar, distrito do Porto. Surgiu da identificação de uma necessidade e da co-construção que envolveu alunos, professores, técnicos e encarregados de educação.
A escola, participante do projeto TEIP3 desde 2012, na terceira fase do programa de educação compensatória em Portugal, está enquadrada em um contexto socioeconómico caracterizado por desafios, incluindo uma alta taxa de desemprego, famílias de estratos sociais médio e baixo e uma população com níveis de escolaridade variados, mas tendencialmente humildes. Embora tenha havido melhorias na escolaridade da população nos últimos anos, o desemprego mantém-se significativamente alto (Projeto Educativo do AEV, 2016).
Sendo idealizado como um clube de futebol não-competitivo, o projeto tinha como missão utilizar o desporto como uma ferramenta de integração, aprendizagem e desenvolvimento pessoal, além de promover a atividade física entre os alunos. Pretendia-se minorar, através das atividades, problemas como o uso excessivo do telemóvel, a falta de atividades lúdicas e de oportunidades de socializar, o comportamento e linguagem violentos, o tempo demasiado em sala de aula e nas explicações e os poucos exemplos de liderança positiva. Em termos de objetivos, o projeto tinha como escopo cinco pretensões: melhorar o rendimento académico dos alunos participantes; promover a integração, diminuir a violência e o absentismo dos alunos (caso houvesse sinalização de “risco de abandono”); desenvolver conhecimentos e competências de autoconhecimento, liderança e cidadania ativa; promover a equidade de género; promover a integração entre encarregados de educação, professores e funcionários.
O projeto Futebol para Cidadania teve oito meses de duração, entre outubro de 2022 e maio de 2023. Ocorria três vezes por semana, às segundas, quartas e sextas-feiras. Todas as sessões aconteciam na parte da tarde, fora do horário curricular dos alunos. Apesar do nome, o desporto praticado foi, na verdade, o futsal, tendo em conta que o projeto decorria no Pavilhão Ricardinho - espaço polidesportivo gerido pela Junta de Freguesia de Valbom, localizado dentro do terreno da escola. Contou com 66 sessões de treino com duração de 1h30min cada. Participaram, em média, por semana, 44 alunos, sendo que 34 eram do 2º ciclo e 10 alunos do 3º ciclo. Destes, 12 eram meninas, o que representa 27% dos participantes.
As sessões estavam organizadas em duas dinâmicas que aconteciam simultaneamente: atividades pedagógicas e jogos de futsal. Cada sessão contava com um grupo de mais ou menos 15 alunos, que era dividido em três equipas e, enquanto duas jogavam a bola, uma realizava a atividade pedagógica. Denominamos atividade pedagógica o momento em que era realizada algum tipo de jogo, dinâmica, conversa ou exercício que explorava temas relacionados ao autoconhecimento, gestão emocional, interculturalidade, igualdade de género, sustentabilidade, ensino superior, entre outros. No total, 16 atividades pedagógicas foram realizadas ao longo do projeto. Alguns dos temas foram também abordados durante ou após os jogos de futsal, como o caso da gestão emocional e da igualdade de género, por meio de reflexões e debates em grupo.
Além das sessões realizadas semanalmente, organizaram-se dois eventos comunitários e uma visita ao Estádio do Dragão e Museu do Futebol Clube do Porto - como celebração do fim do ano letivo e do projeto. Os eventos comunitários ocorreram em dois sábados pela manhã, com estrutura semelhante: atividade pedagógica e jogo de futsal entre adultos e crianças. Estima-se que no primeiro evento estiveram presentes 20 alunos e 25 adultos (encarregados de educação e familiares), enquanto que no segundo em torno de 30 alunos e 40 adultos. A visita de encerramento teve a presença de 60 alunos da escola, além dos técnicos e professores responsáveis pelo grupo.
O diálogo entre a inclusão social, o desporto e o Futebol para Cidadania
A inclusão social consiste num processo multidimensional que relaciona as desigualdades de classe social, étnica, de género, de orientação sexual e outras (Mota & Lopes, 2017). Segundo Berg e Ostry (2011), a desigualdade é parte integral da economia de mercado e reflete-se nos mais pobres, restringindo o acesso destes a diversas oportunidades de financiamento, investimento e empreendedorismo ao longo do tempo. É no contexto de exclusão e falta de oportunidades, onde a instituição escolar contribui direta e indiretamente, que os programas de inclusão social procuram por métodos alternativos de educação dirigidos à crianças e jovens vulneráveis (Paulos et al., 2012).
A cidade de Valbom, local em que se insere a Escola Marques Leitão, pertence à União das Freguesias de Gondomar (São Cosme), Valbom e Jovim - uma das sete freguesias que compõem o concelho de Gondomar, no distrito do Porto. Embora a freguesia esteja assinalada pela Carta Educativa de 2007 em uma posição económica favorável, o Projeto Educativo (PE) de 2016 do AEV diz que a realidade de muitos alunos do agrupamento é de grande dificuldade socioeconómica, oriundos de famílias que pouco valorizam a escola e os seus saberes.
Esta situação desigual, de exclusão, não se restringe apenas ao fenómeno da pobreza, mas também se relaciona com fatores sociais e cívicos, manifestando-se através da ausência de certos grupos e pessoas das dimensões ambiental, cultural, política, económica e social (Paulos et al., 2012). Além disso, esta situação objetiva (recursos e benefícios da vida em sociedade) associa-se um caráter subjetivo de sentimento, de pertença e da representação de identidade, reconhecível também pelos outros, e que se expressam num conjunto de disposições duráveis e estruturadas (maneira de sentir, agir, pensar e fazer) que também são transmissíveis no decurso das interações (Mota & Lopes, 2017).
Segundo o PE (2016), os Censos de 2011 mostravam que a taxa de desemprego de Valbom situava-se em 17,89%, a terceira mais alta do concelho de Gondomar, superior em 4,71% à média nacional. Pode-se inferir que essa situação se devia ao nível de ensino existente, pois, segundo os mesmos censos, dos 14.407 habitantes da cidade, 48,8% tinham habilitações iguais ou inferiores ao 2.º ciclo, 17% ao 3.º ciclo, 17,1% ao ensino secundário e apenas 14,4% possuía habilitações ao nível do ensino superior. Além disso, Valbom apresentava uma taxa de 3,74% de analfabetismo, média acima do concelho (3,27%).
