Caras e caros colegas e estudantes,
Permitam-me, antes de mais, que comece por agradecer ao Departamento de Sociologia da FLUP o convite para participar nesta sessão de entrega do «Prémio Dulce Magalhães». Quando o Professor Virgílio Borges Pereira me fez o convite, tinha consciência de que pouco ou nada de novo poderia dizer num encontro de sociólogos. Mas a memória saudosa da Dulce encarregou-se de responder por mim…
Por isso, aqui estou com muito prazer, pedindo-lhes a Vossa compreensão para as minhas palavras, que são as de um historiador andarilho, que sempre defendeu o diálogo, e até a vagabundagem transdisciplinar, entre todos os campos do conhecimento, e sobretudo entre todas as ciências sociais, em particular, entre a História e a Sociologia. Não o «diálogo de surdos», a que se refere Peter Burke2, mas o que decorre da sua proposta de «uma história social ou uma sociologia histórica - a distinção é irrelevante - que deve estar relacionada tanto com a compreensão de dentro como com a explicação de fora; tanto com o geral como com o particular; e que consiga combinar o sentido apurado para a estrutura do sociólogo como o igualmente penetrante sentido de mudança do historiador»3.
Quando conheci a Dulce, há uns bons 35 anos - ela jovem socióloga, do grupo dos novos docentes do recém-formado curso de Sociologia da FLUP, liderado pelo Prof. Teixeira Fernandes desde a sua fundação em 1985; eu, poucos anos mais velho, historiador em busca de caminhos novos na História Social, que trocara, nesse ano de 1987, a Faculdade de Economia pela de Letras -, muitas das nossas conversas giraram em torno dessa relação problemática no seio das Ciências Sociais, das perspectivas de historiadores e sociólogos sobre temas comuns e de como poderiam conjugar-se. E também sobre o papel social dos académicos, a abertura do saber universitário à sociedade, a eficácia social do ensino superior e da investigação.
Entre 1984 e 1987, eu tinha integrado o grupo de Ciências Sociais da Faculdade de Economia, liderado pelos Professores Armando de Castro e José Madureira Pinto, tendo como colegas mais velhos António Joaquim Esteves, António Almodôvar, Fátima Brandão e Augusto Santos Silva, sociólogos e historiadores, com quem partilhava boa parte das minhas preocupações sobre o papel da Universidade e das Ciências Sociais. Os meus impulsos de «cidadania activa», descomprometida mas empenhada na liberdade do «pensamento crítico», levavam-me a recusar as fronteiras, por vezes muros, entre a Universidade e a sociedade, assumindo que os problemas de ambas se entrecruzam e se contaminam.
Por essa altura, entre finais da década de 1980 e inícios da seguinte, de forma ainda sub-reptícia, a submissão a lógicas empresarialistas, o empreendedorismo, a desvalorização das humanidades e do pensamento crítico ou o enfraquecimento do espírito de comunidade começavam a afectar tanto a sociedade no seu conjunto como a Universidade, esmorecendo valores democráticos que a minha geração dera por adquiridos.
Eram sinais que nos preocupavam, enquanto tentávamos trilhar caminhos novos nas nossas áreas científicas. Entre a velha e a nova Faculdade, cruzava-me, a cada passo, com a Dulce e partilhávamos ideias e dúvidas sobre os temas e os trabalhos que tínhamos em mãos, e também sobre a instituição e o nosso papel como docentes e investigadores. A Dulce procurava compreender práticas sociais, desde o lazer (1991) à alimentação (1994), a sua diferenciação social e as trajectórias intergeracionais, enquanto eu enveredava pelos caminhos largos e inseguros da História Social, em especial pela História da Família, no âmbito do meu doutoramento (1993), em que mantive contactos frutuosos com os sociólogos e as sociólogas não só da FLUP mas também do Instituto de Ciências Sociais, de Lisboa, nomeadamente a Ana Nunes de Almeida e a Karin Wall, que me proporcionaram o contacto com a historiadora americana e então diretora do Journal of Family History, Tamara Hareven, cujos conselhos foram preciosos para a conclusão da minha tese Famílias Portuenses na viragem do século (1880-1910). A recusa em aceitar «uma história social abstrata e homogeneizada, desprovida de carne e de sangue, e não convincente, apesar do seu estatuto científico», nas palavras de Steven Kaplan4, levava-me a rejeitar tanto os modelos como as dicotomias tradicionais da historiografia, «indivíduo-sociedade», «local-global», «acontecimento-estrutura» e outras. E a regressar aos ensinamentos mais prosaicos e prudentes de Marc Bloch, prestando atenção à terra e aos homens, a todos os homens, na sua diversidade5, obviamente sem exclusão das mulheres, a par da revalorização das fontes documentais e do trabalho de arquivo. E, também, à perspectiva biográfica, então pouco na moda, mas que eu tentava reforçar, valendo-me dos ensinamentos de Ginzburg e de Bourdieu, com a análise intensiva da micro-história e com a indispensável contextualização.