Contudo, a inclusão social é um processo contínuo e não um estado final (Quick & Fieldman, 2011 inJunior et al., 2014), e é a partir desta consciência que o termo remete às ações e aos meios para combater a exclusão social, refletindo sobre suas causas e características (França, 2020). Conforme Mota e Lopes. (2017), “uma trajetória bem-sucedida de inclusão social poderá favorecer processos de mobilidade social se acarretar a incorporação de certas disposições e competências”. A inclusão social envolve, portanto, que grupos desfavorecidos participem em atividades que seriam excluídos (Junior et al., 2014). Mais ainda, remete ao ato ou efeito de integrar os indivíduos na sociedade, permitindo uma participação ativa e a satisfação de vários aspetos inerentes aos próprios indivíduos (França, 2020).
De modo que a pobreza e a exclusão social têm sido persistentes em Portugal, especialmente entre grupos mais vulneráveis, como idosos, desempregados, migrantes e pessoas com deficiência (Borba & Lima, 2019), a inclusão social, por sua vez, pode ser alcançada por meio de políticas e programas que promovam o acesso a recursos e oportunidades, bem como a participação ativa na vida social e política. Porém, tendo em conta que o Estado já não consegue atender às demandas e deixa diversas lacunas mesmo com suas políticas públicas, a sociedade civil e outras instituições organizam-se e criam iniciativas para erradicar ou minimizar as injustiças enfrentadas e para alcançar melhores níveis de qualidade de vida.
É esta busca por soluções que permite o surgimento dos projetos sociais, fruto das próprias interações e percepções dos atores sociais com os desafios vividos (Junqueira, 2006 inFilho, 2011). Um projeto social pode ser entendido como um conjunto de tarefas e ações que têm como objetivo o desenvolvimento social e humano, criando impacto sobre indivíduos ou grupos, a partir da reflexão e diagnóstico dos próprios atores sociais sobre uma determinada problemática de exclusão ou desigualdade, por meio de atividades tecnológicas, artísticas e desportivas (Filho, 2011).
É neste esforço por novas respostas que projetos sociais têm utilizado, de maneira intencional, o desporto como ferramenta pedagógica não-formal para alcançar objetivos de desenvolvimento e inclusão social (Paulos et al., 2012; Junior, 2014; Parada, 2017; França, 2020). Pedagógica, por se tratar de uma modalidade de ensino-aprendizagem, e não-formal porque ocorre em espaços informais, na escola ou no exterior, com organizações não-governamentais, instituições religiosas, associações de bairro, entre outras, a dinamizar diversos tipos de atividades. E, assim, um projeto que utiliza o desporto como elemento facilitador num modelo interventivo de educação não-formal com um fim de inclusão social é o que designamos de projeto sócio-desportivo (Paulos et al., 2012; Junior, 2014).
Ora, o desporto, e antes dele, o jogo, é algo que faz parte fundamental da experiência humana, sendo encontrado em toda história da humanidade e em todas as culturas (Huizinga, 2000), precedendo até mesmo qualquer tipo de organização social (Costa, 1992). Então, o universo ludo-desportivo pode ser considerado um excelente campo de observação e análise social, como também um meio de compreensão do sentido de existência do homem e de suas aspirações (Costa, 1992).
Ainda, sendo legítimo dizer que estudar a história de uma sociedade será estudar a sua história ludo-desportiva (Costa, 1992), podemos verificar que os comportamentos desportivos são marcados pelos costumes e mentalidades do ambiente que pertencem (Freitas, 2000). Dessa maneira, outro motivo pelo qual o desporto passa a ser empregado na vida cotidiana é justamente, e curiosamente, para dela sair. Assim, o desporto acaba por se tornar um espaço de relaxamento do autocontrolo e libertação das emoções (Marivoet, 1997), permitindo uma sensação de controlo, realização e prazer, por um lado, ou de raiva e destruição, por outro (Freud inStarn, em 17 de abril de 2023). É neste processo de “fuga” que o desporto se encontra com a inclusão/exclusão social.
Embora o contexto desportivo também reproduza os problemas da sociedade, é muitas vezes nele que se compreendem as suas estruturas e se expressam os desejos para uma sociedade mais justa e fraterna (Costa, 1992). Quando jogamos, encontramos um espaço de refúgio da vida e dos seus problemas, assumindo um campo que permite idealizar e sonhar (Parada, 2017). A prática desportiva, a priori, é um agente de inclusão social, pois o desporto não exclui nenhum tipo de indivíduo; é irrelevante qual o grupo social, etnia ou religião de um atleta (Parada, 2017). Sendo irrelevante, e havendo oportunidade, um sujeito socialmente excluído que pratica desporto vai sentir justamente o contrário, ao se sentir aceite, útil e integrante de algo que vai para além da sua própria individualidade (Marivoet, 2014). Isto se verifica mais facilmente nos desportos coletivos, mas também nos desportos individuais, quando enquadrados em alguma instituição social (Parada, 2017).
Já na Grécia antiga, Platão indicava na sua obra A República que os jovens deveriam ter sua educação aprimorada pelo desporto (ginástica) e pela música (Pereira, 2010). Mais recentemente, diria Nelson Mandela na cerimónia de recebimento do Prémio Laureus, em 2000, que o desporto tem a capacidade de mudar o mundo e de falar com os jovens numa linguagem que eles compreendem. Também a Comissão Europeia (CE) reconhece esta capacidade do desporto de não apenas criar benefícios para a saúde física, como também ser um promotor de desenvolvimento pessoal e social, de inclusão e integração (CE, em 20 de fevereiro de 2023).
Logo, o desporto assume-se como um instrumento distinto para a coesão social, ao permitir a partilha de experiência entre pessoas unidas por um mesmo objetivo e ao possibilitar a construção de laços sociais (Marivoet, 2014). O desporto pode ser utilizado para quebrar barreiras sociais e culturais, promovendo a integração de indivíduos marginalizados ou excluídos, e permitindo que eles sejam parte de uma comunidade desportiva inclusiva.
Por isso, o desporto tem sido uma das ferramentas mais utilizadas na aprendizagem e desenvolvimento das crianças e jovens, assim como um recurso à inclusão social tanto em outros países como em Portugal (Paulos et al., 2012). O seu crescente uso e importância se deve a diversos fatores, como a melhoria da saúde física e os benefícios psicossociais (Ferreira, 2017). Segundo Paulos et al. (2012), o desporto pode ajudar a promover a inclusão social de jovens em situação de vulnerabilidade, oferecendo oportunidades de aprendizagem em diversas áreas.
Assim, através da Educação Física e do desporto, o processo de socialização das pessoas pode ser potencializado, uma vez que, como citado anteriormente, as sociedades são também definidas pelos desportos que praticam e, consequentemente, pelos valores transmitidos por eles (Claro, 2016). Justamente na integração à prática desportiva que o projeto Futebol para Cidadania pretendia que os alunos pudessem se desenvolver na sua globalidade, aperfeiçoando as suas múltiplas dimensões, aumentando a sua participação em sociedade, interagindo com outros grupos sociais e combatendo estereótipos e preconceitos (Pereira, 2010; França, 2020; CE, em 20 de fevereiro de 2023).
Um projeto sócio-desportivo que pretenda realizar uma intervenção social com públicos excluídos, deve planear e estruturar as suas atividades de acordo com as necessidades e potencialidades da população envolvida (Paulos et al., 2012), possibilitando a sociabilidade e a partilha de experiências entre crianças e jovens de distintas origens sociais e étnicas (Claro, 2016). Assim surgiu o projeto Futebol para Cidadania, fruto de um trabalho de auscultação à comunidade escolar por meio de conversas, inquéritos e dinâmicas, assim como de um processo de reflexão pessoal do autor.
Este torna-se um espaço privilegiado de experimentação social, onde há real igualdade de oportunidades, sem nenhuma discriminação no acesso - seja dos alunos participantes, seja dos colaboradores e técnicos (Marivoet, 2014). E, portanto, promovendo valores como a tolerância, respeito, solidariedade e inclusão. Além disso, o desporto ao ser praticado possibilita o desenvolvimento de uma série de competências fundamentais para a vida em sociedade, tais como o trabalho em equipa, a disciplina, persistência, dedicação, saber ganhar e perder, e respeito pelas regras comumente partilhadas (Paulos et al., 2012; Claro, 2016).
Em Portugal, o desporto tem sido utilizado como uma ferramenta de inclusão social por meio de iniciativas de educação não-formal e tem-se mostrado como um país que valoriza a prática desportiva. Por exemplo, o projeto “Projeto Bola P´ra Frente”, um projeto inovador no que concerne à aplicação do Futebol de Rua enquanto agente de inclusão social no e pelo desporto, através da metodologia do treino social, com objetivo o desenvolvimento pessoal e social de jovens em situação de vulnerabilidade social, através da prática desportiva (Paulos et al., 2012).
De acordo com Paulos et al. (2012), o desporto em Portugal tem sido utilizado como meio de integração social e como resposta às necessidades das comunidades locais. Os autores destacam a importância da participação ativa das comunidades, na medida em que se cria um sentimento de pertença e responsabilidade. Destaca-se, ainda, a importância da valorização da autoestima, do espírito de equipa e do respeito pelo outro, como competências adquiridas através do desporto.
Portanto, ao somar competências físicas e motoras - inerentes à atividade física - às competências pessoais e sociais, o desporto transcende o local de prática e desempenha um papel muito importante na formação da identidade de um atleta, integrando toda a sua realidade social (Parada, 2017). Quando baseado na co-construção de estratégias de intervenção social, o desporto poderá gerar resultados positivos para as populações excluídas, promovendo o desenvolvimento humano e comunitário (Paulos et al., 2012). Foi nesta perspectiva que surgiu o projeto Futebol para Cidadania.
Metodologia de análise e avaliação do impacto do projeto
De modo a compreender o impacto do projeto, o estudo procurou responder à seguinte questão: “Quais foram os impactos do projeto "Futebol para Cidadania" na integração, inclusão e desenvolvimento de competências socioemocionais dos alunos da Escola Marques Leitão no ano letivo 2022/2023?”.
O objetivo da análise foi fornecer informações sobre o impacto do projeto "Futebol para Cidadania" na inclusão e integração social e no desenvolvimento de competências socioemocionais dos alunos, identificar e descrever os saberes e competências adquiridos pelos alunos durante a sua participação. Além disso, pretendia oferecer insights sobre a importância de práticas educativas não-formais e projetos sócio-desportivos como complementos à educação formal, promovendo a integração e a socialização dos alunos.
O estudo adotou uma abordagem metodológica baseada na pesquisa qualitativa devido à sua capacidade de explorar as complexidades dos fenómenos sociais, permitindo uma compreensão profunda e contextualizada. Este tipo de metodologia valoriza a subjetividade, a diversidade de perspectivas e a complexidade dos fenómenos sociais (Creswell, 2014). Três métodos de coleta de dados foram selecionados para obter informações ricas e detalhadas sobre o projeto de pesquisa: entrevista semi-diretiva, observação participante e focus group.
A entrevista semi-diretiva envolveu a elaboração de um roteiro com perguntas abertas e fechadas, permitindo obter informações específicas do ponto de vista dos participantes (Minayo, 2010). As entrevistas individuais foram realizadas, gravadas e transcritas na íntegra, promovendo a obtenção de informações profundas e significativas. Foram selecionados intencionalmente dez alunos entre 10 e 12 anos, o que significa uma amostra de aproximadamente 23%, tendo em conta o número de participantes do projeto. O grupo foi equilibrado em termos de género, com cinco alunos do sexo masculino e cinco do sexo feminino. Além disso, esses alunos tinham um histórico de participação no projeto de pelo menos doze semanas. As origens dos alunos eram diversas: cinco alunos com origem portuguesa, uma aluna luso-brasileira, dois alunos brasileiros, um aluno inglês e uma aluna angolana.
Com relação à observação participante, o autor desempenhou um papel ativo no projeto como co-criador e coordenador. De acordo com Hammersley e Atkinson (2007), a observação participante é uma técnica que envolve o pesquisador em interações sociais com os participantes, sendo necessário estabelecer relações de confiança e respeito mútuo. A observação participante, realizada por meio de um diário de campo, ofereceu uma perspectiva interna e acesso a informações e experiências que não seriam identificadas por outras técnicas de coleta.
Já o focus group envolveu uma discussão em grupo com a coordenadora da escola, um professor de Educação Física, uma estagiária participante de Educação Social e o presidente da Associação de Pais da escola - todos participantes diretos ou indiretos em atividades do projeto. Segundo Krueger e Casey (2000), o focus group é uma técnica valiosa para obter informações a partir da perspectiva dos participantes, bem como para entender melhor as opiniões e atitudes dos membros de um grupo em relação a um determinado tópico. O focus group permitiu obter informações valiosas sobre o projeto e as perspectivas dos diferentes envolvidos, além de identificar problemas e gerar ideias para melhorias.
Os procedimentos de recolha de dados envolveram a obtenção de consentimento dos participantes e de seus encarregados de educação, a definição de critérios de inclusão e a realização das entrevistas individuais. Durante as entrevistas, foi adotada uma postura empática e de escuta ativa, garantindo um ambiente acolhedor e de confiança para que os alunos compartilhassem suas experiências e percepções.