Em 1994, no ano em que a Dulce realizou as suas provas de aptidão pedagógica e capacidade científica, envolvi-me na criação de um novo centro de investigação, o Grupo de Estudos de História da Viticultura Duriense e do Vinho do Porto, muito estimulado por um amigo comum, o geógrafo François Guichard, de Bordéus, que, em finais da década de 70, fundara, em colaboração com o historiador Luís Oliveira Ramos, o CENPA - Centro de Estudos Norte de Portugal-Aquitânia, um espaço de investigação e de intercâmbio científico entre o Porto e Bordéus. Com uma obra notável sobre o Porto e o Norte de Portugal, a demografia, a problemática regional, as questões de identidade e de fronteira, a região do Douro e o vinho do Porto, as minorias religiosas, entre outras temáticas, Guichard era uma personalidade agregadora, com um espírito humanista, aberto a todos os questionamentos e a todas as áreas do conhecimento, com uma capacidade de trabalho impressionante, tanto nas bibliotecas e arquivos como no terreno. As conversas sempre estimulantes com Guichard, que passava temporadas no Porto, marcaram uma geração de geógrafos, historiadores e sociólogos, em que eu e a Dulce nos incluíamos. Provavelmente, sem a influência e o estímulo do François Guichard, nunca me teria lançado no estudo da história do Douro e dos seus vinhos, das quintas, das empresas, das marcas. E talvez a Dulce também não tivesse trilhado o percurso difícil que seguiu desde então, com o estudo intensivo das práticas de consumo e das sociabilidades nas tabernas do Porto e de Gaia, das representações sociais do vinho e da formação de gostos, que viria a constituir a sua tese de doutoramento em Sociologia, apresentada à FLUP, em 2005, Dimensão simbólica de uma prática social: consumo do vinho em quotidianos portuenses (mais de 900 páginas), parcialmente publicada, em 2010, pelas Edições Afrontamento, com o título Vinhos: arte e manhas em consumos sociais. A apreensão de uma prática sociocultural em contexto de mudança.
Permitam-me que leia uma breve passagem de um texto da Dulce sobre consumos e sociabilidades nas tabernas, para se perceber em que mundo inóspito ela teve a coragem de penetrar e aí realizar, durante anos, a sua investigação de campo:A taberna é um espaço eleito por excelência por uma população masculina. Espaço fechado, restrito em tamanho e acesso, por ele passam vidas tradicionais, vidas ambíguas, vidas tristes; mas nele passam também vidas bizarras, vidas agressivas, enfim, vidas que se passeiam. Não é fácil penetrar-se em espaços destes, onde a diferença aglutina olhares, interrogações, estranheza - tudo isso agravado ainda pela diferença sexual que impede a diluição da investigadora nas gentes habituais. Espaço masculino por tradição, nele se particularizam tipos de sociabilidades com caracteres-ticas específicas. Note-se que impera aqui uma apropriação agressiva do espaço, brusca, voluntariosa - que vai da postura corporal à manipulação transgressora da linguagem LLLLLL expressa pelo (ab)uso do calão e do vernáculo mais duro. Os clientes conhecem-se uns aos outros, dado o ponto comum da sua rotina diária que culmina num ponto de encontro sem necessidade de marcação prévia.6
Entretanto, o François Guichard tinha falecido, tragicamente, em 2002. E, desde finais dos anos 90, eu tinha-me envolvido na preparação da candidatura do Alto Douro Vinhateiro a Património Mundial e na instalação do Museu do Douro. Quando regressei definitivamente à FLUP, em 2007, muitas coisas tinham mudado, e mudaram ainda mais a partir de então, nem sempre para melhor, com a integração no processo de Bolonha, o RJIES, a expansão dos cursos de 2.º e 3.º ciclos, as dificuldades financeiras da FLUP, a redução e envelhecimento do corpo docente, a criação dos serviços partilhados da UP, a deslocalização de funcionários, etc.