A análise dos dados foi realizada por meio da análise de conteúdo, uma técnica que busca identificar padrões e categorias de significado nas respostas dos entrevistados. Para realizar a análise de conteúdo, foi necessário seguir um processo que envolveu várias etapas, como a transcrição das entrevistas, diário de campo e focus group, a codificação, a categorização e a interpretação dos dados (Flick, 2009). Foram definidas categorias de análise relacionadas aos objetivos da pesquisa, incluindo os benefícios do projeto, dificuldades enfrentadas pelos jovens, relações estabelecidas e a influência do projeto na vida dos participantes.
Resultados e análise do projeto Futebol para Cidadania
Os dados coletados por meio das entrevistas semi-diretivas, da observação participante e do focus group ofereceram uma visão aprofundada sobre o projeto Futebol para Cidadania, explorando as experiências dos alunos e revelando as contribuições significativas do projeto para a comunidade escolar.
Como referenciado no ponto 3 do artigo, selecionou-se intencionalmente dez alunos entre 10 e 12 anos, abrangendo quatro alunos do 5º ano e seis alunos do 6º ano. O grupo foi equilibrado em termos de género, com cinco alunos do sexo masculino e cinco do sexo feminino. Além disso, esses alunos tinham um histórico de participação no projeto de pelo menos doze semanas. As origens dos alunos incluíam Portugal, Inglaterra, Brasil e Angola.
A diversidade da amostra reflete, de maneira abrangente, o contexto multifacetado da comunidade escolar da cidade de Valbom e, em conjunto com a participação de agentes da escola no focus group e a observação participante, proporciona uma base representativa para análises que capturam as nuances e as experiências variadas dos envolvidos.
Família e Educação: diversidade e perspectivas
Os relatos dos alunos revelaram que as estruturas familiares variavam amplamente, desde famílias com ambos os pais, apenas a mãe, até aquelas que incluíam avós e outros parentes. As narrativas evidenciam a riqueza e complexidade socioeconómica de suas realidades. Isso se observa na fala de uma aluna ao explicar o porquê de viver na casa da avó: “Porque eu gosto de ter um quarto só para mim.".
Além disso, destacou-se o impacto da dinâmica familiar na transmissão de valores culturais e nas perspectivas de futuro. Por exemplo, conforme a fala de uma aluna “O meu pai desde pequena, ele sempre me ensinou que os estudos são... são uma forma boa de nos fazer crescer mais, aprender mais coisas para termos um bom futuro”, fica evidente, segundo os alunos, a importância dada pelos pais ao estudo e ao desenvolvimento educacional deles. As respostas contradizem aquilo que o Projeto Educativo do AEV (2016) defendia, sobre as famílias não valorizarem o saber e a escola.
A investigação ainda examinou as perspectivas dos alunos sobre a escola e revelou uma gama de sentimentos complexos e influências variadas. Por um lado, as aulas tradicionais são menos apreciadas pelos alunos, que expressaram o desejo de não apenas ouvir o professor, mas de se envolver em atividades mais práticas e interativas: “Tem vezes que é umas aulas que ninguém suporta, daí a professora não vem. É melhor que a gente não precisa ficar lá.”. Por outro lado, foi ressaltada a convivência com os amigos e o tempo para brincar, especialmente durante os intervalos e os “furos” (quando há falta de algum professor). Como explica um aluno: “Porque é mais tempo para eu brincar. (…) A maioria das vezes eu vou brincar lá em cima. (…) Fico correndo pelos montes. (…) E a gente finge que ‘tá caçando um monstro que tem lá cima.”. Essa fala alinha-se com o argumento de Marques (2021) sobre a educação não-formal como um meio de desenvolver a imaginação e o pensamento crítico, da mesma forma com o objetivo do projeto de minorar a falta de atividades lúdicas e de oportunidades de socializar.
Influências e motivações na prática desportiva
A influência da família e as motivações para a prática desportiva foram elementos centrais nesta pesquisa. Os resultados revelaram que a família desempenha um papel significativo na participação desportiva dos alunos. Muitos alunos mencionaram familiares envolvidos em atividades desportivas, seja como praticantes, treinadores ou entusiastas, como se observa na fala de uma aluna: “Meu pai joga num clube e a mãe também tinha sempre... Já jogou como o meu pai.”. Essa conexão familiar desempenha um papel fundamental no apoio à participação dos alunos nos projetos desportivos e no desenvolvimento de seu interesse pelo desporto. Estudos anteriores corroboram essa influência positiva da família na participação desportiva dos jovens (Marivoet, 1997; Paulos et al., 2012).
O futebol (ou futsal, neste caso), como desporto nacional, desempenhou um papel importante na escolha do projeto, refletindo a profunda paixão e identidade cultural de Portugal associada a esse desporto, conforme os relatos dos alunos sobre jogar e também praticar futebol fora da escola, nas ruas e bairros: “Às vezes eu jogo no bairro (da Giesta) aqui em cima.” e “Jogar, eu jogo na... na minha casa, fora do prédio. (…) com os meus primos, eu vou sempre lá todos os sábados.”. A socialização por meio do futebol também se alinha com as ideias de Costa (1992), que destaca o desporto como um espaço onde os valores sociais são transmitidos e internalizados. Através do futebol/futsal, os alunos têm a oportunidade não apenas de aprimorar suas habilidades físicas, mas também de aprender sobre cooperação, respeito e fair play, aspetos fundamentais para uma participação ativa em uma sociedade diversificada.
A motivação para participar em projetos desportivos, especificamente no projeto de Futebol para Cidadania, mostrou-se multifacetada. A pesquisa destacou que a motivação dos alunos era alimentada pela necessidade de uma oferta desportiva mais ampla e lúdica, bem como pela motivação extra que o desporto proporciona em relação às aulas tradicionais. Conforme explica um aluno: “Porque como eu nunca tinha treinado em lugar nenhum e eu não tinha uma chance agora de ir p’ra algum porque minha mãe ainda estava com pouco dinheiro e esse aqui (projeto) não precisava pagar e eu também gostava de jogar muito bola e eu não tinha amigo aqui, eu não saía de casa, só vinha p’ra escola, então...”. Para outra aluna, a relação próxima com o técnico foi importante: “Eu já tinha convivido com você (autor) durante um ano, entende? E já conhecia você.”. Para além disso, um projeto deste género pode ajudar na relação e perspectiva sobre a escola, conforme partilha do professor de Educação Física: “Tudo bem, que a parte educacional, as aulas são fundamentais, no crescimento deles, ok, mas o que é que os vai ligar à escola? Tem que se motivar, tem que se motivar para… precisam ter uma motivação extra.”.
Futebol para Cidadania: benefícios psicossociais e aprendizagens
Como explicado no ponto 1, os encontros do projeto consistiam em atividades pedagógicas e jogos de futsal. Para o estudo, era importante compreender os efeitos do projeto na promoção das competências socioemocionais e identificar os saberes e competências adquiridos pelos alunos durante a participação no clube.
As respostas dos alunos destacaram a compreensão de como a prática desportiva contribui para o seu bem-estar geral. Eles reconhecem a relação entre a atividade física e a saúde, evidenciando os benefícios físicos, como um estilo de vida ativo e melhor forma física. A resposta de uma aluna corrobora: “Tipo, p’ra mim fazer esportes me ajuda mais a ficar mais calma, a ter mais controle do que eu faço e do que eu penso fazer. E tipo, ultimamente… Eu ‘tava me sentindo um pouco sozinha, tipo com depressão, né? Mas aí quando eu entrei no futsal, eu comecei a melhorar, a ter mais vontade de fazer as coisas e isso.”. Isso está alinhado com as descobertas de Parada (2017) sobre como a participação em atividades desportivas pode promover o bem-estar emocional e a resiliência em jovens.
Além dos benefícios físicos e mentais, a pesquisa revelou os benefícios sociais do projeto. Os alunos aprenderam a trabalhar em equipa, a respeitar-se uns aos outros e a lidar com conflitos. Isso contribuiu para seu crescimento como indivíduos. A participação em atividades desportivas é vista como uma oportunidade para desenvolver habilidades sociais, promovendo a empatia, a cooperação e o respeito pelos outros. Segundo o professor de Educação Física, o projeto se diferenciou neste sentido das iniciativas do Desporto Escolar: “Nós temos o desporto escolar, e o desporto escolar não tem essa dinâmica. Não tem a dinâmica do teu projeto, não tem. Tem a parte desportiva, tudo bem, nós temos algum tempo, criamos ligações com os miúdos, mas não tem o mesmo foco, não tem o mesmo objetivo. E não tendo mesmo objetivo, os resultados nunca são os mesmos. Mesmo ensinando as regras, mesmo ensinando a parte competitiva e o saber lidar com a frustração. Falta depois aquela parte social, aquela parte de verem-se crescerem como pessoas.”. Esta visão alinha-se, por um lado, e se contrapõe, por outro, com um estudo sobre o contributo dos Jogos Desportivos Escolares no processo sócio-desportivo de crianças e jovens em idade escolar, onde verificou-se o favorecimento do processo de socialização e da formação de novas amizades (Simão et. al, 2016).
Com relação aos saberes e competências adquiridos, explorou-se principalmente nas entrevistas quais aprendizagens os alunos levaram por meio das atividades pedagógicas.
O projeto concentrou-se inicialmente na individualidade dos alunos, posteriormente introduzindo temas sobre o grupo. Os temas do autoconhecimento e da inteligência emocional foram abordados nas primeiras semanas. Algumas menções dos alunos indicam um aumento na consciência de si mesmo e de suas emoções, o destaque para a importância de gerir as emoções e evitar reações violentas, procurar ajuda e aliviar o estresse, enfatizando a gestão emocional como chave para o autoconhecimento, assim como a empatia. É o caso da fala de uma aluna: “Sobre as nossas emoções. (…) Bem, o que eu aprendi lá é que nós devemos aprender a controlar as nossas emoções, seja qual for o momento ou circunstância, nós devemos sempre... controlar as nossas emoções, se estivermos nervosos. Não é para nós descontarmos em outras pessoas, mas sim, procurar ajuda, conversar e aliviar o estresse, se estivermos tristes. É só fazer aquilo que nós gostamos que nos deixa mais felizes, e não ficar tristes.”.
No entanto, o diário do investigador indicou que ainda há desafios, principalmente na gestão emocional durante as práticas desportivas, com alunos demonstrando comportamentos instáveis, frustrações e raiva: “A gestão emocional durante as partidas é muito fraca, os alunos apresentam comportamentos instáveis ao longo das situações de jogo, não conseguindo conter suas frustrações e raivas.” (Diário de campo, semana 18). Foram implementadas soluções, como o uso do cartão branco para incentivar o fair play, que mostrou melhorias, mas a continuidade do projeto é considerada essencial para consolidar o aprendizado.
As respostas dos alunos sugerem que o projeto não apenas promoveu o desenvolvimento de competências de autoconhecimento e inteligência emocional, mas também demonstraram como essas competências podem ser aplicadas na vida cotidiana dos alunos. Assim, projetos sócio-desportivos podem contribuir para o bem-estar emocional e social dos alunos, ajudando-os a compreenderem-se a si mesmos e aos outros, e a responder de forma mais eficaz às situações que enfrentam.
A atividade "Jogadores de Futebol que Foram para a Universidade" desempenhou um papel fundamental no projeto, proporcionando aos alunos uma visão inspiradora sobre a combinação do Ensino Superior com uma possível carreira no futebol. Durante essa atividade, exemplos de jogadores de futebol que também concluíram cursos universitários foram apresentados, destacando a ideia de que educação e desporto podem coexistir e até se complementar.
A Teoria da Aprendizagem Social de Bandura (1986) suporta a discussão dos modelos de comportamento, enfatizando que exemplos de indivíduos bem-sucedidos podem ser poderosos impulsionadores para inspirar os alunos a considerarem oportunidades educacionais. Alguns dos pontos trazidos pelos alunos mencionaram que a atividade promoveu a ideia de que o Ensino Superior não é mutuamente exclusivo de uma carreira no desporto e como uma oportunidade para entenderem as suas aspirações futuras e expandir as suas opções, contribuindo para o desenvolvimento de uma perspectiva de futuro mais informada e consciente, conforme diz uma das alunas: “Ah, foi da vossa universidade, isso. (…) É p’ra nós sabermos aquilo que nós queremos ser no futuro e nos ajudar a ter mais escolhas.”.
No contexto global, as desigualdades no acesso ao Ensino Superior são uma preocupação significativa, com disparidades acentuadas entre países de baixa e alta renda. Segundo dados do Relatório de Monitoramento Global da Educação da UNESCO de 2020, apenas cerca de 38% dos jovens em países de baixa renda têm acesso ao ensino superior, em comparação com 74% em países de renda alta. Em Portugal, dados do Instituto Nacional de Estatística de Portugal (INE) mostram que, em 2019, apenas cerca de 35% dos jovens de famílias com baixo nível educacional matricularam-se no ensino superior, enquanto a taxa de matrícula para jovens de famílias com níveis educacionais mais elevados foi significativamente maior, aproximando-se de 80%.