Nos últimos anos, sobretudo em 2016, as conversas com a Dulce acumularam momentos de desilusão e tristeza. Embora a Dulce trouxesse sempre o mesmo sorriso nos olhos e a esperança de melhores dias, não gostei de a ver com o lenço a cobrir-lhe a cabeça. Ficava-lhe bem, mas queria voltar a vê-la de cabelo solto, sem sinais da quimioterapia. Desgraçadamente, o tempo correu demasiado depressa contra ela. Em Outubro de 2016, um telefonema de uma amiga comum (se a memória não me trai, a Helena Vilaça), deixou-me em choque com a notícia da morte da Dulce…
A memória que dela guardo é a de uma colega generosa, sempre preocupada com os outros, a começar pelos estudantes. Por isso, fiquei contente quando soube da atribuição do seu nome a este Prémio, no último ano em que ainda trabalhei na FLUP. E fico-vos grato por se terem lembrado de mim na edição deste ano, e por me darem a oportunidade para recordar aqui a Dulce e os percursos cruzados que fizemos nesta Faculdade.
Permitam-me que finalize com algumas palavras sobre o livro7 que vai ser oferecido às estudantes premiadas. Trata-se de um livro em que procuro compreender a história de vida de um jovem dinamarquês, que se fixou no Porto com 15 anos, depois de ter fugido do barco em que seguia como grumete, e aqui deu origem quer a uma larga descendência, hoje espalhada por todo o país e por todo o mundo (EUA, Brasil, Chile, Inglaterra, França, Austrália, etc.), quer a uma empresa de sucesso. Não vou contar agora essa história, mas gostaria apenas de salientar que a abordagem biográfica que fiz procurou cruzar temporalidades diversas: o tempo individual e o tempo da família com o tempo empresarial e o tempo histórico, com atenção especial às transições, tal como aprendi com Tamara Hareven… Sem desprezar, claro, o nome, não só na perspectiva pessoal (mas que envolve identidades e relações múltiplas, no sentido que lhe deu a nossa querida Ana Luísa Amaral, num dos seus poemas - «Pergunto: o que há num nome? / De que espessura é feito se atendido, / que guerras o amparam, / paralelas?»8 -, mas sobretudo como nome de família e «capital social simbólico», na linha de Pierre Bourdieu, mesmo que muitos descendentes do primeiro Andresen já nem usem Andresen no apelido ou sobrenome. Mas reconhecem-se nele, guardam memórias dos seus ascendentes do Porto (basta ler o conto «Saga», de Sophia de Mello Breyner Andresen, ou a narrativa autobiográfica, O Mundo à Minha Procura, de Ruben A., ambos bisnetos de J. H. Andresen), trocam correspondência com «primos» e «primas», esforçam-se por manter a continuidade do «espírito de família» ou, nas palavras de Bourdieu, do «sentimento familiar, princípio cognitivo de visão e de divisão que é ao mesmo tempo princípio afectivo de coesão, quer dizer adesão vital à existência de um grupo familiar e dos seus interesses»9.
Claro que, na perspectiva do «capital simbólico» que o nome representa, se poderia avançar para outra discussão, sobre a diferenciação social dos usos do nome, tanto nas elites como nas camadas populares, seja o nome de família seja o nome próprio, como aponta o final de um texto luminoso de Virgílio Borges Pereira, em que associa o nome de alguns líderes de associações de moradores do Porto, após o 25 de Abril de 1974, ao «crédito que inspira(va)m entre os seus vizinhos»10.
Seria uma longa conversa, que deixo para quando tivermos mais tempo.
Obrigado!
Porto, 7 de Dezembro de 2023
Gaspar Martins Pereira