Atividades deste género são uma ferramenta valiosa na promoção do Ensino Superior como uma opção viável para os alunos, e abordam a desigualdade educativa, ressaltando a importância de informar e motivar os alunos, especialmente aqueles inseridos em comunidades sub-representadas, a buscar o Ensino Superior como uma maneira de superar barreiras sociais e económicas. As respostas dos alunos demonstram a importância dessa atividade para a revisão de suas expectativas em relação a uma carreira no futebol e a compreensão de como a educação superior pode ser uma escolha valiosa. Isso é especialmente significativo, considerando as desigualdades no acesso ao Ensino Superior, tanto em escala global, como em Portugal.
A Interculturalidade é um tema de crescente relevância no contexto escolar contemporâneo, especialmente em sociedades caracterizadas pela crescente diversidade cultural e étnica. Este tema é uma realidade nas escolas, onde estudantes de diferentes partes do mundo se encontram, trazendo consigo identidades culturais únicas. Não apenas a Escola Marques Leitão, mas o próprio projeto contava com alunos de diferentes nacionalidades e, assim, procurou-se abordar a questão da interculturalidade de uma forma saudável e atrativa para os alunos, aproveitando o contexto do Mundial de Futebol 2022.
A realização de um quiz com perguntas sobre curiosidades das culturas dos países participantes permitiu aos alunos aprender sobre diferentes culturas, compartilhar experiências e construir pontes de compreensão e respeito mútuo. A interação diária com colegas de diferentes origens culturais desempenhou um papel crucial na promoção da interculturalidade no ambiente escolar, desafiando estereótipos, celebrando diferenças e cultivando empatia. Isso se observa na fala de um aluno: “Na Índia… tipo lá, o (nome) (aluno participante) falou comigo que ele não come vaca, nem peixe, não come carne. Por isso que ele na hora do almoço ele só come batata ou arroz.”.
Além disso, o contexto desportivo foi destacado como uma linguagem comum em ambientes multiculturais. O envolvimento em atividades desportivas, independentemente da origem cultural, língua materna ou bagagem étnica, permitiu que os participantes compartilhassem o interesse em comum pelo desporto, superando barreiras culturais e linguísticas de maneira orgânica. O desporto não só promoveu conexões sociais, mas também proporcionou um senso de pertença, sendo uma ferramenta valiosa para combater a desigualdade.
Também, estudos como de Filho (2011) e Marivoet (2014) destacam que a participação em atividades desportivas promove habilidades como liderança, trabalho em equipa, resolução de conflitos e autoconfiança. Essas competências são essenciais para a integração bem-sucedida na sociedade hospedeira e para a obtenção de melhores oportunidades de educação e emprego.
As atividades pedagógicas relacionadas à igualdade de género desempenharam um papel fundamental na promoção da conscientização sobre a importância da igualdade entre meninos e meninas, inclusive no contexto desportivo. Ainda neste contexto, investiga-se como o futebol misto, que envolve meninos e meninas jogando em equipas conjuntas, influencia a percepção das crianças sobre as diferenças de género, bem como os desafios e benefícios dessa prática. Os resultados das atividades destacam a relevância da educação não-formal como uma ferramenta poderosa para desconstruir estereótipos de género e abordar as desigualdades entre os sexos.
Nas entrevistas, os alunos ressaltaram a importância de garantir que todos tenham os mesmos direitos e oportunidades, independentemente do seu género. A disparidade salarial entre homens e mulheres foi abordada, destacando a necessidade de igualdade salarial. Como enfatiza um dos alunos: “Igualdade género. (…) Os homens deviam receber a mesma coisa que as mulheres, salário.”. Suas palavras ecoam as conclusões do trabalho de Dias (2007), que analisa as desigualdades de género no contexto familiar e de trabalho, destacando a persistência de estereótipos e desigualdades salariais, sendo o reconhecimento dessas desigualdades um passo fundamental para a mudança.
A conscientização sobre a violência de género emergiu como outra preocupação dos alunos, por exemplo na fala de outro aluno: “Não baterem nas mulheres. Respeitar as mulheres.”. Eles ainda destacaram situações em que as mulheres são impedidas de realizar atividades devido ao controlo exercido pelos maridos, ressaltando a importância de não bater nas mulheres e de respeitá-las. Essa consciencialização é fundamental para promover a igualdade e contribuir para uma mudança cultural.
Além disso, os alunos aprenderam que ambos os géneros são igualmente capazes de realizar as mesmas tarefas e atividades. Segundo afirmação de uma aluna: “Eu gosto da igualdade de género. (…) Porque as raparigas também podem fazer coisas que os rapazes fazem. Sim. Não é só os rapazes que são mais fortes, conseguem as coisas mais rápido que as raparigas, as raparigas podem fazer as mesmas coisas que eles podem fazer.”. Isso é particularmente relevante no contexto do desporto, onde as meninas têm a oportunidade de jogar futebol/futsal, desafiando a ideia de que certas atividades são exclusivas para um género. Como Marivoet (2014) argumenta, atividades como o desporto podem ajudar a desconstruir estereótipos prejudiciais sobre o que é apropriado para cada género, promovendo uma visão mais igualitária da sociedade.
No entanto, algumas crianças reconhecem discrepâncias percebidas nas áreas emocionais. Muitos meninos tendem a adotar uma abordagem mais competitiva, enquanto várias meninas veem o jogo como uma oportunidade para diversão e socialização, como diz uma aluna: “Mais ou menos, o menino é mais bruto, a menina é mais... ‘Ah, estou a perder, mas não faz mal’, tipo…”. Ainda, algumas crianças também expressaram visões mais tradicionais, sugerindo que as meninas não são tão boas quanto os meninos no futebol, o que pode ser influenciado por estereótipos de gênero. No entanto, quando instigados a refletir mais profundamente, reconhecem que, se as meninas se esforçarem, podem ter sucesso no desporto. Assim, um dos alunos partilha: “Se as meninas esforçassem... bem, eu nem sei quanto se esforçam… mas se esforçassem o mesmo e conseguiriam o mesmo.”.
Autores como Parada (2017) examinaram as dinâmicas de género no desporto, incluindo o futebol, e enfatizaram a necessidade de criar espaços desportivos inclusivos e equitativos. A questão de dividir meninos e meninas em grupos separados foi debatida entre os alunos. Alguns apoiam a ideia de grupos exclusivos para meninas, argumentando que isso pode criar um ambiente onde as meninas se sintam mais à vontade e empoderadas para jogar. Uma das alunas justifica: “Sim, muito. (…) Porque as raparigas... porque eu sou rapariga e aí com outras acho que estava melhor eu me sentia tão... (…) Os rapazes ficam só com eles, com os grupinhos deles e assim com as raparigas todas elas.”. No entanto, outros defendem o futebol/futsal misto, argumentando que isso promove a igualdade de género no desporto e desconstrói estereótipos, conforme fala de outra aluna: “Não. Porque p’ra mim, tipo, jogar só com meninas não vai ser divertido. Tem que ser tipo, meninos e meninas. P’ra ter mais... não sei, p’ra ter mais vontade de ir, tipo, p’ra ser mais divertido. P’ra estar com todos no caso, não é? P’ra ser igualdade de género, tipo, não faz sentido ter só de meninas.”.
Em resumo, o projeto "Futebol para Cidadania" desempenhou um papel importante na promoção da igualdade de género no desporto. As crianças envolvidas no projeto têm uma compreensão crescente e reconhecem a importância de criar um ambiente esportivo inclusivo. A discussão sobre dividir meninos e meninas em grupos separados reflete diferentes perspectivas sobre como alcançar a igualdade de género no desporto, reconhecendo que ambas as abordagens têm vantagens e desvantagens significativas. Esses resultados demonstram que a educação não-formal, apoiada pelo desporto, é uma ferramenta eficaz na promoção da igualdade de género e na desconstrução de estereótipos, contribuindo para uma sociedade mais justa e igualitária.
O impacto do projeto no comportamento e conflitos entre alunos
Segundo a análise, o projeto teve um impacto positivo no comportamento dos alunos, de modo que as atividades pedagógicas e desportivas desempenharam um papel fundamental na promoção de competências comportamentais e na gestão construtiva de conflitos entre os alunos.
A coordenação da escola registou uma diminuição significativa nas visitas à coordenação devido a comportamentos inadequados, o que sugere que as atividades do projeto efetivaram num comportamento mais adequado e responsável. Ela aponta: “De uma maneira geral acho que a maioria deles deixam de ter aquela frequência na coordenação que tinham, que era quase semanalmente, iam à coordenação, tinham um tipo de comportamento menos adequado e agora acho que este ano esses alunos deixaram de o fazer.”.
O projeto também desenvolveu a empatia entre os alunos, ajudando-os a compreender que os outros também podem enfrentar problemas que afetam seu comportamento. O desporto é uma plataforma valiosa para o desenvolvimento dessas habilidades comportamentais, além de ensinar respeito e colaboração. A estagiária de Educação Social argumenta: “Nota-se que já não têm tanto conflito entre eles, um dos outros, mesmo no futebol, nas frustrações que eles sentem. Porque o André dá aquele cartão branco, então eles querem aquele cartão branco, porque... pronto. É um pouco lutar por algo que lhes vai criar atenção, que estas crianças também… dá para perceber que não têm atenção.”.
Embora o projeto tenha tido um impacto positivo na redução da violência escolar e na promoção de competências socioemocionais, os alunos ainda relataram situações de conflito. Como explica um aluno: “Tem quando ah… o (nome do aluno)... ele disse, ‘És uma merda’.. Gritou isso três vezes na minha cara porque eu não tinha defendido um gol. Ok, é aquela coisa que também... os teus colegas às vezes ficam um bocadinho... é, é por isso que eu estou.. me preocupo a não fazer asneiras.”. Isso é entendido à luz do desenvolvimento cognitivo e emocional dos alunos, bem como do contexto socioeconómico em que vivem. Como mencionado por Gohn (2007), o contexto também desempenha um papel significativo na promoção da violência e da desigualdade. Crianças que crescem em comunidades subdesenvolvidas muitas vezes estão expostas a condições de vida desfavoráveis, incluindo falta de acesso a recursos e modelos positivos de referência.
No entanto, dentro daquilo que foi possível analisar, o projeto contribuiu para a redução dos conflitos e para o desenvolvimento das competências socioemocionais dos alunos. Eles aprenderam a autorregular emoções, a lidar com a frustração e a trabalhar em equipa. Em última análise, o projeto ilustra como a educação não-formal, apoiada pelo desporto, é uma ferramenta eficaz na promoção de valores positivos, competências comportamentais e na gestão construtiva de conflitos. Além de melhorar o desempenho académico, o projeto visava moldar indivíduos responsáveis, respeitosos e preparados para enfrentar os desafios da vida de maneira construtiva.
Integração e socialização: o papel do projeto na comunidade escolar
A integração, o sentido de pertença e as conexões estabelecidas entre o projeto e a escola são aspectos essenciais para compreender como a educação não-formal e as atividades desportivas podem afetar a vida dos alunos, além de explorar a relação entre o projeto e a comunidade. Ao questionar os alunos sobre o seu relacionamento com outros participantes e pessoas envolvidas no projeto, foi possível constatar a forma como o projeto contribuiu para a integração e a socialização dos alunos.
Em primeiro lugar, os alunos destacaram que o projeto teve um impacto altamente positivo na promoção da socialização e na formação de novas amizades. Muitos alunos mencionaram ter feito novos amigos como resultado da sua participação no projeto. Além disso, o projeto parece ter contribuído para a integração de alunos recém-chegados à escola, mostrando como atividades não-formais e desportivas podem promover a inclusão social. Como se observa na partilha de um aluno de 5º ano: “(Ajudou) A adaptar-me. (…) Porque no caso que eu não ia conhecer ninguém e com o projeto eu conheci várias pessoas.”. Isso realça o papel fundamental da educação não-formal e do desporto como ferramentas de integração, oferecendo oportunidades para jovens que podem não se sentir completamente integrados no ambiente escolar tradicional (Marques, 2021).
Uma observação relevante é que os próprios alunos desempenharam um papel ativo na promoção da integração, convidando outros a se juntarem ao projeto, conforme diz um aluno: “Ele (colega) só começou a ir porque eu fui chamar ele. Falei: ‘fala com seu pai p’ra ver se ele deixa’.”. Isso demonstra como os jovens não são apenas beneficiários, mas também agentes de mudança na comunidade. Eles não apenas desfrutam da socialização, mas também contribuem para a expansão do projeto.
Essa oportunidade de socialização não só cria laços de amizade entre os alunos, como também promove uma relação mais estreita dos jovens com a escola. Como diz o professor de Educação Física: “Porque eles ligam os miúdos à escola. São neste tipo de atividades que ligam os miúdos à escola. Que eles se passam a identificar. (…) Quando eles dizem, esta é a minha escola, eles identificam-se com tudo aquilo que se passou, com as pessoas, com o que passaram na vida deles. (...) E esta mensagem, e eles perceberem que a escola é um porto seguro, é um porto em que eles vão ganhar uma base para o resto da vida, quer a nível de conhecimento, quer a nível de ligações.”. A escola se torna um porto seguro, e os alunos passam a se identificar com ela, o que é fundamental para o seu sucesso académico e desenvolvimento pessoal.
Outro aspeto abordado pela investigação foram os eventos comunitários realizados como parte do projeto Futebol para Cidadania. Esses eventos tinham o objetivo de fortalecer os laços entre as famílias, alunos e a escola, promovendo a integração comunitária. Eles ocorreram duas vezes ao longo do ano letivo e contaram com a presença de familiares, funcionárias da escola, representantes da comunidade e membros da administração escolar.
Esses eventos desempenham um papel fundamental na construção de parcerias efetivas entre a escola e a comunidade. Eles demonstram que a escola valoriza a participação ativa dos pais e da comunidade, mostrando que a educação é uma responsabilidade compartilhada. Os eventos criaram um ambiente onde a comunidade se sentiu valorizada e parte integrante do processo educativo, o que, por sua vez, pode contribuir para a redução da violência e desigualdade (Mota & Lopes, 2017).
As respostas obtidas durante as entrevistas e o focus group indicaram que esses eventos tiveram um impacto significativo nos participantes, tanto nos alunos quanto nos seus familiares, como se observa na fala de uma aluna: “Eu achei divertido, nós vermos com os nossos pais e... jogarmos com eles.”. Isso não só fortalece a autoestima dos alunos, mas também contribui para o desenvolvimento de habilidades sociais, como empatia e comunicação. O presidente da Associação de Pais também partilha: “Mas sim, eu também acho que esta parte de envolver os pais... ajuda a comunidade. E… mas a questão é uma coisa, é que... estes projetos que tragam os pais à escola, eu não digo que são os interessados, mas digo que são os pais que estão mais atentos, que vêm à escola, participam nestes projetos, vão transmitir a outros pais.”.
O envolvimento dos pais e da comunidade é fundamental para programas de educação compensatória que visam atender às necessidades específicas dos alunos em contextos subdesenvolvidos. Essa abordagem reconhece que a educação não se limita às salas de aula, mas é um processo que envolve toda a comunidade escolar e local.
Inclusão e desporto: lições aprendidas e recomendações futuras
Após uma análise abrangente do projeto Futebol para Cidadania na Escola EB 2,3 Marques Leitão do Agrupamento de Escolas de Valbom durante o ano letivo 2022/2023, várias conclusões e recomendações surgem para orientar o futuro de projetos e investigações sobre inclusão social e desporto.
Relevância da Educação Compensatória: o projeto demonstrou ser uma iniciativa altamente relevante no contexto da educação compensatória. Este projeto ofereceu oportunidades valiosas para os alunos que enfrentavam desafios académicos e socioeconómicos significativos. Além de promover a educação não-formal e a aprendizagem através do desporto, atuou como um catalisador para o desenvolvimento de competências socioemocionais.
Desenvolvimento de competências socioemocionais: o projeto ajudou os alunos a desenvolver competências socioemocionais, como o autoconhecimento, a inteligência emocional e a gestão de conflitos. Isso é essencial para seu sucesso académico e pessoal. A abordagem educacional não-formal, ao combinar atividades desportivas e pedagógicas, mostrou-se eficaz na promoção dessas competências.
Promoção de hábitos de vida saudáveis: além das dimensões educacionais e socioemocionais, o projeto contribuiu para a promoção de hábitos de vida saudáveis, incluindo a atividade física e a alimentação equilibrada, que são cruciais em contextos desfavorecidos.
Socialização e bem-estar dos alunos: o projeto proporcionou oportunidades valiosas para a socialização entre pares, criando um ambiente onde os alunos puderam brincar, desfrutar da companhia de amigos e, assim, promover seu bem-estar emocional e psicológico.
Promoção da igualdade de género: o futebol misto desempenhou um papel importante na promoção da igualdade de género ao desafiar estereótipos arraigados e promover uma cultura de igualdade e respeito entre meninas e meninos. Os alunos demonstraram apoio à ideia de jogar em conjunto, independentemente do género, e aprenderam sobre a importância da igualdade de género.
Eventos comunitários para integração: os eventos comunitários representaram oportunidades valiosas para a integração e socialização dos alunos, conectando a escola com a comunidade circundante e fortalecendo os laços entre a escola e as famílias.
Desafios na participação dos professores e funcionários: a falta de envolvimento ativo dos professores e funcionários da escola foi um desafio significativo. A participação desses profissionais é essencial, não apenas como educadores, mas também como modelos e mentores.
Com base nestas conclusões, pode-se também indicar algumas recomendações, como por exemplo a continuidade de projetos deste âmbito. As vozes dos próprios alunos, que expressaram o desejo de que o projeto Futebol para Cidadania continuasse, devem ser ouvidas e consideradas com seriedade pelas partes interessadas. A continuidade é essencial para consolidar as aprendizagens dos alunos. Para além disto, a recolha e análise de dados quantitativos e qualitativos deve ser usada para avaliar o impacto do projeto a longo prazo. Isso permitiria uma compreensão mais profunda do seu efeito e ajudaria a identificar áreas que podem ser aprimoradas. Estudos longitudinais que acompanhem o progresso dos alunos ao longo de vários anos podem fornecer insights mais abrangentes sobre o impacto do projeto a longo prazo.
Outra sugestão é desenhar projetos com foco em temas específicos, que sejam considerados importantes e relevantes no contexto considerado, como igualdade de género, educação financeira, cidadania ativa e saúde mental. Isso permitiria que os alunos adquirissem conhecimentos práticos relacionados com questões relevantes. Por outro lado, para abordar questões de inclusão social de forma abrangente, seria importante realizar pesquisas específicas com públicos que historicamente foram marginalizados ou enfrentaram desafios únicos, como por exemplo o caso de imigrantes e refugiados ou jovens de casas de acolhimento.
Finalmente, de modo a avançar na área da inclusão social através do desporto, poderia ser interessante construir uma metodologia multidisciplinar incluindo contributos da Sociologia, da Pedagogia, da Psicologia e do Desporto, trazendo diversas perspetivas e insights valiosos. Desenvolver métodos de execução e avaliação de desempenho que vão além das habilidades físicas e desportivas poderão fornecer uma compreensão mais completa dos resultados e impactos do desporto na inclusão social.